Acessibilidade / Reportar erro

Tempo, espaço e chefias no Alto Xingu: uma análise de akinha kuikuro

Tense, space and chiefs in the Upper Xingu: an analyses of Kuikuro akinha

Resumo

Este artigo parte da análise de duas akinha kuikuro - termo geralmente traduzido como ‘narrativa’ – para desenvolver reflexões sobre as relações entre espacialidade e política no Alto Xingu. A partir da perspectiva linguística, a atenção se volta para a produção e organização de temporalidades e sequenciamento temporal em uma língua sem flexão verbal de tempo (tense). Para este fim, serão abordados: aspectos verbal e nominal, partículas epistêmicas-evidenciais e dêiticos demonstrativos. Esse tempo distribuído pela semântica de diferentes grupos de morfemas oferece um trampolim analógico-heurístico para pensar como as noções de tempo e os esforços de historiografia nativa das akinha kuikuro distribuem-se também pela paisagem alto-xinguana, condensando-se de forma diferenciada em distintos espaços e relações políticas na região. O artigo, portanto, realça não apenas os recursos mobilizados na arte verbal executada pelos ‘mestres narradores’ kuikuro, como também abre conexões com territórios passados e presentes e concepções nativas historiográficas, espaciais, cosmológicas e de configurações de paisagens do passado e do presente.

Palavras-chave
Kuikuro; Karib; Alto XingU; Narrativas; Espaço; Chefia

Abstract

This article opens with an analysis of two Kuikuro akinha (a term commonly translated as ‘narrative’) to develop considerations about the relationship between spatiality and politics in the Upper Xingu. From a linguistic perspective, we address the production and organization of temporalities and temporal sequencing in a language with no verbal tense inflection. To this end, the article approaches verbal and nominal aspects, epistemic-evidential particles, and demonstrative deictics. This tense distributed through the semantics of different groups of morphemes offers an analogic-heuristic launchpad for considering how notions of time and efforts at native historiography in Kuikuro akinha also circulate through the landscape of the Upper Xingu, condensing to different extents in different spaces and political relationships. This article consequently highlights not only the resources mobilized in the verbal art of Kuikuro storytellers but also opens connections with past and present territories and native historiographical, spatial, and cosmological conceptions and configurations of past and present landscapes.

Keywords
Kuikuro; Karib; Upper Xingu; Narratives; Space; Chiefs

Ũdenile Giti heke Taũgi heke, tisitũdepügü Mato Grosso ugupo? Mato Grosso ugupo tisitũdepügü, Kuikuro, Kalapalo, Matipu, Nahukua, Kamayura, Yawalapiti, Mehinako, Aweti Kalapalo itupe muita história tsuhügüi geleha Angolotse hegei arqueólogo ngihanalüi tantos anos ῖde tisitũdepügü Taũgi heke ũdeni uãke egitsü opogijü Kuarup? ῖdeha opogitsa geleha Xingu ata gele . . . . Aka ekubeku tanto hectares terras dos indígenas igia agage Tüti negei itsagü? Tüngatagohoi Ünago ngongo otoi? Não Ũdema tisopogijü hüle? Lá! Ahütü enenongo imüto tisopogijü? Inhalü Ũdeni akinha etinenügü tuhugu? Ũdeni ipa ühügütu etinenügü? . . . . Ige higei soja higei ῖde ingilangopea leha kapangamiti Tisigüi᷉jüi geleha hakila gele tahatsale leha soja soja soja nossa Etsῖbükita ta higei leha Igeha Mato Grosso, tsinhongogu ihetatinhi tiha1 1 Em tradução livre: “Onde então Sol, Taũgi, nos colocou, sobre Mato Grosso? / Fomos colocas em cima do Mato Grosso, são Kuikuro, Kalapalo, Matipu, Nahukua, Kamayura, Yawalapiti, Mehinako, Aweti e outros / Onde os Kalapalos moravam tem muitas histórias, muito tempo atrás / esse trabalho dos arqueólogos mostra toda a verdade, esse tempo todo / Taũgi nos colocou aqui / Onde foi que Egitsü começou, o Kuarup? / Foi aqui mesmo que começou, na região do Xingu mesmo / . . . . Falam: por que os indígenas têm tantos de hectares de terra? / O que eles querem? É para plantação / Por acaso eles são donos das terras? Claro que não / Onde foi nossa origem? / Será que foi no outro lado (outros países)? Claro que não / Onde começou nossa história então? / Qual foi a origem de ipa (lagoas)? / (...) Aqui agora só tem plantação de soja, não é mais igual a antes / Em nossa volta, bem perto, só tem plantação de soja, soja, soja / Agora está acabando tudo / Esse Mato Grosso, somos os únicos segurando nossas terras”. . (Ahukaka Kuikuro2 2 Chefe principal da aldeia Ipatse, a maior aldeia kuikuro atual. , comunicação pessoal, abr. 2023)

INTRODUÇÃO

Akinha é um termo kuikuro normalmente traduzido como ‘narrativa’. Contém a raiz aki, conceito insatisfatoriamente traduzível como ‘palavra/língua’, e designa um ente cuja matéria é verbal, referindo-se a qualquer evento narrativo, do mais simples e informal ao mais estruturado e elaborado. A estrutura essencial de uma akinha é a mesma dos cantos: isiinagü (‘base do seu tronco’) e itsikungu (‘seus braços-ramos’). A base mantém o fio condutor; os ‘ramos-braços’ são ‘o ir e vir, proceder, retornar, pegar um elemento, deixá-lo, falar de outro, retomá-lo’, como um akinha oto (narrador mestre de akinha)3 3 O ato de executar uma akinha – um ato comunicativo – não resulta em um monólogo: há sempre uma audiência e um itüjüini, ‘respondedor’, que pontua a fala do narrador com interjeições afirmativas, perguntas ou breves comentários (Franchetto, 1986, 2003). Entre outras expressões traduzíveis como ‘contar, narrar’, mencionamos: akihanügü, ‘contar akinha de ngiholo (‘antigos’) ou akinha que o narrador ouviu de outros’; akinhatunN, ‘contar o que o narrador presenciou’. Qualquer akinha pode ser mostrada (iha, ‘contar/mostrar’) ou dada-trocada (tuN-, ‘dar’). fez notar, ao desenhar no chão a representação arbórea da cognição narrativa (Figura 1).

Figura 1
Estrutura das akinha.

O logofórico ülepe (ne) conecta a sucessão de deslocamentos espaciais e temporais que impulsionam o proceder da narração; a partícula aiha demarca o fim de uma cena ou episódio, remetendo à que se segue. Toda akinha se abre deixando no fundo e nos interstícios outras akinha, dispensando um começo absoluto. O narrador escolhe o momento de dizer ‘fim’, marcado pela fórmula verbal upügüha igei (‘este é o último’), à qual seu interlocutor, ninado pelas imagens de uma viagem e pelo ritmo da voz do narrador, deve responder uitsojigü, outra fórmula, intraduzível e eficaz por tirá-lo de seu sono-sonho e da preguiça.

Este artigo parte de uma análise de aspectos linguísticos, centrados na construção de temporalidades de duas akinha kuikuro4 4 As narrativas que constam deste artigo fazem parte do corpus digital produzido por Franchetto desde 1977 e por Carlos Fausto a partir de 2000. , nomeadas de Inha Ótomo5 5 O leitor encontrará não poucas vezes, neste artigo, os termos kuikuro oto e ótomo. Os significados e a tradução de oto, termo polissêmico, como ‘dono, mestre’ são discutíveis e discutidos na etnografia alto-xinguana e além dela (Franchetto, 1986; Guerreiro, 2015a; Fausto, 2008; Kelly & Matos, 2019). São basicamente termos para relações de parentesco expandidas ou potenciais. O termo ótomo é formado pelo nome oto e pelo morfema coletivizador /-mo/. Inha ótomo, por exemplo, significaria literalmente um coletivo de ‘donos’ do local cujo topônimo é Inha. A tradução corriqueira para o português como ‘aldeia’ poderia ser corrigida por uma expressão mais precisa, como ‘o pessoal de’. e Ongokugu, para tecer reflexões em torno das chefias kuikuro (e, por extensão, alto-xinguanas) e suas relações específicas com noções de espaço, terra, lugar e território. Assim, de forma análoga, ainda que os caminhos principais deste artigo percorram principalmente duas akinha, outros ramos e aberturas serão explorados em direção a outras narrativas. O fio condutor, no entanto, não são bem temas ou eventos que transbordam entre elas – as invasões de entradas e bandeiras na região, por exemplo, são contadas por múltiplas akinha, cada uma delas também com múltiplas versões –, mas sim um tipo de relação que é recorrentemente encontrado entre diferentes populações indígenas: entre espacialidade e política.

O caráter aparentemente geral dessa relação não deve, no entanto, subsumir as suas múltiplas manifestações locais e situadas. Sua generalidade é útil enquanto releva a realidade de uma outra relação: as populações indígenas seguem sendo constantemente uniformizadas pelo contraste e a oposição à forma territorial do estado-nação capitalista, ao espaço enquanto dimensão essencialmente vazia e à terra enquanto substrato de produção de valor quantificável: “Na expressão ‘valor do trabalho’, o conceito de valor não só se apagou por completo, mas converteu-se em seu contrário. É uma expressão imaginária, como valor da terra. Essas expressões imaginárias surgem, no entanto, das próprias relações de produção” (Marx, 2013Marx, K. (2013 [1867]). O capital: crítica da economia política. Boitempo Editorial. [1867], pp. 608-609).

No entanto, este artigo tem como objetivo ultrapassar essa generalidade e traduzir, em alguma medida e a partir de como são expressas pelas akinha kuikuro, a maneira específica pela qual temporalidades, espaço e política se relacionam no Alto Xingu. Essa relação, como ficará claro ao longo do artigo, poderia ser resumida, com o risco que todo resumo carrega, como uma ambiguidade produtiva entre lugares e chefes – espaços que produzem chefias, chefias que produzem espaços.

PASSADO E PRESENTE, MITOS DA HISTÓRIA

O caminho deste artigo percorre, depois de uma breve apresentação dos Kuikuro, do seu território e da sua língua, bem como das duas akinha em foco na nossa análise, alguns elementos linguísticos essenciais que estruturam a arte dos akinha oto e que são indispensáveis para a sua análise: a maneira como a temporalidade – de uma narração formal ou de uma conversa corriqueira – é produzida em uma língua sem flexão verbal de tempo; e a relação entre narrador e eventos de seu enunciado conforme explicitada por epistêmicos e evidenciais. O interesse desses tópicos, como ficará claro, não está apenas nas funções estruturantes de uma narração, mas também em relação ao que se procura aqui demonstrar: tanto a produção de tempo e de espaço narrativos quanto a relação epistêmica entre enunciador e enunciado são, afinal, fundamentais na construção de possíveis cartografias e historiografias nativas.

As duas akinha principais deste artigo oferecem ainda a vantagem de permitir a explicitação de um outro tema que forçosamente acaba se infiltrando nas discussões antropológicas sobre cartografia, memória e narrativas: a contradição difusa e quase espectral entre mito e história. Inha Ótomo reaviva e interpreta eventos ocorridos num passado distante, enquanto Ongokugu se situa no illo tempore, ou, como disse um chefe kuikuro, “itseke gele kukatamini” – ‘quando nós todos éramos itseke (hiperseres)’ –, falando uma mesma ‘língua’ ou nos fazendo entender através das línguas (Fausto et al., 2008Fausto, C., Russell, C., Heckenberger, M. J., Toney, J. R., Schmidt, M. J., Pereira, E., Franchetto, B., & Kuikuro, A. (2008). Pre-Columbian urbanism, anthropogenic landscapes, and the future of the Amazon. Science, 321(5893), 1214-1217. AAAS. https://www.science.org/doi/10.1126/science.1159769
https://doi.org/10.1126/science.1159769...
, p. 137). Essa distinção poderia aparentar a diferença que surge recorrentemente entre ‘mito’ e ‘história’ na literatura etnológica, ou entre ‘narrativas míticas’ e ‘narrativas históricas’. Mesmo que as primeiras sejam chamadas, pelos Kuikuro, de akinha hekugu (‘histórias verdadeiras’)6 6 A raiz heku- carrega valores semânticos associados à verdade, tanto factual quanto ética, mas também à beleza e à saúde. O verbo hekutelü, por exemplo, tem as seguintes traduções no dicionário Kuikuro: 1. curar; 2. embelezar; 3. consertar; corrigir (Franchetto, no prelo). , a distinção entre esses possíveis subgêneros, ainda que considerados a partir de categorias nativas, é, no entanto, problemática, já que as fronteiras entre eles são porosas e escapam de qualquer evidência definitiva para a sua delimitação (Franchetto & Stenzel, 2017Franchetto, B., & Stenzel, K. (2017). Amazonian narrative verbal arts and typological gems. In K. Stenzel & B. Franchetto (Orgs.), On this and other worlds: Voices from Amazonia (pp. 3-6). Language Science Press., pp. 3-6). Alguns aspectos linguísticos, como certos usos de epistêmicos e evidenciais, poderiam apontar para reais diferenças, mas, como será abordado mais adiante, a pragmática das akinha, ou seja, aquilo que se faz quando se conta uma akinha, sobretudo nos campos entre espacialidade e política, não distingue o histórico do mítico. Em outras palavras, entre os espaços que produzem chefias e as chefias que produzem espaços, a definição do tempo – seja ele considerado na sua distância da enunciação ou como um outro tempo fora do tempo da enunciação – tem uma relevância secundária.

OS ÓTOMO KUIKURO, SEU TERRITÓRIO E SUA LÍNGUA

Kuikuro é uma das duas variedades principais da Língua Karib do Alto Xingu (LKAX)7 7 Os povos alto-xinguanos que falam variedades (dialetos) da LKAX são, além do Kuikuro, os Kalapalo, os Nahukuá e os Matipú; as diferenças entre elas são principalmente de natureza prosódica, além de formas distintas de alguns itens lexicais e de alguns morfemas gramaticais. e é falada por cerca de 700 pessoas, em seis aldeias na região conhecida como Alto Xingu, o sistema multilíngue e multiétnico da área percorrida pelos formadores do rio Xingu, ao sul do Território Indígena (TI) do Xingu. Os Kuikuro habitam aldeias ao longo do rio Culuene – e entre este e o rio Buriti – desde, pelo menos, a segunda metade do século XVIII.

As duas akinha analisadas neste artigo estão associadas a sítios antigos no território kuikuro. Em pesquisas arqueológicas realizadas a partir dos anos 1990 no território kuikuro, numa extensão de cerca de 1.200 km2, Heckenberger (2005)Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: Culture, place, and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge. definiu três clusters – Ipatse, Kuhikugu e Oti – e o complexo oriental da lagoa de Tahununu8 8 Os primeiros mapeamentos de sítios e topônimos em torno da imponente lagoa de Tahununu foram realizados por Carneiro (2001) e, mais tarde, por Heckenberger (2005), que chamou a área de ‘complexo oriental’. Mais recentemente, um mapeamento mais detalhado resultou da colaboração dos Kuikuro (notadamente de Ahukaka, anetü, ‘chefe’ de Ipatse) com os pesquisadores Carlos Fausto, Morgan Schmidt e Bruna Franchetto (Fausto et al., 2021). Os topônimos dos muitos locais ao redor de Tahununu são índices de memórias, em forma narrativa ou não, de eventos acontecidos em tempos mais ou menos longínquos. . Foram identificados quase trinta sítios arqueológicos associados aos dois clusters com estrutura hierárquica (Kuhikugu e Ipatse) e que datam do período entre 1250 e 1650 d.C. (Figura 2).

Figura 2
Localização dos clusters Ipatse (losango delimitado por linhas vermelhas no alto do mapa) e Kuhikugu (losango na parte inferior do mapa), com antigos aldeamentos e aldeias atuais. Ongokugu é sítio do cluster Ipatse; uma das possíveis localizações de Inha é na rede do cluster Kuhikugu. Mapa: Bruno Moraes (2022).

