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Um emaranhado confuso: antropologia pública, terras indígenas e mitos ruralistas no Brasil atual

A confusing tangle: public anthropology, indigenous lands, and ruralist myths in modern Brazil

Resumo

Este artigo aborda questões decorrentes do envolvimento da antropologia com o Estado no âmbito das políticas de regularização fundiária de terras indígenas no Brasil. A discussão parte da efetiva contribuição da antropologia no âmbito da biopolítica estatal para assegurar justiça social e ambiental para povos indígenas no Brasil, a fim de contextualizar a crítica relativa à antropologia e a seus praticantes por grupos e setores econômicos da sociedade, que se fizeram representar em uma comissão parlamentar de inquérito, a qual expressou o nível de incompreensão sobre o papel desempenhado pela disciplina nas referidas políticas. Ao analisar o discurso do Relatório Final da Segunda Comissão Parlamentar de Inquérito da Fundação Nacional do Índio/Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (CPI FUNAI/INCRA 2) como um texto formado a partir do senso comum sobre os indígenas, os antropólogos e a disciplina, o artigo aborda em que medida esse mesmo senso comum se ancora em concepções essencialistas de identidade existentes dentro da antropologia e aponta para a necessidade de revisão crítica do próprio discurso teórico da disciplina.

Palavras-chave
Antropologia pública; Direitos territoriais; Etnicidade; Senso comum; Análise de discurso

Abstract

This article addresses questions arising from the involvement of anthropology with the state within the context of policies on indigenous land claims in Brazil. We start with effective contributions of anthropology to the area of state biopolitics to ensure social and environmental justice for indigenous peoples in Brazil to contextualize the reactive criticism of anthropology and its practitioners by groups and economic sectors of society represented in a parliamentary inquiry commission which demonstrated the level of misunderstanding about the role this discipline plays in these policies. By analyzing the FUNAI/INCRA 2 Parliamentary Commission’s final report as a text formed from “common sense” about indigenous people, anthropologists, and the discipline, this chapter addresses the extent to which this same “common sense” is rooted in essentialist conceptions of identity that exist within anthropology and indicates the need for a critical review of the theoretical discourse within this discipline.

Keywords
Public anthropology; Land claims; Ethnicity; Common sense; Discourse analysis

INTRODUÇÃO

A antropologia social e cultural como disciplina científica e profissão tem muitas definições e usos. Uma representação muito atual considera a antropologia como uma ciência social dedicada à interpretação da diversidade cultural, e os antropólogos1 1 A forma masculina de escrita será adotada apenas para facilitar a exposição das ideias. como indivíduos comprometidos com a justiça social, que trabalham para o reconhecimento e a valorização das diferenças culturais. A disciplina (auto)retratada mundo afora, de acordo com essa visão romântica, conquistou apoio e permitiu que os antropólogos assumissem muitos papéis proativos nas sociedades modernas. Desse modo, e concordando com Ida Susser: “. . . a busca da justiça social em muitos contextos, embora crescendo e diminuindo ao longo das décadas, tem sido uma força poderosa na antropologia, senão um princípio central” (Susser, 2010Susser, I. (2010). The anthropologist as social critic: working toward a more engaged anthropology. Current Anthropology, 51(S2), 227-233. https://doi.org/10.1086/653127
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, p. 229, tradução livre)2 2 “ . . . the pursuit of social justice in many contexts, although waxing and waning over the decades, has been a strong force in anthropology, if not a central tenet” (Susser, 2010, p. 229) .

Por outro lado, tal representação pode levar os desavisados a pensarem que a antropologia e os antropólogos cumprem seu propósito de proteger e celebrar a diversidade humana livre de oposições e contradições internas ou externas. Longe disso, a antropologia é uma forma institucionalizada de entender as diferenças culturais, ao mesmo tempo em que torna esse conhecimento aplicável a classificação, gestão e controle de coletividades diferenciadas dentro das sociedades nacionais, sempre que necessário (Blanchette, 2013Blanchette, T. G. (2013). Cidadãos e selvagens: antropologia e administração indígena nos Estados Unidos, 1870-1890. E-papers.). Esse duplo papel ‘de produção de conhecimento sobre’ e de ‘colaboração com a administração de’ minorias é constitutivo da disciplina e permite concebê-la como um sistema de saber/poder. Assim, toda vez que a disciplina é mencionada aqui, ela é considerada de acordo com as ideias de Michel Foucault sobre poder e governamentalidade, de modo a compreendê-la como uma prática científica em contextos ‘biopolíticos’, mesmo quando seus praticantes declaram apaixonadamente estar buscando o bem comum e realizando uma antropologia pública.

Pensar a antropologia em contextos e termos biopolíticos não é algo novo3 3 Ver L’Estoile et al. (2002) para contribuições a uma “etnografia do pensamento” em âmbito estatal; Bennet et al. (2014, 2017) para abordagens mais explicitamente ancoradas nos conceitos de biopoder e governamentalidade. . Mas a consideração crítica dos efeitos de poder da prática antropológica enraizada nas potências coloniais e imperiais, governos nacionais, empresas multinacionais, agências financeiras ou, como de costume, em universidades e organizações não governamentais (ONGs), sobre as sociedades, comunidades, grupos ou coletividades que acolhem a prática etnográfica, é eticamente inevitável e, por isso, obriga a um exercício de interpretação permanente sobre seus contextos de atuação. Entretanto, para que a reflexividade metodológica, que, às vezes, é apenas um eufemismo para uma ‘má consciência’, cumpra sua tarefa ética, ela precisar ir além da preocupação com os efeitos do discurso antropológico para a representação dos sujeitos etnografados estritamente no âmbito da disciplina (ver Myers, 1986Myers, F. (1986). The politics of representation: anthropological discourse and Australian aborigines. American Ethnologist, 13(1), 138-153. https://www.jstor.org/stable/644592
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; Ramos, 1990Ramos, A. (1990). Memórias Sanumá. Editora Marco Zero/Editora da Universidade de Brasília.; Asad, 1991Asad, T. (1991). Afterword: from the history of colonial anthropology to the anthropology of Western hegemony. In G. Stocking Jr. (Ed.), Colonial situations: essays on the contextualization of ethnographic knowledge (History of Anthropology, Vol. 7, pp. 314-324). The University of Wisconsin Press.). Faz-se necessário pensar os efeitos da política de representação antropológica em cenários mais amplos e, via de regra, adversários da implementação dos direitos de coletividades tidas, geralmente, como minoritárias (ver contribuições de Les Field, Beth Conklin, June Nash, entre outros, citadas em Vargas-Cetina, 2013Vargas-Cetina, G. (Ed.). (2013). Anthropology and the politics of representation. University of Alabama Press.).

Dito isso, este texto aborda aspectos políticos, jurídicos e morais decorrentes da prática da antropologia pública com os direitos territoriais dos povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais no Brasil, bem como os esforços dessa prática para promover a justiça social e ambiental desde a aprovação da Constituição Federal, em 1988. Por ‘antropologia pública’ entende-se a atuação pública, tanto acadêmica quanto profissional, de antropólogos com questões ou problemas sociais igualmente públicos, engajando-se em interações face a face, baseadas na confiança mútua, para realizar seu trabalho de campo e escrever seus resultados de acordo com as necessidades e os direitos dos sujeitos que vivenciam diretamente tais questões e problemas4 4 Ver, por exemplo, as definições elaboradas por Rob Borofsky, em sua página eletrônica no Centro para uma Antropologia Pública (Center for a Public Anthropology, 2018). . O caso brasileiro revela-se de particular interesse, uma vez que, neste contexto nacional, a prática da antropologia pública vem encontrando forte oposição de setores da sociedade nacional que promovem um ataque ostensivo a diversos antropólogos, sua associação científica, entre outras organizações da sociedade civil e operadores do direito no próprio Estado. Nesse sentido, o Brasil oferece um caso excepcional para analisar o papel da disciplina em políticas multiculturais de implementação de direitos territoriais em uma sociedade plural.

O equívoco ou a desavença pública sobre a política de demarcação de territórios para assegurar os direitos socioculturais dos povos indígenas, quilombolas e de povos e comunidades tradicionais se acirrou desde 2009, quando foi encerrado o julgamento em torno da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (ver Da Silva, 2018Da Silva, C. T. (2018). A homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol e seus efeitos: uma análise performativa das 19 condicionantes do STF. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 33(98), e339803. https://doi.org/10.1590/339803/2018
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). Nesse momento, foram veiculadas acusações aos antropólogos por estarem premeditando reservas para indígenas em diferentes áreas do país com o objetivo de controlar essas áreas de acordo com suas próprias agendas ou como agentes cooptados de ONGs nacionais ou internacionais. Também circulou a acusação de que os antropólogos estão reconhecendo/inventando novas identidades étnicas com o mesmo propósito. Para os acusadores, seria evidente que a criação de ‘reservas’ – os acusadores raramente mencionam a categoria legal ‘terras indígenas’ ou ‘terras de quilombos’ e se opõem radicalmente ao uso do termo ‘povos’ – visa beneficiar financeiramente ONGs ambientalistas ou estrangeiras, em que se supõe que antropólogos sejam contratados para realizar seu trabalho de campo ‘observando índios como animais no zoológico’, um argumento que a oposição ecoa quanto à criação do Parque Nacional do Xingu, hoje Parque Indígena do Xingu, em 1961. Mas a acusação mais perniciosa tem culpado os antropólogos de estarem afetivamente comprometidos com as populações estudadas, o que os levaria a desconsiderar, de modo deliberadamente parcial, as reivindicações de outros sujeitos nos processos administrativos de demarcação territorial, produzindo relatórios parciais e fraudulentos e contribuindo para a violação do direito de propriedade de outras partes. Esta acusação se apoia em uma distorção acerca do envolvimento antropológico no trabalho de campo etnográfico, confundindo uma metodologia fenomenológica, que molda a identidade da disciplina e sua prática profissional com intimidade e parcialidade, de modo a impedir, ou ao menos constranger, os antropólogos de tomarem parte nos processos administrativos ou judiciais como especialistas5 5 A esse respeito, é particularmente elucidativo o artigo de Lima Filho (2005). .

Não se pretende responder aqui a essas acusações diretamente. Mas, em vez disso, busca-se atentar para o fato de que essas afirmações emergiram apoiadas em concepções de senso comum e se tornaram um dos muitos discursos públicos sobre a disciplina, solapando sua aceitação pela sociedade e, pior, deslegitimando as políticas públicas das quais ela participa. Portanto, faz-se importante abordar essas acusações escandalosas não apenas como mera retórica depreciativa e mal intencionada de alguns setores anti-indígenas (o que não deixam de ser), mas como manifestações de senso comum que acabaram por encontrar sua expressão mais substantiva em uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) instalada em 2015 e, consecutivamente, prorrogada, para apurar os critérios e procedimentos da política de regularização fundiária de terras para povos indígenas e quilombolas. Dito isso, visa-se desconstruir as acusações feitas na CPI aos antropólogos públicos no Brasil pela análise do pano de fundo senso-comunal dessas acusações, apoiando-se no que está no mito da mestiçagem, bem como suas variações.

Em seguida, argumenta-se que é urgente que a antropologia se livre da atual política de representação exotizante da alteridade (ver Trouillot, 1991Trouillot, M.-R. (1991). Anthropology and the savage slot: the poetics and politics of otherness. In R. Fox (Ed.), Recapturing Anthropology (pp. 17-44). School of American Research Press.), que permeia o senso comum não somente da sociedade nacional, mas da própria disciplina, e fomente o entendimento de que a defesa dos direitos socioculturais não é privilégio de minorias, mas uma política democrática de reconhecimento a ser defendida pelo conjunto da sociedade. Ao perseguir ambos objetivos, visa-se reiterar o compromisso ético da antropologia pública com a promoção dos direitos dos povos indígenas, quilombolas, dentre outros coletivos minoritários, ao mesmo tempo em que reflete sobre a importância dos valores praticados pela comunidade antropológica para a construção de uma sociedade mais justa, precisamente porque melhor ajustada à sua diversidade constitutiva.

