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Discriminação e estigma na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos

Resumo

Este artigo aborda os conceitos de não discriminação e não estigmatização, tratados na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos como imperativos da bioética, visando preservar a identidade e a integridade de indivíduos sobrepujados por relações desiguais de poder. O objetivo do texto é apresentar brevemente os processos pelos quais o estigma se constrói e as raízes do preconceito e da intolerância, que culminam em discriminação social. O artigo ainda aborda a responsabilidade do Estado na eliminação das causas e consequências da discriminação e da estigmatização.

Discriminação social; Estigma social; Estereotipagem; Bioética

Abstract

This article addresses the concepts of non-discrimination and non-stigmatization, discussed in the Universal Declaration on Bioethics and Human Rights as imperatives of bioethics, aiming to preserve the identity and integrity of individuals burdened by unequal power relations. The article briefly presents the processes that construct the stigma and roots of prejudice and intolerance, culminating in social discrimination. The article also addresses the State’s responsibility in eliminating the causes and consequences of discrimination and stigmatization.

Social discrimination; Social stigma; Stereotyping; Bioethics

Resumen

Este artículo aborda los conceptos de no discriminación y no estigmatización, abordados en la Declaración Universal sobre Bioética y Derechos Humanos como imperativos de la bioética, con el objetivo de preservar la identidad e integridad de los individuos dominados por relaciones de poder desiguales. El objetivo del texto es presentar brevemente los procesos mediante los cuales se construye el estigma y las raíces del prejuicio y la intolerancia, que culminan en la discriminación social. El artículo también aborda la responsabilidad del Estado en la eliminación de las causas y consecuencias de la discriminación y la estigmatización.

Discriminación social; Estigma social; Estereotipos; Bioética

Os princípios da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) 11. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 4 abr 2021]. Disponível: https://bit.ly/3mZ1Wuh
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demonstram o caráter de profundidade, complementaridade e interdependência pretendido por seus idealizadores e protagonistas. Essas características culminaram em sua recepção por ampla maioria dos Estados-membros da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), com consequente homologação em 2005.

A DUBDH serve de pressuposto bioético para a conduta de Estados e cidadãos. Os princípios nela contidos balizam comportamentos e atitudes e levam os países a rever práticas internas (humanitárias, políticas, globais etc.) sem deixar de respeitar o contexto histórico-cultural em que os indivíduos estão inseridos. O documento considera a dignidade plena da pessoa, em sua liberdade original, por meio de saberes e práticas multi, inter e transdisciplinares, ante litígios sociais particulares, sem deixar de constatar avanços e retrocessos sociais evidentes.

Entre os princípios da DUBDH, em seu artigo 11 encontram-se a não discriminação e a não estigmatização. Esses princípios interagem com outros elencados na mesma DUBDH 11. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 4 abr 2021]. Disponível: https://bit.ly/3mZ1Wuh
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, a exemplo da dignidade da pessoa humana, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.

Não discriminação e não estigmatização

De acordo com o artigo 11 da DUBDH, nenhum indivíduo ou grupo deve ser discriminado ou estigmatizado por qualquer razão, o que constitui violação à dignidade humana, aos direitos humanos e liberdades fundamentais 11. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 4 abr 2021]. Disponível: https://bit.ly/3mZ1Wuh
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. Esse artigo se contrapõe a práticas arraigadas, geradoras de discriminação, com causas históricas e presentes na contemporaneidade, e que obscurecem a identidade de indivíduos e grupos e os torna indignos, malvistos, privando-os de seu processo de crescimento humano e social.

Para melhor compreender os termos que serão tratados adiante, é oportuno ressaltar que a palavra “identidade” vem do latim idem , “igualdade e continuidade”, e diz respeito à qualidade daquilo que é idêntico, ao estado de algo que não se modifica 22. Maltez JA. Identidade [Internet]. Lisboa: Respublica; 2009 [acesso 4 abr 2021]. Disponível: https://bit.ly/3C40kUh
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. A identidade de uma pessoa tem íntima relação com os processos sociais por ela vividos, dentre eles a aceitação social ou a estigmatização e a discriminação.

O conceito de estigma sofreu alterações ao longo da história. Na Grécia antiga, o estigma era uma marca (corte ou queimadura) no corpo que significava algo negativo para a convivência social. A marca recebida pelo indivíduo o identificava como sujeito a ser evitado, ou que tinha cometido algum mal para a sociedade 33. Neuberg SL, Smith DM, Asher T. Why people stigmatize: toward a biocultural framework. In: Heatherton TF, Kleck RE, Hebl MR, Hull JG, organizadores. The social psychology of stigma. New York: Guilford Press; 2003. p. 31-61. .