Em torno de 1250, ocorreu uma mudança marcante: aldeamentos foram reconfigurados e ampliados, resultando em estruturas em larga escala com estradas, canais, cercas fortificadas (valetas), grandes praças centrais, entre outras construções, e sendo integrados em clusters batizados de ‘galáticos’ por Heckenberger (2005)Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: Culture, place, and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge.. Estes representam polities territoriais de dimensões variadas (entre 40 e 10 hectares), com aldeias centrais e satélites dispostos em configurações espaciais precisas e orientadas. A partir do século XVIII, senão antes, os efeitos desastrosos da colonização, na sua penetração para o interior, levando conflitos, escravização e epidemias, causaram uma crescente e rápida despovoação, levando ao colapso as redes ‘galáticas’ e iniciando um novo e drástico período de reconfiguração sociopolítica e territorial no Alto Xingu.

Ongokugu, aldeia central para a segunda narrativa analisada, foi identificado por Heckenberger (2005)Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: Culture, place, and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge. como o sítio arqueológico (X)6, no cluster Ipatse (Figura 3). Foi intensamente investigado e conta com datação por radiocarbono que confirma a sua ocupação desde, pelo menos, o século XIII.

Figura 3
Detalhe das estruturas do aldeamento pré-colombiano de Ongokugu. Os círculos amarelos representam centros de habitação, ligados por estradas (linhas em amarelo) e organizados de forma hierárquica. As linhas pontilhadas em azul indicam valetas muradas circulares, estruturas de defesa recorrentemente encontradas na região. Arte: Bruno Moraes.

Por outro lado, se boa parte dos sítios dos clusters Ipatse e Kuhikugu já foi objeto de investigações bastante aprofundadas, os do cluster nomeado de Oti começam somente agora a ser alvo de pesquisas de campo, com mapeamento terrestre e aéreo. Heckenberger (2005)Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: Culture, place, and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge. identificou o local de Inha como sendo o sítio (X)37 e como pertencente ao cluster Kuhikugu (ver Figura 3), mas esta localização pode não se confirmar, sobretudo se considerarmos os pontos do mapa satelital apontados pelos mais velhos, mais próximos de Oti. Os resultados dos estudos na região de Oti, que começam neste ano de 2022, são esperados com muito interesse não apenas por nós, linguistas e antropólogos empenhados no registro da história oral, como também e sobretudo pelos próprios Kuikuro. São numerosas as akinha que falam dos ótomo de Oti e de eventos que por lá aconteceram entre o século XVIII e o início do século XIX (Franchetto, 1993Franchetto, B. (1993). A celebração da história nos discursos cerimoniais kuikúro (Alto Xingu). In E. Viveiros de Castro & M. C. Cunha (Orgs.), Amazônia: etnologia e história indígena (pp. 95-116). NHII/USP, FAPESP.), e que se conectam diretamente com a fundação das primeiras aldeias do ótomo kuikuro propriamente dito.

O Kuikuro, como todas as variedades da língua Karib do Alto Xingu, se caracteriza tipologicamente por: (i) ser aglutinante e de núcleo final (Maia et al., 2019Maia, M., Franchetto, B., Lemle, M., & Vieira, M. D. (2019). Línguas indígenas e gramática universal. Contexto., pp. 85-91); (ii) ter as ordens básicas de constituintes sujeito verbo-intransitivo (SV) e objeto verbo-transitivo sujeito (OVS); (iii) todo núcleo, seja ele verbo, nome ou posposição, constituir uma unidade prosódica com seu argumento interno (Silva & Franchetto, 2011Silva, G. R., & Franchetto, B. (2011). Prosodic distinctions between the varieties of the Upper Xingu Carib language: Results of an acoustic analysis. Amerindia, (35), 41-52.); (iv) ser uma língua ergativo-absolutiva, em que todos os verbos intransitivos são inacusativos; (v) ter o agente ou causa externa de verbo transitivo marcado pela posposição heke (caso ergativo; Franchetto, 2010Franchetto, B. (2010). The ergativity effect in Kuikuro (Southern Carib, Brazil). In S. Gildea & F. Queixalós (Orgs.), Ergativity in Amazonia (pp. 121-158). John Benjamins Publishing Company.); (vi) não ter concordância explícita no verbo e não possuir verbos auxiliares; (vii) ter a flexão verbal restrita a ‘modos’ e ‘aspectos’, com exclusão do ‘tempo’ (tense); (viii) manifestar uma fronteira tênue entre as flexões nominais e verbais, como veremos ao analisar a morfologia dos aspectos verbais; (ix) ter um único conjunto de marcas pessoais prefixadas como argumentos internos de verbos, nomes e posposições; (x) ter nominais ‘nus’, indeterminados, fora de contexto, por números e definitude.

LUGARES E CHEFES, PASSADO E PRESENTE

As vozes salientes das akinha, reproduzidas nas falas ou nos diálogos em citações diretas, são (quase) sempre de chefes (anetü), e, por elas, memórias coletivas se conectam a espaços concretos no território kuikuro. Isso sugere uma cartografia nativa e de concepções kuikuro sobre a configuração de paisagens do passado e do presente: os ‘rastros’ de antigas aldeias – como roças abandonadas, açudes para manejo de peixes, manchas na floresta e akinha ‘históricas’ – (re)presentificam eventos longínquos. Trata-se, afinal, e para voltar à sua qualidade política, de conhecimentos vividos e reproduzidos como formas de resistência à invasão colonial e como afirmação de direitos territoriais.

O imbricamento entre política e espaço, aqui defendido, posiciona-se também em continuidade com outros estudos desenvolvidos na região. De fato, a noção de política no Alto Xingu não deve ser considerada de forma abstrata, mas sim como referência a figuras bastante particulares da organização social da região, com nomes, rostos, feitos e expectativas concretos: chefes. A esse tema dedica-se parte da obra de Antonio Guerreiro, especialmente sua etnografia sobre os chefes kalapalo e o ritual alto-xinguano kwaryp9 9 Egitsü, em Kuikuro. Assim o ritual é definido por Mutua Mehinaku (2010, p. 84): “egitsü, feito para homenagear os nossos anetü, ‘ilustres’ chefes falecidos”. (Guerreiro, 2015aGuerreiro, A. R. (2015a). Ancestrais e suas sombras: Uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário. Editora da Unicamp.). Heckenberger (2001Heckenberger, M. (2001). Epidemias, índios bravos e brancos: Contato cultural e etnogênese. In B. Franchetto & M. Heckenberger (Orgs.), Os povos do Alto Xingu: história e cultura (pp. 77-110). Editora da UFRJ., 2005)Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: Culture, place, and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge. e Fausto (2020)Fausto, C. (2020). Chiefly jaguar, chiefly tree: Mastery and authority in the Upper Xingu. In S. Kosiba, J. & T. Cummins (Eds.), Sacred matter: Animism and authority in the Pre-Columbian Americas (pp. 37-69). Harvard University Press. também oferecem suas próprias perspectivas sobre as chefias kuikuro, e temos importantes aportes sobre o discurso cerimonial dos chefes e suas características formais (Franchetto, 1986Franchetto, B. (1986). Falar Kuikúro: estudo etnolinguístico de um grupo karíbe do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Afranchetto-1986/Franchetto_1986_Falar_Kuikuro_completo_3vols.pdf
https://etnolinguistica.wdfiles.com/loca...
, 1992Franchetto, B. (1992). O aparecimento dos caraíba: para uma história kuikuro e alto-xinguana. In M. C. Cunha (Org.), História dos índios no Brasil (pp. 339-356). Companhia das Letras, FAPESP, SMC., 2000Franchetto, B. (2000). Rencontres rituelles dans le Haut Xingu: La parole du chef. In A. B. Monod & P. Erikson (Orgs.), Les rituels du dialogue. Promenades ethnolinguistiques en terres amérindiennes (pp. 481-510). Societé d’Ethnologie.; Guerreiro, 2015aGuerreiro, A. R. (2015a). Ancestrais e suas sombras: Uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário. Editora da Unicamp., 2015bGuerreiro, A. R. (2015b). Political Chimeras: The uncertainty of the chief’s speech in the Upper Xingu. HAU: Journal of Ethnographic Teory, 5(1), 59-85. https://doi.org/10.14318/hau5.1.004
https://doi.org/10.14318/hau5.1.004...
).

Independentemente das distintas abordagens, é patente, em todos esses trabalhos, que a tradução ‘chefe’ para os termos nativos utilizados10 10 Em Kuikuro, anetü, no caso de chefes masculinos, e itankgo, no caso de chefes femininas. não é precisa, pois não é capaz de capturar uma de suas características fundamentais: a hereditariedade. De fato, autores como Fausto (2020)Fausto, C. (2020). Chiefly jaguar, chiefly tree: Mastery and authority in the Upper Xingu. In S. Kosiba, J. & T. Cummins (Eds.), Sacred matter: Animism and authority in the Pre-Columbian Americas (pp. 37-69). Harvard University Press. sugerem a noção de ‘nobreza’ para começar a abordar o que se passa com as chefias alto-xinguanas, já que, em primeiro lugar, apenas filhos de chefes podem ser considerados chefes. Além disso, como aponta Guerreiro (2015a)Guerreiro, A. R. (2015a). Ancestrais e suas sombras: Uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário. Editora da Unicamp., Franchetto (1986)Franchetto, B. (1986). Falar Kuikúro: estudo etnolinguístico de um grupo karíbe do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Afranchetto-1986/Franchetto_1986_Falar_Kuikuro_completo_3vols.pdf
https://etnolinguistica.wdfiles.com/loca...
, Fausto (2020)Fausto, C. (2020). Chiefly jaguar, chiefly tree: Mastery and authority in the Upper Xingu. In S. Kosiba, J. & T. Cummins (Eds.), Sacred matter: Animism and authority in the Pre-Columbian Americas (pp. 37-69). Harvard University Press. e tantos outros e outras, basta que um dos pais de ego seja chefe, mas a chefia é considerada mais forte se ambos os pais forem chefes11 11 Uma das narrativas analisadas por Franchetto (1986, p. 19) contém um comentário final da narradora sobre o status de chefia “pela metade” (gravação de 23 de novembro 1981, aldeia Ipatse): “Ela é chefe, An, sendo pela metade Ahk se tornou chefe, no lugar só de An, mas Jhl nao é igual a ele, o pai dele era chefe, a mãe dele era chefe...”. .

A chefia alto-xinguana é também considerada como representante e modelo de um ethos generalizado da região – o ser kuge, ‘gente de verdade’ em kuikuro, envolve noções locais de pacifismo, respeito, vergonha e modéstia (Franchetto, 1986Franchetto, B. (1986). Falar Kuikúro: estudo etnolinguístico de um grupo karíbe do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Afranchetto-1986/Franchetto_1986_Falar_Kuikuro_completo_3vols.pdf
https://etnolinguistica.wdfiles.com/loca...
; Basso, 1987Basso, E. B. (1987). In favour of deceit. A study of tricksters in an Amazonian society. The University of Arizona Press., 1995Basso, E. B. (1995). The last cannibals: A South American oral history. University of Texas Press.; Guerreiro, 2015aGuerreiro, A. R. (2015a). Ancestrais e suas sombras: Uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário. Editora da Unicamp.), e evitar comer carne de ngene12 12 O dicionário Kuikuro-Português (Franchetto, no prelo) assim define ngene: “Ngene egei kengeniko igatoho, ekege, heu, teloko tuhugu gehale; inhalüha Lahatua Ótomo heke ngene engelüi, kanga tsügütseha tegné, aetsi tsügütse kajü tengé – Ngene” é o nome dado aos predadores, onça, porco e outros; o povo de Lahatua não come ngene, pode comer somente peixe ou macaco. , dentre outros comportamentos mobilizados na oposição a ngikogo, ‘índio bravo’, povos que não participam do sistema de relações sociais do Alto Xingu. No entanto, como resultado de um disciplinamento conscientemente levado a cabo pelos alto-xinguanos, esse ethos não poderia ser simplesmente naturalizado. Ou, melhor dito, sua naturalização não seria suficiente para explicar os processos de aprendizagem e de reconhecimento social pelos quais um chefe deve passar: o chefe alto-xinguano, em outras palavras, precisa ser produzido. Há, portanto, ao lado do parentesco, uma outra imagem da chefia alto-xinguana – chefes devem se tornar chefes, devem ser ‘feitos’ chefes.

Para isso, um chefe precisa aprender os discursos típicos da chefia – falas formais e cantadas na recepção de convidados, em rituais etc. – e precisa ser disciplinado para representar o ethos modelo do Alto Xingu; mas precisa, também, ser feito chefe por algum grau de alteridade. Guerreiro (2015a)Guerreiro, A. R. (2015a). Ancestrais e suas sombras: Uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário. Editora da Unicamp. descreve a importância de se ‘sentar’ um jovem de família de chefes durante algum ritual interaldeias: chefes participam de rituais, ‘festas’, normalmente sentados sobre um banco especial, feito da mesma madeira utilizada nas efígies mortuárias do egitsü. ‘Sentar um jovem’, portanto, significa apresentar publicamente um jovem membro de uma família como potencial chefe, colocá-lo numa posição de chefia em contraste e complementaridade com chefias de outras aldeias e mesmo outras etnias. O jovem será assunto de comentários e conversas dentre as pessoas presentes, e isso marca o início de seu reconhecimento social como chefe.

Entre o parentesco e a alteridade, entre a hereditariedade e a fabricação, as chefias alto-xinguanas são um fenômeno internamente complexo, e dessa complexidade decorre grande parte das dificuldades de se estabilizar uma imagem da política na região. O que fazem os chefes, o que podem fazer os chefes, o que se espera que os chefes façam – todas essas são questões dificilmente respondidas apenas na dimensão da política. Daí o interesse, neste artigo, de adicionar a essa complexidade uma nova dimensão – o espaço – e, dessa adição, dessa aparente aposta em mais complexidade, extrair uma imagem mais precisa e mais concreta das chefias. Veremos como essa adição se justifica justamente através de uma análise atenta de alguns aspectos das duas akinha centrais deste artigo, bem como em relação com outras que compõem nosso corpus. Esse regime de discurso é, afinal, povoado por pessoas-chefes, e, se a arte e a técnica de um akinha oto não são exclusivas das chefias, é recorrente que ele seja também, em algum grau, chefe. As akinha são, portanto, uma abertura essencial para compreendermos como chefes pensam a si mesmos. Essa ideologia nativa da chefia, como será demonstrado, é também uma ideologia da espacialidade e do que faz com que espaços e terras sejam locais socialmente relevantes.

