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Diretivas antecipadas de vontade: busca pela autonomia do paciente

Resumo

O presente trabalho analisa como a autonomia e a dignidade do indivíduo em casos de terminalidade pode ser preservada por meio das diretivas antecipadas de vontade. Entende-se que se deve buscar uma forma, ainda não encontrada e implantada no Brasil, de fazer que o indivíduo, mesmo incapaz de se comunicar, fique seguro do conhecimento de sua vontade por parte dos profissionais de saúde. Como método, o estudo busca aprofundar conceitos utilizados pela doutrina, resoluções e leis. Conclui-se que é preciso dar mais publicidade às diretivas antecipadas de vontade, informando a população sobre sua existência e permitindo que as pessoas expressem seus desejos relativos à saúde. Ademais, é necessário criar um banco de dados que permita o compartilhamento da manifestação de vontade do indivíduo com a rede hospitalar.

Diretivas antecipadas; Testamentos quanto à vida; Autonomia pessoal

Abstract

This article analyzes how the autonomy and dignity of individuals in cases of terminality can be preserved using the advance directives of will. It is understood that a procedure, yet to be found or implemented in Brazil, should be sought to ensure that individuals, even when incapable of communicating, can be assured that their will by health professionals. As a method, this study seeks to deepen concepts used by doctrine, resolutions and laws. It is concluded more publicity should be assigned to the advance directives of will, informing the population about their existence and allowing people to express their desires regarding health. Furthermore, it is necessary to create a database that allows sharing an individual’s expression of will with the hospital network.

Advance directives; Living wills; Personal autonomy

Resumen

El presente trabajo analiza cómo la autonomía y dignidad del individuo en casos de terminalidad puede ser preservada a través de las directivas anticipadas de la voluntad. Se entiende que se debe buscar un camino, aún no encontrado e implantado en Brasil, para que el individuo, incluso incapaz de comunicarse, esté seguro del conocimiento de su voluntad por parte de los profesionales de la salud. Como método, el estudio busca profundizar conceptos utilizados por doctrina, resoluciones y leyes. Se concluye que es necesario dar más publicidad a las directivas anticipadas de voluntad, informando a la población sobre su existencia y permitiendo que las personas expresen sus deseos con respecto a la salud. Además, es necesario crear una base de datos que permita compartir la manifestación de la voluntad del individuo con la red hospitalaria.

Directivas anticipadas; Voluntad en vida; Autonomía personal

Tendo em vista a inexistência de regulamentação para as diretivas antecipadas de vontade (DAV) no Brasil do ponto de vista da conduta ética do médico e autonomia do paciente, em 2012 foi editada a Resolução 1.995 do Conselho Federal de Medicina (CFM) 11. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995/2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 269-70, 31 ago 2012 [acesso 9 jun 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3oJoRes
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. A norma também considera que há novos recursos tecnológicos cuja adoção leva a medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento do paciente em estado terminal, sem trazer benefícios, e que essas medidas podem ter sido antecipadamente rejeitadas pelo paciente 11. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995/2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 269-70, 31 ago 2012 [acesso 9 jun 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3oJoRes
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.

As DAV são utilizadas quando o paciente não está em condições de expressar sua vontade. Nelas fica estabelecido um conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber 11. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995/2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 269-70, 31 ago 2012 [acesso 9 jun 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3oJoRes
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. Caso as diretrizes tenham sido elaboradas antes da entrada no hospital, o representante do paciente deve comunicar a existência do documento de imediato. Se estiver lúcido e capaz ao ingressar no hospital, o próprio paciente pode comunicar sua vontade à equipe médica.

De acordo com a Resolução CFM 1.995/2012 11. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995/2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 269-70, 31 ago 2012 [acesso 9 jun 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3oJoRes
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, a vontade do paciente deve prevalecer sobre qualquer outra, inclusive a de qualquer familiar. Nesse caso, consideram-se as regras de capacidade civil para manifestação de vontade e a liberdade jurídica do paciente. Como define Stephan Kirste, ter liberdade jurídica quer dizer possuir direitos subjetivos. A capacidade de liberdade é, assim, a capacidade de ser portador de direitos subjetivos. O portador desses direitos é, então, o sujeito do Direito ou a pessoa de Direito. A proteção da dignidade humana significa, portanto, o direito ao reconhecimento como pessoa do Direito 22. Kirste S. Introdução à filosofia do direito. Belo Horizonte: Fórum; 2013. p. 159. .