Já na Idade Média, os estigmas eram sinais no corpo que representavam a “graça divina” e se manifestavam na pele por meio de erupções (marcas parecidas com uma rosa, por exemplo). Esses sinais mostravam que o indivíduo tinha sido agraciado por Deus, e o estigma, portanto, não era uma marca negativa.

Na atualidade, o estigma significa algo negativo, que precisa ser evitado, e o indivíduo estigmatizado é visto como ameaça à sociedade. Sua identidade é deteriorada por uma ação ou posição social considerada negativa, o que colabora para que o preconceito, a intolerância, o racismo e a discriminação se perpetuem 44. Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 2013. .

Nesse ponto, cabe diferenciar preconceito e discriminação. Diferentemente do preconceito (presente no âmago do sujeito e, portanto, de foro íntimo), a discriminação se manifesta em condutas ou atos que implicam ação ou omissão que viola direitos tomando por base raça, sexo, idade, estado civil, deficiência física ou mental, opção religiosa etc 55. Joaquim N. Igualdade e discriminação. DireitoNet [Internet]. 2006 [acesso 4 abr 2021]. Disponível: https://bit.ly/3DbWI3W
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. Segundo Rios 66. Rios RR. O conceito de homofobia na perspectiva dos direitos humanos e no contexto dos estudos de preconceito e discriminação. In: Pocahy F, organizador. Rompendo o silêncio: homofobia e heterossexismo na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Nuances; 2007. p. 42-3. , a discriminação fere direitos humanos de modo objetivo e, para enfrentá-la, além do cuidado para evitar sua reprodução automática e inconsciente, é preciso enfrentar seus propósitos intencionais e deliberados.

Mesmo quando não há vontade de discriminar, distinções, exclusões, restrições e preferências injustas nascem, crescem e se reproduzem, perpetuando estruturas sociais discriminatórias 66. Rios RR. O conceito de homofobia na perspectiva dos direitos humanos e no contexto dos estudos de preconceito e discriminação. In: Pocahy F, organizador. Rompendo o silêncio: homofobia e heterossexismo na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Nuances; 2007. p. 42-3. . No Brasil, um país de muitos estigmas e estereótipos, a escola silenciou durante muito tempo sobre essa temática. O objetivo da educação, porém, deve ser exatamente desconstruir estigmas e estereótipos criados ao longo dos séculos, e que colaboram, por exemplo, para a manutenção do racismo.

Deve-se primar por modos de pensar e relações baseadas no ideal de fraternidade, ainda que estas sejam quase impossíveis em nossos dias. Como propõe Lévinas, citado por Sebbah 77. Sebbah FD. Lévinas. São Paulo: Estação Liberdade; 2009. , a partir da conscientização e do conhecimento sobre o semelhante, sobre sua história e vivências, pode-se dar início à desconstrução de fenômenos humanos, históricos e sociais que colaboram para a manutenção do racismo, da intolerância e de todas as formas de preconceito. Com essa busca de compreensão, há grandes possibilidades de que o sujeito estigmatizado seja acolhido e apoiado como ser digno de respeito.

Princípio da não discriminação

A discriminação refere-se, simbolicamente, ao ato de cortar ou separar, representando a ideia de que certas propriedades e características de algumas pessoas são motivos para que seus interesses legítimos sejam desconsiderados em relação aos de outras ditas “normais”. A palavra se origina do vocábulo latino discriminatio , “separação” ou “distinção”. Discriminar não é admitir que as pessoas tenham diferentes características, mas sim diferentes direitos 88. Krüger H. Cognição, estereótipos e preconceitos sociais. In: Lima MEO, Pereira ME, organizadores. Estereótipos, preconceitos e discriminação: perspectivas teóricas e metodológicas. Salvador: Edufba; 2004. p. 23-40. .

Segundo definição do Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa , “discriminar” significa diferenciar, separar, distinguir, estabelecer diferenças 99. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 8ª ed. São Paulo: Positivo; 2010. Discriminar; p. 258. . Trata-se de palavra carregada de sentidos, vivências e aplicações muito mais negativas do que positivas. Nos dias atuais, entretanto, já podemos observar a chamada “discriminação positiva”, por exemplo nas cotas para ingresso de negros e alunos de escolas públicas em universidades ou, ainda, na Lei Maria da Penha, que visa impedir a violência contra mulheres.