A associação entre política e espacialidade se justifica também porque chefes são um caso particular dos ‘donos’ alto-xinguanos: ‘donos’ de praças, ‘donos’ de aldeias, ‘donos’ de caminhos (Heckenberger, 2005Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: Culture, place, and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge.; Franchetto, 1986Franchetto, B. (1986). Falar Kuikúro: estudo etnolinguístico de um grupo karíbe do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Afranchetto-1986/Franchetto_1986_Falar_Kuikuro_completo_3vols.pdf
https://etnolinguistica.wdfiles.com/loca...
), ‘donos’ de festas, ‘donos’ de palavras e de gêneros verbais orais (Franchetto, 1986Franchetto, B. (1986). Falar Kuikúro: estudo etnolinguístico de um grupo karíbe do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Afranchetto-1986/Franchetto_1986_Falar_Kuikuro_completo_3vols.pdf
https://etnolinguistica.wdfiles.com/loca...
). O conceito de ‘dono(s)’, no entanto, não se restringe apenas a seres humanos (Franchetto, 1986Franchetto, B. (1986). Falar Kuikúro: estudo etnolinguístico de um grupo karíbe do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Afranchetto-1986/Franchetto_1986_Falar_Kuikuro_completo_3vols.pdf
https://etnolinguistica.wdfiles.com/loca...
, 2014Franchetto, B. (2014). Autobiographies of a memorable man and other memorable persons. In: S. Oakdale & M. Course (Orgs.), Fluent selves: autobiography, person, and history in Lowland South America (pp. 271-310). University of Nebraska Press.; Fausto, 2008Fausto, C. (2008). Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, 14(2), 329-366. https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
https://doi.org/10.1590/S0104-9313200800...
; Guerreiro, 2015aGuerreiro, A. R. (2015a). Ancestrais e suas sombras: Uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário. Editora da Unicamp.; entre outros), e a paisagem do Alto Xingu é cheia de itseke13 13 Seres monstruosos, poderosos e perigosos. O termo kuikuro é recorrentemente traduzido pelos próprios Kuikuro como ‘bicho’ ou mesmo ‘espírito’. Os autores deste artigo preferem a tradução ‘hiperser’. ‘donos’ de territórios específicos, como lagos e rios, e de populações de animais. Ainda que uma discussão geral sobre esse conceito fuja do escopo deste artigo, é preciso citar, ao menos, um de seus aspectos para demonstrar a sua importância na discussão proposta: a noção de ‘dono’ não significa necessariamente uma relação de propriedade de um objeto por um sujeito. Trata-se de uma relação de responsabilização, de cuidado e de organização. Os ‘donos’ alto-xinguanos, sejam eles humanos ou não, garantem a reprodução social, ou seja, são responsáveis pela continuidade e desenvolvimento das relações entre seres, mas não possuem necessariamente qualquer poder sobre o produto de tais relações. Assim, por exemplo, quando festas e rituais exigem uma grande quantidade de peixes, é preciso negociar com os itseke ‘donos’ das lagoas – hiperseres chefes, responsáveis pela continuidade da reprodução dos peixes –, onde a pesca tomará lugar (Guerreiro, 2015aGuerreiro, A. R. (2015a). Ancestrais e suas sombras: Uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário. Editora da Unicamp.).

INHA ÓTOMO E ONGOKUGU

A akinha nomeada como Inha Ótomo14 14 Narrada por Agatsipá (Ag), tendo Ahukaka (Ak) como interlocutor. Narrativa coletada por Bruna Franchetto, na aldeia Ipatse, em 1982. Transcrita e traduzida por Jamalui Mehinaku Kuikuro, revisada por Bruna Franchetto e interlinearizada por Gélsama M. F. Santos. – literalmente ‘povo do buraco’ – desenvolve-se em torno da sequência de dois eventos de autoaniquilamento coletivo acontecidos em dois antigos ótomo: Ahasahügü e Ilũbe. Os motivos que levam a esses acontecimentos diferenciam os ótomo envolvidos, mas a estruturação sequencial das ações de preparação e de execução do autoaniquilamento – na forma de enterros coletivos – se dá por meio de paralelismos de cenas e parágrafos. Os habitantes de Ahasahügü são levados ao enterro depois da quebra de um tabu pelas mulheres do ótomo: entram no kuakutu (‘casa dos homens’) enquanto estes estavam ausentes, em caçada, e uma das mulheres toca uma máscara ũduhe, sujando-a com seu próprio sangue, após cortar seu dedo em um dos dentes (de peixe piranha) do rosto da máscara. Em Ilũbe, por outro lado, o enterro coletivo é justificado pela escassez de alimentos nas festas interaldeias e pela falta de chefes locais. Ambos os ótomo enterram-se, seguindo uma mesma estrutura: à declaração fatalista de um dos chefes – “deixemos todos morrer”; “vamos nos enterrar”; “vamos ficar poucos como eles” – segue-se a cena da preparação de um buraco, com paus aguçados no seu fundo, e o salto em seu interior dos habitantes da aldeia, começando pelas mulheres – crianças, jovens reclusas, adultas e mais velhas – e terminando com os homens – crianças, jovens reclusos, adultos e mais velhos.

As duas sequências ainda incluem um derradeiro personagem, o filho do chefe, apresentado como grande lutador. Este se prepara pintando seu corpo e colocando seus adornos – braçadeiras, joelheiras, cocar – antes de pular no buraco. Ele salta tão alto que passa por cima do buraco e termina na árvore tali (copaíba) do caminho principal da aldeia, entra em sua casca e se torna seu oto (‘dono’). Entre as duas sequências, e oferecendo uma justificativa cifrada para o nome da narrativa, está Inha Ótomo, que ‘ouve’ o que ocorreu em Ahasahügü e em Ilũbe, e é a voz-memória dos acontecimentos que levaram ao fim destas aldeias, e, quem sabe, de outras também15 15 O narrador lembrou de mais cinco aldeias, todas próximas umas das outras. .

A akinha nomeada Ongokugu16 16 Narrada por Hopesé (Tp), foi coletada por Carlos Fausto, na aldeia Ipatse, em 2003, transcrita e traduzida por Asusu Kuikuro, revisada por Bruna Franchetto e interlinearizada por Gélsama M. F. Santos. tem como evento central a criação da lagoa de Ipatse, próxima à principal aldeia Kuikuro atual, pelo ancestral Isagakagagü17 17 Isagakagagü é um dos ancestrais demiurgos, assim como Sagankgue˜gü, ambos tunga oto, ‘oto’ ‘dono da água’. , esposo da filha de Ongokugu, chefe da aldeia homônima. Ongokugu é onça-preta, e a própria aldeia é habitada por onças. A personagem Isagakagagü conecta esta akinha a outras, que tematizam as origens das lagoas ao longo do rio Culuene. Isagakagagü é um tunga oto (‘mestre da água’); a própria cena de abertura cita rapidamente a inundação que termina por destruir a aldeia Ongokugu, evento central em outras narrativas18 18 Como observado no começo do artigo, uma akinha hekugu tampouco é um ‘fato narrativo’ isolado, mas faz parte de uma extensa rede de narrativas, numa continuidade de transformações; por isso, não tem um começo absoluto, nem um fim absoluto. . Ainda que seja aberta por um excesso destrutivo de água, a narrativa Ongokugu se desenvolve sobretudo a partir de uma falta inicial que leva Isagakagagü a criar uma lagoa: os habitantes da aldeia não possuíam lugar para banho. Querendo agradar seu sogro e se tornar reconhecido pelos seus feitos, Isagakagagü cria a lagoa Ipatse. A primeira versão da lagoa é excessiva, no entanto, e seu tamanho assusta o sogro-onça; Isagakagagü a redimensiona fazendo uma borda com cobra-chefe surucucu (‘anetü ugukukuha’), o que também desagrada o sogro. Constrói barragens, abre caminhos de água com seus pés, prepara as armadilhas de pesca taka e utu e utiliza uma kehege (‘reza’) para capturar os peixes com mais facilidade e, assim, alimentar os habitantes de Ongokugu.

Como toda narrativa, e a despeito do caráter supostamente ‘mítico’ da segunda akinha, Inha Ótomo e Ongokugu são ancoradas a lugares e ambientes localizáveis e socialmente relevantes até hoje para os Kuikuro. Nas palavras do narrador, no local da antiga aldeia Ongokugu encontram-se ainda muitos restos de cerâmica.

Veremos, a seguir, os principais recursos linguísticos mobilizados na estruturação das narrativas e que levam a interpretações temporais. Como ficará claro ao longo das seções que se seguem, tempo (tense) é distribuído, transversal, por formas e expressões variadas; surge a partir da interação entre aspectos, dentro da palavra verbal, dêiticos, epistêmicos e o (tempo) aspecto nominal, fora da palavra verbal.

A escolha desses tópicos para análise permite ainda realizar dois movimentos: em primeiro lugar, desentramar, na estrutura da língua, possíveis imagens problemáticas sobre ‘mito’ e ‘história’ com respeito a narrativas ameríndias; em segundo lugar, oferecer uma lógica de ‘tempo distribuído’ que pode ser aproveitada, por analogia, para explicitar algo importante no pensamento nativo sobre política, historiografia e organização social alto-xinguanas – a subsunção do tempo pelo espaço.

O TEMPO DISTRIBUÍDO: ASPECTOS

Como dissemos anteriormente, a flexão verbal kuikuro inclui seis modos19 19 Os modos na flexão verbal kuikuro são: declarativo (não marcado), imperativo, hortativo, intencional (glosado como ‘futuro iminente’), habitual e hipotético. O habitual é considerado como modo pelo fato de ocupar a primeira posição sufixal logo após a raiz, posição reservada para a flexão de modo fonologicamente explícita, e pelo fato de ser sempre seguido pela flexão de aspecto pontual -lü. e quatro aspectos, não tempo (linguístico) propriamente dito. O Quadro 1 apresenta as formas da morfologia aspectual, organizadas pelas classes morfológicas que determinam sua alomorfia.

Quadro 1
Classes morfológicas na flexão aspectual do verbo em Kuikuro. Legenda: CL = classe.

Focando o fio condutor (isiinagü) dos eventos na narrativa, entre as muitas falas citadas, dois aspectos são realizados na flexão do verbo20 20 Observe-se a difusa alomorfia de morfemas flexionais, condicionados por cinco classes morfológicas, sincronicamente sem motivações fonológicas ou semânticas (Franchetto, 1986; Santos, 2007, 2008). (Franchetto, 2021Franchetto, B. (2021). Counterfactual and non-counterfactual conditional constructions in Kuikuro (Upper Xingu Carib). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 16(3), e20200107. https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2020-0107
https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELD...
, pp. 6-7):

(i) O aspecto durativo (dur) – com os alomorfes -tagü, -ndagü, -tsagü, -gagü – é um aspecto imperfectivo pelo qual o evento é visto em sua duração inerente. Localiza o tempo de referência no interior do tempo do evento descrito; a interpretação temporal (passado ou presente) é dependente do contexto e de outros índices. Observe-se que são segmentáveis, na flexão do aspecto durativo, dois morfemas: -ta- (e alomorfes), obrigatório e com valor imperfectivo; -gü, a mesma forma que encontramos na flexão nominal de ‘posse’21 21 A homofonia do morfema -gü na flexão nominal e na flexão verbal pode ter uma explicação diacrônica, se considerarmos a hipótese de Gildea (1998) de que a sintaxe básica das línguas karib ergativas (Set II, de acordo com a formalização do autor) resulta de uma reanálise de orações subordinadas das línguas karib nominativas (Set I, seguindo a formalização do autor), orações que apresentam nominalização do verbo com seu argumento interno no caso absolutivo (não marcado) e seu argumento externo (agente) marcado por uma posposição. -gü é cognato do sufixo de ‘posse’ nominal -rɨ em outras línguas karib (Gildea, 1998, pp. 104-118), onde o mesmo sufixo é também atestado como sendo um nominalizador (Gildea, 1998, p. 120). (u-hi-gü, 1-neto-poss, ‘meu neto’), é frequentemente deletado na fala rápida. O aspecto durativo é compatível com as partículas aspectuais gele (imperfectivo) e leha (completivo).

(ii) O aspecto pontual (pnct) – com os alomorfes Ø-, -lü, -jü, -nügü – concebe um evento como instantâneo, sem duração inerente, ‘quase coisa’, como dizem os Kuikuro. Seu uso exclusivo em orações dependentes, como adverbiais e complementos, bem como em afirmações genéricas e como única flexão que coocorre com os sufixos de ‘futuro’ (-ingo) e de modo hipotético (-ho-), indica sua natureza de aspecto default. O sufixo -lü é também um dos alomorfes do sufixo nominal de ‘posse’ (u-ügü-lü, 1-anzol-poss, ‘meu anzol’); -nügü pode ser segmentado em -nü-gü (vide [i]).

É importante notar a ocorrência extremamente frequente da partícula aspectual completiva leha e, menos frequentemente, da partícula aspectual imperfectiva gele. Somente o aspecto durativo é compatível com gele, dada a natureza imperfectiva de ambos. A distinção e a complementaridade entre durativo e pontual permitem a apreensão de eventos em suas microssequências, deslocando a perspectiva entre processos e seus términos e permitindo o avanço da narrativa. O exemplo22 22 Os trechos das narrativas são sempre apresentados com transcrição ortográfica, segmentação morfológica de cada palavra seguida por glosagem interlinear e, por fim, uma tradução que procura um certo equilíbrio entre fidelidade aos enunciados-fonte e uma liberdade que permita ao leitor um melhor entendimento dos mesmos. A tradução livre indica a numeração das linhas na transcrição completa. a seguir, retirado da narrativa Inha Ótomo, ilustra a diferença entre os aspectos durativo e pontual em um mesmo radical verbal (etĩbe-).

Inha Ótomo   (Os homens voltam da pescaria, as mulheres percebem e avisam) (1) Ag   etĩbetako leha   et-ĩbe-ta-ko leha 3.dtr-trazer-dur-pl1 compl
etĩbelüko leha   et-ĩbe-lü-ko leha 3.dtr-trazer-pnct-pl1 compl
aĩdekogele akatsange anünkgo nügü aĩ-te-ko-gele akatsange a-nüN-ko Ø-nügü   prox-ine1-pl1-impf emph3 estar-pnct-pl1 dizer-pnct   ‘eles foram chegando, eles chegaram; “eles estão aqui, aí estão eles”, elas disseram’ (linha 59)

Esse recurso, além de estruturar logicamente o movimento interno da narrativa, ilustra também uma técnica formal própria das artes verbais: o paralelismo e suas microvariações. Mantêm-se estáveis o radical verbal, seus morfemas de pessoa e número e a partícula aspectual completiva (leha) logo após a palavra verbal; varia-se a marcação aspectual ligada ao radical verbal.

Em Ongokugu, o narrador lembra a destruição da aldeia pela água, remetendo a outra akinha. Seguindo o mesmo padrão, aqui temos, na primeira linha, o aspecto durativo com o mesmo verbo (‘vir’), e, na segunda linha, o mesmo verbo no pontual fecha o processo23 23 Agradecemos a observação crítica de um dos pareceristas: a raiz do verbo ‘vir’ apresenta alomorfia, sendo que a forma -i- é restrita à flexão prefixada pronominal de 3ª pessoa, enquanto a forma (básica) e- é realizada em todos os outros ambientes. .

Ongokugu (2) Tp ilangopeinhe isitagü tuã etsagü ila-ngo-pe-inhe is-i-tagü tuã e-tsagü dist.dir-nmlz1-ntm1-abl 3-vir-dur água vir-dur ‘lá de longe ela estava vindo, a água estava vindo’ (linha 27)
(3) Tp titá leha ijogoguko igihükügüte Titã Leha i-jogo-gu-ko igihükü-gü-te   lá compl 3-centro-poss-pl1 meio-poss-ine1               ekuleha sinügü ijogoguko igihükügüte eku-leha is-i-nügü ijogo-gu-ko igihükü-gü-te ints-compl 3-vir-pnct 3-centro-poss-pl1 meio-poss-ine1 ‘lá, ela veio bem até o meio da aldeia deles, bem até o meio da aldeia deles’ (linha 28)

Focando, agora, os itsikungu da narrativa, os ramos que se departem do fio condutor, encontram-se outros dois aspectos da língua kuikuro: o perfectivo/perfeito e o resultativo.

(iii) O aspecto perfectivo/perfeito (prf) – com os alomorfes -hügü -pügü, -tühügü, -tsühügü – denota evento completado antes do evento descrito pelo verbo principal: “acho que seria o lugar24 24 Uma observação metalinguística por si só bastante interessante: uma categoria morfológica aspectual normalmente associada à produção de um efeito temporal é, de acordo com nossos interlocutores Kuikuro, entendida através de uma figura espacial. , a marca, o rastro”, dizem os Kuikuro, uma forma quase nominal, usada pelo narrador sobretudo como incisos com relação ao isiinagü, a base do tronco ou fio condutor da akinha. Novamente, observa-se a presença da forma -gü na flexão perfectiva: -pü-gü, -tühü-gü, -tsühü-gü.