A introdução da temática das DAV em nossa sociedade legitima a vontade do indivíduo 33. Gomes BMM, Salomão LA, Simões AC, Rebouças BO, Dadalto L, Barbosa MT. Diretivas antecipadas de vontade em geriatria. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 9 jun 2021];26(3):429-39. DOI: 10.1590/1983-80422018263263 , respeitando sua autonomia, liberdade e dignidade. Deve-se buscar uma forma efetiva de resguardar esses direitos de maneira eficaz, permitindo que os indivíduos que optaram por elaborar DAV tenham respeitadas suas decisões.

Este artigo busca refletir sobre as DAV e a forma de efetivá-las com respeito à autonomia e ao direito de morrer com dignidade do paciente, tratando a morte como acontecimento natural e esperado que é. Para isso, o trabalho aborda o ordenamento jurídico brasileiro, a tramitação do Projeto de Lei do Senado 149/2018 44. Brasil. Projeto de Lei do Senado nº 149, de 2018. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade sobre tratamentos de saúde [Internet]. Brasília: Senado Federal; 2018 [acesso 8 out 2021]. Disponível: https://bit.ly/3BppM7v
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, leis específicas e princípios implícitos e explícitos na Constituição brasileira.

Dignidade humana como valor absoluto

A ideia de dignidade não surge no século XX, mas nesse momento é moldado o significado da palavra como hoje conhecemos. Desde então, o conceito alude a um valor inerente a todos os indivíduos, como estabelece a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que em seu artigo primeiro diz: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos 55. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos [Internet]. Paris: ONU; 1948 [acesso 9 jun 2021]. p. 4. Disponível: https://bit.ly/3oJJOpD
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. Nesse sentido, aponta Pelegrini 66. Pelegrini CLW. Considerações a respeito do princípio da dignidade da pessoa humana. Revista BoniJuris [Internet]. 2004 [acesso 9 jun 2021];16(485):5-16. que tal princípio diz respeito à tutela da pessoa humana, possibilitando uma existência que aniquila os ataques à dignidade. Trata-se, assim, de uma conquista histórica para o ser humano.

Para Sarlet, a dignidade humana é a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos 77. Sarlet IW. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado; 2011. p. 60. .

Do ponto de vista da antropologia teológica, a dimensão comunitária do ser humano como imago Dei precisa ser conhecida na sua integralidade, reconhecendo sua vulnerabilidade e complexidade a partir da realidade concreta 88. Haack SM. Christian explorations in the concept of human dignity. Dignitas [Internet]. 2012 [acesso 4 ago 2021];19(3):1-8. Disponível: https://bit.ly/2YyN1gR
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, 99. Tomasević L. Human dignity: a philosophical and theological approach. J Int Bioethique [Internet]. 2010 [acesso 2 ago 2021];21(3):29-41. Disponível: https://bit.ly/3FrvS9H
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. Na tradição judaico-cristã, a dignidade atribuída aos seres humanos tem uma dimensão de sacralidade e inviolabilidade. Nessa perspectiva, o ser humano é merecedor de todo o respeito, uma vez que quem toca nele toca também em Deus.

A interpretação clássica do Gênesis não diz que a “pessoa” é imagem e semelhança de Deus, mas que Deus a fez a sua imagem e semelhança. A ação é de Deus, que constitui a “pessoa” como interlocutor e, portanto, concede-lhe a mais alta dignidade. Isso não faz do homem um Deus, tampouco um semideus, mas sim imagem e semelhança em direção à relação filial de cuidado e comunhão: ser pessoa em totalidade e ser pessoa em relação ao outro com igual dignidade.

Para o humanista Pico della Mirandola, o ser humano está permanentemente se autoconstruindo, e a dignidade humana está integrada à liberdade, caminhando em direção à vida potencial na qual o homem, composto de Logos e Ratio, é agido pelo Infinito e age nos finitos 1010. Pico G. Discurso pela dignidade do homem. Porto Alegre: Fi; 2015. p. 42. . Baertschi 1111. Baertschi B. Ensaio filosófico sobre a dignidade. São Paulo: Loyola; 2009. p. 187-9. apresenta dois sentidos para dignidade no que diz respeito a sua dimensão moral. O primeiro é o sentido pessoal, ligado ao respeito a si e ao alcance de objetivos morais. Nessa acepção, a dignidade não se confunde com a autoestima, que leva em consideração a realização de objetivos pessoais.