A discriminação se refere ao tratamento diferenciado dado a algumas pessoas ou grupos por conta de características e atributos previamente identificados. Geralmente de natureza negativa, a discriminação tende a reforçar a intolerância e a violência. Na interpretação jurídica, discriminar viola o princípio de igualdade, gerando distinção, exclusão, restrição ou preferências motivadas por certas convicções ou características 1010. Garbin CAS, Garbin AJI, Moimaz SAS, Carmo MP. Bioética e HIV/aids: discriminação no atendimento aos portadores. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2009 [acesso 4 abr 2021];17(3):511-22. Disponível: https://bit.ly/3D1Mnb1
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Pierre Bourdieu 1111. Bourdieu P. A dominação masculina. 4ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2005. , em sua obra A dominação masculina , trata da dominação do masculino sobre o feminino, evidenciada pela violência simbólica compartilhada inconscientemente entre dominador e dominado. Segundo o autor, o efeito da dominação simbólica (…) se exerce não na lógica pura das consciências cognoscentes, mas através dos esquemas de percepção, de avaliação e de ação que são constitutivos dos habitus e que fundamentam (…) uma relação de conhecimento profundamente obscura a ela mesma 1212. Bourdieu P. Op. cit. p. 49-50. .

Em contraposição ao histórico princípio da igualdade propalado por Aristóteles (século IV a.C.), e em consonância com instrumentos legais nacionais e internacionais, pode-se dizer que há discriminação social quando um indivíduo ou grupo recebe tratamento diferente e desigual em relação a outros vivendo na mesma sociedade. Vale destacar que a pessoa discriminada está fadada a ser enquadrada num escopo legal (muito embora haja legislação específica tratando da temática no país) em que estão inseridos todos aqueles que, por sua “boa” condição natural ou favorecida, também estão contemplados sob o manto protetor do Estado. Assim, objetivamente, como se constata nos litígios envolvendo vítimas de preconceitos, estereótipos, estigmas e discriminação, a identidade do sujeito é maculada cotidianamente.

A Constituição de 1988 1313. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 5 out 1988 [acesso 4 abr 2021]. Disponível: https://bit.ly/3oeFkpe
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defende que a discriminação seja fortemente combatida e repudiada pelo Estado brasileiro em todos os seus segmentos. A Carta Magna dispõe que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é promover o bem de todos, sem preconceitos e discriminações. Para isso, a Constituição, por meio de suas cláusulas pétreas, obstrui qualquer estímulo às diferenças gerador de discriminações, vedando, por exemplo, critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor, estado civil e deficiência física ou mental.

É no convívio social, pela forma como a sociedade se estrutura, que surgem as condições para práticas discriminatórias que vitimizam sujeitos e grupos 1010. Garbin CAS, Garbin AJI, Moimaz SAS, Carmo MP. Bioética e HIV/aids: discriminação no atendimento aos portadores. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2009 [acesso 4 abr 2021];17(3):511-22. Disponível: https://bit.ly/3D1Mnb1
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. Pelo fato de o preconceito ser moralmente condenado e a discriminação ser juridicamente sujeita à punição, suas manifestações são cada vez mais sutis, disfarçadas, o que dificulta a reunião de provas que tenham validade jurídica. Assim, as várias formas de discriminação acabam se tornando “normais” e, por vezes, afirmam-se como regras. Esse é o caso, por exemplo, da exigência de “boa aparência” para ingressar no mundo laboral 1414. Bandeira L, Batista AL. Preconceito e discriminação como expressões de violência. Estud Fem [Internet]. 2002 [acesso 4 abr 2021];10(1):119-41. Disponível: https://bit.ly/3km6iKm
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Eliminar todo tipo de discriminação é fundamental para qualquer sociedade e governo. Sob o ponto de vista de políticas e ações, observa-se que no Brasil, assim como em outros países, há grupos contrários à instituição de políticas reparadoras de exclusão social por raça ou cor da pele, na medida em que a forma mais cabal de discriminação social hoje seria a pobreza.

A discriminação é a exteriorização do estigma, logo inaceitável, e toda pessoa tem o direito de ser protegida dela. Assim, é dever de todos lutar contra a estigmatização e a discriminação. No caso da DUBDH, o público-alvo compreende Estados (por meio de seus governantes e gestores), profissionais (especialmente da saúde), membros de organizações, imprensa, famílias e indivíduos, vez que toda pessoa que se encontre em posição de ajudar a reduzir a estigmatização e a discriminação de outros mais vulneráveis certamente é um fator agregador para políticas benéficas nesse campo.