Inha Ótomo (4) Ag imükuhegipügü leha ungu heke leha imü-kuhegi-pügü leha ungu heke leha rosto-manchar-prf compl sangue erg compl ‘o sangue tinha manchado a máscara...’ (linha 71)
(5) Ag üle apugati leha inha üle apuga-ti leha inha log1 fundo-ill compl cova   apugati ĩke i hotakipügü apuga-ti ĩ-ke i hotaki-pügü fundo-ill ver-imp pau fincar-prf ‘no fundo, no fundo da cova, veja, tinham fincado paus com as pontas afiadas...’ (linha 96)
Ongokugu (o narrador comenta sobre os ‘buracos’ ainda visíveis no sítio arqueológico): (6) Tp titá ukuge dzipügükoha egei titá ukuge i-ng-ki-pügü-ko=ha ege-i lá pessoa 3-o-cavar-prf-pl1=top dist-cop   inhasakatagüi inhasakatagüi inhasakatagü-i inhasakatagü-i     buraco-cop buraco-cop     ‘lá aquilo que as pessoas tinham cavado, é buraco, é buraco’ (linha 14)
(7) Tp Ongokuguteha dzipügüko Ongokugu-te=há i-ng-ki-pügü-ko Ongokugu-ine1=top 3-o-cavar-prf-pl1 ‘foi em Ongokugu que eles as cavaram’ (linha 15)
(8) Tp itukoiha itukoi ngiholo ngihatühügü itu-ko-i=há itu-ko-i ngiholo ng-iha-tühügü 3.lugar-pl1-cop=top 3.lugar-pl1-cop antepassados o-mostrar-prf ‘para ser o lugar deles, o que os antigos tinham anunciado para ser o lugar deles’ (linha 16)
E no final da akinha: (9) Tp üleha egei Ongokugu üle=há ege-i Ongokugu log1=top dist-cop Ongokugu       etihũtepügü hegei etihũte-pügü=ha ege-i aparecer-prf=top dist-cop ‘pois é, assim foi a origem de Ongokugu’ (linha 194)

(iv) O aspecto participial resultativo (ptcp) é realizado pela forma morfologicamente complexa tü-/t-verbo-i/-ti/-si/-acento, composta pelo prefixo anafórico tü/t- e um conjunto de sufixos alomorfes25 25 O aspecto participial resultativo kuikuro – tü-/ t-verbo-i/-ti/-si/-acento – é reflexo da protoconstrução *t-V-ce (Gildea, 1998), frequentemente rotulada como ‘particípio’. A construção *t-V-ce apresenta diferentes comportamentos sintáticos e semânticos através das línguas que pertencem à família karib. . Esta construção tem propriedades de dependência semântica e pragmática do contexto discursivo imediatamente seguinte. Por denotar o estado resultante de um evento descrito, que implica o enunciado imediatamente seguinte, o aspecto participial concatena informações de background ao evento principal in foreground.

Inha Ótomo (10) Ag igia tumungupe tagí iheke ĩke igia t-umungu-pe t-agí i-heke iN-ke assim refl-sangue-ntm1 ana-jogar.ptcp 3-erg ver-imp             puk ũduhe imütü kaenga puk ũduhe imütü kae-nga     ideo ũduhe rosto loc1-all2     ‘assim, tendo ela jogado seu sangue, veja, puk, na máscara ũduhe’ (linha 47)
(11) Ag euẽki imühesekegipügü imükuhegijüi euẽ-ki imühesekegi-pügü imükuhegi-jü-i   argila-inst rosto.pintar-prf rosto-manchar-pnct-cop                   leha ungu telü leha leha ungu te-lü   leha   compl sangue ir-pnct   compl   ‘no rosto [da máscara], embranquecido com tabatinga (argila branca), o sangue escorreu [lit. foi] manchando-o’ (linha 49)

A forma participial tagí é destacada em negrito em (10): o verbo agi, ‘jogar’, combina com as flexões verbais da classe morfológica CL3, como consta no Quadro 1. O enunciado em (10) anuncia o enunciado em (11), do qual é semanticamente dependente.

Ongokugu (12) Tp tetĩbe uagiti kanga t-et-ĩbe uagiti Kanga ana-dtr-trazer.ptcp matrinchã peixe ‘tendo chegado [peixes] matrinchã’ (linha 178)
(13) Tp kanga kürü kürü kürü kürü kürü kürü taka ati leha kanga kürü taka-ati leha peixe ideo armadilha-ill compl           taka ati leha etelü taka-ati leha e-te-lü armadilha-ill compl 3-ir-pnct ‘os peixes kügü kügü kügü kügü kügü kügü para dentro da armadilha taka, foram para dentro da armadilha taka’ (linha 181)

Novamente, a forma participial tetĩbé do verbo etĩbe, em (12), pertence à classe morfológica CL3, e o enunciado em (12) é concatenado por dependência semântica ao enunciado em (13).

Lembramos que, em Kuikuro, as fronteiras entre formas verbais e nominais são tênues, como demonstram a morfologia das flexões de posse (nominal) e de aspecto (verbal) e os usos do aspecto perfectivo. A finitude do verbo tampouco é ponto pacífico, mas o que queremos realçar, aqui, é que não há flexão temporal per se no verbo26 26 Um dos pareceristas questiona, justamente – e o leitor deve estar se perguntando –, se o sufixo -ingo (fut) poderia ser expressão de tempo futuro. -ingo é ‘futuro’ (o que virá a ser) tanto em nomes como em verbos sempre depois do aspecto pontual. Não se trata apenas de ‘tempo futuro’, já que possui valores deônticos de possibilidade e comprometimento. Há outra flexão verbal que nos leva a uma interpretação de ‘futuro’, mas, agora, estamos falando de uma flexão de modo. O modo intencional ou ‘futuro iminente’ é usado quando o falante comunica uma ação sobre a qual o sujeito tem absoluto controle intencional e em cuja realização imediata já está envolvido. Diante da atual tipologia de tempo, é difícil definir o Kuikuro como língua futuro/não futuro ou passado/não passado. .

Diante da necessidade de uma tradução, o Kuikuro é desafiador, se encararmos a sua transposição para uma língua com flexão verbal temporal, como é o caso do português. A interpretações temporais, que se imprimem na tradução, não podem ser apenas atreladas à semântica da flexão aspectual, já que: (i) o pontual e o durativo permitem interpretações temporais tanto no passado como no presente; (ii) o perfectivo e o aspecto participial são ‘passado’ (anterior) com relação ao evento descrito pelo verbo principal, sendo que a forma participial se caracteriza por uma dependência imediata que anuncia e prepara o evento principal. Dito isso, outras âncoras temporais – para nós necessárias, já que delas precisamos para uma tradução – devem ser procuradas fora da palavra verbal, seguindo os caminhos do que chamamos de ‘tempo distribuído’.

O TEMPO DISTRIBUÍDO: DÊITICOS

Os excertos a seguir, da akinha Inha Ótomo, são exemplos do uso de elementos dêiticos (ou demonstrativos) que alicerçam uma interpretação temporal relativa a um centro dêitico.

Inha Ótomo (a máscara manchada de sangue é descoberta pelos homens)

(14) Ag uanĩbüle ige atühügü igei uaniN-hüle Ige a-tühügü ige-i q-adv prox estar-prf prox-cop         uanĩbüle igei atühügü igei uaniN-hüle ige-i a-tühügü ige-i q-cntr prox-cop estar-prf prox-cop ‘o que aconteceu com esta máscara? O que aconteceu com esta máscara?’ (linha 73)
(15) Ag aa kingajomoko heke ngapale aa k-ingajomo-ko heke ngapale   aff 1.2-irmã.col1-pl1 erg talvez                   ihipügü igei nügü ihekeni ihi-pügü ige-i Ø-nügü i-heke-ni mexer-prf prox-cop dizer-pnct 3-erg-pl2 ‘“Ah! Talvez as nossas irmãs tenham mexido nelas”, eles disseram’ (linha 74)
(16) Ag a igia sokungapaleha igei a Igia sokungapa leha ige-i   ah assim talvez compl prox-cop                     angajomoko enhügü kangamuke nügü iheke a-ngajomo-ko e-nhügü kangamuke Ø-nügü i-heke 2-irmã.col1-pl1 vir-pnct criança dizer-pnct 3-erg ‘“Jovens, talvez suas irmãs vieram/fizeram isto”, ele [o chefe] disse’ (linha 77)
(17) Ag maaaa unguama igei kunhünkgo maaaa ungu-a=ma ige-i ku-nhü-nkgo intj q-sim2=dub prox-cop 1.2-ser-pl1               kangamuke aĩba isanetügüko kangamuke aĩba is-anetü-gü-ko   criança ? 3-chefe-poss-pl1   ‘“E agora? Como nós ficamos, crianças?”, disse o chefe deles’ (linha 82)
(18) Ag unguama igei kunhünkgo kangamuke ungu-a=ma ige-i ku-nhüN-ko kangamuke q-sim2=dub prox-cop 1.2-vblz-pl1 criança ‘“Como vamos ficar, crianças?”’ (linha 83)
(19) Ag aa ilaha kutsüngi ilaha kutsüngi aa ila=ha ku-tsüngi ila=ha ku-tsüngi aa assim=top 1.2-hort.pl assim=top 1.2-hort.pl ‘“Ah! Já era para nós, já era para nós!”’ (linha 84)

O demonstrativo ige, com traços semânticos [-animado, -distal] e destacado nas linhas acima em negrito, é quase sempre acompanhado da cópula não verbal -i. Ige surge no interior do discurso direto citado dos homens que encontram a máscara manchada de sangue e do chefe, que passa a direcionar Ahasahügü Ótomo para a sua autoerradicação a partir dessa descoberta. No entanto, além de indicar proximidade espacial entre as personagens que falam e aquilo que lhes chama a atenção – as próprias máscaras e os efeitos da quebra da proibição –, as ocorrências de ige, acompanhado da cópula não verbal carregam semântica de proximidade temporal ao centro dêitico, que é o locutor citado. Isso é evidente nos exemplos (16) a (18): em todas falas de chefe, o demonstrativo acompanhado da cópula não verbal ocorre na periferia esquerda da frase: campo da estrutura sintática que domina as camadas flexional e lexical e onde se dá a interação entre proposição e força pragmática (Franchetto & Santos, 2010Franchetto, B., & Santos, G. M. F. (2010). Cartography of expanded CP in Kuikuro (Southern Carib, Brazil). In J. Camacho, R. Gutiérrez-Bravo & L. Sánchez (Eds.), Information structure in indigenous languages of the Americas, syntactic approaches (pp. 87-113). De Gruyter Mouton.; Franchetto, 2015Franchetto, B. (2015). Construções de foco e arredores em Kuikuro. ReVEL, (10), 246-264). http://www.revel.inf.br/files/0328c3b96d1290a45852e709631e44d5.pdf
http://www.revel.inf.br/files/0328c3b96d...
)27 27 O morfema gramatical ha, ainda sob investigação e glosado como ‘tópico’ (top), se cliticiza à palavra seguinte, na fala rápida, enquanto, na fala lenta, se cliticiza à palavra antecedente. É um componente importante da expressão sintática da informação (syntactic packaging of information). Ver Franchetto e Santos (2010) e Maia et al. (2019, pp. 120-128) para descrições e análises da estrutura da periferia esquerda em Kuikuro, onde foco e tópico estão alojados. Kalin (2014) oferece uma explanação formal interessante da mesma partícula em Hixkaryana, língua karib setentrional. . A construção da periferia esquerda do enunciado desempenha também a função de atribuir definitude (temporal) à predicação, já que a flexão aspectual, por si, não define uma forma propriamente finita do verbo.

Esse efeito temporal produzido através da construção demonstrativo + cópula não verbal, na periferia esquerda do enunciado, pode ser observado, também, pela contrapartida exata de ige, o dêitico de traços [-animado, +distal] ege, que, acompanhado da cópula não verbal, é utilizado para indicar distância temporal do centro dêitico. Os exemplos a seguir, retirados da akinha Ongokugu, atestam esse uso, sendo o centro dêitico o próprio narrador:

Ongokugu (20) Tp Ongokugu ĩdisü ngisoiha egei Ongokugu ĩdisü ngiso-i=ha ege-i is-i-tühügü Ongokugu filha esposo-cop=top dist-cop 3-vir-prf           isitühügü Ongokugu ĩdisü ngisoi Ongokugu ĩdisü ngiso-i     Ongokugu filha esposo-cop     ‘foi o esposo da filha de Ongokugu, ele veio, o esposo da filha de Ongokugu’ (linha 87)
(21) Tp ekege itsakeha ititü isuü̃ ititüha ekege i-ta-ke=ha ititü is-uü̃ ititü=ha onça 3-ouvir-imp=top nome 3-pai nome=top           egei ekege tuhugutinhü ege-i ekege t-uhuguti-nhü dist-cop onça ana-enegrecer.ptcp-nanmlz ‘o nome do pai dela era onça, onça preta’ (linha 88)
(22) Tp üleha egei Ongokugu etihũtepügüha egei üle=ha ege-i Ongokugu etihũte-pügü=ha ege-i log1=top dist-cop Ongokugu aparecer-prf=top dist-cop ‘pois é, assim foi a origem de Ongokugu’ (linha 194)

Fora do discurso direto citado, como era de se esperar, a relação espacial e temporal entre enunciação e enunciado é canonicamente de distância.

O TEMPO DISTRIBUÍDO: ENTRE DÊITICOS E EPISTÊMICOS

Em Kuikuro, dentre o vasto conjunto de marcadores epistêmicos28 28 Para uma descrição exaustiva dos epistêmicos em Kalapalo, outra variedade da língua Karib alto-xinguana, ver Basso (2008, 2012). , vários carregam valores evidenciais, veiculam informações temporais e ocorrem, geralmente, como partículas de segunda posição (no enunciado) (Franchetto, 2007Franchetto, B. (2007). Les marques de la parole vraie en Kuikuro, langue caribe du Haut-Xingu (Brésil). In Z. Guentcheva & I. Landaburu (Orgs.), L’énonciation médiatisée II. Le traitement épistémologique de l’information: illustrations amerindiennes et caucasiennes (pp. 173-204). Éditions Peeters.). À primeira vista, uma comparação das ocorrências de marcadores epistêmicos poderia parecer indexar subgêneros narrativos kuikuro: akinha hekugu, que falam de origens e transformações numa dimensão ‘mítica’ de indistinção interespécies, versus akinha ‘históricas’, que falam de eventos na dimensão da distinção – histórica? – entre humanos (kuge) e não humanos (kugehüngü). Em todos os casos, o narrador tempera sua arte com suas próprias asserções metapragmáticas a respeito de eventos transmitidos na memória coletiva por meio de epistêmicos de certitude ou de incertitude.

Diferentemente do que acontece em narrativas de outros povos ameríndios, inclusive da família linguística Karib, em Kuikuro, os epistêmicos-evidenciais não são usados consistentemente marcando cada enunciado29 29 Para o uso consistente do epistêmico-evidencial reportativo em Hixkaryâna, uma língua da família Karib, ver Derbyshire (1985, p. 127). Para um exemplo da presença constante do reportativo em Ka’apor, língua Tupi-Guarani, ver Godoy e Ka’apor (2017). e não são exclusivos de um ou de outro suposto subgênero. Estes epistêmicos, frequentemente, são acompanhados pelo marcador de tópico ha (Quadro 2).

Quadro 2
Marcadores epistêmicos-evidenciais em Kuikuro.

Com =tsügü e =tü(ha), o narrador assume um certo distanciamento diante das suas afirmações descritivas, baseadas em evidência externa relatada; o falante conta algo que não viu, não testemunhou diretamente, indicando reconhecimento de uma cadeia de transmissão de memórias. =tü(ha) é usado pelos mais velhos, sobretudo em narrativas; as gerações mais jovens usam quase exclusivamente =tsügü. A inferência temporal é sempre a de ‘passado’ com relação ao tempo da enunciação.

Em Inha Ótomo, observamos a maior ocorrência da forma de incertitude =tü(ha) e a menor frequência da forma de certitude indireta =tsü(ha), como índices do registro narrativo. =tsüha está presente nos blocos em paralelismo, em que o narrador relata as sequências em que os habitantes das aldeias Ahasahügü e Ilũbe se jogam no buraco, organizados por categorias de idade.