O segundo sentido é impessoal: a dignidade de um indivíduo humano consiste no fato de ser ele uma pessoa e não um animal ou uma coisa 1111. Baertschi B. Ensaio filosófico sobre a dignidade. São Paulo: Loyola; 2009. p. 187-9. . Trata-se do direito do homem, como trata o autor, que faz a pessoa ter um valor particular, proibindo que seja tratada como um simples meio, a exemplo das coisas, como observa Kant 1111. Baertschi B. Ensaio filosófico sobre a dignidade. São Paulo: Loyola; 2009. p. 187-9. . Nesse sentido, o respeito à dignidade se refere ao tratamento do indivíduo como ser racional que não pode ser instrumentalizado, independentemente do seu estado ou conduta. A dignidade, assim, não pode ser perdida, pois se encontra interligada com a natureza humana. Com efeito, Baertschi destaca que atuar com respeito ao próximo é aceitar os limites das nossas preferências em nome do outro, mesmo quando estivermos no momento de impor nossas vontades, pois se reconhece o respeito como valor sui generis , ou seja, cada ser, independentemente de origem, tem em si um valor particular a ser respeitado 1111. Baertschi B. Ensaio filosófico sobre a dignidade. São Paulo: Loyola; 2009. p. 187-9. .

Rosen discute o significado de dignidade como o compromisso e a capacidade de suportar o sofrimento na tentativa de atender às demandas do dever, e isso obviamente varia de pessoa para pessoa 1212. Rosen M. Dignity: its history and meaning. Cambridge: Harvard University Press; 2012. p. 36. . No século XX, houve muitos momentos conflituosos no que se refere à dignidade do indivíduo, em especial a Segunda Guerra Mundial. Esse contexto fortaleceu ainda mais o significado da palavra “dignidade” na modernidade, já estudado no século XVIII por Kant, que enfatizava o uso da razão como núcleo preponderante: todos os conceitos morais têm a sua sede e origem completamente a priori na razão, e isto tanto na razão humana mais vulgar como na especulativa em mais alta medida; que não podem ser abstraídos de nenhum conhecimento empírico e por conseguinte puramente contingente; que exactamente nesta pureza da sua origem reside a sua dignidade para nos servirem de princípios práticos supremos 1313. Kant I. Fundamentos da metafísica do costume. Lisboa: Edições 70; 2000. p. 46. .

Além da dimensão valorativa e metafísica, a dignidade humana é um princípio jurídico. Após a Segunda Guerra Mundial, consolidou-se a ideia de preservação dos direitos humanos, com a elaboração de documentos internacionais que, juntamente com o início do estado de bem-estar social, vincularam a dignidade humana às constituições nacionais.

No que se refere aos documentos internacionais, tem especial relevância a DUDH 55. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos [Internet]. Paris: ONU; 1948 [acesso 9 jun 2021]. p. 4. Disponível: https://bit.ly/3oJJOpD
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, proclamada em 10 de dezembro de 1948 e assinada pelo Brasil na mesma data. Há ainda outros acordos, como o Pacto de San José da Costa Rica (1969) 1414. Organização dos Estados Americanos. Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José de Costa Rica”) [Internet]. San José: OEA; 1969 [acesso 3 ago 2021]. Disponível: https://bit.ly/30dM0M5
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, que seguem a mesma concepção da DUDH. Todos esses documentos estão contidos na Carta Internacional dos Direitos Humanos, construída ao longo do tempo com o fim de promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião 1515. Organização das Nações Unidas. A Carta das Nações Unidas [Internet]. Rio de Janeiro: ONU; 1945 [acesso 9 jun 2021]. p. 5. Disponível: https://bit.ly/3DpIBI4
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.

Também com o objetivo de resguardar os direitos humanos, há a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) 1616. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 1º nov 2019]. Disponível: https://bit.ly/3mA96DW
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, que promove o respeito pela dignidade, garantindo o respeito pela vida dos seres humanos. A DUBDH dirige-se aos Estados, mas também traz orientações para os indivíduos quando pertinente. Seu conteúdo se relaciona com as ciências da vida e as tecnologias associadas, aplicadas aos seres humanos.