ABORDANDO PROBLEMAS ALÉM DA DISCIPLINA: A POLÍTICA DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE TERRAS INDÍGENAS NO BRASIL

Para contextualizar a ‘caça às bruxas’ lançada contra os antropólogos no Brasil, é preciso considerar o processo histórico que deu origem ao processo administrativo de demarcação de territórios circunscritos para povos indígenas há quase 50 anos, a se considerar a data de promulgação do Estatuto do Índio (Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973Lei nº 6.001. (1973, dez. 9). Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Diário Oficial da União. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm
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), e a primeira norma administrativa da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) voltada para a regularização de terras indígenas (Brasil, 1975Brasil. (1975, jun. 12). Fundação Nacional do Índio. Portaria nº 255/N. Diário Oficial da União.)6 6 Possivelmente, as duas principais referências para o estudo da biopolítica de demarcação de terras indígenas no Brasil contemporâneo sejam as coletâneas de Oliveira e Almeida (1998) e Lima e Barretto Filho (2005), esta última é exclusivamente dedicada às relações entre antropologia e saberes administrativos na identificação, delimitação e regularização fundiária de terras indígenas. As implicações dessas relações de saber-poder tutelar provenientes do indigenismo para o estabelecimento de outras políticas de gestão territorial e ‘pacificação’ no país ainda estão por ser amplamente pesquisadas e reunidas. Um primeiro trabalho fundamental nesse sentido seria o de Oliveira (2014). No presente artigo, exploro essa correlação de modo declaradamente hipotético. Por fim, para indicar uma coletânea mais especificamente dedicada à política de regularização fundiária de terras indígenas no contexto amazônico, ver Kasburg e Gramkow (1999), obra em que as organizadoras reúnem diversas experiências concretas de demarcação de terras indígenas no âmbito do Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL), desenvolvido como subprojeto do Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7). Trata-se de coletânea fundamental para compreender a real vinculação da cooperação internacional com a política de demarcação territorial no Brasil, para além das teorias conspiratórias abordadas a seguir. . Considerando que a obsessão com a ocupação colonizadora da parte brasileira da floresta amazônica vem desde o regime militar, foi após a aprovação do Estatuto do Índio, ainda em vigor, que governos etnocráticos nacionais visaram ‘integrar e desenvolver’ de modo sistemático a região. Nesses termos, as políticas indigenistas brasileiras estavam centradas em ações voltadas à incorporação dos povos indígenas à comunhão nacional, na verdade um eufemismo para anunciar uma necropolítica (Mbembe, 2016Mbembe, A. (2016). Necropolítica. Arte & Ensaios, (32), 123-151.). Entretanto, estas ideias e ideais emprestaram à segunda metade do século XX uma perspectiva indigenista incoerente ou anacrônica para o devido reconhecimento dos direitos dos povos indígenas à autodeterminação e às suas terras.

Por ter sido elaborada em um contexto assimilacionista, a definição jurídica do ‘índio’ o tornou uma pessoa relativamente incapaz ou um cidadão de segunda classe, submetido a um regime de tutela coercitiva pelo órgão indigenista oficial. Somente em 1988, a Constituição Federal revisou essa orientação, reconhecendo o direito dos povos indígenas à autodeterminação e às terras tradicionalmente ocupadas por eles. A partir desse momento, foi muito lentamente que a administração executiva do estado adquiriu experiência burocrática suficiente para garantir uma política fundiária eficaz e sensível às reivindicações indígenas em acordo com o texto constitucional. Ou seja, foi somente após décadas de trabalho de reconhecimento das terras indígenas que o Estado brasileiro consolidou um processo administrativo para identificar e delimitar os territórios tradicionalmente ocupados pelos 305 povos indígenas, que falam 274 idiomas diferentes, em um total aproximado de 896.917 pessoas (IBGE, 2010Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). (2012). Censo Brasileiro de 2010. IBGE.) – certamente, esta população já soma hoje mais de um milhão de pessoas. É no contexto dessa ampla diversidade étnica, cultural, social e linguística, a qual representa uma variedade ainda maior de situações históricas complexas decorrentes de contatos interétnicos, que se estabeleceu uma política fundiária única, sob a competência do Poder Executivo, para dirimir uma ampla multiplicidade de casos de grande complexidade e, em algumas situações, por meio de processos com décadas de duração, que ainda não foram concluídos.

Para enfrentar cada caso, essa política tem sido realizada por grupos de trabalho liderados por antropólogos que buscam, muitas vezes, com forte oposição e resistência dos ocupantes das áreas, estabelecer formas de diálogo interétnico e intercultural, em campo, com todas as partes conflitantes envolvidas no processo de demarcação de terras indígenas: de moradores indígenas e não indígenas de aldeias a seus vizinhos não indígenas, incluindo desde agentes extrativistas, como garimpeiros, madeireiros, caçadores, passando por agricultores, fazendeiros e latifundiários, até comerciantes, empresários, religiosos e funcionários públicos, todos com os mais variados interesses e práticas de exploração, despossessão ou esbulho das terras e dos recursos indígenas e, consequentemente, com as mais variadas formas de interação com os indígenas e suas organizações.

Para agregar ainda mais complexidade ao trabalho, não é incomum que outras políticas públicas conservacionistas de proteção integral ou de uso sustentável7 7 Atualmente distribuídas em 12 categorias: estações ecológicas; reservas biológicas (REBIO); parques nacionais (PARNA); monumentos naturais; refúgios de vida silvestre; área de proteção ambiental (APA); área de relevante interesse ecológico (ARIE); floresta nacional (FLONA); reserva extrativista (RESEX); reserva de fauna (REFAU); reserva de desenvolvimento sustentável (RDS) e reserva particular do patrimônio natural (RPPN). e programas desenvolvimentistas e de infraestrutura, por mais contraditórios que sejam, se acrescentem ao processo, trazendo novas camadas de conflitualidade e complexidade administrativa e jurídica. Por último, não se pode perder de vista a intervenção de empresas, locais, nacionais e multinacionais, seus lobistas e acionistas, que também exercem pressão sobre a definição da situação territorial.

Somente após trabalhar nestes campos intersocietários econômica e politicamente assimétricos que os antropólogos voltam aos seus gabinetes para redigir os relatórios circunstanciados de identificação e delimitação (RCID) das terras indígenas, propondo áreas cartográficas a serem demarcadas para os povos indígenas, em resposta às reivindicações indígenas e à luz da legislação indigenista, ambiental e fundiária vigente. Após serem elaborados, os relatórios são examinados por outros antropólogos e técnicos do estado, como operadores do direito, engenheiros, historiadores, geógrafos, cientistas sociais, biólogos etc. É importante mencionar que, após trabalharem com o grupo técnico, os indígenas, via de regra, não se pronunciam novamente ao longo de todo o processo administrativo8 8 O processo de titulação de terras de quilombos segue outra normativa e processualidade. Entretanto, pode-se admitir o mesmo grau de complexidade das condições acima mencionadas para que o trabalho antropológico seja realizado junto às comunidades quilombolas. Em 1998, atuei como antropólogo na análise de relatórios de identificação de terras de comunidades dos quilombos no âmbito da Fundação Cultural Palmares (FCP). Naquela ocasião, pude, ao lado de outros antropólogos com participação em processos de demarcação de terras indígenas, constatar a importância dos procedimentos antropológicos e administrativos de demarcação de terras indígenas para estabelecer um padrão ou uma referência para a avaliação dos trabalhos ora realizados com as comunidades dos quilombos. .

É realmente impressionante constatar que, em circunstâncias tão desafiadoras, antropólogos tenham conseguido entregar, nos últimos 30 anos, um universo de 562 terras indígenas (uma média de 18 terras indígenas reconhecidas por ano), o que equivale a 116.997.082 hectares, além de outras 31 reservas indígenas equivalentes a 42.621 hectares. Isso representa 77,19% do total de 728 terras que integram o sistema de política de reivindicações de terras indígenas, e que representariam cerca de 127.583.617 hectares ou 14,98% do território nacional, sendo 54% destas localizadas na região Norte, onde se concentra o bioma amazônico (FUNAI, 2021Fundação Nacional do Índio (FUNAI). (2021). Demarcação. Ministério dos Povos Indígenas. https://www.gov.br/funai/pt-br/atuacao/terras-indigenas/demarcacao-de-terras-indigenas
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).

Este é um resultado expressivo alcançado pela expertise antropológica na proteção jurídica dos direitos dos povos indígenas às terras essenciais para sua sobrevivência física e cultural e que, mais recentemente, têm sido reconhecidas como fundamentais para lidar com as mudanças climáticas. Entretanto, é importante ter em mente que dos 14,98% mencionados, não há estimativa de terras efetivamente sob uso exclusivo de seus respectivos povos indígenas. Isso significa que são muitas as ocorrências de ocupações, empreendimentos e formas de exploração ilegal de recursos em terras indígenas, o que viola sua autonomia e perspectivas de futuro. Além disso, existe um percentual significativo de terras indígenas que não se encontram efetivamente homologadas, o que teria levado o então ministro da justiça Eugênio Aragão a afirmar que as áreas remanescentes são como a ‘carne de pescoço’ da política territorial indigenista9 9 Veja-se seu depoimento à Comissão Especial da Proposta de Emenda a Constituição (PEC 215/2000), em audiência pública realizada em 11/06/2014, quando afirma: “De fato, vamos dizer, esse processo político da demarcação das áreas indígenas obedeceu a um movimento de afunilamento. Começou-se a demarcar as áreas que eram mais tranquilas – principalmente em terras amazônicas, pouco habitadas – e, à medida que se ia progredindo nessa demarcação de áreas, foi se entrando em áreas mais problemáticas. Pode-se dizer que, com 20 anos de atraso na demarcação das terras indígenas, a União conseguiu demarcar em torno de 90%, 91% das áreas previstas inicialmente. Então, falta demarcar 9% a 10%. Esses 9% a 10% que faltam ser demarcados podem se definir como carne de pescoço. São as áreas que sobraram, as mais difíceis. Por quê? Porque são áreas indígenas ou, pelo menos, regiões que se pretende demarcar em territórios densamente povoados ou com grande valor econômico, porque, enfim, áreas destinadas à produção agrícola industrializada ou à produção agrícola tradicional. Portanto, demarcar terras indígenas nesses territórios, além do custo econômico, tem também elevado custo social” (citado em Câmara dos Deputados, 2014). . Isso acaba gerando, em seu conjunto, um quadro de conflito interétnico generalizado em todas as regiões do país onde os povos indígenas vivem e lutam para resistir e onde as partes, indígenas e não indígenas, tendem a romper a governamentalidade da política fundiária e recorrer não apenas à justiça, mas também a várias formas de protesto, luta social e confronto direto.

O resultado da política fundiária apresentado acima ajuda a avaliar a centralidade do trabalho antropológico na biopolítica de demarcação de terras indígenas e, consequentemente, o nível de visibilidade que a disciplina alcançou perante o público em um cenário extenso e intensamente conflituoso, que somente se ampliou com a inclusão de outros povos e comunidades como sujeitos de direitos territoriais que requerem o conhecimento antropológico para fundamentar suas reivindicações. A utilização da antropologia como disciplina científica para orientar essas políticas resulta da sua competência na utilização de métodos e técnicas próprios de trabalho de campo, para promover o diálogo direto e efetivo com os povos indígenas, atento às suas práticas culturais e formas de organização política. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que tem proporcionado sistematicamente conteúdos e informações sobre a natureza do trabalho profissional e pericial dos antropólogos, assim resumiu o papel do antropólogo no âmbito das políticas territoriais:

A atuação do(a) antropólogo(a) deve partir da complexa relação da comunidade com o seu território, levando em conta as múltiplas e dinâmicas formas de representações, memórias, modos de organização social e produtiva, usos e significados de recursos, categorias êmicas de ordenamento territorial, religiosidades, saberes e fazeres próprios, conflitos intracomunitários, intercomunitários e/ou com antagonistas, o histórico de expropriação do grupo e sua luta pela recuperação do seu território.

Pela própria complexidade envolvida, a definição de limites territoriais deve ser precedida de ampla discussão com o grupo, justificando e documentando etnograficamente as razões que os sustentam, as posições tomadas em campo pelo grupo e pelo(a) pesquisador(a)

(ABA, 2015Associação Brasileira de Antropologia (ABA). (2015). Protocolo de Brasília. Laudos antropológicos: condições para o exercício de um trabalho científico. ABA Publicações., p. 23).

Não há dúvida de que o resultado do envolvimento dos antropólogos na política de demarcação de terras indígenas, quilombolas e de povos e comunidades tradicionais criou a oportunidade para a participação direta desses sujeitos, politicamente marginalizados, na definição dos limites territoriais assumidos por suas terras, pelo menos em uma das fases administrativas dos processos. A competência adquirida pela antropologia pública no Brasil no âmbito da biopolítica indigenista possibilitou ainda o exercício reflexivo e crítico acerca do comprometimento político dos antropólogos com os direitos dos povos indígenas (Lima & Barretto Filho, 2005Lima, A. C., & Barretto Filho, H. T. (Orgs.). (2005). Antropologia e identificação: os antropólogos e a definição de terras indígenas no Brasil, 1977-2002. Contra Capa; LACED/CNPq/FAPERJ/IIEB.). Desta experiência, aprofundou-se a compreensão de que a prática da antropologia no âmbito do Estado está longe de se realizar sem constrangimentos de distintas ordens. Na verdade, o contexto biopolítico do indigenismo no qual se dá essa prática antropológica tem advertido os antropólogos de que o reconhecimento das terras indígenas pelos grupos de trabalho por eles coordenados é parte de uma forma elaborada de gestão tutelar de povos e territórios.