Inha Ótomo (Ahasahügü) (23) Ag ünagopetsüha ünago-pe=tsü=ha 3.log.pl-ntm1=cr2=top ‘aquelas serão as primeiras’ (linha 99)
(24) Ag ago hunkgupetsüha ĩke po po po po Ago hunkgu-pe-tsü=ha ĩ-ke po 3.prox.pl pequeno-ntm1-cr2=top ver-imp ideo ‘eram pequenas como eles, veja po po po po [jogaram]’ (linha 102)
Inha Ótomo (Ilũbe) (25) Ag haĩdenepetsüha itaõ gehale haĩdene-pe=tsü=ha itaõ gehale velho-ntm1=cr2=top mulher também ‘os mais velhos e as mulheres também’ (linha 176)

Já a partícula =tü ocorre sobretudo junto ao verbo ‘dizer’, que enquadra muitas das falas citadas na akinha:

(26) Ag isikutsepügü ũduhe ikutsepügü, is-iku-tse-pügü ũduhe iku-tse-pügü 3-pintura-vblz-prf ũduhe pintura-vblz-prf - ehen – nügütü iheke       Ehen nügü=tü i-heke   sim dizer-uncr1 3-erg   ‘ela está pintada, a máscara ũduhe está pintada, “sim”, ela disse’ (linha 38)

Na akinha Ongokugu, em contraste, só ocorre a partícula de certitude indireta =tsü(ha).

Ongokugu (27) Tp hengite geletsü ingakagagükoi hengite hengite gele=tsü i-ngakaga-gü-ko-i hengite cipó impf=cr2 3-banho-poss-pl1-cop cipó ‘[com] cipó era ainda o banho deles, [com] cipó’ (linha 43)

Com base nas akinha analisadas (e outras do nosso corpus), pode-se concluir que, se a presença dos epistêmicos/evidenciais parece contribuir para uma interpretação temporal de ‘passado’, nada se pode dizer quanto à sua função como índices de subgêneros narrativos, um mais ‘mítico’ (Ongokugu) e outro mais ‘histórico’ (Inha Ótomo). Estamos, afinal, tão somente diante de versões em que a arte do narrador se expressa individualmente no uso desses elementos, marcando, de qualquer maneira, registros narrativos cujas memórias são coletivas, transmitidas através das gerações e não por ele testemunhadas.

Há, ainda, alguns outros elementos da língua kuikuro que remetem a registros de memórias e que contribuem para a (nossa) interpretação temporal, notadamente de ‘passado’ (Franchetto, 2017Franchetto, B. (2017). A beleza desta língua: Tempo no nome. Mana, 23(1), 269-291. https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23n1p269
https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23...
). Um primeiro exemplo está na narrativa Ongokugu.

Ongokugu (28) Tp titá hüle egei otomokope ünagoha titá hüle ege-i oto-mo-ko-pe ünago=ha   lá cntr dist-cop dono-col1-pl1-ntm1 3.log.pl=top                     imünetühügü ihekeni ngiholoha tsuhügü imüne-tühügü i-heke-ni ngiholo=ha tsuhügü   fazer.inundar-prf 3-erg-pl2 antigo=top faz.tempo   ‘lá, porém, os donos, eles mesmos, eles inundaram; eram os antigos, faz tempo’ (linha 26)

No enunciado acima, encontramos dois índices de registros de memórias: o advérbio tsuhügü, que traduzimos como ‘faz (muito) tempo’, e o nome ngiholo, traduzido, também de modo aproximado, como ‘(o(s)) antigo(s)’. Ngiholo é usado para se referir aos mais velhos, cujos hábitos contrastam com os dos mais jovens, e é associado a termos de parentesco que denotam pessoas de gerações ascendentes para além de G+1 (mãe e pai), como: api e ngau᷉pügü (pai da mãe, pai do pai e ascendentes acima de G+2), kutau᷉pügü/kutau᷉püaõ (antepassado/antepassados), tisihu᷉gu (ancestrais, criadores, ascendentes de avós até os demiurgos Tau᷉gi e Aulukuma).

Tsuhügü é frequentemente acompanhado pela partícula de segunda posição uãke, como no exemplo abaixo, retirado de uma pequena narrativa que descreve uma atividade ritual abandonada há pelo menos duas gerações. Observe-se a presença do termo de parentesco apiko (avós).

(29) Sp tsuhügüi uãke apiko heke katuga ikugu agitagü tsuhügü-i uãke api-ko heke katuga ikugu agi-tagü faz.tempo-cop pass.dist avó-pl1 erg mangaba resina jogar-dur
ulukí etelükokilü tikinhü ahi ulukí e-te-lü-ko=kilü tikinhü ahi   ulukí ir-pnct-pl1=pass.rem aldeias em.volta   ‘Faz tempo nossos avós jogavam [bola de] resina de mangaba, iam pelas aldeias na festa ulukí’ (linha 10)

Uãke é tanto índice de ‘passado’ como carrega o valor epistêmico de uma afirmação enfatizada em sua veracidade pela autoridade do falante, sobretudo quando este tem status de chefe, junto com a autoridade e a veracidade de um conhecimento coletivo. Conforme Basso (1987, p. 232)Basso, E. B. (1987). In favour of deceit. A study of tricksters in an Amazonian society. The University of Arizona Press., uãke/wake em Kalapalo:

. . . usually indicates to listeners that a speaker has verifying first-hand evidence from the distant past. In the leaders’ speeches, wãke suggests that this evidence is traditional knowledge that has been passed down from leader to leader, and that, consequently, only one true interpretation can be made of what has being said about the ritual event.

No enunciado em (29), acima, está presente outro elemento que aponta para um ‘passado’, sendo também registro de memórias coletivas: kilü é enclítico ao sintagma verbal (etelüko=kilü). De acordo com os comentários dos falantes kuikuro, kilü teria uma semântica próxima à de um reportativo.

As linhas reproduzidas a seguir provêm de uma versão30 30 Narrada por Atahulu e registrada por Bruna Franchetto em 1982. Uma análise detalhada dessa akinha pode ser encontrada em Franchetto (2009). Uma análise comparativa de diferentes versões dessa akinha foi também central na argumentação de Sá (2021). da akinha Kagaiha Apakipügü, ‘o aparecimento dos caraíba’, e nelas se adensam o nome ngiholo, o epistêmico-evidencial uãke e o reportativo kilü. É a fala dura e enfática de um chefe que traz para o ouvinte caraíba memórias doloridas de eventos longínquos acontecidos ao longo dos séculos XVIII e XIX, até, pelo menos, o início do século passado.

Kagaiha Apakipügü (falas finais) (30) At tipaki tisetagü uãke engihologu tipaki tis-e-tagü uãke e-ngiholo-gu sempre 1.3-matar-dur pass.dist 2-antigo-poss ‘teus antigos sempre nos matavam’ (linha 564)
(31) At kagaiha heke tuelükokilü kagaiha heke tu-e-lü-ko=kilü caraíba erg o-matar-pnct-pl1=pass.rem         ülehinhe isinünkgokilü üle-hinhe is-i-nünkgo=kilü   log1-evt1 3-vir-pnct.pl1=pass.rem   ‘[conta-se que] os caraíbas31 os mataram, por isso vieram e fizeram aldeia para lá também’ (linha 570)

O TEMPO DISTRIBUÍDO: O ASPECTO (TEMPO) NOMINAL

O sufixo exclusivamente nominal -pe é outro elemento que induz uma leitura temporal de passado. Ele está presente em todas as línguas Karib das quais há alguma descrição e, na literatura existente, tem sido rotulado como ‘passado nominal’, às vezes traduzido como ‘ex’, sublinhando a cessação de uma relação: ex-afim, parente falecido, parte separada do todo ao qual pertencia etc. (Franchetto, 2017Franchetto, B., & Stenzel, K. (2017). Amazonian narrative verbal arts and typological gems. In K. Stenzel & B. Franchetto (Orgs.), On this and other worlds: Voices from Amazonia (pp. 3-6). Language Science Press.). Franchetto e Thomas (2016)Franchetto, B., & Thomas, G. (2016). The nominal temporal marker-pe in Kuikuro. In T. Bui & I. Rudmila-Rodica (Orgs.), SULA 9: Proceedings of the Ninth Conference on the Semantics of Under-Represented Languages in the Americas (pp. 25-40). GLSA. analisaram o morfema -pe em Kuikuro, obrigatório com verbos cuja aktionsart é de cessação (como ‘acabar’), como sendo um aspecto nominal terminativo. Vejamos alguns exemplos em nossas duas akinha principais:

Ongokugu (início da akinha) (32) Tp titá itupeha egei egete tsüha Ongokuguiha itupeha titá itu-pe=ha ege-i egete tsü=ha lá aldeia-ntm1=top dist-cop ali cr2=top
Ongokugu-i=ha itu-pe=ha   Ongokugu-cop=top aldeia-ntm1=top   ‘lá é a aldeia que foi dele, era de Ongokugu, a que foi a aldeia dele’ (linha 8)
Inha Ótomo (33) Ag ah mbisu ukugepe etsĩbukilü ah Mbisu ukuge-pe etsĩbuki-lü ah ideo (acabou) pessoa-ntm1 acabar-pnct ‘acabou, todas as pessoas acabaram’ (linha 138)
(34) Ag inhalü leha ukugepei ĩkeha inhalü leha ukuge-pe-i ĩ-ke=ha neg1 compl pessoa-ntm1-cop ver-imp=top ‘não ficou nenhuma pessoa, veja!’ (linha 139)

O sufixo -püa pode ser analisado como -pe seguido pelo locativo -a, com o significado de ‘lugar que foi ocupado, mas não é mais’ (Santos, 2007Santos, G. M. F. (2007). Morfologia Kuikuro: gerando nomes e verbos [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://amerindias.github.io/referencias/san07kuikuro.pdf
https://amerindias.github.io/referencias...
):

Ongokugu (35) Tp üleha egihoha egei titá inhakagapüani egihoha egiho üle=ha egiho=ha ege-i titá log1=top cacos=top dist-cop lá
i-nakaga -püa-ni egiho=ha Egiho   3-banho-ntm2-pl2 cacos=top Cacos   ‘por isso tem cacos [de cerâmica] por lá, no lugar que tinha sido onde tomavam banho, tinham cacos’ (linha 34)

É fortuito, para os objetivos deste artigo, que sejam justamente os termos itu (‘aldeia’) e kuge (‘pessoa’, ‘gente de verdade’) marcados pelo morfema -pe. Inha Ótomo nos conta, afinal, o suicídio coletivo de toda uma população, e ainda que este não seja o centro da akinha Ongokugu, sabe-se que essa aldeia aparece em outras akinha sendo destruída por uma inundação – o início da narrativa faz referência a esse fato, aliás.

A ocorrência de -pe em outra akinha pode oferecer também algumas intuições importantes para esta análise. Na versão já apresentada de Kagaiha Apakipügü (‘o aparecimento dos caraíba’), o morfema -pe é constantemente utilizado para marcar as aldeias (nestes casos, referidas como ótomo) destruídas pelas invasões de bandeirantes. Essa destruição, no entanto, não é apenas física e espacial, mas também política: a akinha narra as andanças assassinas de entradas e bandeiras pela região do cluster de Oti, destruindo, matando e pilhando, mas também buscando ativamente e sequestrando chefes.

No entanto, onde os chefes puderam fugir da invasão e assassinato dos brancos, as relações não foram interrompidas ou terminadas e seguem existindo em potencial, mesmo que os povoados em si não estejam presentes hoje. Ugihihütü, uma das aldeias invadidas e destruídas (exemplos 36 a 40), nunca é marcada pelo morfema -pe, pois seu chefe foge, e nunca nenhum verbo que indique cessação ou consumpção total é utilizado em conjunto com esse ótomo. Em contraste, no caso da aldeia Agapa, a sentença em (44) marca o destino definitivo do povoado e justifica, pelo verbo apüngu, ‘morrer’, a marcação de ótomo pelo sufixo -pe.

Vejamos esses casos:

Kagaiha Apakipügü – ataque a Ugihihütü (36) At Ugihihütü ótomo kaenga Ugihihütü Ugihihütü óto-mo kae-nga Ugihihütü   Ugihihütü dono-col1 loc1-all2 Ugihihütü             ĩde gehale mitote gehale iN-te gehale mitote gehale   aqui-ine1 também madrugada também   ‘até o pessoal de Ugihihütü, Ugihihütü, aqui também, de madrugada também’ (linha 69)
(37) At ai hütsüha itsakenügü ihekeni tsiu tsiu tsiu ai hütsü=ha itsake-nügü i-heke-ni tsiu então logo=top cortar-pnct 3-erg-pl2 ideo ‘então logo eles atacaram ferindo-os tsiu tsiu tsiu’ (linha 71)
(38) At aiha ülepe apünguhügüko tuhutelü leha aiha üle-pe apüngu-hügü-ko tuhute-lü leha pronto log1-ntm1 morrer-prf-pl1 juntar-pnct compl ‘foi isso, depois eles [caraíbas] amontoaram os mortos’ (linha 76)
(39) At ũde nĩbüle anetü anügü uN-te nĩbüle anetü a-nügü int-ine1 em chefe estar-pnct
ũdema anetü anügü ũdema uN-te-ma anetü a-nügü uN-te-ma int-ine1-dub chefe estar-pnct int-ine1-dub ‘“Onde será que está o chefe? Onde está o chefe? Onde está?”’ (linha 77)
(40) At Kujaitsi anügü ũdema Kujaitsi Kujaitsi a-nügü uN-te-ma Kujaitsi Kujaitsi estar-pnct int-ine1-dub Kujaitsi ‘“Cadê Kujaitsi, onde está Kujaitsi?”’ (linha 78)
Kagaiha Apakipügü – ataque a Agapa (41) At Agapa otomope telü Agapa oto-mo-pe te-lü Agapa dono-col1-ntm1 ir-pnct ‘O pessoal de Agapa se foi’ (linha 25)
(42) At ah kukitsakenügü higei kagaiha ah kuk-itsake-nügü=ha ige-i kagaiha intj 1.2-cortar-pnct=top prox-cop caraíba
heke tükuni ahakinui heke tü-kuni ahaki-nui erg qu-em acordar-neg1 ‘ah, os caraíbas nos feriram [cortaram, golpearam], “porque não acordam?”’ (linha 26)
(43) At ah auigupingope tsiuk tsiuk tsiuk ah auigu-pi-ngo-pe tsiuk intj dormir-?-nmlz1-ntm1 ideo ‘ah, [golpearam] os que estavam dormindo tsiuk tsiuk tsiuk’ (linha 28)
(44) At apünguko leha apüngu apüngu-ko leha apüngu morrer.pnct-pl1 compl morrer.pnct ‘morreram, morreu’ (linha 32)

O tempo nas akinha kuikuro é, portanto, determinado pela escolha não tanto da flexão verbal, mas de outras formas linguísticas. Mais do que isso, parece ser um efeito implicado: o tempo emerge da maneira como os narradores dessas akinha organizam os elementos de suas narrativas, como estruturam a movimentação interna da narração – os eventos e ações que se encadeiam – e, principalmente, como direcionam o próprio narrar de acordo com seus objetivos pragmáticos e as ideologias que os justificam. De um ponto de vista cronológico, nada deveria diferenciar uma aldeia do passado que foi completamente destruída pelos bandeirantes de uma outra aldeia do passado, também destruída, mas cujos chefes puderam escapar. No entanto, da perspectiva dos Kuikuro e do tipo de registro que se pretende produzir com a continuidade dessas akinha, a diferença é notável; e, ainda que não seja necessariamente expressada conscientemente dessa forma pelos akinha oto, manifesta-se pela escolha dos verbos cuja semântica de terminação ou consumpção determinaria a ocorrência do morfema -pe.