É oportuno destacar que o advérbio de negação “não” – denotando denegação, reprovação ou discordância –, aqui utilizado com os termos “discriminação” e “estigmatização”, nada mais é que o imperativo de não dar vazão a práticas discriminatórias e estigmatizantes. Na bioética, os princípios de não discriminação e não estigmatização, assim como outros trazidos pela DUBDH, estão perfeitamente imbricados em suas relações semânticas. Essas relações envolvem vivências particulares culturais únicas, com complexas interpretações e soluções, o que chama a atenção para a necessidade de a bioética abordar conflitos éticos persistentes, que afligem a maioria da população mundial 1515. Ten Have HAMJ, Jean MS. The Unesco Universal Declaration on Bioethics and Human Rights: background, principles and application. Paris: Unesco; 2009. .

Princípio da não estigmatização

Historicamente, o estigma está associado a uma marca feita com ferro em brasa, aplicada a escravos e criminosos. Em termos gerais, estigma designa marca de ferida, cicatriz, sinal persistente e característico de uma doença ou sinal vergonhoso que mancha a reputação do indivíduo no meio social em que está inserido.

Em 1963, o sociólogo canadense Erving Goffman 44. Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 2013. publicou o livro Stigma , no qual define o estigma como marca ou sinal que distancia as pessoas e desvaloriza o indivíduo perante a sociedade. Na atualidade, o termo “estigma” representa algo de mal, que deve ser evitado, uma ameaça à sociedade, isto é, uma identidade deteriorada por uma ação social 1414. Bandeira L, Batista AL. Preconceito e discriminação como expressões de violência. Estud Fem [Internet]. 2002 [acesso 4 abr 2021];10(1):119-41. Disponível: https://bit.ly/3km6iKm
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O estigma, enquanto processo social, nada mais é que um atributo negativo ou depreciativo que faz do sujeito um ser diferente, diminuindo-o e trazendo desvantagens no cotidiano, inclusive no acesso à saúde. Esse é o caso, por exemplo, de indivíduos com doenças degenerativas, mentais e raras. O estigma causa prejuízos na medida em que impede a criação e a garantia de políticas públicas dignas e cidadãs, que humanizem e acolham os portadores de tais doenças e outros males, visíveis ou não.

No meio social, o estigma é a mistura de percepções preconceituosas com expectativas sociais negativas. Um exemplo bastante forte é a estigmagtização das mulheres brasileiras em Portugal, que relatam sofrer preconceito e assédio pela forma como falam a língua portuguesa, interpretada pelos portugueses como atributo de disponibilidade sexual, doce e sensual, como resquício de um olhar patriarcal e colonial 1616. Gomes MS. Gênero, colonialidade e migrações: uma análise de discursos institucionais sobre a “Brasileira Imigrante” em Portugal. Polít Soc [Internet]. 2018 [acesso 4 abr 2021];17(38):404-39. DOI: 10.5007/2175-7984.2018v17n38p404 .

Outro exemplo são as práticas sociais e culturais dos jovens estigmatizados de favelas. Tais práticas são vistas com preconceito e discriminação por parte de grupos hegemônicos, que impõem um padrão estético e cultural percebido e aceito como normal, o que ressignifica negativamente os jovens moradores de favela, não somente em termos de desvantagens, mas também de sentimentos de não aceitação e baixa autoestima.

Segundo Goffman 44. Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 2013. , o fator de incorporação do estigma se expressa na autoimagem do “desacreditado” e desemboca em um processo de autoestigmatização que assimila e normaliza comportamentos oriundos de determinado grupo hegemônico, com referenciais próprios de sociedade, raça, origem etc.

Para Howard Becker 1717. Becker H. Outsiders: estudos da sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar; 2008. , o estigma é um atributo negativo que está profundamente associado às relações sociais de cada indivíduo. Assim, aquilo que estigmatiza um indivíduo tende a confirmar a normalidade de outro. A estigmatização de uma pessoa significa que há nela uma característica diferente da normalidade de outros indivíduos.

Sob essa perspectiva da diferença, Goffman 44. Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 2013. aponta a existência de três grandes grupos estigmatizados. No primeiro grupo, estão os portadores de deficiências físicas; no segundo, indivíduos com caráter tido como anormal (aqui a gama é muito ampla, enquadrando não apenas pessoas com doenças mentais, mas criminosos, prostitutas, homossexuais etc.); e, por fim, os indivíduos pertencentes aos chamados “grupos tribais”, ligados a certas raças, etnias ou religiões.