Em suma, o trabalho público de identificação e delimitação territorial feito pelos antropólogos decorre de uma política fundiária regida pelo Estado, que é responsável pelos limites definitivos de territórios de povos e comunidades tradicionais como categoria administrativa para organizar a relação entre a sociedade nacional, as comunidades locais, o mercado e o próprio Estado. Os antropólogos detêm, nessa atividade, uma ampliação do poder para contrariar outros interesses políticos e econômicos sobre e sob essas mesmas porções de terra. Entretanto, apesar de possuírem pouco poder direto para definir a situação fundiária em contextos interétnicos tão diversos quanto assimétricos, a contribuição do trabalho antropológico nos grupos de trabalho de identificação e delimitação de terras indígenas é notável. Como esclarecem Pacheco de Oliveira e Almeida a esse respeito:

É desse Grupo de Trabalho que emanam as determinações primárias quanto à colocação em prática de uma política fundiária para o órgão indigenista. Sem dúvida existem outras instâncias decisórias de maior peso que, por sua vez, sempre se interpõem entre a proposta original do GT e a área reconhecida oficialmente, analisando e refazendo aquelas propostas. Apesar de estar subordinada hierarquicamente a essas outras esferas de decisão,

a importância do GT não deve de modo algum ser subestimada, pois corresponde à primeira iniciativa ordenada do órgão no processo, constituindo uma investigação direta da situação, um contato específico e orientado com os próprios interessados. A sua força no processo decisório decorre justamente daí: de que os dados sobre os quais os outros discutem, decidem ou retificam as propostas apresentadas pelos GTs procedem em grande parte (senão em sua totalidade) do trabalho de campo desenvolvido por esse mesmo grupo. As suas marcas em termos de substrato etnográfico e de ideologia indigenista ficarão impressas em toda a discussão sobre o caso e se estenderão à própria realidade local . . . . acompanhando e em certa medida condicionando todo o andamento burocrático do processo

(Oliveira & Almeida, 1998Oliveira, J. P., & Almeida, A. W. (1998). Demarcação e reafirmação étnica: um ensaio sobre a Funai. In J. P. Oliveira (Ed.), Indigenismo e territorialização (pp. 69-123). Contra Capa., p. 74).

Portanto, a despeito do caráter exemplar do trabalho antropológico no processo administrativo para garantir os direitos dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas por esses povos, esta foi até agora uma ‘antropologia permitida’ e, como tal, sempre submetida aos constrangimentos políticos e administrativos que são exercidos no âmbito das instituições estatais. Estes constrangimentos vêm se fazendo notar na última década em razão das pressões contrárias à proteção dos povos indígenas e seus recursos. Vide, por exemplo, os sucessivos cortes, de diferentes governos, no orçamento geral da FUNAI, causando a redução do número de antropólogos contratados pelo órgão ou como servidores do mesmo para atuar nas centenas de processos de regularização fundiária de terras em andamento; e, principalmente, pela paralisação desses mesmos processos a partir de ações judiciais, dentre outras ações revisionistas da legislação e do processo administrativo de terras indígenas no âmbito dos três poderes. Dito de outro modo, a mudança de discurso e atitude das autoridades públicas quanto ao processo de demarcação de terras indígenas vem ocorrendo devido à pressão judicial exercida pelos insatisfeitos com o processo administrativo sobre 22,81% das terras indígenas a serem ainda regularizadas, o que corresponde a apenas 8,2% do que resta a ser homologado definitivamente.

Esta conjuntura ensejou uma nova modalidade de ataque aos direitos dos povos indígenas, não mais com velhos chavões, como ‘há muita terra para pouco índio’, mas pela difamação dos operadores dos direitos destes. Os detratores são os mesmos que dão voz às acusações mencionadas anteriormente e que foram publicadas em artigo de 2010, em número especial da revista Veja, sob o título “A farra da antropologia oportunista”. Os autores do artigo foram bastante frívolos ao afirmar que: “Critérios frouxos de delimitação de reservas indígenas e quilombolas ajudam a engordar as contas das organizações não governamentais e reduzir ainda mais o território destinado aos brasileiros que querem produzir” (“A farra...”, 2010A farra da antropologia oportunista. (2010, maio 5). Veja, 43(18), 154-161.). Sem apresentar provas, citando antropólogos, indígenas e quilombolas, e acrescentando à peça um punhado de porcentagens de áreas territoriais e mapas mal calculados, o artigo visava induzir a opinião pública a suspeitar do trabalho profissional dos antropólogos, buscando, ao mesmo tempo, gerar dúvidas e insegurança jurídica sobre a política pública; em suma, deslegitimar e promover retrocessos no processo de garantia das terras indígenas no Brasil.

Desde então, a antropologia pública vem enfrentando um duro e hostil cerco no Brasil, alcançando seu ápice com a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que se desdobrou em uma segunda etapa, para investigar o processo administrativo de titulação de terras indígenas e de quilombos e que acabou por acusar 15 antropólogos, entre outros funcionários do estado, de má conduta e também por acusá-los criminalmente por terem elaborado relatórios técnicos falsos. Como veremos a seguir, o modo como estas acusações foram tecidas elucida um emaranhado confuso de noções apoiadas no senso comum sobre a mestiçagem das culturas e identidades indígenas e quilombolas e sobre o lugar desses sujeitos na história do Brasil, acarretando uma profunda incompreensão sobre o papel desempenhado pela antropologia no processo de demarcação de terras indígenas, de comunidades quilombolas e de povos e comunidades tradicionais.

UM EMARANHADO CONFUSO: O RELATÓRIO FINAL DA CPI FUNAI/INCRA 2 COMO PEÇA DE SENSO COMUM

As comissões parlamentares de inquérito são temporárias e funcionam com prazo determinado de 120 dias. São criadas com, pelo menos, um terço do total de membros da Câmara dos Deputados. As CPIs destinam-se a investigar fatos de relevante interesse para a vida pública e para a ordem constitucional, legal, econômica ou social do país. Têm poderes de investigação equiparados aos das autoridades judiciais, tais como determinar diligências, ouvir indiciados, inquirir testemunhas, requisitar informações e documentos de órgãos e entidades da administração pública, requerer a audiência de deputados e ministros de Estado, tomar depoimentos de autoridades federais, estaduais e municipais, bem como requisitar os serviços de quaisquer autoridades, inclusive policiais. Além disso, essas comissões podem se deslocar a qualquer lugar do território nacional para a realização de investigações e audiências públicas e estipular prazo para o atendimento de qualquer providência ou realização de diligência sob as penas da lei, exceto quando da alçada de autoridade judiciária10 10 Para mais informações sobre as atribuições das CPIs, ver Câmara dos Deputados (2015-2019). .

No caso da Comissão Parlamentar de Inquérito da Fundação Nacional do Índio/Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (CPI FUNAI/INCRA), esta foi instalada a partir do Requerimento de Instituição de CPI (RCP) nº 26/2016 de 24/08/2016 para realizar uma investigação sobre a atuação da FUNAI e do INCRA na demarcação de terras indígenas e de quilombos. Ela contou com uma prorrogação para o seu funcionamento e, com isso, foi dividida em duas etapas, tendo concluído seus trabalhos em maio de 201711 11 Para acessar o processo e documentos da CPI FUNAI/INCRA 1, ver Câmara dos Deputados (2016). E, para acessar o processo e documentos da CPI FUNAI/INCRA 2, ver Câmara dos Deputados (2016-2017). .

As atividades foram resumidas no próprio relatório da seguinte forma (Câmara dos Deputados, 2017Câmara dos Deputados. (2017, maio). Voto em separado. Relatório Paralelo - Deputados apoiadores da pauta indígena, quilombola e dos(as) trabalhadores(as) rurais. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a atuação da FUNAI e do INCRA na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos (Vol. 2). Câmara dos Deputados., p. 25):

  1. Realização de 34 (trinta e quatro) reuniões ordinárias;

  2. Oitiva de 6 (seis) depoentes convocados como testemunhas, 19 (dezenove) convidados e 1 (um) comparecimento espontâneo;

  3. Deliberação de 267 (duzentos e sessenta e sete) requerimentos;

  4. Expedição de 922 (novecentos e vinte e dois) Ofícios da Presidência e 46 (quarenta e seis) Ofícios da Secretaria da CPI e

  5. Recebimento de 290 (duzentos e noventa) documentos, entre ofícios, correspondências internas e mensagens eletrônicas.

Tendo acompanhado as reuniões ordinárias da comissão em sua segunda etapa na Câmara dos Deputados e colaborado com os trabalhos para responder às investidas da CPI contra uma pluralidade de pessoas e instituições, incluída aí a própria ABA, foi possível acompanhar e observar diretamente os trabalhos públicos da CPI, lembrando que uma quantidade expressiva de material foi produzida nos bastidores, por agentes públicos indicados pelos parlamentares12 12 De acordo com o relatório: “Assessoraram a Comissão servidores designados pela Consultoria Legislativa, Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira, servidores do TCU, um Procurador do Estado do Rio Grande do Sul, um Delegado e um perito da Polícia Federal, requisitados para assessoramento especial. Auxiliaram os trabalhos servidores do Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, da Coordenação de Audiovisual, do Departamento de Polícia Legislativa e de diversos órgãos internos do Departamento de Comissões da Câmara dos Deputados, inclusa [sic] esta Secretaria” (Câmara dos Deputados, 2017, p. 14). , assim como em diligências que não chegaram a ser comunicadas ao conjunto da CPI durante seu planejamento ou realização. A observação participante se deu nas galerias da Câmara dos Deputados, de onde pude registrar as situações sociais de apresentação e interpelação dos convidados a prestarem depoimentos. Desta posição também era possível participar diretamente da movimentação de articulação da bancada de oposição à CPI, acompanhando a elaboração de perguntas, os contatos com a imprensa e as formas de atuação parlamentar. Em diferentes ocasiões, acompanhei a presidência da ABA em encontros de sensibilização junto aos parlamentares da CPI (situação e oposição), assim como participei de reunião com assessores parlamentares e policiais federais envolvidos nos trabalhos da CPI.

Esta atuação também possibilitou subsidiar manifestações da ABA frente aos ‘fatos’ produzidos pela CPI e contribuir com o voto em separado dos integrantes da CPI contrários ao modo como esta foi conduzida13 13 Trata-se de um documento com 583 páginas concluído com a constatação de que: “Esta CPI não trouxe a verdade dos fatos, tampouco quis qualificar as políticas públicas em curso ou propor medidas de distensionamento dos conflitos fundiários. Voltaremos na história e retrocederemos décadas de conquistas sociais, de aprimoramentos em políticas públicas e de construção democrática. Dias obscuros virão, e muita resistência social será preciso para impedir que todos os malefícios presentes nas proposições do relator, sejam implementadas, e que certamente significará o acirramento dos conflitos no campo” (Câmara dos Deputados, 2017, pp. 582-583). . A partir desta experiência de observação participante engajada e corroborando a análise da antropóloga Priscila Tavares dos Santos, que se dedicou a uma etnografia documental e arquivística do material da CPI FUNAI/INCRA, temos que esta CPI se configurou de modo a superdimensionar a representatividade da chamada ‘bancada ruralista’, não somente como uma maioria parlamentar de partidos de direita, mas também ocupando com deputados do ‘Centro-Sul’ do Brasil todas as posições operacionais para sua condução, nomeadamente: presidente - Alceu Moreira (Partido do Movimento Democrático Brasileiro/Rio Grande do Sul - PMDB/RS); 1º vice-presidente - Luis Carlos Heinze (Partido Progressista/Rio Grande do Sul - PP/RS); 2º vice-presidente - Luiz Henrique Mandetta (Partido Democratas/Mato Grosso do Sul - DEM/MS); 3º vice-presidente - Nelson Marquezelli (Partido Trabalhista Brasileiro/São Paulo - PTB/SP); relator - Nilson Leitão (Partido da Social Democracia Brasileira/Mato Grosso - PSDB/MT); sub-relatores - Valdir Colatto (Movimento Democrático Brasileiro/Santa Catarina - MDB/SC) e Tereza Cristina (Partido Socialista Brasileiro/Mato Grosso do Sul - PSB/MS)14 14 Apesar de não integrar esta composição, o deputado Osmar Serraglio (PMDB do Paraná/PR) foi um dos solicitantes de abertura da CPI. .

Santos (2022)Santos, P. T. (2022). A CPI da FUNAI e do INCRA e os ataques aos direitos constitucionais de povos tradicionais. Antropolítica, 54(1): 326-349. https://doi.org/10.22409/antropolitica2022.i1.a47928
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apresenta uma leitura precisa dessa composição e suas implicações para o funcionamento da CPI. De acordo com sua descrição:

. . . sua composição agrega deputados, em sua maioria, afiliados à chamada bancada ruralista com histórico de atuação nas seguintes Comissões: de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços, de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia, de Minas e Energia.

Além disso, participaram da votação de Propostas de Emendas Constitucionais e Projetos de Leis (como, por exemplo, a PEC nº 215/2000 sobre a demarcação de terras indígenas; a PEC nº 1.610/1996 sobre a exploração de recursos de terras indígenas; a PL nº 0037/2011 sobre mineração) que convergem esforços que ultrapassam a periodicidade desta CPI, mas que a complementa no alcance de interesses estreitamente relacionados à expansão de empreendimentos capitalistas no país, em especial do agronegócio

(Santos, 2022Santos, P. T. (2022). A CPI da FUNAI e do INCRA e os ataques aos direitos constitucionais de povos tradicionais. Antropolítica, 54(1): 326-349. https://doi.org/10.22409/antropolitica2022.i1.a47928
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, pp. 329-330).