Assim, quando a estrutura gramatical é objeto de atenção, o tempo aparece de forma distribuída na semântica combinada de outros elementos – morfemas aspectuais, dêiticos espaço-temporais, epistêmicos, entre outros. De maneira análoga, quando a atenção se desloca para o sentido dessas akinha e a pragmática dos akinha oto, o tempo distribui-se pela paisagem do Alto Xingu de maneiras desiguais, ganhando maior ou menor distância da situação de enunciação de acordo com as relações – relações de chefes com lugares, de lugares com chefes – narradas no enunciado. O tempo, seja ele gramatical, seja ele social, é subsumido a outras categorias mais importantes para a língua kuikuro e para o que fazem os Kuikuro (ou, ao menos, os chefes kuikuro) com sua língua.

CHEFES, EIXOS, ENTERRO

Retomemos, agora, certos elementos centrais na estrutura narrativa de Inha Ótomo. Como resumido anteriormente, essa akinha narra o processo de autoaniquilamento de duas aldeias, mas as razões para esse autoaniquilamento são distintas entre os dois povoados – em Ahasahütü, as mulheres entram na casa dos homens e tocam em máscaras, atividades proibidas para elas; em Ilũbe, há falta de alimentos e de chefes –, mas a estruturação do encaminhamento narrativo que leva a essa decisão segue um paralelismo facilmente reconhecível na fala dos chefes. De fato, o autoextermínio é decidido e expressado pelo discurso direto citado de seus chefes – um paralelismo narrativo – e pelas próprias fórmulas que estes chefes usam nas falas – um paralelismo formal.

Inha Ótomo (decisão de autoextermínimo de Ahasahütü Ótomo) (45) Ag maaaa unguama igei kunhünkgo maaaa ungu-a=ma ige-i ku-nhüN-ko intj q-sim2=dub prox-cop 1.2-ser.pnct-pl1         kangamuke aĩba isanetügüko kangamuke aĩba is-anetü-gü-ko criança ? 3-chefe-poss-pl1
(46) Ag unguama igei kunhünkgo kangamuke ungu-a=ma ige-i ku-nhüN-ko kangamuke q-sim2=dub prox-cop 1.2-ser.pnct-pl1 criança
(47) Ag aa ilaha kutsüngi ilaha kutsüngi aa ila=ha ku-tsüngi ila=ha ku-tsüngi aa assim=top 1.2-hort.pl assim=top 1.2-hort.pl

‘“E agora? Como nós ficamos, crianças?”, disse o chefe deles’ (linha 82)

‘“Como vamos ficar, crianças?”’ (linha 83)

‘“Ah! Já era para nós, já era para nós!”’ (linha 84)

Inha Ótomo (decisão de autoextermínimo de Ilũbe Ótomo) (48) Ag unguama kunhünkgo kangamuke nüngü iheke aiha ungua-ma ku-nhüN-ko kangamuke Ø-nügü i-heke aiha q-dub 1.2-ser.pnct-pl1 crianças dizer-pnct 3-erg compl
(49) Ag isanetügüko kilü unguama kunhünkgo kangamuke is-anetü-gü-ko ki-lü ungua-ma ku-nhüN-ko kangamuke 3-chefe-poss-pl1 dizer-pnct q-dub 1.2-ser.pnct-pl1 crianças
(50) Ag unguama igei kunhünkgo ungua=ma ige-i ku-nhüN-ko q=dub prox-cop 1.2-ser.pnct-pl1
(51) Ag ã isagageni kutsüngi ã is-agage-ni ku-tsüngi aff 3-sim3-pl2 1.2-ser.hort.pl

‘“Como ficamos, crianças?”, ele disse, pronto’ (linha 156)

‘o chefe deles disse – “como ficamos, crianças?”’ (linha 157)

‘“Como ficamos agora?”’ (linha 158)

‘“Ah, vamos ficar como eles”’ (linha 159)

A sequência narrativa do autoextermínio de Ilũbe é interrompida pelo fim abrupto da gravação, mas há alguns detalhes da sequência de Ahasahütü que precisam ser comentados. O autoaniquilamento, como mencionado anteriormente, é realizado por meio de um buraco com varas afiadas em seu fundo, preparado pelos próprios habitantes do povoado. A ordem do salto no buraco, no entanto, revela uma hierarquia facilmente reconhecível no pensamento alto-xinguano generalizado: primeiro as mulheres, das mais jovens às mais velhas; em seguida, os homens, também dos mais jovens aos mais velhos. A hierarquia não é apenas etária, é claro, como fica visível pelo último salto no buraco: trata-se do jovem filho do chefe do povoado, que, nas palavras do próprio chefe, servirá “de tampa para seus irmãos”. Toda essa akinha e a hierarquia de autoaniquilamento narrada invocam imediatamente uma analogia direta com os enterros alto-xinguanos. De fato, as aldeias do Alto Xingu são também grandes cemitérios, e local de enterro de uma pessoa é determinado pelo grau de importância social que ela tinha em vida, em uma gradação entre centro (mais importante) e círculo de casas familiares (menos importante):

A aldeia é um cemitério, e os mortos ocupam nela diferentes espaços. Fetos abortados ou bebês natimortos são enterrados atrás das casas, ou então nas beiradas das paredes, perto do espaço ocupado pela mãe. Crianças de até cerca de um ano de idade são enterradas dentro de casa, no espaço entre os pilares centrais e a porta da frente. Crianças mais velhas, mas que ainda não tenham chegado à reclusão pubertária, vão sendo enterradas no caminho entre a porta de sua casa e o centro, em função da idade: quanto mais novas, mais perto da casa, e quanto mais velhas, mais distante. Jovens e adultos são enterrados mais perto do centro da aldeia, mas o espaço logo à frente da casa dos homens (hugogo gitalü) é reservado a chefes e seus parentes. . . . A localização das sepulturas fornece um mapa sociológico dos mortos: quanto mais perto do ideal da pessoa, mais perto do centro ela será enterrada

(Guerreiro, 2015aGuerreiro, A. R. (2015a). Ancestrais e suas sombras: Uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário. Editora da Unicamp., p. 262).

Na akinha Inha Ótomo, portanto, o eixo horizontal que determina o local de enterro de uma pessoa (covas dos limites ao centro) é transformado em eixo vertical (das primeiras aos últimos), mas a hierarquia entre enterrados segue subjacente, a despeito dessa inversão. Todos se jogam no mesmo buraco, mas a família do chefe (no caso, o jovem filho recém-saído de reclusão) segue em posição de destaque nessa cova coletiva.

Esse derradeiro enterro, entretanto, nunca se realiza completamente. De fato, o jovem chefe pula tão alto que passa por cima do buraco e entra diretamente em uma árvore de copaíba do outro lado, tornando-se seu ‘dono’:

Inha Ótomo (52) Ag a tali otoi leha etelü uhũ apungu leha a tali oto-i leha e-te-lü uhũ apungu-ø leha a copaíba dono-cop compl 3-ir-pnct intj morrer-pnct compl ‘ele se tornou o dono da árvore de copaíba, assim ele morreu’ (linha 137)
(53) Ag ah mbisu ukugepe etsĩbukilü ah mbisu ukuge-pe etsĩbuki-lü ah ideo (acabou) pessoa-ntm1 acabar-pnct ‘acabou, todas as pessoas acabaram’ (linha 138)
(54) Ag inhalü leha ukugepei ĩkeha inhalü leha ukuge-pe-i ĩ-ke=há neg1 compl pessoa-ntm1-cop ver-imp=top ‘não ficou nenhuma pessoa, veja!’ (linha 139)
(55) Ag apüngu leha igia bele inhüngüpeko inhügü leha apüngu-ø leha igia bele inh-üngü-pe-ko i-nhügü leha morrer-pnct compl assim em 3-casa-ntm1-pl1 ser-pnct compl ‘todos morreram, todas as casas ficaram vazias’ (linha 140)

Alguns detalhes importantes podem ser depreendidos da curta passagem acima. Em primeiro lugar, chama a atenção novamente o morfema -pe, definido anteriormente como um aspecto nominal terminativo. Esse morfema tem valor de cessação ou interrupção de relações, e seu aparecimento é determinado, nos exemplos (53) a (55), pela semântica dos verbos utilizados: etsĩbukilü, ‘acabar’, e apüngu, ‘morrer’. No entanto, novamente encontramos um uso seletivo desse morfema, que deixa transparecer certas características do pensamento alto-xinguano sobre suas chefias (ou do pensamento das chefias alto-xinguanas sobre si mesmas). O narrador da akinha, ainda que utilize o mesmo verbo apüngu na sentença em (52), nunca marca qualquer termo que se refira ao filho do chefe de Ahasahütü com -pe.

De fato, a morte desse jovem é ambígua. Logo antes à passagem exemplificada acima, há as seguintes linhas, ambas representando a fala do chefe de Ahasahütü e referindo-se a seu filho:

Inha Ótomo (56) Ag ilaha eitse nügü iheke ilaha itse ilaha e-i-tse Ø-nügü i-heke ilaha e-i-tse assim 2-ser-imp dizer-pnct 3-erg assim 2-ser-imp ‘“Fique assim!”, ele disse [o pai], “Fique assim!”’ (linha 135)
(57) Ag tetijipüinhü heke tetijipügü t-etijipü-inhü heke t-etijipü-gü   ana-filho-nanmlz erg refl-filho-poss           akihatohoi eitsai anhükü akiha-toho-i e-i-tsai anhükü   contar-instnmlz-cop 2-ser-fut.im querido   ‘“Ficarás como aquele que tiver filhos e serás quem contará para seus descendentes, meu querido”’ (linha 136)

Um chefe, por ser um caso particular de um ‘dono’32 32 Nesse caso específico, ‘dono’ de uma árvore, o que aponta para outra característica ambígua da chefia alto-xinguana: sua associação simultânea à predação das onças e ao crescimento vegetal (Fausto, 2020). , parece ser capaz de morrer e, ao mesmo tempo, ter descendentes. Ou, ao menos como aponta a ausência do morfema -pe, manter e proliferar certas relações sociais a despeito de sua morte.

Outra ausência significativa, no final do ciclo de autoaniquilamento de Ahasahütü, é a da morte do próprio chefe desse povoado. Seria de se esperar que seu salto derradeiro acontecesse logo após o de seu filho, mas ele nunca é de fato expresso na akinha. Existe aí, subjacente, um certo jogo com outra possibilidade da chefia alto-xinguana: não apenas de mantenedor e proliferador de relações sociais e espaciais, mas também de comentador dessas relações. É o chefe de Ahasahütü, afinal, através do discurso direto citado nas sentenças em (56) e (57), que pronuncia o destino de seu filho, assim como é o narrador dessa akinha que comenta, nas linhas seguintes, o destino de todo o povoado. Tudo se passa como se, sendo um akinha oto potencialmente também um chefe, os chefes-personagens dessa akinha revelam-se também narradores de suas aldeias. O narrador – chefe e ‘dono’ de narrativas – espelha-se entre enunciação e enunciado.

Quando a akinha Inha Ótomo chega ao ciclo de autoextermínio de Ilũbe, essa centralidade da chefia – ou autocentralização da chefia – enquanto responsável pela continuidade de relações e lugares torna-se ainda mais explícita. Os habitantes do povoado passam, afinal, a se arremessar no buraco preparado não apenas por escassez de alimentos, mas também de chefes:

Inha Ótomo (58) Ag inhalü isanetügükoi ilũbe ótomo anetügüi inhalü is-anetü-gü-ko-i ilũbe ótomo anetü-gü-i neg1 3-chefe-poss-pl1-cop cinza dono chefe-poss-cop ‘o pessoal de Ilũbe não tinha seu chefe’ (linha 155)
(59) Ag unguama kunhünkgo kangamuke nüngü iheke aiha ungua-ma k-unhünkgo kangamuke Ø-nügü i-heke aiha q-dub 1.2-ficar.pnct.pl1 crianças dizer-pnct 3-erg compl ‘“Como ficamos, crianças?”, ele disse, pronto’ (linha 156)
(60) Ag isanetügüko kilü unguama kunhünkgo kangamuke is-anetü-gü-ko ki-lü ungua-ma k-unhünkgo kangamuke 3-chefe-poss-pl1 dizer-pnct q-dub 1.2-ficar.pnct.pl1 crianças ‘o chefe deles disse – “Como ficamos, crianças?”’ (linha 157)

Como fica explícito nas linhas acima, escassez não significa, nesse caso, ausência total. O motor de uma akinha são, afinal, chefes, e Ilũbe parece ter ao menos chefes o suficiente para decidir e organizar seu próprio extermínio. Do contrário, como parece ser implicitamente afirmado, não seriam nem capazes de se aniquilarem – de fato, sem chefes, não seriam povoados e, portanto, não haveria um sujeito capaz de figurar em uma akinha alto-xinguana.

Chefes estão, portanto, no centro dos processos de criação, expansão, manutenção, defesa e fim de aldeias. São também índices de referência social e espacial do presente e do passado, com seus nomes em discursos e narrativas e seus corpos enterrados no centro físico das aldeias. Nessa akinha, são os chefes, afinal, que decidem e organizam o autoextermínio, são os chefes que direcionam seus próprios filhos para o salto derradeiro nos buracos abertos e, no caso de Ahasahütü, é o chefe também que funciona como um narrador no interior do enunciado, capaz, ao mesmo tempo, de testemunhar o fim de sua própria aldeia e de desaparecer, sem definição expressa, com ela.

CHEFES, LAGOAS, AMBIGUIDADES

Vejamos agora de que forma essa análise se aplica e se transforma ao considerar a akinha Ongokugu. Uma diferença que pareceria, à primeira vista, fundamental é que essa akinha narra eventos ocorridos em um tempo, nas palavras kuikuro, ‘quando todos éramos itseke’. No entanto, essa diferença, como é recorrente entre as populações ameríndias, não envolve reais contrastes sociais: os seres, sejam eles itseke, sejam eles humanos, estão envolvidos em relações sociais análogas. Assim, da mesma forma que chefes são casos particulares de ‘donos’, e ‘donos’ podem ser itseke, as chefias existem também disseminadas entre não humanos: Ongokugu era onça, Ongokugu era chefe.

Estamos diante de uma akinha hekugu, já que narra histórias de origens (etihu᷉tepügü). A ação central em Ongokugu é, afinal, a fabricação da lagoa de Ipatse por Isagakagagü, que, além de ser um tunga oto, ‘dono das águas’, certamente é também de família de chefes, já que se casou com a filha de Ongokugu. O feito de Isagakagagü – a criação de uma lagoa para seu sogro – parece impressionante, mas tem uma distância menor do que o esperado com outras ações realizadas e esperadas por chefes alto-xinguanos: são responsáveis, afinal, por uma série de manipulações e alterações da paisagem (Heckenberger, 2005Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: Culture, place, and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge.; dentre outros), como a construção de diques e barragens para a pesca, preparação de paliçadas e outras estruturas defensivas e abertura de caminhos, estradas e as próprias praças circulares das aldeias. A criação da lagoa de Ipatse por Isagakagagü é, portanto, a versão exagerada de relações de produção e manipulação espaciais que são intrínsecas à chefia alto-xinguana. Assim, a distância entre as duas principais akinha abordadas neste artigo, Inha Ótomo e Ongokugu, que poderia à primeira vista ser compreendida como uma distância de qualidade temporal – entre história e mito; entre passado e ‘tempo fora do tempo’ –, é novamente subsumida pela distribuição de características comuns à chefia do Alto Xingu em um mesmo plano espacial estendido.

A imagem talvez mais direta desse espaço comum de práticas que se antepõem a diferenças de profundida temporal é a própria lagoa de Ipatse, em Ongokugu:

Ongokugu (61) Tp ülepe ĩde leha ipa tüilü iheke üle=pe ĩde leha ipa tüi-lü i-heke log1=ntm1 prox.ine1 compl lagoa fazer-pnct 3-erg ‘então, aqui ele fez uma lagoa’ (linha 97)

O uso do demonstrativo proximal ĩde, traduzido como ‘aqui’, deixa claro, como era de se esperar, que, a despeito dos eventos ‘míticos’ que compõem a akinha, a despeito da diferença qualitativa entre o tempo em que os seres são diferenciados e o tempo em que todos eram itseke, a lagoa do interior do enunciado é a mesma lagoa que se encontra ao lado de nosso enunciador no momento da enunciação.