Para Goffman 44. Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 2013. , o atributo do indivíduo que se torna evidente nas relações sociais é o que compõe sua identidade. A diferença entre a sua identidade social real (aquela que o indivíduo apresenta de fato) e sua identidade virtual (aquela que a sociedade espera que ele apresente) reside no fato de que essa última resulta num atributo depreciativo, que é o estigma, um elemento que, em última análise, desumaniza a pessoa, justamente porque a diferencia do restante da sociedade. A construção de intenções de um grupo hegemônico implica o desenho de sentidos virtuais de ação, que poderão ser realizados conforme seu nível de influência social, gerando efeitos devastadores sobre pessoas e sobre a sociedade.

A condição da pessoa estigmatizada perante a sociedade é determinada pela percepção de suas características distintivas. Quando elas são evidentes, o indivíduo está na condição de desacreditado, ou seja, quanto mais evidente é a característica que o distingue ou que o estigmatiza, mais desacreditado pela sociedade em que está inserido ele será. Em uma tentativa de reduzir a percepção dessas características distintivas, o estigmatizado pode utilizar estratégias de acobertamento que o isolam cada vez mais do convívio social.

O relacionamento do indivíduo estigmatizado com um indivíduo não estigmatizado vai ser sempre tenso e desconfortável para ambas as partes, trazendo à tona discussões sobre formas de socialização. As relações sociais são determinantes para a formação de comportamentos desviantes, que remetem à quebra de uma regra geralmente aceita, dentro dos grupos estigmatizados, uma vez que a pessoa que tem um estigma em particular tende a ter experiências semelhantes às de outras pessoas com o mesmo estigma. Isso provoca uma mudança de compreensão sobre si mesmo, encaminhando um grupo de indivíduos à mesma direção.

É por isso que Goffman 44. Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 2013. destaca a relação entre estigma e desvio. Entre grupos estigmatizados, há processos semelhantes de socialização ou de aprendizagem, bem como uma concepção semelhante sobre os próprios indivíduos. Assim, pessoas estigmatizadas por uma negação coletiva de ordem social serão taxadas como grupos desviantes e enquadradas como “delinquentes”, “criminosos”, “prostitutas”, “homossexuais”, “alcoólatras”, “drogados”, “mendigos” etc.

Becker 1717. Becker H. Outsiders: estudos da sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar; 2008. entende o “desvio” como comportamento que se afasta das normas admitidas por determinado grupo social. Quando uma pessoa transgride essas normas, automaticamente se transforma em um estranho ao grupo ( outsider ). O desvio, portanto, não se refere simplesmente à qualidade do ato cometido, mas, acima de tudo, às consequências desse ato ao suposto transgressor. Assim, o desvio reflete a interação entre quem comete um ato e a reação de outrem.

A sociedade constrói o estigma a partir das relações de poder. Grupos hegemônicos, que detêm poder, estabelecem quais categorias, identidades e práticas são legítimas e aceitas pela sociedade, assim como quais devem ser evitadas e estigmatizadas. Portanto, a estigmatização nega a identidade do outro e seu direito de ser e existir dentro de suas perspectivas históricas e culturais, expressando livremente aquilo que é. Garrafa e Godoi reforçam o poder e a força do estigma no contexto social: O estigma inferioriza a pessoa que o possui, tornando-a menos que os demais, atentando assim contra a própria dignidade humana e diminuindo suas chances de vida 1818. Godoi AM, Garrafa V. Leitura bioética do princípio de não discriminação e não estigmatização. Saúde Soc [Internet]. 2014 [acesso 4 abr 2021];23(1):157-66. p. 161. DOI: 10.1590/S0104-12902014000100012

Atualmente, sob uma perspectiva promissora, já podemos trabalhar com o tópico da “estigmatização positiva”, que traz um olhar mais humanizado aos indivíduos, por meio de algumas iniciativas estatais como ações de combate ao bullying nas escolas, mudanças na legislação que possibilitaram nominar deficientes físicos como portadores de necessidades especiais e o reconhecimento da capacidade civil de portadores da síndrome de Down e surdos-mudos.