Ainda de acordo com Santos (2022, p. 339)Santos, P. T. (2022). A CPI da FUNAI e do INCRA e os ataques aos direitos constitucionais de povos tradicionais. Antropolítica, 54(1): 326-349. https://doi.org/10.22409/antropolitica2022.i1.a47928
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:

. . . os efeitos dos processos acusatórios e pressupostamente investigativos orquestrados pelos membros da bancada ruralista que compõem esta CPI se coadunam com processos de negociação política entre esses deputados e os empresários do agronegócio, da mineração e do estado brasileiro, assim como de manipulação, de escolhas e de decisões arbitrárias diante de uma realidade constitucional normativa com vistas à negação de direitos – mediante desconsideração de princípios constitucionais e dispositivos legais –, tais como os direitos culturais e territoriais a povos e populações tradicionais.

Como se pode notar, Santos (2022, p. 331, 345)Santos, P. T. (2022). A CPI da FUNAI e do INCRA e os ataques aos direitos constitucionais de povos tradicionais. Antropolítica, 54(1): 326-349. https://doi.org/10.22409/antropolitica2022.i1.a47928
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aponta sua análise para a produção discursiva de ‘verdades’ na CPI para gerar efeitos divergentes sobre a proteção a direitos territoriais e culturais de povos e populações tradicionais. Esta abordagem é particularmente eficaz para observar como os:

. . . ataques são promovidos segundo as diretrizes do agronegócio e de projetos desenvolvimentistas de construção de barragens, além de empreendimentos minerários e de exploração florestal, entre vários outros, que têm emergido no país em atendimento ao ponto de vista das elites dominantes como fonte de salvação da economia e do Estado

(Santos, 2022Santos, P. T. (2022). A CPI da FUNAI e do INCRA e os ataques aos direitos constitucionais de povos tradicionais. Antropolítica, 54(1): 326-349. https://doi.org/10.22409/antropolitica2022.i1.a47928
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, p. 346).

Entretanto, por mais que esta perspectiva apreenda os efeitos produtivos (estruturas estruturantes) do discurso parlamentar, ela não alcança suficientemente a teia de significados que confere sentido e eficácia a esse discurso junto a plateias mais amplas (suas estruturas estruturadas)15 15 Parte-se aqui das sínteses de Pierre Bourdieu sobre as produções simbólicas como instrumentos de dominação, em particular quando afirma: “É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os ‘sistemas simbólicos’ cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domesticação dos dominados’” (Bourdieu, 2006, p. 11). . Desse modo, e de forma complementar à análise de Santos (2022)Santos, P. T. (2022). A CPI da FUNAI e do INCRA e os ataques aos direitos constitucionais de povos tradicionais. Antropolítica, 54(1): 326-349. https://doi.org/10.22409/antropolitica2022.i1.a47928
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, propõe-se aqui outra perspectiva de interpretação do texto para reconhecer a estrutura narrativa implícita (Bruner, 1986Bruner, E. (1986). Ethnography as narrative. In V. Turner & E. Bruner (Eds.), The anthropology of experience (pp. 139-155). University of Illinois Press.) que antecipa e ordena o discurso ruralista produzido na CPI FUNAI/INCRA 2. Trata-se de considerar as formas simbólicas consensuais do discurso mais do que suas intenções, ou seja, o que se busca interpelar, neste momento, é a visão de mundo que sustenta o discurso produzido contra os direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais e contra o trabalho antropológico. De certo modo, pode-se, inclusive, considerar que é precisamente nessa instância que os discursos tomam forma e “. . . revelam relações assimétricas de poder que orientam a construção do estado-nação brasileiro” (Santos, 2022Santos, P. T. (2022). A CPI da FUNAI e do INCRA e os ataques aos direitos constitucionais de povos tradicionais. Antropolítica, 54(1): 326-349. https://doi.org/10.22409/antropolitica2022.i1.a47928
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, p. 344). A partir deste imaginário, os parlamentares ruralistas, na qualidade de intermediários, atuam ao mesmo tempo como membros de uma rede abrangente de relações e como membros de uma instituição nacional, a Câmara dos Deputados, de onde forjam laços como controladores de recursos e de poder fora das comunidades que lhes servem de base16 16 Aqui parafraseio deliberadamente a formulação de Eric Wolf sobre os brokers/intermediários no México. Para este autor, devemos observar o que se passou em instituições nacionais como arenas: “. . . em que grupos sociais estratégicos interagiam em conflito, acomodavam-se e atraíam aliados para sustentar essas relações. Levando em conta essa malha de conexões, o foco da investigação muda de comunidades e instituições para a questão de como os agrupamentos sociais, atuando em diferentes níveis da sociedade, envolvem uns aos outros” (Wolf, 2003, p. 73). .

Diante da intensidade ofensiva orquestrada no âmbito parlamentar, parece ser necessário interpretar o discurso acusatório contra os agentes defensores dos direitos socioculturais dos povos indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais menos pelos interesses dos sujeitos que proferem esse discurso, o que já está devidamente descrito e criticado (Santos, 2022Santos, P. T. (2022). A CPI da FUNAI e do INCRA e os ataques aos direitos constitucionais de povos tradicionais. Antropolítica, 54(1): 326-349. https://doi.org/10.22409/antropolitica2022.i1.a47928
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), e mais pela estrutura de pensamento que serve ao seu ordenamento. Ao optar por esta perspectiva, torna-se possível construir uma abordagem propriamente antropológica, para desconstruir o próprio pressuposto de legitimidade de tais alegações, baseadas em opiniões preconcebidas e em mitos nacionais. O que fundamenta esta abordagem é a compreensão antropológica de que o ‘senso comum’ – ou o entendimento cotidiano de como o mundo funciona (Herzfeld, 1997Herzfeld, M. (1997). Anthropology: a practice of theory. International Social Science Journal, 49(153), 301-318. https://doi.org/10.1111/j.1468-2451.1997.tb00025.x
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, pp. 30-31) – constitui o cerne do próprio objetivo interpretativo da antropologia, que, no caso em questão, precisa se voltar, ironicamente, para o discurso difamatório sobre a atuação dos antropólogos no âmbito de políticas públicas de gestão de terras de povos indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais, produzido por membros da comunidade política da própria sociedade a que pertencem esses antropólogos.

Concordando com as ideias de Geertz (1997 [1983])Geertz, C. (1997 [1983]). O saber local: ensaios de antropologia interpretativa. Vozes. sobre o senso comum como um sistema cultural ou simbólico, consideramos que o senso comum é um setor organizado de todas as culturas (Geertz o considera em termos de ‘subúrbios’) e há várias razões pelas quais lidar com o senso comum como um corpo organizado de conhecimento deliberado pode nos levar a insights esclarecedores sobre as formas como os outros pensam (não só sobre os direitos socioculturais, mas também sobre os antropólogos e sua atuação, por exemplo). Entre essas razões, a mais importante é o fato de que o senso comum emana do comportamento espontâneo enquanto tende a pensar que não. De fato, de acordo com Geertz, enquanto a religião fundamenta sua autoridade na revelação; a ciência na metodologia; e a ideologia na paixão moral; o senso comum baseia seus argumentos na própria vida: “O mundo é sua autoridade” (Geertz, 1997Geertz, C. (1997 [1983]). O saber local: ensaios de antropologia interpretativa. Vozes. [1983], p. 114).

A partir desta perspectiva, podemos passar a compreender as críticas feitas no contexto da CPI à antropologia e a seus praticantes nos processos de demarcação de terras justamente como um efeito da importância alcançada pela disciplina para abrir, a partir do Estado e diante do conjunto da sociedade, um horizonte de justiça social e ambiental a partir da efetivação dos direitos territoriais de populações minoritárias à nação. A eficiência antropologicamente orientada da política de gestão territorial, que está embasada no texto constitucional, materializa o reconhecimento e a valorização da diversidade étnica e cultural dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e das comunidades tradicionais, em contraste com certas representações arraigadas de identidade nacional, confrontando, desse modo, sentidos hegemônicos de brasilidade. As sessões da CPI FUNAI/INCRA 2 constituíram arenas públicas de colisão de valores e interesses contrastantes, dando, assim, lugar a eventos de manifestação espontânea de um senso comum arraigado de brasilidade, nos quais se tornou possível identificar os argumentos de autoridade que são invocados por parlamentares ruralistas a partir de uma alegada ‘experiência mundana’ com o Brasil, sua história, sua cultura, seu território e seu povo; em suma, com seus mitos nacionais.

São esses mitos que ‘embasam’ o “Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito FUNAI - INCRA 2”, de maio de 2017, constituindo uma peça textual de 3.385 páginas de alegações senso-comunais, divididas em dez partes ou capítulos com subitens (Câmara dos Deputados, 2017). O documento é acrescido de três anexos, não disponibilizados em formato eletrônico. Tais alegações de senso comum perpassam todo o documento, inclusive nas extensas partes voltadas para os estados e casos específicos relacionados às bases eleitorais dos parlamentares envolvidos. Destaca-se, desse modo, os estados de Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Bahia e Pará, onde são enfatizados, de modo praticamente exclusivo, a Terra Indígena (TI) Morro dos Cavalos (Santa Catarina), a TI Apyterewa (Pará), a CPI do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) no Mato Grosso do Sul, a TI Serra do Padeiro (Bahia) e o Quilombo Morro Alto (Rio Grande do Sul). Esta é uma amostra, diga-se de passagem, nada representativa, considerando um universo de 562 terras indígenas e 3.200 terras de quilombos existentes no país17 17 Importante assinalar que, do universo de milhares de terras de quilombos, apenas 206 áreas foram regularizadas (Brito, 2018). A justificativa apresentada pelos deputados foi: “De fato, não houve tempo hábil para que se percorresse cada canto de nosso país continental” (Câmara dos Deputados, 2017, p. 252). Ainda assim, argumentaram, em seguida, que as ocorrências ‘apuradas’ nestes estados seriam recorrentes em todo o país, “feitas as devidas ressalvas”, o que contradiz a própria afirmação contida no relatório: “Claro que, em se tratando de um país com dimensões e diversidades continentais, não se pode, sem um estudo mais aprofundado e maiores ressalvas, generalizar para todo o território nacional aquilo que foi apurado no estado do Rio Grande do Sul, mais precisamente, em Mato Preto e região norte do estado” (Câmara dos Deputados, 2017, p. 321). .

Ainda quanto à forma do documento, nota-se a inclusão de fotos, mapas, gráficos e esquemas, que são intercalados por expedientes policiais ou judiciais, requerimentos oficiais, trechos de matérias jornalísticas e longos excertos de relatórios produzidos antes ou depois de diligências em terras indígenas ou de quilombos, ou em outras ocasiões de investigação, como a CPI do CIMI, instaurada de setembro de 2015 a maio de 2016 pela Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, e que foi anulada por decisão judicial. Esta disposição de imagens, documentos oficiais, dentre outros textos apócrifos, produz uma indicialidade que confere ao documento uma retórica pseudo-científica.

Quanto às palavras-chave do discurso parlamentar ruralista, é notável a ênfase na FUNAI, nos ‘índios’ e em suas terras e, conforme o esperado, nos antropólogos, conforme se pode depreender do Quadro 1.

Quadro 1
Correspondência de palavras no texto do Relatório Final CPI FUNAI/INCRA 2. Fonte: Câmara dos Deputados (2017)Câmara dos Deputados. (2017, maio). Voto em separado. Relatório Paralelo - Deputados apoiadores da pauta indígena, quilombola e dos(as) trabalhadores(as) rurais. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a atuação da FUNAI e do INCRA na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos (Vol. 2). Câmara dos Deputados..

Como mencionado anteriormente, o termo ‘índio’ é o preferido pelos autores do relatório, em detrimento do termo ‘povos indígenas’, que aparece apenas 44 vezes. Até mesmo o termo anacrônico, porém juridicamente preservado, ‘silvícola(s)’ é preferido, com 115 ocorrências. A expressão ‘povos indígenas’, reconhecida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1989Organizacão Internacional do Trabalho (OIT). (1989, jun. 27). Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes. https://www.oas.org/dil/port/1989%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20Povos%20Ind%C3%ADgenas%20e%20Tribais%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20OIT%20n%20%C2%BA%20169.pdf
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) e ratificada pelo Brasil, também perde para a menção aos(às) mestiços(as), por exemplo, com 93 menções. Por outro lado, a incidência de termos ou expressões como ‘camponês’, ‘trabalhador rural’, ‘sertanejo’, ‘sem-terra’ e correlatos é ínfima, para não dizer virtualmente inexistente no discurso parlamentar ruralista.

O documento é encerrado com relações de indiciamentos, encaminhamentos, proposições e destinatários do relatório (‘lista de distribuição’), os quais teriam, nos termos do documento, autorização para ‘reproduzir e divulgar’ o mesmo (Câmara dos Deputados, 2017Câmara dos Deputados. (2017, maio). Voto em separado. Relatório Paralelo - Deputados apoiadores da pauta indígena, quilombola e dos(as) trabalhadores(as) rurais. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a atuação da FUNAI e do INCRA na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos (Vol. 2). Câmara dos Deputados.). Para além das entidades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, aparecem, nesta relação, periódicos de circulação nacional e outros com circulação restrita aos estados já referidos, além de ‘órgãos/entidades e pessoas especialmente definidas’, no caso, situadas exclusivamente em Santa Catarina, com exceção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), temos: Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (FATMA); Superintendência Regional do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) em Santa Catarina; Secretaria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (TCU) em Santa Catarina (SECEX-SC); 4ª Promotoria de Justiça da Comarca de Palhoça; Ordem dos Advogados do Brasil (OAB - Conselho Federal); Conselho Comunitário da Enseada de Brito, Palhoça, Santa Catarina; Movimento de Defesa da Propriedade, Dignidade e Justiça Social, Cunha Porã, Santa Catarina; Sindicato dos Agricultores de Abelardo Luz, Santa Catarina; Presidente da Associação dos Proprietários, Possuidores e Interessados em Imóveis (ASPI) no município de Araquari e da região.