O imbricamento entre espaço e política, entre lugares e chefes, ganha ainda uma outra dimensão se considerarmos o final da akinha Ongokugu. Depois de completada a segunda versão da lagoa de Ipatse – a primeira era demasiadamente grande e foi rejeitada por Ongokugu – e depois que Isagakagagü compartilha os conhecimentos da fabricação de armadilhas de pesca e das rezas que atraem os peixes para dentro delas, o narrador faz os seguintes comentários de fechamento:

Ongokugu (62) Tp üleha egei Ongokugu etihũtepügü hegei üle=ha ege-i Ongokugu etihũte-pügü=ha ege-i log1=top dist-cop Ongokugu aparecer-prf=top dist-cop ‘pois é, assim foi a origem de Ongokugu’ (linha 194)
(63) Tp etihũtepügüha egei ekege etihũte-pügü=ha ege-i ekege   aparecer-prf=top dist.vis-cop onça                 ekisei tuhugutinhü Ongokugui egei ekise-i t-uhuguti-nhü Ongokugu-i ege-i 3dist-cop ana-enegrecer.ptcp-nanmlz Ongokugu-cop dist-cop               egei itu egei         ege-i itu ege-i     dist.vis-cop lugar dist-cop     ‘foi a origem, Ongokugu era onça preta, aquele era o lugar dela’ (linha 196)
(64) Tp itsakeha ülehegei i-ta-ke=ha üle=ha ege-i 3-ouvir-imp=top log1=top dist-cop         Ongokugu etihũtepügü hegei Ongokugu etihũte-pügü=ha ege-i Ongokugu aparecer-prf=top dist-cop ‘Ouça! Assim foi a origem de Ongokugu’ (linha 202)

Conforme enunciado em três momentos, essa é a origem de Ongokugu. No entanto, essa insistência na marcação da narrativa como uma akinha hekugu sobre origens levanta dois pontos importantes: em primeiro lugar, parece apontar para uma lógica de socialidade e de afinidade cruzadas33 33 Não cabe aqui uma análise sobre o parentesco no Alto Xingu e/ou nos mundos ameríndios. A título de referência, poderíamos citar, dentre tantos exemplos, o sempre relevante Lévi-Strauss (2012 [1949]). , já que o centro de todas as ações da história estão em Isagakagagü, genro de Ongokugu. É ele, afinal, que coloca em marcha e direciona as transformações – de paisagem e de práticas de pesca – da narrativa, mas sempre voltadas para sua esposa e para seu sogro, como o próprio narrador aponta em diferentes momentos34 34 Dentre os possíveis exemplos: ‘“oi!”, ele disse para a esposa “oi!” / “ali eu fiz o lugar de banho do nosso ‘dono’” / disse Isagakagagü, disse o esposo da filha de Ongokugu, ele era esposo da filha de Ongokugu’ (linhas 110, 111 e 112). . No entanto, ainda que a narrativa gire em torno dos feitos de Isagakagagü, essa é, enfim, a ‘origem de Ongokugu’. Em outras palavras, ainda que a presença e as ações de Isagakagagü estejam na posição central da estrutura do enunciado, este continua sendo centralizado expressamente pelo enunciador na figura de Ongokugu, não na de Isagakagagü.

A lógica de socialidade e afinidade cruzadas explica parte dessa aparente contradição, é claro, mas há aqui uma outra lógica em operação, que pode ser considerada em adição, não em substituição, à primeira: é que o nome Ongokugu carrega consigo a ambiguidade entre o nome do lugar e o nome do ‘dono’ do lugar, entre o nome da onça-chefe e o nome da aldeia. Assim, a centralização da importância de Ongokugu pelo narrador dá também concretude espacial às relações sociais que motivam os feitos de Isagakagagü. Ongokugu torna-se, então, tanto uma direção teleológica social para as ações de Isagakagagü quanto índice de seu local de atuação. Ongokugu era onça; Ongokugu era chefe; Ongokugu era povoado.

Essa ambiguidade não é ao acaso, mas sim uma manifestação particular da relação geral entre chefias e espaços, desenvolvida ao longo deste artigo. Ela tampouco é isolada no trabalho de pesquisa com os Kuikuro. Em uma série de entrevistas realizadas por Bruna Franchetto e Carlos Fausto em 2001, um fenômeno parecido aparece na fala de Agatsipá, o mesmo akinha oto que narra Inha Ótomo. O excerto abaixo foi retirado de uma sessão gravada35 35 A sessão Old Villages 1 foi gravada em 13 de agosto 2001; Old Villages 2 em 27 de junho de 2001; Old Villages 3 em 2 de outubro de 2001. na aldeia Ipatse e nomeada Old Villages 1:

(65) Ag Akusa üle atehe Akusako kae Atuhai ake Akusa üle atehe Akusa-ko kae Atuhai ake Akusa log1 por.causa Akusa-pl1 loc1 Atuhai com ‘Akusa, por isso o pessoal de Akusa e Atuhai ficaram [na beira da lagoa]’ (linha 33)

Essas entrevistas, nomeadas Old Villages 1, Old Villages 2 e Old Villages 3, são relevantes e importantes porque representam o registro de relações diretas e inseparáveis entre nomes de antigas aldeias – rememoradas pelos entrevistados – e os nomes de seus antigos chefes. As entrevistas recontam transformações de diferentes ótomo e seus ‘donos’, fundações de novas aldeias e fissões de povoados antigos, muitas vezes em paralelo, e não apenas anteriormente, à presença colonizatória do Estado brasileiro. São gravações também realizadas como parte do esforço de mapear as terras kuikuro e delinear a sucessão de ótomo e os movimentos populacionais, já que em muitos momentos os interlocutores utilizam mapas36 36 Ver Sá (2021) para uma breve descrição dos dêiticos mobilizados na interface entre enunciação e gestualidade dessas transcrições. ou outros tipos de representação cartográfica como suporte para a localização das aldeias e eventos narrados.

Agatsipá, na entrevista, demonstra a capacidade de rememorar uma longa série de ótomo e seus chefes – em muitos casos, mais de um chefe para cada ótomo –, mas termina por nunca citar o nome da aldeia da qual Akusa, no exemplo acima, era chefe. Essa aldeia certamente existiu, já que Akusa foi um chefe importante e citado nos discursos formais que um chefe executa para receber os mensageiros que chegam à aldeia trazendo o convite para participar do egitsü (Franchetto, 1986Franchetto, B. (1986). Falar Kuikúro: estudo etnolinguístico de um grupo karíbe do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Afranchetto-1986/Franchetto_1986_Falar_Kuikuro_completo_3vols.pdf
https://etnolinguistica.wdfiles.com/loca...
). O próprio Agatsipá localiza essa aldeia, em outro trecho da entrevista, na beira da lagoa Alahatua e próxima a uma aldeia também chamada Alahatua (da qual Atuhai foi chefe).

Na falta da rememoração do nome da aldeia de Akusa, no entanto, o entrevistado cita o nome de seu chefe como substituto. A expressão Akusako é especialmente transparente, sendo -ko o sufixo de plural associativo, indicando algo como ‘o pessoal de Akusa’. Essa expressão, aliás, revela de maneira clara o engano potencial da tradução do termo ótomo como ‘aldeia’ ou ‘povoado’. Como mencionado anteriormente, a palavra ótomo teria como tradução literal algo como ‘coletivo de ‘donos’’, mas deve estar especialmente claro aqui que os ‘donos’ de uma aldeia não são todos os seus habitantes – ‘donos’ são, é claro, chefes. Vemos aqui, portanto, da maneira mais explícita possível, a imbricação estreita entre chefia(s) e aldeia(s)s, ao ponto de uma poder ser utilizada em substituição à outra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Alto Xingu é palco, já há décadas, de diferentes esforços de pesquisa nas áreas de Arqueologia, Antropologia e Linguística, desenvolvidos inclusive com a parceria fundamental de pesquisadores indígenas, e que são essenciais para compor uma imagem cada vez mais rica e complexa da região. Evidências arqueológicas (Heckenberger, 2005Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: Culture, place, and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge.) apontam, afinal, para a presença de povoamento na região desde, pelo menos, o século IX, em um jogo de tensões e transformações internas que passa pela história da invasão e da colonização do continente americano, mas que não se limita a ela. Abrir caminhos de cruzamento de saberes e perspectivas, portanto, não é apenas uma demanda metodológica, mas também uma exigência do próprio campo de estudo.

No entanto, conectar saberes diversos, ainda que sejam saberes que concretamente existam de forma articulada no Alto Xingu, é uma tarefa desafiadora, e não é a pretensão dos autores deste artigo abarcarem, de maneira detalhada e com o rigor que merecem, todas as linhas de pesquisa em questão. Os esforços aqui foram o de simplesmente sugerir possibilidades de estudos sobre território e política – conceitos centrais para a arqueologia e a etnologia alto-xinguana – através da exploração de recursos linguísticos que contribuem para a estruturação das narrativas kuikuro e suas mobilizações pragmáticas pelos akinha oto, os ‘mestres da arte de narrar’.

Assim, ao longo deste artigo, foram desenvolvidos dois tópicos centrais. Em primeiro lugar, quando se considera tanto a língua kuikuro quanto perspectivas kuikuro de historiografia, registro de acontecimentos e memórias, não conseguimos, nós, caraíba (brancos, não indígenas), eludir perguntas acerca da expressão do tempo. Procuramos mostrar que noções temporais emergem de forma distribuída através de relações que não são necessariamente apenas temporais: na língua, do jogo entre aspectos, advérbios, dêiticos e epistêmicos; na narração de acontecimentos, das marcas espaciais que conformam a paisagem socialmente relevante do Alto Xingu. É claro que tempo gramatical (tense) e tempo ontológico não são idênticos, e o objetivo deste artigo tampouco é o de defender qualquer revitalização de relativismo linguístico com foco temporal. O que se busca apontar aqui, simplesmente, é o valor de uma aproximação heurística desses dois elementos, já que, concretamente, tanto tense quanto tempo são fenômenos que participam na estruturação e no dinamismo do ato de narrar, contar.

Em segundo lugar, essa espacialidade, que é tão central para a historiografia nativa da região, não pode ser considerada em separado da organização política alto-xinguana. Este artigo é, afinal, um comentário sobre a natureza espacial das chefias do Alto Xingu e, de forma análoga, sobre a natureza política do espaço do Alto Xingu. Os ótomo alto-xinguanos são, afinal, expressões de suas chefias, uma afirmação, aliás, que também é verdadeira em sua forma invertida: as chefias alto-xinguanas são expressões de seus ótomo.