A Constituição de 1988 1717. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais de revisão no1 a 6/94, pelas Emendas Constitucionais de Revisão nº 1/92 a 92/2016 e pelo Decreto Legislativo nº 186/2008. 40ª ed. Brasília: Centro de Documentação e Informação; 2013 [acesso 9 jun 2021]. Disponível: https://bit.ly/3uV1q2L
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, com o propósito de criar um Estado democrático e de bem-estar social no Brasil, estabeleceu a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental. Na concepção de Barroso 1818. Barroso LR. A Constituição brasileira de 1988: uma introdução. In: Martins IGS, Mendes GF, Nascimento CV, coordenadores. Tratado de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 9-41. , a Carta Magna é vista de forma positiva por ter fundamentado a transição de um Estado considerado autoritário para um Estado democrático de direito. O autor observa que, sob a vigência da Constituição de 1988, vem-se realizando eleições presidenciais, por voto direto, secreto e universal, com debate público amplo, participação popular e alternância de partidos políticos no poder 1919. Barroso LR. Op. cit. p. 18. .

Em outra obra, Barroso trata da aproximação entre direito e ética na cultura pós-positivista, onde o direito torna-se instrumento da legitimidade, da justiça e da realização da dignidade da pessoa humana 2020. Barroso LR. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Rev Direito Estado [Internet]. 2009 [acesso 9 jun 2021];4(13):71-91. Disponível: https://bit.ly/3oSjhGy
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. A Constituição de 1988, baseada nesse modelo pós-positivista, prevê a garantia da dignidade humana como princípio fundamental, colocando-a em posição de superioridade em relação a outros princípios.

É nesse sentido, e visando a dignidade da pessoa humana, que se deve preservar a escolha do indivíduo incapacitado para se expressar de forma livre e autônoma. Visando esse fim, as DAV foram reconhecidas na Resolução 1.995/2012 do CFM. Tais diretivas têm dois objetivos: formular e externar a vontade do paciente 2121. Del Vecchio M. I diritti umani nelle disposizioni antecipate di trattamento. Milano: Key; 2018. .

A autodeterminação é aspecto essencial da dignidade e liberdade do ser humano. Para garanti-la, é preciso superar possíveis problemas de interpretação e conflitos entre médico e familiares, com vistas a respeitar as escolhas do sujeito fragilizado pela enfermidade que o assola. Os problemas em torno da autonomia da vontade trazem diversos desafios à bioética contemporânea.

Diretivas antecipadas de vontade

As diretivas antecipadas visam proteger a autodeterminação e a autonomia do paciente, indicando como ele deseja ser tratado (em termos de tratamentos a que deseja ou não ser submetido) em situações de doença grave e inconsciência. Tais diretivas estão listadas na Patient Self-Determination Act, lei estadunidense que reconhece a recusa de tratamento médico, visando a autonomia do paciente em casos de incapacidade.

No Brasil, ainda não existe uma lei que trate das diretivas antecipadas de forma ampla, mas há princípios constitucionais, resoluções e leis estaduais que preveem a autonomia do paciente. A título de exemplo, pode-se citar a Resolução CFM 1.995/2012 11. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995/2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 269-70, 31 ago 2012 [acesso 9 jun 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3oJoRes
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; o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da autonomia 1717. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais de revisão no1 a 6/94, pelas Emendas Constitucionais de Revisão nº 1/92 a 92/2016 e pelo Decreto Legislativo nº 186/2008. 40ª ed. Brasília: Centro de Documentação e Informação; 2013 [acesso 9 jun 2021]. Disponível: https://bit.ly/3uV1q2L
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; cláusulas pétreas, como a que proíbe tratamento desumano; e leis estaduais que sublinham a recusa de tratamentos dolorosos ou extraordinários para prolongamento da vida: a Lei 10.241/1999 2222. São Paulo. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Lei Estadual nº 10.241, de 17 de março de 1999. Dispõe sobre os direitos dos usuários dos serviços e das ações de saúde no Estado e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de São Paulo [Internet]. São Paulo, nº 51, 18 mar 1999 [acesso 9 jun 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3oZ3Dtp
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do Estado de São Paulo (Lei Mário Covas), a Lei 16.279/2006 2323. Minas Gerais. Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Lei Estadual nº 16.279, de 20 de julho de 2006. Dispõe sobre os direitos dos usuários das ações e dos serviços públicos de saúde no estado. Diário Oficial de Minas Gerais [Internet]. Belo Horizonte, 20 jul 2006 [acesso 9 jun 2021]. Disponível: https://bit.ly/2YuL5GA
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do Estado de Minas Gerais e a Lei 14.254/2003 2424. Paraná. Assembleia Legislativa do Estado do Paraná. Lei Estadual nº 14.254, de 4 de dezembro de 2003. Prestação de serviço e ações de saúde de qualquer natureza aos usuários do Sistema Único de Saúde – SUS e dá outras providências. Diário Oficial do Estado do Paraná [Internet]. Curitiba, 4 dez 2003 [acesso 9 jun 2021]. Disponível: https://bit.ly/2X0jrjW
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do Estado do Paraná. Em complemento, o artigo 15 do Código Civil de 2002 dispõe que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica 2525. Brasil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 11 jan 2002 [acesso 9 jun 2021]. Disponível: https://bit.ly/2WVhTaJ
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.