Com relação ao conteúdo semântico do relatório, este deve ser apreendido em profundidade a partir da aplicação de um filtro hermenêutico que permita sua desconstrução arqueológica (em sentido foucaultiano) ou tropológica (de acordo com White, 2001White, H. (2001). Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura (Trad. Alípio Correia de Franca Neto, 2. ed.). Editora da Universidade de São Paulo.), o que revela suas diversas camadas de significação superpostas, que sustentam, por sua vez, a atual produção discursiva contra os direitos territoriais dos povos indígenas e quilombolas. Para que a estrutura narrativa implícita que governa a significação do relatório seja tornada apreensível, é preciso reconhecer a origem do discurso parlamentar ruralista na narrativa senso-comunal da mestiçagem como símbolo da identidade nacional (Moura, 1983Moura, C. (1983). Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. Afro-Ásia, (14), 124-137. https://doi.org/10.9771/aa.v0i14.20824
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; Munanga, 2019Munanga, K. (2019). Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra (5. ed.). Autêntica Editora.). A partir deste mito de origem, as identidades e culturas dos povos indígenas e comunidades quilombolas estariam situadas no passado, manifestando no presente apenas estágios de miscigenação, que, por sua vez, assinalariam seu lugar hierárquico inferiorizado e transitório na nação brasileira.

Nesse sentido, da dedicatória às proposições, o documento expressa, numa primeira camada ‘estratigráfica’ de significação, um compartimento organizado da cultura embranquecedora patriarcal e dos poderes senhoriais praticados historicamente. A ‘razão coloquial’ evocada ao longo do texto indica, na verdade, uma ‘razão colonial’, que supõe as diferenças culturais e as desigualdades sociais como originalmente ‘naturais’ ou ‘raciais’, ou seja, fruto de uma mistura incompleta ou inconclusa; que considera a escravidão de indígenas ou africanos algo inevitável e benéfico para os sujeitos explorados, pois, desse modo, puderam tomar parte na construção nacional e assim se tornaram brasileiros, e não grupos étnicos particulares, o que seria, a seu ver, intrinsecamente negativo, pois seriam gerados ‘bantustões’, segundo a retórica do relatório; e que percebe a exploração das riquezas (recursos naturais) como uma predestinação divina dos herdeiros patrimoniais do território nacional, via de regra brancos e de origem europeia, que seriam portadores da missão civilizadora de produzir riquezas e desenvolver o país em benefício de todos. Isso seria expressão de um ‘consenso mestiço’ ou doxa nacionalista. Nas palavras de Geertz (1997 [1983], p. 139)Geertz, C. (1997 [1983]). O saber local: ensaios de antropologia interpretativa. Vozes., para expressá-lo de outra maneira, o senso comum se apresenta aí como um suposto ‘bom senso’, segundo o qual o mundo é representado como um mundo familiar, que todos podem e devem reconhecer.

Não por outro motivo, o relatório se inicia com a evocação da resistência à intervenção estrangeira e à mestiçagem como temas constitutivos da brasilidade que estaria sendo afrontada pela ação de ‘organizações’ que ameaçam a ‘unidade nacional’ (Câmara dos Deputados, 2017Câmara dos Deputados. (2017, maio). Voto em separado. Relatório Paralelo - Deputados apoiadores da pauta indígena, quilombola e dos(as) trabalhadores(as) rurais. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a atuação da FUNAI e do INCRA na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos (Vol. 2). Câmara dos Deputados., p. 2). Cabe observar que o ‘outro’, por excelência do discurso parlamentar ruralista, é um autêntico ‘sujeito oculto’, ora referido como “defensores das demarcações indiscriminadas”; “grupo com identificação ideológica-partidária” até: “Aqueles que se apropriam de um discurso protetivo para usurpar questões públicas em proveito próprio e em detrimento do interesse nacional, favorecendo soberanias outras que não a nossa” (Câmara dos Deputados, 2017Câmara dos Deputados. (2017, maio). Voto em separado. Relatório Paralelo - Deputados apoiadores da pauta indígena, quilombola e dos(as) trabalhadores(as) rurais. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a atuação da FUNAI e do INCRA na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos (Vol. 2). Câmara dos Deputados., p. 170). A versão mais sintética dos inimigos nacionais seria, em resumo, os ‘militantes’ dos direitos dos povos indígenas, quilombolas e dos povos e comunidades tradicionais. O simples fato de estes povos e comunidades aparecerem referidos aqui pelo termo ‘povos’ e no plural seria uma indicação, para os parlamentares ruralistas, de que se está trabalhando contra a unidade e a integração, leia-se homogeneidade, nacional.

Os sujeitos ‘autênticos’ da brasilidade seriam, por sua vez, personalidades indígenas e negras que são lembradas para indicar metonimicamente seu papel na construção heroica dessa brasilidade multicolorida, diante da qual qualquer interpretação crítica ou relativizadora constituiria uma rejeição antipatriótica à identidade nacional e, por contiguidade, às verdades ‘reveladas’ pela CPI, na qual o direito greco-romano, a Bíblia e o direito liberal são as fontes citadas para conferir uma legitimidade conservadora ao discurso acusatório que se sobrepõe a qualquer outra concepção de direito social. Nesse sentido, e adotando certa retórica provinciana, a epígrafe da introdução traz uma citação da obra “Casa Grande e Senzala” (Freyre, 1995Freyre, G. (1995 [1933]). Casa-grande e senzala (30. ed.). Record. [1933]), como que para registrar o lugar de fala dos autores do relatório, situados que estão na casa grande – e não na senzala – de onde a ‘sombra’ ou a ‘pinta’ do indígena e do negro teria ‘tingido’ a ‘alma’ de todo brasileiro, mesmo o alvo e o mais louro. É a partir desta ‘sombra’ ou ‘pinta’ na ‘alma’, não mais que isso, que os autores se autorizam a falar em nome do povo e, sobretudo, no lugar de indígenas e quilombolas para produzirem um discurso cínico de defesa de interesses particulares em nome do ‘interesse e soberania nacional’.

A partir desta abertura sinedóquica do relatório, segundo a qual a brasilidade estaria contida em ‘sombras’ e ‘pintas’, dá-se início a uma narrativa correspondente a esta representação mitificada do ser nacional, em que povos indígenas e pessoas negras escravizadas são silenciados para que outros, nomeadamente os próprios autores do relatório, falem por eles. Trata-se de uma utilização fática da linguagem para iniciar o texto e assegurar que seu efeito conativo ou imperativo seja recebido pelos leitores. Nesse sentido, outros capítulos são inaugurados por epígrafes com função similar, a exemplo do poema “I-Juca-Pirama”, de Gonçalves Dias (1851)Dias, G. (1851). I-Juca Pirama. In Autor, Últimos cantos. Poesias. Tipografia de F. de Paula Brito., um clássico da tupinização reducionista da diversidade étnica e cultural dos povos indígenas no Brasil (capítulo 2, “A CPI FUNAI”); “Navio negreiro”, de Castro Alves (1977 [1880])Alves, C. (1977 [1880]). O navio negreiro. In Autor, Os escravos. Editora Itatiaia., em que se lê a súplica para que as ondas apaguem o horror do tráfico transatlântico e da escravidão (capítulo 3, “A CPI INCRA/Quilombos”); “Lamento sertanejo”, de Dominguinhos e Gilberto Gil (1975)Dominguinhos e Gilberto Gil. (1975). Lamento sertanejo [Música]. In Refazenda [Álbum]. Philips Records., em que se representa o sentimento de solidão e ignorância do sertanejo “que quase não fala” e “quase não sabe de nada” (capítulo 4, “A CPI INCRA/Reforma agrária”); culminando na citação do discurso irônico de Álvaro Tukano para a CPI, que indaga: “Por que alguém tem que falar por mim?” (capítulo 7, “A sombra do internacionalismo e as ONGs”).

Não sendo possível analisar em profundidade as conotações destas epígrafes como transferências metafóricas na estrutura narrativa implícita do discurso parlamentar ruralista, menciono-as aqui para sinalizar elementos que são constitutivos do nacionalismo cabotino acionado no relatório, que se vale da representação idílica do ‘índio tupi’, do ‘escravo africano’ e do ‘sertanejo mestiço’, na qualidade de reduções metonímicas de coletividades reais e mais heterogêneas, para sua composição tropológica. Para o parlamentar ruralista da comissão, o senso comum elaborado a partir destas três categorias heroificadas da mitologia nacional compõe um pano de fundo para o desenvolvimento da devassa que, na prática, não consiste em uma averiguação, apuração ou investigação propriamente dita, mas em um disciplinamento ou uma hierarquização do que deve contar ideologicamente como diversidade, tendo como ‘experiência’ a domesticação destes sujeitos ao longo da história.

De acordo com esta hierarquização, os ruralistas da CPI não admitem que povos indígenas sejam representados em sua diversidade étnica e cultural, que a identidade quilombola seja juridicamente atualizada ou que camponeses sejam protagonistas conscientes da luta pela reforma agrária. Opera aí, subliminarmente, uma negação de coetaneidade (Fabian, 1983Fabian, J. (1983). Time and the other: how anthropology makes its object. Columbia.) a estas pessoas, como se fossem sujeitos políticos cujas existências não seriam contemporâneas às dos demais cidadãos do país. Consequentemente, estes sujeitos não teriam voz, não podem falar desde sua condição subalterna atual. Quando falam, de acordo com os parlamentares ruralistas, sua voz teria sido previamente pautada por outros. Desde esta perspectiva, os parlamentares ruralistas presumem, com base no senso comum, que os antropólogos, na qualidade de agentes cooptados por ONGs (ou seja, os antropólogos também seriam apenas caixa de ressonância de outras agências), seriam aqueles que estariam falando pelos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais. Trata-se de uma deturpação evidente da natureza do trabalho antropológico, ao mesmo tempo que representa uma prática dos próprios parlamentares ruralistas, os quais no âmbito do relatório, acabam por performar autoritariamente o papel que criticam. Retomando a perspectiva de Geertz, o senso comum é ativado como uma forma de explicar os fatos da vida pela ‘afirmação do poder’ de chegar ao âmago desses fatos (Geertz, 1997Geertz, C. (1997 [1983]). O saber local: ensaios de antropologia interpretativa. Vozes. [1983], p. 127). Trata-se, portanto, de uma estrutura de pensamento, ou uma espécie de pensamento, autoritário (Geertz, 1997Geertz, C. (1997 [1983]). O saber local: ensaios de antropologia interpretativa. Vozes. [1983]).

Não é possível examinar aqui a ‘estrutura do pensamento comum’ que subjaz a todas as acusações feitas pelos parlamentares ruralistas da comissão aos antropólogos brasileiros em cada uma das partes do relatório, com particular ênfase para os casos das terras indígenas Morro dos Cavalos, Santa Catarina, e Serra do Padeiro, Bahia. Tal análise certamente traria mais elementos para interpretar as tendências autoritárias de tais acusações, enraizadas em outras neuroses culturais, como o etnocentrismo, o racismo, o sexismo e outras ‘verdades’ naturalizadas, e, por isso, presumidas como inquestionáveis, sobre os povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e, claro, sobre o trabalho dos antropólogos com cada um deles. Em vez disso, cabe explicitar a partir do que é efetivamente escrito no relatório, e que não se confunde com a bricolagem adotada para sua confecção, a narrativa-mestra do senso comum ruralista contra os antropólogos. Como veremos em seguida, é a partir desta narrativa que se reconhece o objetivo do relatório de expor ao julgamento da opinião pública as definições identitárias empregadas pela antropologia para a efetivação dos direitos de povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais. O erro é esquecer que tais definições são constitucionais, antes de serem antropológicas, e, na qualidade de categorias constitucionais, são resultado da luta política de grupos que exigiam sua justa representação como sujeitos de direitos.

Este ‘esquecimento’, por sua vez, resulta de um ponto cego da estrutura narrativa que subjaz o discurso ruralista. As páginas do relatório que são efetivamente redigidas para descrever os trabalhos e conclusões da CPI, o que inclui a transferência de documentos da primeira CPI para a segunda, são elucidativas da narrativa da mestiçagem acima mencionada, não mais de modo meramente indéxico, mas também referencial ou semântico. Mesmo quando admitem que o discurso opera como uma forma de negar direitos, seus autores o mantêm para afirmar o lugar integrado e pacificado que o ‘índio’ deve ocupar como trabalhador nacional, o que se pode notar nas seguintes passagens:

Em primeiro lugar, aquela realidade regional desmistifica algumas concepções indígenas não compatíveis com aspectos contemporâneos. Para aquela região, fica nítido que a comunidade indígena encontra-se em forte interação por valores ditos “ocidentais”, tais como a valorização da renda e do trabalho. Os indígenas dos locais visitados foram unânimes em afirmar que desejam plantar, colher e trabalhar nos moldes de qualquer outro brasileiro. No entanto, mesmo assim, em maior ou menor grau, preservam aspectos típicos da cultura indígena e organizacional das comunidades tradicionais. Essa coexistência de valores é refletida na própria tez de alguns representantes, frutos da miscigenação racial brasileira.