Responsabilidade do Estado na eliminação da estigmatização e da discriminação

Embora seja evidente a necessidade de rejeitar a estigmatização e a discriminação, observa-se que inexistem sistemas de informação para formar profissionais e o público em geral no combate às causas do estigma social. Este resulta de processos cognitivos normais de avaliação de ameaças e riscos que organizam os conhecimentos e comportamentos sociais. Esses processos, por vezes muito prejudiciais, devem ser alvo de ações específicas visando reduzi-los.

A estigmatização pode levar ao desenvolvimento de atitudes negativas: preconceito, falsas convicções e estereótipos. Essas atitudes muitas vezes causam danos irreparáveis, afetando a autoestima da pessoa estigmatizada, que, refém de ações discriminatórias, passa ela mesma a sustentar padrões impostos de normalidade.

As consequências da estigmatização e da discriminação se estendem também à família do estigmatizado e a pessoas que lhe dispensam cuidados, seja em casa, no trabalho, no âmbito da pesquisa médica, na comunidade ou na prestação de serviços como assistência à saúde, segurança, educação, justiça etc. Isso acaba influenciando na qualidade dos cuidados disponibilizados e efetivamente recebidos pelo indivíduo estigmatizado.

Várias atitudes negativas direcionadas às vítimas de estigmatização se tornam discriminatórias na medida em que são evidenciadas em forma de diálogos inapropriados e pejorativos, violência, abuso, maus-tratos, condutas de evitamento e exclusão social, não reconhecimento das vivências da pessoa, má qualidade de vida, insuficiência ou ausência de proteção legal e negligência por parte de governantes e gestores públicos.

O combate à estigmatização passa por uma abordagem minuciosa e estratégica, principalmente no que se refere a medidas pedagógicas que transformem crenças e atitudes sociais. Quanto à discriminação, são necessárias ações no âmbito legislativo e judicial.

O Estado, como guardião dos direitos das pessoas, deve fomentar políticas e leis específicas que protejam contra a estigmatização e a discriminação. São exemplos de medidas que podem ser tomadas: alocar recursos para campanhas de informação e ensino; planejar e implementar serviços para ajudar pessoas estigmatizadas e discriminadas; fomentar pesquisas científicas com foco em indivíduos e grupos que são alvo de estigmas, preconceitos e discriminação; promover políticas relativas ao trabalho que identifiquem e reduzam ações estigmatizantes e discriminatórias; ajudar indivíduos, pacientes, famílias e profissionais na lida diária com situações de estigmatização e discriminação; e planejar os serviços disponibilizados de modo a evitar práticas profissionais estigmatizantes e discriminatórias, exercendo influência positiva sobre autoridades políticas e institucionais.

Considerações finais

Este estudo apresentou os conceitos de estigmatização e discriminação conforme o artigo 11 da DUBDH, considerando sua relação com outros princípios contidos no documento, como dignidade humana, direitos humanos, benefício e dano, respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual. Também abordamos a inter-relação e a complementaridade dos princípios em consonância com a Carta Magna brasileira.

A DUBDH rejeita a estigmatização e a discriminação ao não aceitar práticas arraigadas com consequências negativas para certas pessoas no meio social. Na perspectiva da bioética, é fundamental identificar e rechaçar qualquer forma de estigmatização e discriminação. Para isso, esse campo do conhecimento propõe encaminhamentos teórico-práticos que respeitam os indivíduos discriminados e estigmatizados pelo poder hegemônico, que invisibiliza esses sujeitos e suas práticas culturais e históricas legítimas.

O Estado, enquanto guardião dos direitos dos cidadãos, deve fomentar políticas e leis específicas para proteção efetiva e acessível contra a estigmatização e a discriminação. Essa preocupação precisa estar em todos os âmbitos do governo, pois a passividade no campo das políticas afirmativas é hoje inaceitável. É necessário, portanto, garantir igualdade de oportunidades, num processo ininterrupto de inclusão, acessibilidade e respeito à dignidade humana, encarando a diferença entre as pessoas como fator de inclusão social, em um pluralismo saudável para o desenvolvimento da sociedade.

A reflexão sobre esse tema a partir do artigo 11 da DUBDH traz a oportunidade de rever práticas humanitárias e políticas com o devido respeito ao contexto histórico que identifica e considera o indivíduo em sua dignidade e liberdade, numa perspectiva multi, inter e transdisciplinar. O objetivo dessa reflexão é buscar soluções para litígios sociais e construir uma sociedade livre de preconceitos, receptiva às diferenças e, portanto, solidária aos indivíduos submetidos à estigmatização e à discriminação.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2020
  • Revisado
    19 Out 2021
  • Aceito
    29 Out 2021
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