Kovács 2626. Kovács MJ. Autonomia e o direito de morrer com dignidade. Bioética [Internet]. 1998 [acesso 9 jun 2021];6(1):61-9. Disponível: https://bit.ly/3myuxW5
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, em seu artigo “Autonomia e o direito de morrer com dignidade”, apresenta um panorama de mudanças entre a Idade Média e o século XX no que se refere à morte. Segundo a autora, na Idade Média a morte era vista como algo esperado, familiar e domado. Os momentos que a precediam eram dedicados a firmar o testamento e garantir que as vontades da pessoa fossem respeitadas após a morte. Já no Século XX, a trajetória para a morte passa a ser um processo lento, com tratamentos demorados e muitas vezes associados a dor e sofrimento.

Mesmo que todo período tenha uma forma de lidar com a morte, cabe a cada sujeito vivê-la da forma como melhor lhe convém. No entanto, a morte ainda é considerada um tabu e encarada apenas quando é extremamente necessário, como em casos de prognóstico reservado ou doenças graves em que há pequenas chances de vida para o paciente 2626. Kovács MJ. Autonomia e o direito de morrer com dignidade. Bioética [Internet]. 1998 [acesso 9 jun 2021];6(1):61-9. Disponível: https://bit.ly/3myuxW5
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.

É necessária uma norma regulamentadora no Brasil que valide as diretivas antecipadas para garantir não só a vida com dignidade, mas também a morte com dignidade, sempre levando em consideração a autonomia do paciente. Como aponta Godinho, se a vida, por um lado, não é um bem jurídico disponível, não cabe, por outro lado, impor às pessoas um dever de viver a todo custo, o que significa, assim, que morrer dignamente nada mais é do que uma decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana. Diante das bases expostas, resta concluir que o testamento vital não somente deve encontrar espaço no ordenamento jurídico brasileiro, como urge reconhecer sua validade por meio de lei, o que consagra o direito à autodeterminação da pessoa quanto aos meios de tratamento médico a que pretenda ou não se submeter 2727. Godinho AM. Testamento vital e o ordenamento jurídico brasileiro. Jus Navigandi [Internet]. 2010 [acesso 9 jun 2021]. Disponível: https://bit.ly/3uVfqtw
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.

Ter uma morte digna nada mais é do que morrer sem imposições de outrem. A vida é bem jurídico indisponível, que corresponde aos direitos ligados à personalidade. Assim, a legislação deve garantir o direito de morrer com dignidade, zelando pela vida e a integridade física do paciente.

Diretivas antecipadas de vontade no Brasil

Como já mencionado, não há norma regulamentadora das DAV no Brasil, mas deve-se considerar a interpretação de normas infraconstitucionais, como o artigo 1º da Lei Mário Covas 2222. São Paulo. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Lei Estadual nº 10.241, de 17 de março de 1999. Dispõe sobre os direitos dos usuários dos serviços e das ações de saúde no Estado e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de São Paulo [Internet]. São Paulo, nº 51, 18 mar 1999 [acesso 9 jun 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3oZ3Dtp
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e princípios implícitos e explícitos na Constituição. Essas normas somam-se à Resolução CFM 1995/2012 11. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995/2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 269-70, 31 ago 2012 [acesso 9 jun 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3oJoRes
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, que visa defender a validade das DAV no país.