Não se afirma aqui que a interação e miscigenação da sociedade indígena com a sociedade não indígena retiram dos integrantes daquela a condição de índio. Inclusive, os próprios indígenas foram categóricos em refutar essa hipótese. O que se relata é ser inquestionável a importância que os recursos monetários adquiriram naquelas comunidades. Nesse sentido, até mesmo o valor da terra, que, para além da “mãe natureza”, muitas vezes, parece ser vista como uma commodity [sic], um bem necessário à produção. Nesse diapasão, interessante a afirmação do Juiz Federal que atua na região, no sentido de que o conflito indígena local guarda consideráveis similitudes com o conflito dos movimentos sociais de busca pela terra

(Câmara dos Deputados, 2017Câmara dos Deputados. (2017, maio). Voto em separado. Relatório Paralelo - Deputados apoiadores da pauta indígena, quilombola e dos(as) trabalhadores(as) rurais. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a atuação da FUNAI e do INCRA na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos (Vol. 2). Câmara dos Deputados., pp. 321-322).

Para os autores do relatório, o uso e a valorização do dinheiro são o traço comportamental irrefutável, fruto da mestiçagem, que atestaria a integração e a aculturação do indígena, de tal maneira que trabalhos antropológicos que reconhecem e valorizam aspectos culturais, simbólicos, da história oral ou da organização social de um povo indígena nos termos destes somente podem significar um falseamento dessa realidade. Em suma, de acordo com essa lógica senso-comunal, os ‘índios’ seriam detentores apenas dos mesmos direitos dos demais cidadãos, colonos ou moradores regionais, mas não de direitos específicos ou coletivos, pois suas culturas seriam indistintas ou vistas como quase da cultura nacional.

Depreende-se do exposto o estabelecimento de uma narrativa-mestra aculturativa do discurso parlamentar ruralista, a qual organizará a análise crítica de casos particulares (Morro dos Cavalos, Serra do Padeiro, Morro Alto etc.), reiterando redundantemente a ordem mítica nacional apresentada no Quadro 2.

Quadro 2
Estrutura narrativa implícita do discurso parlamentar ruralista presente no Relatório da CPI FUNAI/INCRA 2. Fonte: Câmara dos Deputados (2017)Câmara dos Deputados. (2017, maio). Voto em separado. Relatório Paralelo - Deputados apoiadores da pauta indígena, quilombola e dos(as) trabalhadores(as) rurais. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a atuação da FUNAI e do INCRA na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos (Vol. 2). Câmara dos Deputados..

Central para a ordem narrativa da aculturação é o mito da mestiçagem, também referido como ‘mito da democracia racial’ (Moura, 1983Moura, C. (1983). Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. Afro-Ásia, (14), 124-137. https://doi.org/10.9771/aa.v0i14.20824
https://doi.org/10.9771/aa.v0i14.20824...
) para justificar uma perspectiva autenticamente nacional que tem o poder de tornar qualquer outra alternativa a ela uma ideologia espúria. Sob esta perspectiva, a ‘tese’ central do relatório apoia-se em uma retórica protofascista segundo a qual a própria ideia de diversidade étnico-racial é abolida – seriam apenas ‘minorias’ já culturalmente assimiladas – para dar lugar exclusivo à noção de povo, no singular. Esta compreensão de senso comum sobre a formação da sociedade nacional se expressa de modo explícito e sintético no seguinte comentário sobre o indigenato que estaria sendo interpretado e aplicado equivocadamente por juristas e antropólogos, segundo os autores do relatório:

A extensão do conceito é apenas parte da estratégia política para estender o direito da ‘minoria’ indígena, dando-lhe feição de nação e direitos originários pré-existentes ao próprio direito, afastando-se nossa soberania e dilacerando nosso povo. Lamentavelmente, tal postura política foi adotada por ONGs capitalizadas por Estados estrangeiros, permeadas em órgãos da Administração Pública e suportada por segmentos do Ministério Público Federal

(Câmara dos Deputados, 2017Câmara dos Deputados. (2017, maio). Voto em separado. Relatório Paralelo - Deputados apoiadores da pauta indígena, quilombola e dos(as) trabalhadores(as) rurais. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a atuação da FUNAI e do INCRA na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos (Vol. 2). Câmara dos Deputados., p. 218).

Como não se trata de examinar a íntegra do relatório, mas apenas apreender aspectos da estrutura narrativa que o informa, cabe, à luz do exposto acima, concluir reflexivamente a discussão, retomando o questionamento sobre a parte ou mesmo a responsabilidade da antropologia para a manutenção ou não dessa narrativa-mestra sobre os ‘índios’, dentre outros ‘nativos’, seus direitos e a própria identidade nacional.

Não se trata, evidentemente, de questionar o que a antropologia supostamente fez, mas sim o que ela não fez ou não teria feito suficientemente ainda, isto é, alterar o senso comum assimilacionista, derivado dos mitos de ‘aculturação’ e ‘mestiçagem’ dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, assim como a política de representação de suas identidades e direitos na ‘ordem’ nacional. Dito de outro modo, distante de um senso comum que compreende a diversidade a partir da aculturação e do mito da mestiçagem, as populações indígenas, quilombolas ou pertencentes a povos e comunidades tradicionais seriam apenas aquelas sociedades exóticas, primitivas ou selvagens que existiram no passado ou se encontram isoladas dos centros urbanos e metropolitanos, i.e., afora da ‘modernidade’. Esta representação coincide com representações essencialistas ainda presentes no discurso teórico da antropologia acadêmica e que é reproduzida ocasionalmente em trabalhos técnicos ou periciais elaborados no ou para o Estado. De acordo com esta perspectiva, o trabalho antropológico que se pauta por outras perspectivas teóricas tende a se tornar suspeito, assim como seus relatórios, pois seriam trabalhos que fabricariam as diferenças, no lugar de reconhecê-las. Esta divisão teórica na disciplina, que em nada abala sua coerência metodológica, talvez aconteça porque a antropologia também não mudou, intimamente, as noções do senso comum intrínsecas aos seus próprios subúrbios discursivos. Quanto a isso e para concluir, faz-se necessário dimensionar o quanto noções de autoctonia e indianidade, próprias do discurso teórico da disciplina, se misturam a sentimentos e percepções senso-comunais de (in)justiça que permeiam as políticas de demarcação de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.

AUTOCTONIA E INDIANIDADE: ENCRUZILHADAS DO ENVOLVIMENTO ANTROPOLÓGICO COM OS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS NA ATUALIDADE

Autoctonia e indianidade são conceitos que articulam um conjunto de questões cruciais nas sociedades plurais contemporâneas, sobretudo no que tange às formas de classificação e administração da diversidade étnica e cultural conjugadas a políticas de reconhecimento e redistribuição, que se chocam com ideologias universalistas e liberais. Essas questões se fazem presentes no discurso parlamentar ruralista, com graves consequências para a prática antropológica e também para os direitos territoriais dos povos indígenas, quilombolas e de povos e comunidades tradicionais. Por um lado, alega-se que estas populações não seriam mais portadoras de identidades e culturas ‘autênticas’, ‘verdadeiras’ ou ‘legítimas’, sendo, antes, populações ‘pobres’, ‘carentes’ e ‘sofridas’, que careceriam de políticas de inclusão social, antes de serem reconhecidas como coletividades culturalmente diferenciadas e detentoras de direitos coletivos. Por outro lado, antropólogos têm atuado junto a estas coletividades a partir de políticas públicas amparadas por direitos constitucionalmente estabelecidos e por normas infraconstitucionais.

Autores como Gausset et al. (2011)Gausset, Q., Kenrick, J., & Gibb, R. (2011). Indigeneity and autochthony: a couple of false twins. Social Anthropology, EASA, 19(2), 135-142. https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2011.00144.x
https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2011...
foram perspicazes ao apontar que a ‘indianidade’ torna-se um conceito central para a antropologia contemporânea lidar com tais questionamentos. Entretanto, segundo eles, a coexistência no discurso antropológico da noção de ‘indianidade’ ao lado de outras noções relacionadas, como a de ‘autoctonia’, torna a discussão sobre a legitimidade das reivindicações de minorias e as respostas antropológicas a elas ainda mais complicadas porque:

Os antropólogos que falam sobre indianidade geralmente não são os mesmos que falam sobre autoctonia. Assim, o termo indígena tende a ser usado para pessoas que já são marginalizadas, enquanto autóctones é geralmente reservado para pessoas que são dominantes em uma determinada área, mas temem uma futura marginalização . . .

(Gausset et al., 2011Gausset, Q., Kenrick, J., & Gibb, R. (2011). Indigeneity and autochthony: a couple of false twins. Social Anthropology, EASA, 19(2), 135-142. https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2011.00144.x
https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2011...
, pp. 138-139, tradução livre)18 18 “The anthropologists who talk about indigeneity are usually not the same as those who talk about autochthony. Thus, the term indigenous tends to be used for people who are already marginalized, while autochthones is generally reserved for people who are dominant in a given area but fear future marginalization . . .” (Gausset et al., 2011, pp. 138-139). .

. . .

Disto decorre uma série de questionamentos:

Uma reivindicação indígena ou autóctone seria mais legítima quando visa promover a diversidade cultural e menos legítima quando um grupo tenta impor seus próprios padrões culturais a outros? Sua legitimidade dependeria da promoção da tolerância à diferença ou da promoção do ódio e da exclusão do outro? Seria legítimo quando o direito à autodeterminação se reivindica como um direito humano universal e ilegítimo quando tenta restringir esse direito a alguns e negá-lo a outros? Seria legítimo quando tenta corrigir erros passados e ilegítimo quando tenta perpetuá-los? Seriam a pobreza e a marginalização política de um grupo aquilo que legitima sua reivindicação? As reivindicações indígenas e autóctones precisariam visar mais igualdade para serem legítimas?

(Gausset et al., 2011Gausset, Q., Kenrick, J., & Gibb, R. (2011). Indigeneity and autochthony: a couple of false twins. Social Anthropology, EASA, 19(2), 135-142. https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2011.00144.x
https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2011...
, p. 6, tradução livre)19 19 “Is an indigenous or autochthonous claim more legitimate when it aims at promoting cultural diversity and less legitimate when a group tries to impose its own cultural standards on others? Does its legitimacy depend on whether it promotes tolerance for difference or instead cultivates hate and exclusion of the other? Is it legitimate when it claims self-determination as a universal human right and illegitimate when it tries to restrict this right to some and deny it to others? Is it legitimate when it tries to redress past wrongs and illegitimate when it tries to perpetuate them? Is it the poverty and political marginalization of a group that makes its claim legitimate? Do indigenous and autochthonous claims need to aim at more equality in order to be legitimate?” (Gausset et al., 2011, p. 6). .

Antes de responder positivamente a todas essas perguntas, é preciso lidar com uma questão mais abrangente: “Como eles [os antropólogos] poderiam garantir, por exemplo, que um discurso público afirmando a igualdade não seria usado para manter as desigualdades estruturais em outro nível?” (Gausset et al., 2011Gausset, Q., Kenrick, J., & Gibb, R. (2011). Indigeneity and autochthony: a couple of false twins. Social Anthropology, EASA, 19(2), 135-142. https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2011.00144.x
https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2011...
, p. 140, tradução livre)20 20 “How could they (the anthropologists) make sure, for example, that a public discourse asserting equality would not be used to maintain structural inequalities at another level?” (Gausset et al., 2011, p. 140). .

Todo esse questionamento lança uma nova luz sobre as cobranças e os desafios enfrentados pela antropologia pública, que trabalha com os direitos de povos e comunidades tradicionais não somente no Brasil, mas no mundo. No contexto brasileiro, entretanto, as questões tocam o cerne das representações de senso comum sobre os direitos destas coletividades e o papel dos antropólogos e demais operadores do direito na sua defesa; sobretudo no que concerne à representação mais ampla de um projeto de construção nacional e funcionamento do Estado, que é percebido como alternativo e ameaçador de um senso comum hegemônico, apoiado nas narrativas-mestras da aculturação e da mestiçagem. As questões acima propostas permitem observar, a partir de uma distância reflexiva, que as acusações senso-comunais aos antropólogos partem não apenas de interesses econômicos setorizados sobre as terras e recursos indígenas, mas também de um sentimento de injustiça de setores da sociedade civil, causado pela alegada preferência profissional (um oportunismo do ponto de vista parlamentar ruralista) dos antropólogos públicos com minorias raciais, com suas óbvias implicações políticas e morais, em detrimento dos direitos também legais, mas menos legitimados, de outros não indígenas. E, mais importante, esse questionamento coloca as definições de indianidade e autoctonia no centro da estruturação da alteridade que está sendo construída a partir do Estado na atualidade, e com o auxílio de antropólogos que atuam no processo biopolítico de demarcação de terras indígenas, quilombolas e de povos e comunidades tradicionais.

Isso acontece porque a noção de autoctonia empregada em trabalhos antropológicos para representar a singularidade cultural destas coletividades, por exemplo, carrega a ideia de que se tratam de sociedades que se mantiveram inalteradas ao longo do processo colonizador. Neste momento, é a antropologia que parece esquecer que noções de autoctonia foram inicialmente aplicadas pelos colonizadores para representar os habitantes das terras por eles conquistadas e que foram, posteriormente, contrabandeadas para o discurso antropológico. Consequentemente, há uma deturpação compartilhada sobre os indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais, que se origina no entendimento de senso comum corrente na própria disciplina para o qual somente sujeitos ‘autênticos’ poderiam ser considerados sujeitos de direitos. Para certos antropólogos e parlamentares ruralistas, existiram somente ‘não indígenas (mestiços) que se autodeclararam índios’ em contraposição aos ‘verdadeiros ameríndios’ (que não se misturaram).

De acordo com a ‘sabedoria’ popular, os autóctones que habitavam uma determinada terra antes da chegada dos colonos europeus seriam os verdadeiros ‘índios’ e, para alguns antropólogos, os portadores de perspectivas culturais próprias a uma etnologia digna do nome. Vale a pena notar que frequentemente os antropólogos recorrem aos dicionários e à etimologia para explicar os sentidos de ‘autoctonia’, em que se encontra um sentido complementar de autóctone subjacente aos usos mundanos da noção. Como tal, é aplicado a povos específicos após uma analogia com o mundo natural, onde plantas, animais, minerais etc. brotam espontaneamente do solo como se fossem cogumelos. De acordo com essa lógica, existem laços naturais primordiais que uniriam os indivíduos entre si e a uma determinada terra, região ou território, originando um tipo singular de povo de um ambiente generativo único21 21 Em seu voto sobre a homologação da TI Raposa/Serra do Sol, o ministro Carlos Ayres Britto fala nos territórios indígenas como ‘totens horizontais’, por exemplo. . Para muitos antropólogos, esta é a origem mítica de povos indígenas, quilombolas e de povos e comunidades tradicionais, de modo a considerá-los um etnos/estrangeiro essencialmente diferente, separado e autônomo, no sentido estrito do termo.

No entanto, este autóctone é um ser hiper-real, considerando as migrações, misturas e interconexões anteriores e em curso com outros povos e regiões e que constituem cada povo a seu modo. Ele só existe ‘em seu estado puro’ para aqueles alienados do processo espontâneo de invenção semântica que o cria. Sob tal figuração, a antropologia biopolítica no Brasil ajudou a moldar muitas áreas para os povos indígenas apoiados na sua classificação como povos ‘primitivos’, ‘isolados’, ‘puros’ que vivem nas florestas desde ‘tempos imemoriais’. A partir daí, a ideia de autoctonia para definir povos indígenas foi transposta para representar outros povos e comunidades, apresentando, assim, um obstáculo para a classificação e o reconhecimento de outras alteridades modernas ou contemporâneas, particularmente aquelas que surgiram da mistura e da crioulização como processos históricos de colonização do país e que, para o discurso parlamentar ruralista, é prova de desindianização/desafricanização/destradicionalização da população.

A perspectiva da autoctonia tem sido objeto de revisão e crítica na antropologia a partir de etnografias desenvolvidas em diálogo com outras disciplinas, em particular a história. Nesse sentido, antropólogos como Robert Paine (1996)Paine, R. (1996). Aboriginality and authenticity - a confoundment [Conference presented at the Department of Anthropology, University of Brasilia]. Aboriginality and authenticity - a confoundment, Brasília., apontaram de forma contundente para o sentido crítico e, portanto, mais conceitual de indianidade e etnicidade que emerge dos cenários disruptivos trazidos com a colonização e as relações interétnicas. Paine (1996)Paine, R. (1996). Aboriginality and authenticity - a confoundment [Conference presented at the Department of Anthropology, University of Brasilia]. Aboriginality and authenticity - a confoundment, Brasília. explicou a antiga definição de ‘aborígene’ ou ‘autoctonia’ como uma imposição do sujeito colonizador ao sujeito nativo para o controle e a exploração deste e de seus territórios, ao mesmo tempo em que o nativo elabora etnicamente seu próprio sentimento de pertencimento. Para ser mais direto, os ‘alóctones não autóctones’ concebem o ser dos autóctones como original e anterior em um determinado território em relação a eles próprios como exteriores e posteriores nesse mesmo território para justificar suas próprias narrativas civilizatórias e práticas de colonização e construção da nação. Assim, a autoctonia como processo histórico de dominação interétnica é melhor compreendida em termos de sua emergência em situações coloniais em que o autóctone seria um símbolo que pode significar múltiplas coisas ao mesmo tempo (a exemplo do ‘índio’ no discurso da mestiçagem).

Por causa da natureza heteroglóssica das situações coloniais ou sociedades plurais, os próprios povos indígenas, por outro lado, vêm subvertendo os sentidos coloniais de autoctonia para reivindicar seu direito à autodeterminação – ou seja, seu direito de se representar autonomamente como povos singulares – em seus próprios termos – e constitutivos da nação. Como afirma o movimento katarista, na Bolívia: “Como índios fomos explorados, como índios nos libertaremos” (Harnecker & Fuentes, 2008Harnecker, M., & Fuentes, F. (2008). MAS-IPSP de Bolivia. Instrumento Político que surge de los movimientos sociales. MAS-IPSP de Bolivia. http://www.rebelion.org/docs/67155.pdf
http://www.rebelion.org/docs/67155.pdf...
, p. 33, tradução livre)22 22 “Like Indians we were exploited, like Indians we will free ourselves” (Harnecker & Fuentes, 2008, p. 33). .

Consequentemente, tornou-se inevitável considerar que os indígenas e demais povos e comunidades tradicionais assim autodeterminados estão conseguindo afirmar sentidos êmicos de autoctonia (aqui referida como indianidade) dentro das e entre as situações coloniais/modernas para subverter as identificações étnicas subordinadoras e arbitrárias colocadas sobre eles por outros agentes colonizadores. A agência política dos autodenominados indígenas contra e dentro dos estados nacionais estão, assim, transliterando a autoctonia de adjetivo para substantivo e, como tal, estão conseguindo convertê-la em direito coletivo de muitos grupos étnicos com suas próprias histórias de formação de alteridade. E é aí que a antropologia pública no Brasil ganhou mais terreno nas últimas décadas e, consequentemente, seus piores adversários, interna e externamente ao campo.

É justamente nesse momento que a antropologia pública não pode ceder ao peso das pressões políticas e voltar-se para o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas semanticamente reduzidos à categoria de ‘autóctones’ no sentido comum. O caso brasileiro indica que isso geraria um retrocesso legal no reconhecimento das terras indígenas, beneficiando apenas os povos classificados como ‘genuinamente ameríndios’ ou ‘não aculturados’, arriscando o ressurgimento do debate equivocado sobre autenticidade.

De fato, o que uma concepção mais contemporânea de indianidade vem ensinando é que o direito dos povos indígenas, quilombolas e de povos e comunidades tradicionais às suas terras não deve ser ancorado apenas na ideia de ‘diversidade cultural’, mas na busca de justiça e reparação pela violência e expropriação que sofreram historicamente por causa de sua subordinação como culturalmente inferiores dentro de uma sociedade nacional colonialmente avassaladora e culturalmente assimilacionista. Nesses termos, a antropologia pública precisa informar melhor a sociedade sobre seus objetivos e compromissos éticos com a promoção da justiça social e ambiental para os povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais, para promover a ideia de pluralismo e interculturalidade como um princípio respeitoso, responsável e reparador com seus povos constituidores. De acordo com essa perspectiva, a proteção da diversidade cultural ou ecológica como um bem comum se tornará uma consequência da realização de uma justiça social compreendida de modo amplo, e não como privilégio de coletividades específicas, concebidas como essencialmente diferentes. Ou seja, assegurar os direitos indígenas, quilombolas e de povos e comunidades tradicionais deve tornar-se um direito de todos em prol do pluralismo democrático.

Os povos indígenas, em especial, categorizados a partir dessa compreensão histórica e sociológica da indianidade (ver Bellier, 2009Bellier, I. (2009). Usages et déclinaisons internationales de l’“autochtonie” dans le contexte des Nations Unies. In N. Gagné, T. Martin & M. Salaün (Eds.), Autochtonies, vues de France et du Québec (pp.75-92). Presses de l’Université Laval.), agora somam mais de 476 milhões em cerca de 90 países, representando grande parte da diversidade cultural do mundo. De agora em diante, a antropologia, tanto no Brasil quanto em outros lugares, está acompanhando de perto os desenvolvimentos atuais da etnicidade pública indígena (ver Weaver, 1984Weaver, S. (1984). Struggles of the Nation-State to define aboriginal ethnicity: Canada and Australia. In R. Paine (Ed.), Minorities and mother country imagery (pp. 182-210). ISER.), aprendendo a desconstruir os conteúdos perniciosos da autoctonia junto com as perspectivas e lutas indígenas. Desse modo, pode-se afirmar que o termo autoctonia continuará sendo uma questão central para a antropologia pública, não porque retrata adequadamente os povos indígenas, mas porque não o faz, e isso deveria guiar a intervenção antropológica no senso comum sobre a diversidade cultural.

Afinal, a disciplina tem uma longa tradição de empregar a empatia para guiar observações e intuições em diferentes mundos para construir a teoria social e ampliar o discurso humano sobre a vida em geral. Certamente, gera simpatia no processo, e essa simpatia tem sido recíproca na maioria dos casos. Na verdade, o envolvimento antropológico com o senso comum como sistema cultural tem funcionado como matéria-prima das descobertas da disciplina e ampliado sua capacidade de perceber, compreender e advogar outros sentidos de justiça que ajudam a moldar um mundo mais pluralista. Portanto, seria simplesmente errado recusá-lo e regredir a uma busca quimérica de objetividade e neutralidade para corresponder às noções do senso comum leigo sobre a diferença cultural.

Espera-se que a discussão apresentada tenha defendido adequadamente que a antropologia pública é melhor definida pelas formas como se engaja eticamente com a realidade social de outros, considerando-a como um todo cultural inseparável de seus próprios contextos de prática. Definida como tal, vem assumindo total responsabilidade pelas interpretações, significados e intervenções práticas trazidas ao escrutínio público. Nunca é demais lembrar que, na maioria das vezes, pelo mesmo motivo, é obrigada a lidar com as reações contrárias à consequente política de representação etnográfica das identidades de populações etnicamente distintas, mas que não exibem fenótipos e traços culturais esperados pelo senso comum. A antropologia, portanto, tem o dever de atuar como a consciência crítica contra tais processos injustos de desconsideração de alteridades de menor distintividade sociocultural da sociedade dominante. Mesmo que seja igualmente injustiçada por isso.