Considerando a inexistência de legislação específica, a fim de garantir segurança jurídica, Dadalto 2828. Dadalto L. Aspectos registrais das diretivas antecipadas de vontade. Civilistica.com [Internet]. 2019 [acesso 9 jun 2021];2(4):1-8. p. 5. Disponível: https://bit.ly/2MnzBd6
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defende a lavratura das diretivas por escrituras públicas feitas por um notário. A autora lista uma série de definições sobre esse instrumento:

(d) as DAV não podem conter disposições de caráter patrimonial, pois são documentos de manifestação de vontade para recusa e aceitação de cuidados de saúde, contendo, ainda a nomeação de um terceiro para decidir em nome do outorgante quando este estiver incapaz de manifestar, de forma autônoma, sua vontade; e) as DAV não podem ser incluídas em escrituras públicas de testamento público, constituição de união estável ou qualquer outro documento, pois referem-se a relações jurídicas sui generis, que envolvem questões éticas da relação médico-paciente. Ademais, possuem requisitos e especificidades próprias, que não podem ser confundidas com a de outros institutos; f) as DAV, no Brasil, não podem ter disposições sobre doação de órgãos, uma vez que a lei 9.434/97, alterada pela lei 10.211/01, estabelece que a vontade dos familiares do falecido prevalece sobre a vontade deste, manifestada em vida e, portanto, é contrária às DAV, nas quais a vontade manifestada pelo outorgante prevalece sobre a vontade dos familiares e dos profissionais de saúde; g) A exigência de testemunhas para o registro das DAV é arbitrária, uma vez que inexiste lei regulamentando as solenidades deste documento no Brasil; contudo, é imprescindível que o mandatário assine as DAV, aceitando o encargo para o qual está sendo nomeado; h) os outorgantes que já foram diagnosticados com uma doença incurável e terminal devem comprovar seu discernimento por meio de um laudo médico, uma vez que estudos médicos questionam os efeitos que um diagnóstico de fim de vida geram no discernimento do indivíduo; i) é importante orientar o outorgante a procurar um médico a fim de obter informações técnicas sobre os cuidados aos quais deseja manifestar aceitação ou recusa; j) caso o outorgante esteja orientado pelo médico e este concorde, é possível anotar o nome e o CRM do médico, a fim de que este seja procurado caso haja dúvidas das informações prestadas pelo paciente 2929. Dadalto L. Op. cit. p. 7-8. .

É importante que o paciente esteja consciente do que são as DAV e do que não pode ser incluído nelas. São especialmente importantes, nas colocações de Dadalto 2828. Dadalto L. Aspectos registrais das diretivas antecipadas de vontade. Civilistica.com [Internet]. 2019 [acesso 9 jun 2021];2(4):1-8. p. 5. Disponível: https://bit.ly/2MnzBd6
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, a ciência exata da enfermidade e a consulta a um profissional da área médica, que poderá elucidar qualquer dúvida quanto a procedimentos e tratamentos, ajudando o paciente a tomar suas decisões de maneira informada.

De acordo com Dadalto 2828. Dadalto L. Aspectos registrais das diretivas antecipadas de vontade. Civilistica.com [Internet]. 2019 [acesso 9 jun 2021];2(4):1-8. p. 5. Disponível: https://bit.ly/2MnzBd6
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, considerando que se deve uniformizar o registro dos documentos referentes às diretivas em cartórios de notas em todo o país, é preciso criar um registro nacional, nos moldes do registro espanhol e português, para tornar efetivo o cumprimento da vontade do indivíduo. Visando informar os profissionais que aplicarão as diretivas e, portanto, precisam conhecer sua existência, os autores do presente artigo propõem ir além desse registro nacional e criar uma rede informatizada que permita aos hospitais conhecer as manifestações prévias do paciente rapidamente. Segundo Dadalto 2828. Dadalto L. Aspectos registrais das diretivas antecipadas de vontade. Civilistica.com [Internet]. 2019 [acesso 9 jun 2021];2(4):1-8. p. 5. Disponível: https://bit.ly/2MnzBd6
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, as DAV deverão ser publicadas o mais breve possível no Registro Nacional pelo cartório. Esse registro é um passo para a publicidade da vontade do paciente, visando garantir sua autonomia.

Nesse sentido, cabe ressaltar pesquisa realizada nos tabelionatos de Porto Alegre/RS 3030. Crippa A, Feijó A. O registro das diretivas antecipadas de vontade: opinião dos tabeliães da cidade de Porto Alegre/RS. Mundo Saúde [Internet]. 2016 [acesso 9 jun 2021];40(2):257-66. DOI: 10.15343/0104-7809.20164002257266
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, que aferiu o conhecimento da população e dos notários sobre as DAV. Foram entrevistados 12 responsáveis por seus respectivos tabelionatos e os resultados mostraram que 66,7% dizem conhecer as DAV, mas os registros desse documento são inferiores a três por tabelionato. Segundo as autoras, apesar das DAV terem emergido do anseio da sociedade, ainda é pouca a procura nos tabelionatos. Ressaltou-se que, embora não haja obrigatoriedade deste registro, nem lei que imponha esta necessidade aos tabeliães, há segurança jurídica atribuída aos atos firmados perante notário, o que deveria configurar uma maior procura por parte dos interessados, nos órgãos competentes 3131. Crippa A, Feijó A. Op. cit. p. 257. .