  • 1
    A forma masculina de escrita será adotada apenas para facilitar a exposição das ideias.
  • 2
    “ . . . the pursuit of social justice in many contexts, although waxing and waning over the decades, has been a strong force in anthropology, if not a central tenet” (Susser, 2010Susser, I. (2010). The anthropologist as social critic: working toward a more engaged anthropology. Current Anthropology, 51(S2), 227-233. https://doi.org/10.1086/653127
    https://doi.org/10.1086/653127...
    , p. 229)
  • 3
    Ver L’Estoile et al. (2002)L’Estoile, B., Neiburg, F., & Sigaud, L. (Orgs.). (2002). Antropologia, impérios e estados nacionais. Relume Dumará/FAPERJ. para contribuições a uma “etnografia do pensamento” em âmbito estatal; Bennet et al. (2014Bennett, T., Dibley, B., & Harrison, R. (2014). Introduction: anthropology, collecting and colonial governmentalities. History and Anthropology, 25(2), 137-149. https://doi.org/10.1080/02757206.2014.882838
    https://doi.org/10.1080/02757206.2014.88...
    , 2017)Bennett, T., Cameron, F., Dias, N., Dibley, B., Harrison, R., Jackmin, I., & Mccarthy, C. (2017). Collecting, ordering, governing: anthropology, museums, and liberal government. Duke University Press. para abordagens mais explicitamente ancoradas nos conceitos de biopoder e governamentalidade.
  • 4
    Ver, por exemplo, as definições elaboradas por Rob Borofsky, em sua página eletrônica no Centro para uma Antropologia Pública (Center for a Public Anthropology, 2018Center for a Public Anthropology. (2018). About The Center For A Public Anthropology. https://www.publicanthropology.org/about/
    https://www.publicanthropology.org/about...
    ).
  • 5
    A esse respeito, é particularmente elucidativo o artigo de Lima Filho (2005)Lima Filho, M. F. (2005). Entre a paixão e a técnica: reflexões sobre o processo de identificação e demarcação das terras dos Karajá de Aruanã (GO). In A. C. S. Lima & H. T. Barretto Filho (Orgs.), Antropologia e identificação: os antropólogos e a definição de terras indígenas no Brasil, 1977-2002 (pp. 323-354). Contra Capa; LACED/CNPq/FAPERJ/IIEB..
  • 6
    Possivelmente, as duas principais referências para o estudo da biopolítica de demarcação de terras indígenas no Brasil contemporâneo sejam as coletâneas de Oliveira e Almeida (1998)Oliveira, J. P., & Almeida, A. W. (1998). Demarcação e reafirmação étnica: um ensaio sobre a Funai. In J. P. Oliveira (Ed.), Indigenismo e territorialização (pp. 69-123). Contra Capa. e Lima e Barretto Filho (2005)Lima, A. C., & Barretto Filho, H. T. (Orgs.). (2005). Antropologia e identificação: os antropólogos e a definição de terras indígenas no Brasil, 1977-2002. Contra Capa; LACED/CNPq/FAPERJ/IIEB., esta última é exclusivamente dedicada às relações entre antropologia e saberes administrativos na identificação, delimitação e regularização fundiária de terras indígenas. As implicações dessas relações de saber-poder tutelar provenientes do indigenismo para o estabelecimento de outras políticas de gestão territorial e ‘pacificação’ no país ainda estão por ser amplamente pesquisadas e reunidas. Um primeiro trabalho fundamental nesse sentido seria o de Oliveira (2014)Oliveira, J. P. (2014). Pacificação e tutela militar na gestão de populações e territórios. Mana, 20(1), 125-161. https://doi.org/10.1590/S0104-93132014000100005
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313201400...
    . No presente artigo, exploro essa correlação de modo declaradamente hipotético. Por fim, para indicar uma coletânea mais especificamente dedicada à política de regularização fundiária de terras indígenas no contexto amazônico, ver Kasburg e Gramkow (1999)Kasburg, C., & Gramkow, M. M. (Orgs.). (1999). Demarcando terras indígenas: experiências e desafios de um projeto de parceria. FUNAI/PPTAL/GTZ., obra em que as organizadoras reúnem diversas experiências concretas de demarcação de terras indígenas no âmbito do Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL), desenvolvido como subprojeto do Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7). Trata-se de coletânea fundamental para compreender a real vinculação da cooperação internacional com a política de demarcação territorial no Brasil, para além das teorias conspiratórias abordadas a seguir.
  • 7
    Atualmente distribuídas em 12 categorias: estações ecológicas; reservas biológicas (REBIO); parques nacionais (PARNA); monumentos naturais; refúgios de vida silvestre; área de proteção ambiental (APA); área de relevante interesse ecológico (ARIE); floresta nacional (FLONA); reserva extrativista (RESEX); reserva de fauna (REFAU); reserva de desenvolvimento sustentável (RDS) e reserva particular do patrimônio natural (RPPN).
  • 8
    O processo de titulação de terras de quilombos segue outra normativa e processualidade. Entretanto, pode-se admitir o mesmo grau de complexidade das condições acima mencionadas para que o trabalho antropológico seja realizado junto às comunidades quilombolas. Em 1998, atuei como antropólogo na análise de relatórios de identificação de terras de comunidades dos quilombos no âmbito da Fundação Cultural Palmares (FCP). Naquela ocasião, pude, ao lado de outros antropólogos com participação em processos de demarcação de terras indígenas, constatar a importância dos procedimentos antropológicos e administrativos de demarcação de terras indígenas para estabelecer um padrão ou uma referência para a avaliação dos trabalhos ora realizados com as comunidades dos quilombos.
  • 9
    Veja-se seu depoimento à Comissão Especial da Proposta de Emenda a Constituição (PEC 215/2000), em audiência pública realizada em 11/06/2014, quando afirma: “De fato, vamos dizer, esse processo político da demarcação das áreas indígenas obedeceu a um movimento de afunilamento. Começou-se a demarcar as áreas que eram mais tranquilas – principalmente em terras amazônicas, pouco habitadas – e, à medida que se ia progredindo nessa demarcação de áreas, foi se entrando em áreas mais problemáticas. Pode-se dizer que, com 20 anos de atraso na demarcação das terras indígenas, a União conseguiu demarcar em torno de 90%, 91% das áreas previstas inicialmente. Então, falta demarcar 9% a 10%. Esses 9% a 10% que faltam ser demarcados podem se definir como carne de pescoço. São as áreas que sobraram, as mais difíceis. Por quê? Porque são áreas indígenas ou, pelo menos, regiões que se pretende demarcar em territórios densamente povoados ou com grande valor econômico, porque, enfim, áreas destinadas à produção agrícola industrializada ou à produção agrícola tradicional. Portanto, demarcar terras indígenas nesses territórios, além do custo econômico, tem também elevado custo social” (citado em Câmara dos Deputados, 2014Câmara dos Deputados. (2014). Comissão especial - PEC 215-A, de 2000 - demarcação de terras indígenas evento: audiência pública. Câmara dos Deputados. https://shre.ink/QuMJ
    https://shre.ink/QuMJ...
    ).
  • 10
    Para mais informações sobre as atribuições das CPIs, ver Câmara dos Deputados (2015-2019)Câmara dos Deputados. (2015-2019). Comissões Parlamentares de Inquérito - CPI. http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito
    http://www2.camara.leg.br/atividade-legi...
    .
  • 11
    Para acessar o processo e documentos da CPI FUNAI/INCRA 1, ver Câmara dos Deputados (2016)Câmara dos Deputados. (2016). CPI FUNAI INCRA. https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/55a-legislatura/cpi-funai-e-incra
    https://www2.camara.leg.br/atividade-leg...
    . E, para acessar o processo e documentos da CPI FUNAI/INCRA 2, ver Câmara dos Deputados (2016-2017)Câmara dos Deputados. (2016-2017). CPI FUNAI INCRA 2. https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/55a-legislatura/cpi-funai-e-incra-2
    https://www2.camara.leg.br/atividade-leg...
    .
  • 12
    De acordo com o relatório: “Assessoraram a Comissão servidores designados pela Consultoria Legislativa, Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira, servidores do TCU, um Procurador do Estado do Rio Grande do Sul, um Delegado e um perito da Polícia Federal, requisitados para assessoramento especial. Auxiliaram os trabalhos servidores do Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, da Coordenação de Audiovisual, do Departamento de Polícia Legislativa e de diversos órgãos internos do Departamento de Comissões da Câmara dos Deputados, inclusa [sic] esta Secretaria” (Câmara dos Deputados, 2017Câmara dos Deputados. (2017, maio). Voto em separado. Relatório Paralelo - Deputados apoiadores da pauta indígena, quilombola e dos(as) trabalhadores(as) rurais. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a atuação da FUNAI e do INCRA na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos (Vol. 2). Câmara dos Deputados., p. 14).
  • 13
    Trata-se de um documento com 583 páginas concluído com a constatação de que: “Esta CPI não trouxe a verdade dos fatos, tampouco quis qualificar as políticas públicas em curso ou propor medidas de distensionamento dos conflitos fundiários. Voltaremos na história e retrocederemos décadas de conquistas sociais, de aprimoramentos em políticas públicas e de construção democrática. Dias obscuros virão, e muita resistência social será preciso para impedir que todos os malefícios presentes nas proposições do relator, sejam implementadas, e que certamente significará o acirramento dos conflitos no campo” (Câmara dos Deputados, 2017Câmara dos Deputados. (2017, maio). Voto em separado. Relatório Paralelo - Deputados apoiadores da pauta indígena, quilombola e dos(as) trabalhadores(as) rurais. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a atuação da FUNAI e do INCRA na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos (Vol. 2). Câmara dos Deputados., pp. 582-583).
  • 14
    Apesar de não integrar esta composição, o deputado Osmar Serraglio (PMDB do Paraná/PR) foi um dos solicitantes de abertura da CPI.
  • 15
    Parte-se aqui das sínteses de Pierre Bourdieu sobre as produções simbólicas como instrumentos de dominação, em particular quando afirma: “É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os ‘sistemas simbólicos’ cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domesticação dos dominados’” (Bourdieu, 2006Bourdieu, P. (2006). O poder simbólico (9. ed.). Bertrand Brasil., p. 11).
  • 16
    Aqui parafraseio deliberadamente a formulação de Eric Wolf sobre os brokers/intermediários no México. Para este autor, devemos observar o que se passou em instituições nacionais como arenas: “. . . em que grupos sociais estratégicos interagiam em conflito, acomodavam-se e atraíam aliados para sustentar essas relações. Levando em conta essa malha de conexões, o foco da investigação muda de comunidades e instituições para a questão de como os agrupamentos sociais, atuando em diferentes níveis da sociedade, envolvem uns aos outros” (Wolf, 2003Wolf, E. (2003). Aspectos das relações de grupos em uma sociedade complexa: México. In B. Feldman-Bianco & G. L. Ribeiro (Orgs.), Antropologia e poder, contribuições de Eric Wolf (Coleção Antropologia, pp. 73-91). Editora UnB/Imprensa Oficial do Estado/Editora Unicamp., p. 73).
  • 17
    Importante assinalar que, do universo de milhares de terras de quilombos, apenas 206 áreas foram regularizadas (Brito, 2018Brito, D. (2018). Menos 7% das áreas quilombolas no Brasil foram tituladas. Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-05/menos-de-7-das-areas-quilombolas-no-brasil-foram-tituladas
    https://agenciabrasil.ebc.com.br/direito...
    ). A justificativa apresentada pelos deputados foi: “De fato, não houve tempo hábil para que se percorresse cada canto de nosso país continental” (Câmara dos Deputados, 2017Câmara dos Deputados. (2017, maio). Voto em separado. Relatório Paralelo - Deputados apoiadores da pauta indígena, quilombola e dos(as) trabalhadores(as) rurais. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a atuação da FUNAI e do INCRA na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos (Vol. 2). Câmara dos Deputados., p. 252). Ainda assim, argumentaram, em seguida, que as ocorrências ‘apuradas’ nestes estados seriam recorrentes em todo o país, “feitas as devidas ressalvas”, o que contradiz a própria afirmação contida no relatório: “Claro que, em se tratando de um país com dimensões e diversidades continentais, não se pode, sem um estudo mais aprofundado e maiores ressalvas, generalizar para todo o território nacional aquilo que foi apurado no estado do Rio Grande do Sul, mais precisamente, em Mato Preto e região norte do estado” (Câmara dos Deputados, 2017Câmara dos Deputados. (2017, maio). Voto em separado. Relatório Paralelo - Deputados apoiadores da pauta indígena, quilombola e dos(as) trabalhadores(as) rurais. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a atuação da FUNAI e do INCRA na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos (Vol. 2). Câmara dos Deputados., p. 321).
  • 18
    “The anthropologists who talk about indigeneity are usually not the same as those who talk about autochthony. Thus, the term indigenous tends to be used for people who are already marginalized, while autochthones is generally reserved for people who are dominant in a given area but fear future marginalization . . .” (Gausset et al., 2011Gausset, Q., Kenrick, J., & Gibb, R. (2011). Indigeneity and autochthony: a couple of false twins. Social Anthropology, EASA, 19(2), 135-142. https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2011.00144.x
    https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2011...
    , pp. 138-139).
  • 19
    “Is an indigenous or autochthonous claim more legitimate when it aims at promoting cultural diversity and less legitimate when a group tries to impose its own cultural standards on others? Does its legitimacy depend on whether it promotes tolerance for difference or instead cultivates hate and exclusion of the other? Is it legitimate when it claims self-determination as a universal human right and illegitimate when it tries to restrict this right to some and deny it to others? Is it legitimate when it tries to redress past wrongs and illegitimate when it tries to perpetuate them? Is it the poverty and political marginalization of a group that makes its claim legitimate? Do indigenous and autochthonous claims need to aim at more equality in order to be legitimate?” (Gausset et al., 2011Gausset, Q., Kenrick, J., & Gibb, R. (2011). Indigeneity and autochthony: a couple of false twins. Social Anthropology, EASA, 19(2), 135-142. https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2011.00144.x
    https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2011...
    , p. 6).
  • 20
    “How could they (the anthropologists) make sure, for example, that a public discourse asserting equality would not be used to maintain structural inequalities at another level?” (Gausset et al., 2011Gausset, Q., Kenrick, J., & Gibb, R. (2011). Indigeneity and autochthony: a couple of false twins. Social Anthropology, EASA, 19(2), 135-142. https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2011.00144.x
    https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2011...
    , p. 140).
  • 21
    Em seu voto sobre a homologação da TI Raposa/Serra do Sol, o ministro Carlos Ayres Britto fala nos territórios indígenas como ‘totens horizontais’, por exemplo.
  • 22
    “Like Indians we were exploited, like Indians we will free ourselves” (Harnecker & Fuentes, 2008Harnecker, M., & Fuentes, F. (2008). MAS-IPSP de Bolivia. Instrumento Político que surge de los movimientos sociales. MAS-IPSP de Bolivia. http://www.rebelion.org/docs/67155.pdf
    http://www.rebelion.org/docs/67155.pdf...
    , p. 33).

AGRADECIMENTOS

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (processo 307064/2021-2).

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    » https://doi.org/10.1080/02757206.2014.882838
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Editado por

Responsabilidade editorial: Claudia Leonor López-Garcés

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2022
  • Aceito
    19 Jan 2023
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