Embora não conhecessem a Resolução CFM 1.995/2012 11. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995/2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 269-70, 31 ago 2012 [acesso 9 jun 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3oJoRes
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, os tabeliães mostraram-se abertos e favoráveis ao registro púbico da modalidade. Na prática, tal registro é a forma de garantir a existência e validade do documento. O estudo também ressalta a importância de uniformizar as exigências e forma de registro do documento, o que leva a destacar o papel da esfera legislativa na criação de lei específica para as DAV, dando segurança jurídica e eficácia ao instrumento.

No Brasil está em tramitação o Projeto de Lei do Senado 149/2018 44. Brasil. Projeto de Lei do Senado nº 149, de 2018. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade sobre tratamentos de saúde [Internet]. Brasília: Senado Federal; 2018 [acesso 8 out 2021]. Disponível: https://bit.ly/3BppM7v
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, que dispõe sobre as DAV para casos de incapacidade (fase terminal ou doença grave ou incurável), em momentos de subordinação ou insubordinação a tratamentos considerados fúteis ou extraordinários. O projeto sublinha, em seu artigo 2º, a definição de DAV como manifestação de vontade do paciente feita por escritura pública, sem conteúdo financeiro, sobre receber ou não certos cuidados ou tratamentos caso não esteja em condição de expressar sua vontade de forma livre e autônoma.

O projeto de lei diz que toda pessoa maior e capaz poderá declarar sua vontade de receber ou não tratamentos médicos em caso de incapacidade, e que tal vontade deverá ser reconhecida mediante escritura pública sem conteúdo financeiro, lavrada em Cartório competente 44. Brasil. Projeto de Lei do Senado nº 149, de 2018. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade sobre tratamentos de saúde [Internet]. Brasília: Senado Federal; 2018 [acesso 8 out 2021]. Disponível: https://bit.ly/3BppM7v
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. Ainda segundo o projeto, as diretivas poderão ser revogadas em todo ou em parte a qualquer tempo, pelo paciente ou por declaração verbal ao prestador dos cuidados à saúde do paciente. No segundo caso, o registro deverá ser feito pelo médico assistente.

Como justificativa, o projeto de lei considera o avanço da tecnologia médica com o objetivo de prolongar a vida e a consequente atualidade do tema, o que fez diversos países legislarem sobre as DAV. O projeto, portanto, visa suprir a lacuna jurídica no que tange ao assunto. Nas palavras do autor do projeto, senador Lasier Martin, nas últimas décadas, temos testemunhado grande desenvolvimento tecnológico na área médica, o que tem contribuído para o prolongamento da vida por meio de suporte clínico intensivo. De um lado, não se pode negar que os avanços observados trouxeram benefícios para inúmeras pessoas com doenças graves. De outro lado, surgiram diversos questionamentos no campo da bioética, principalmente no tocante a temas como a terminalidade da vida e a autonomia das pessoas em decidir sobre os tratamentos aos quais desejam se submeter, especialmente daquelas com doença em estágio avançado e sem nenhuma perspectiva de cura 44. Brasil. Projeto de Lei do Senado nº 149, de 2018. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade sobre tratamentos de saúde [Internet]. Brasília: Senado Federal; 2018 [acesso 8 out 2021]. Disponível: https://bit.ly/3BppM7v
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.

As DAV são um avanço no que tange aos direitos individuais, à vida com dignidade e à autonomia do indivíduo. Cabe, portanto, regulamentar seu registro, com um modelo único, prezando pela segurança jurídica do documento. Todavia, enquanto essa lacuna legislativa existir, cabe ao advogado instruir o outorgante para elaborar o documento sem ilícitos, de forma criteriosa e bem fundamentada, visto que documentos frágeis posteriormente podem ser anulados pelo Judiciário.

Rede nacional de comunicação

Diante do panorama atual das DAV no Brasil, é grande a probabilidade de falhas na preservação da vontade do indivíduo, visto que não há uma forma de o paciente comunicar sua vontade ao sistema de saúde. A Resolução CFM 1.995/2012 11. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995/2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 269-70, 31 ago 2012 [acesso 9 jun 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3oJoRes
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prevê a possibilidade de nomeação de representante para comunicar a vontade do paciente. Porém, como saber se essa pessoa conhece o exato momento em que é necessário informar sobre a diretiva elaborada previamente? Caso não se dê publicidade ao registro das DAV, tal registro, que parece ser o mais adequado, torna-se falho. E “publicidade”, aqui, não se refere apenas ao acesso ao documento em cartório, mas sobretudo à disponibilização das diretivas para quem deve cumpri-las: o profissional de saúde.

Dessa forma, como assegurar que a autonomia da vontade de um indivíduo será resguardada? A legislação brasileira não estaria falhando na tarefa de assegurar a autonomia definida de acordo com a teoria ética contemporânea 3232. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. New York: Oxford University Press; 2019. , como a capacidade de ponderar e se identificar com desejos ou preferências, considerando a intencionalidade e a compreensão?

O que se propõe, em tempos de tanta tecnologia e conexão, é a criação de um sistema que interligue os tabelionatos e o sistema de saúde. Esse sistema ajudaria a preservar a autonomia e garantir o respeito à dignidade do indivíduo que escolheu elaborar diretivas antecipadas. Na entrada do indivíduo no hospital, caso os profissionais contem com essa informação, será mais fácil cumprir efetivamente a vontade do paciente.

Um modelo para as DAV pode ser a declaração de óbito, um documento-base do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM/MS) 3333. Brasil. Ministério da Saúde. A declaração de óbito: documento necessário e importante [Internet]. 3ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2009 [acesso 9 jun 2021]. Disponível: https://bit.ly/3oIW1L8
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, emitido pelo médico com base em formulário oficial. Essa declaração possibilita o trabalho de pesquisa e o conhecimento da situação do país no que se refere a estatísticas de mortalidade. Cabe ressaltar que o médico que emite a declaração de óbito é responsável, ética e judicialmente, pelo preenchimento e assinatura do documento, bem como pelas informações registradas, conforme artigo 1º da Resolução CFM 1.779/2005 3434. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.779/2005. Regulamenta a responsabilidade médica no fornecimento da declaração de óbito. Revoga a Resolução CFM nº 1.601/2000. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 121, 5 dez 2005 [acesso 9 jun 2021]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3uWUna8
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.

No caso das DAV, a responsabilidade pela inserção dos dados da declaração poderia ser ou não dos profissionais da saúde. Se o paciente já tiver registrado suas diretivas em um cartório, as informações já estão disponíveis. Porém, caso o paciente manifeste suas vontades ao ingressar no hospital, o registro no sistema poderia ficar a cargo do profissional de saúde.

Antes de implementar um sistema unificado, é importante que haja regulamentação legislativa para uniformizar as DAV em termos cartoriais. Quanto ao conhecimento público, bastaria tal sistema para que a informação chegasse ao conhecimento dos profissionais de saúde. Com isso, cumprir as disposições do indivíduo seria mais fácil e seguro.

Considerações finais

O reconhecimento da dignidade da pessoa humana, incluído no ordenamento jurídico brasileiro, foi uma conquista de notória significação. Há de se constatar, no entanto, a insuficiência da legislação do país no que se refere às DAV, que tratam da escolha de ser submetido ou não a um tratamento considerado fútil, visando à preservação da autonomia do paciente.

A crítica aqui exposta em relação às lacunas sobre o tema considera a possibilidade de aprovação do Projeto de Lei do Senado 149/2018 44. Brasil. Projeto de Lei do Senado nº 149, de 2018. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade sobre tratamentos de saúde [Internet]. Brasília: Senado Federal; 2018 [acesso 8 out 2021]. Disponível: https://bit.ly/3BppM7v
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, que busca trazer segurança jurídica à declaração das DAV. Além desse projeto, atualmente em tramitação, propõe-se ainda a criação de um sistema interligado de comunicação, que possibilite o compartilhamento das DAV do indivíduo com quem deve executá-las (o sistema de saúde). É urgente criar esse sistema informatizado a fim de permitir a consulta às diretivas e a efetivação da autonomia do indivíduo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2020
  • Revisado
    15 Jul 2021
  • Aceito
    6 Ago 2021
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