ABREVIATURAS
  • PEL  Passivo Externo Líquido
  • 1  1ª pessoa
  • 2  2ª pessoa
  • 3  3ª pessoa
  • 3.log.pl  logofórico de 3ª pessoa plural (üngele)
  • 3dist  dêitico de 3ª pessoa distal
  • abl  ablativo
  • adv  adverbial
  • aff  afirmativo
  • all2  alativo
  • ana  anafórico
  • cntr  contrastivo
  • col1  coletivizador
  • com  comitativo
  • compl  completivo (partícula aspectual)
  • cop  cópula
  • cr2  certitude (epistêmico)
  • dist  dêitico distal (não animado)
  • dist.dir  dêitico direcional distal
  • dist.vis  dêitico visual distal
  • dtr  detransitivizador
  • dub  dubitativo
  • dur  durativo (aspecto)
  • em  epistêmico
  • emph3  enfático
  • erg  ergativo
  • evt1  finalidade negativa, evitação (hinhe)
  • fut  futuro
  • fut.im  futuro iminente ou intencional (modo)
  • hort.pl  hortativo plural
  • ideo  ideofone
  • ill  illative (para dentro de)
  • imp  imperativo
  • impf  imperfectivo (partícula aspectual)
  • ine1  inessivo
  • inst  instrumental
  • instnmlz  nominalizador de instrumento (-toho)
  • int  interrogativo
  • intj  interjeição
  • ints  intensificador
  • loc1  locativo
  • log1  logofórico não animado (üle)
  • nanmlz  nominalizador não agentivo
  • nmlz1  nominalizador
  • ntm1  marcador de aspecto terminativo nominal (-pe)
  • ntm2  marcador de aspecto terminativo nominal (-püa)
  • neg1  negação
  • o  marcador de objeto
  • pass.dist  passado distante
  • pass.rem  passado remoto
  • pl1  plural (-ko)
  • pl2  plural (-ni)
  • pnct  pontual (aspecto)
  • poss  possessivo
  • prf  perfectivo
  • prox  dêitico proximal (não animado)
  • ptcp  particípio (aspecto resultativo participial)
  • q  partícula interrogativa
  • qu  palavra interrogativa
  • sim2  similativo (-a)
  • sim3  similativo (-agage)
  • refl  reflexivo
  • top  tópico
  • uncr1  incertitude (epistêmico)
  • vblz  verbalizador
  • 1
    Em tradução livre: “Onde então Sol, Taũgi, nos colocou, sobre Mato Grosso? / Fomos colocas em cima do Mato Grosso, são Kuikuro, Kalapalo, Matipu, Nahukua, Kamayura, Yawalapiti, Mehinako, Aweti e outros / Onde os Kalapalos moravam tem muitas histórias, muito tempo atrás / esse trabalho dos arqueólogos mostra toda a verdade, esse tempo todo / Taũgi nos colocou aqui / Onde foi que Egitsü começou, o Kuarup? / Foi aqui mesmo que começou, na região do Xingu mesmo / . . . . Falam: por que os indígenas têm tantos de hectares de terra? / O que eles querem? É para plantação / Por acaso eles são donos das terras? Claro que não / Onde foi nossa origem? / Será que foi no outro lado (outros países)? Claro que não / Onde começou nossa história então? / Qual foi a origem de ipa (lagoas)? / (...) Aqui agora só tem plantação de soja, não é mais igual a antes / Em nossa volta, bem perto, só tem plantação de soja, soja, soja / Agora está acabando tudo / Esse Mato Grosso, somos os únicos segurando nossas terras”.
  • 2
    Chefe principal da aldeia Ipatse, a maior aldeia kuikuro atual.
  • 3
    O ato de executar uma akinha – um ato comunicativo – não resulta em um monólogo: há sempre uma audiência e um itüjüini, ‘respondedor’, que pontua a fala do narrador com interjeições afirmativas, perguntas ou breves comentários (Franchetto, 1986Franchetto, B. (1986). Falar Kuikúro: estudo etnolinguístico de um grupo karíbe do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Afranchetto-1986/Franchetto_1986_Falar_Kuikuro_completo_3vols.pdf
    https://etnolinguistica.wdfiles.com/loca...
    , 2003Franchetto, B. (2003). L’autre du même: Parallélisme et grammaire dans l’art verbal des récits Kuikuro (caribe du Haut Xingu, Brésil). Amerindia, (28), 213-248.). Entre outras expressões traduzíveis como ‘contar, narrar’, mencionamos: akihanügü, ‘contar akinha de ngiholo (‘antigos’) ou akinha que o narrador ouviu de outros’; akinhatunN, ‘contar o que o narrador presenciou’. Qualquer akinha pode ser mostrada (iha, ‘contar/mostrar’) ou dada-trocada (tuN-, ‘dar’).
  • 4
    As narrativas que constam deste artigo fazem parte do corpus digital produzido por Franchetto desde 1977 e por Carlos Fausto a partir de 2000.
  • 5
    O leitor encontrará não poucas vezes, neste artigo, os termos kuikuro oto e ótomo. Os significados e a tradução de oto, termo polissêmico, como ‘dono, mestre’ são discutíveis e discutidos na etnografia alto-xinguana e além dela (Franchetto, 1986Franchetto, B. (1986). Falar Kuikúro: estudo etnolinguístico de um grupo karíbe do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Afranchetto-1986/Franchetto_1986_Falar_Kuikuro_completo_3vols.pdf
    https://etnolinguistica.wdfiles.com/loca...
    ; Guerreiro, 2015aGuerreiro, A. R. (2015a). Ancestrais e suas sombras: Uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário. Editora da Unicamp.; Fausto, 2008Fausto, C. (2008). Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, 14(2), 329-366. https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313200800...
    ; Kelly & Matos, 2019Kelly, J. A., & Matos, M. A. (2019). Política da consideração: ação e influência nas terras baixas da América do Sul. Mana, 25(2), 391-426. https://doi.org/10.1590/1678-49442019v25n2p391
    https://doi.org/10.1590/1678-49442019v25...
    ). São basicamente termos para relações de parentesco expandidas ou potenciais. O termo ótomo é formado pelo nome oto e pelo morfema coletivizador /-mo/. Inha ótomo, por exemplo, significaria literalmente um coletivo de ‘donos’ do local cujo topônimo é Inha. A tradução corriqueira para o português como ‘aldeia’ poderia ser corrigida por uma expressão mais precisa, como ‘o pessoal de’.
  • 6
    A raiz heku- carrega valores semânticos associados à verdade, tanto factual quanto ética, mas também à beleza e à saúde. O verbo hekutelü, por exemplo, tem as seguintes traduções no dicionário Kuikuro: 1. curar; 2. embelezar; 3. consertar; corrigir (Franchetto, no preloFranchetto, B. (Org.) (No prelo). Dicionário Kuikuro-Português. Volume Temático I: Inhanhigü – Cultura Material Kuikuro. Edição própria.).
  • 7
    Os povos alto-xinguanos que falam variedades (dialetos) da LKAX são, além do Kuikuro, os Kalapalo, os Nahukuá e os Matipú; as diferenças entre elas são principalmente de natureza prosódica, além de formas distintas de alguns itens lexicais e de alguns morfemas gramaticais.
  • 8
    Os primeiros mapeamentos de sítios e topônimos em torno da imponente lagoa de Tahununu foram realizados por Carneiro (2001)Carneiro, R. L. (2001). A origem do lago Tahununu, um mito Kuikuro. In B. Franchetto & M. Heckenberger (Orgs.), Os povos do Alto Xingu. História e cultura (pp. 287-292). Editora da UFRJ. e, mais tarde, por Heckenberger (2005)Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: Culture, place, and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. Routledge., que chamou a área de ‘complexo oriental’. Mais recentemente, um mapeamento mais detalhado resultou da colaboração dos Kuikuro (notadamente de Ahukaka, anetü, ‘chefe’ de Ipatse) com os pesquisadores Carlos Fausto, Morgan Schmidt e Bruna Franchetto (Fausto et al., 2021Fausto, C., Costa, T. O., Schmidt, M., Franchetto, B., & Kuikuro, A. (2021). The marriage of earth and sky: Grounding LiDAR in indigenous knowledge [Video]. Earth Arquive Virtual Congress. https://www.youtube.com/watch?v=8JTWfg3hSi8
    https://www.youtube.com/watch?v=8JTWfg3h...
    ). Os topônimos dos muitos locais ao redor de Tahununu são índices de memórias, em forma narrativa ou não, de eventos acontecidos em tempos mais ou menos longínquos.
  • 9
    Egitsü, em Kuikuro. Assim o ritual é definido por Mutua Mehinaku (2010, p. 84)Mehinaku, M. (2010). Tetsualü: pluralismo de línguas e pessoas no Alto Xingu [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese:mehinaku-2010/mehinaku_2010.pdf
    https://etnolinguistica.wdfiles.com/loca...
    : “egitsü, feito para homenagear os nossos anetü, ‘ilustres’ chefes falecidos”.
  • 10
    Em Kuikuro, anetü, no caso de chefes masculinos, e itankgo, no caso de chefes femininas.
  • 11
    Uma das narrativas analisadas por Franchetto (1986, p. 19)Franchetto, B. (1986). Falar Kuikúro: estudo etnolinguístico de um grupo karíbe do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Afranchetto-1986/Franchetto_1986_Falar_Kuikuro_completo_3vols.pdf
    https://etnolinguistica.wdfiles.com/loca...
    contém um comentário final da narradora sobre o status de chefia “pela metade” (gravação de 23 de novembro 1981, aldeia Ipatse): “Ela é chefe, An, sendo pela metade Ahk se tornou chefe, no lugar só de An, mas Jhl nao é igual a ele, o pai dele era chefe, a mãe dele era chefe...”.
  • 12
    O dicionário Kuikuro-Português (Franchetto, no preloDerbyshire, D. C. (1985). Hixkaryana and linguistic typology. Summer Institute of Linguistics.) assim define ngene: “Ngene egei kengeniko igatoho, ekege, heu, teloko tuhugu gehale; inhalüha Lahatua Ótomo heke ngene engelüi, kanga tsügütseha tegné, aetsi tsügütse kajü tengé – Ngene” é o nome dado aos predadores, onça, porco e outros; o povo de Lahatua não come ngene, pode comer somente peixe ou macaco.
  • 13
    Seres monstruosos, poderosos e perigosos. O termo kuikuro é recorrentemente traduzido pelos próprios Kuikuro como ‘bicho’ ou mesmo ‘espírito’. Os autores deste artigo preferem a tradução ‘hiperser’.
  • 14
    Narrada por Agatsipá (Ag), tendo Ahukaka (Ak) como interlocutor. Narrativa coletada por Bruna Franchetto, na aldeia Ipatse, em 1982. Transcrita e traduzida por Jamalui Mehinaku Kuikuro, revisada por Bruna Franchetto e interlinearizada por Gélsama M. F. Santos.
  • 15
    O narrador lembrou de mais cinco aldeias, todas próximas umas das outras.
  • 16
    Narrada por Hopesé (Tp), foi coletada por Carlos Fausto, na aldeia Ipatse, em 2003, transcrita e traduzida por Asusu Kuikuro, revisada por Bruna Franchetto e interlinearizada por Gélsama M. F. Santos.
  • 17
    Isagakagagü é um dos ancestrais demiurgos, assim como Sagankgue˜gü, ambos tunga oto, ‘oto’ ‘dono da água’.
  • 18
    Como observado no começo do artigo, uma akinha hekugu tampouco é um ‘fato narrativo’ isolado, mas faz parte de uma extensa rede de narrativas, numa continuidade de transformações; por isso, não tem um começo absoluto, nem um fim absoluto.
  • 19
    Os modos na flexão verbal kuikuro são: declarativo (não marcado), imperativo, hortativo, intencional (glosado como ‘futuro iminente’), habitual e hipotético. O habitual é considerado como modo pelo fato de ocupar a primeira posição sufixal logo após a raiz, posição reservada para a flexão de modo fonologicamente explícita, e pelo fato de ser sempre seguido pela flexão de aspecto pontual -lü.
  • 20
    Observe-se a difusa alomorfia de morfemas flexionais, condicionados por cinco classes morfológicas, sincronicamente sem motivações fonológicas ou semânticas (Franchetto, 1986Franchetto, B. (1986). Falar Kuikúro: estudo etnolinguístico de um grupo karíbe do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Afranchetto-1986/Franchetto_1986_Falar_Kuikuro_completo_3vols.pdf
    https://etnolinguistica.wdfiles.com/loca...
    ; Santos, 2007Santos, G. M. F. (2007). Morfologia Kuikuro: gerando nomes e verbos [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://amerindias.github.io/referencias/san07kuikuro.pdf
    https://amerindias.github.io/referencias...
    , 2008Santos, G. M. F. (2008). As classes morfológicas flexionais da língua Kuikuro. Revista LIAMES, 8(1), 105-120. https://doi.org/10.20396/liames.v8i1.1474
    https://doi.org/10.20396/liames.v8i1.147...
    ).
  • 21
    A homofonia do morfema -gü na flexão nominal e na flexão verbal pode ter uma explicação diacrônica, se considerarmos a hipótese de Gildea (1998)Gildea, S. O. (1998). On reconstructing grammar: Comparative Cariban morphosyntax. Oxford University Press. de que a sintaxe básica das línguas karib ergativas (Set II, de acordo com a formalização do autor) resulta de uma reanálise de orações subordinadas das línguas karib nominativas (Set I, seguindo a formalização do autor), orações que apresentam nominalização do verbo com seu argumento interno no caso absolutivo (não marcado) e seu argumento externo (agente) marcado por uma posposição. -gü é cognato do sufixo de ‘posse’ nominal -rɨ em outras línguas karib (Gildea, 1998Gildea, S. O. (1998). On reconstructing grammar: Comparative Cariban morphosyntax. Oxford University Press., pp. 104-118), onde o mesmo sufixo é também atestado como sendo um nominalizador (Gildea, 1998Gildea, S. O. (1998). On reconstructing grammar: Comparative Cariban morphosyntax. Oxford University Press., p. 120).
  • 22
    Os trechos das narrativas são sempre apresentados com transcrição ortográfica, segmentação morfológica de cada palavra seguida por glosagem interlinear e, por fim, uma tradução que procura um certo equilíbrio entre fidelidade aos enunciados-fonte e uma liberdade que permita ao leitor um melhor entendimento dos mesmos. A tradução livre indica a numeração das linhas na transcrição completa.
  • 23
    Agradecemos a observação crítica de um dos pareceristas: a raiz do verbo ‘vir’ apresenta alomorfia, sendo que a forma -i- é restrita à flexão prefixada pronominal de 3ª pessoa, enquanto a forma (básica) e- é realizada em todos os outros ambientes.
  • 24
    Uma observação metalinguística por si só bastante interessante: uma categoria morfológica aspectual normalmente associada à produção de um efeito temporal é, de acordo com nossos interlocutores Kuikuro, entendida através de uma figura espacial.
  • 25
    O aspecto participial resultativo kuikuro – tü-/ t-verbo-i/-ti/-si/-acento – é reflexo da protoconstrução *t-V-ce (Gildea, 1998Gildea, S. O. (1998). On reconstructing grammar: Comparative Cariban morphosyntax. Oxford University Press.), frequentemente rotulada como ‘particípio’. A construção *t-V-ce apresenta diferentes comportamentos sintáticos e semânticos através das línguas que pertencem à família karib.
  • 26
    Um dos pareceristas questiona, justamente – e o leitor deve estar se perguntando –, se o sufixo -ingo (fut) poderia ser expressão de tempo futuro. -ingo é ‘futuro’ (o que virá a ser) tanto em nomes como em verbos sempre depois do aspecto pontual. Não se trata apenas de ‘tempo futuro’, já que possui valores deônticos de possibilidade e comprometimento. Há outra flexão verbal que nos leva a uma interpretação de ‘futuro’, mas, agora, estamos falando de uma flexão de modo. O modo intencional ou ‘futuro iminente’ é usado quando o falante comunica uma ação sobre a qual o sujeito tem absoluto controle intencional e em cuja realização imediata já está envolvido. Diante da atual tipologia de tempo, é difícil definir o Kuikuro como língua futuro/não futuro ou passado/não passado.
  • 27
    O morfema gramatical ha, ainda sob investigação e glosado como ‘tópico’ (top), se cliticiza à palavra seguinte, na fala rápida, enquanto, na fala lenta, se cliticiza à palavra antecedente. É um componente importante da expressão sintática da informação (syntactic packaging of information). Ver Franchetto e Santos (2010)Franchetto, B., & Santos, G. M. F. (2010). Cartography of expanded CP in Kuikuro (Southern Carib, Brazil). In J. Camacho, R. Gutiérrez-Bravo & L. Sánchez (Eds.), Information structure in indigenous languages of the Americas, syntactic approaches (pp. 87-113). De Gruyter Mouton. e Maia et al. (2019, pp. 120-128) para descrições e análises da estrutura da periferia esquerda em Kuikuro, onde foco e tópico estão alojados. Kalin (2014)Kalin, L. (2014). The syntax of OVS word order in Hixkaryana. Natural Language and Linguist Theory, 32, 1089-1104. https://doi.org/10.1007/s11049-014-9244-x
    https://doi.org/10.1007/s11049-014-9244-...
    oferece uma explanação formal interessante da mesma partícula em Hixkaryana, língua karib setentrional.
  • 28
    Para uma descrição exaustiva dos epistêmicos em Kalapalo, outra variedade da língua Karib alto-xinguana, ver Basso (2008Basso, E. B. (2008). Epistemic deixis in Kalapalo. Pragmatics, 18(2), 215-252. https://doi.org/10.1075/prag.18.2.03bas
    https://doi.org/10.1075/prag.18.2.03bas...
    , 2012)Basso, E. B. (2012). A grammar of Kalapalo, a Southern Cariban language. The archive of Indigenous Languages of Latin America. University of Texas. https://ailla.utexas.org/islandora/object/ailla%3A134166
    https://ailla.utexas.org/islandora/objec...
    .
  • 29
    Para o uso consistente do epistêmico-evidencial reportativo em Hixkaryâna, uma língua da família Karib, ver Derbyshire (1985, p. 127)Derbyshire, D. C. (1985). Hixkaryana and linguistic typology. Summer Institute of Linguistics.. Para um exemplo da presença constante do reportativo em Ka’apor, língua Tupi-Guarani, ver Godoy e Ka’apor (2017)Godoy, G., & Ka’apor, W. (2017). Ka’apor. In K. Stenzel & B. Franchetto (Orgs.), On this and other worlds: Voices from Amazonia (pp. 467-480). Language Science Press..
  • 30
    Narrada por Atahulu e registrada por Bruna Franchetto em 1982. Uma análise detalhada dessa akinha pode ser encontrada em Franchetto (2009)Franchetto, B. (2009). O aparecimento dos caraíba: Para uma história kuikúro e alto-xinguana. In M. C. Cunha (Org.), História dos índios no Brasil (pp. 339-356). Companhia das Letras, FAPESP.. Uma análise comparativa de diferentes versões dessa akinha foi também central na argumentação de Sá (2021)Sá, T. B. (2021). Esboço de uma topogramática alto-xinguana: reflexões em torno de chefes, aldeias e dêiticos espaço-temporais em Kuikuro [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]..
  • 31
    Traduzimos o termo kagaiha como ‘caraíba’ e não como ‘branco’.
  • 32
    Nesse caso específico, ‘dono’ de uma árvore, o que aponta para outra característica ambígua da chefia alto-xinguana: sua associação simultânea à predação das onças e ao crescimento vegetal (Fausto, 2020Fausto, C. (2020). Chiefly jaguar, chiefly tree: Mastery and authority in the Upper Xingu. In S. Kosiba, J. & T. Cummins (Eds.), Sacred matter: Animism and authority in the Pre-Columbian Americas (pp. 37-69). Harvard University Press.).
  • 33
    Não cabe aqui uma análise sobre o parentesco no Alto Xingu e/ou nos mundos ameríndios. A título de referência, poderíamos citar, dentre tantos exemplos, o sempre relevante Lévi-Strauss (2012 [1949])Lévi-Strauss, C. (2012 [1949]). As estruturas elementares do parentesco. Editora Vozes..
  • 34
    Dentre os possíveis exemplos: ‘“oi!”, ele disse para a esposa “oi!” / “ali eu fiz o lugar de banho do nosso ‘dono’” / disse Isagakagagü, disse o esposo da filha de Ongokugu, ele era esposo da filha de Ongokugu’ (linhas 110, 111 e 112).
  • 35
    A sessão Old Villages 1 foi gravada em 13 de agosto 2001; Old Villages 2 em 27 de junho de 2001; Old Villages 3 em 2 de outubro de 2001.
  • 36
    Ver Sá (2021) para uma breve descrição dos dêiticos mobilizados na interface entre enunciação e gestualidade dessas transcrições.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos às diferentes instituições que contribuíram e continuam contribuindo, com apoio ou parceria, para a escrita deste artigo: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e Fundação Volkswagen através do Programa de Documentação de Línguas Ameaçadas/DoBeS; Museu do Índio (Fundação Nacional dos Povos Indígenas - FUNAI-RJ); Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG); Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ; Projeto Etnoarqueológico Kuikuro do Alto Xingu, coordenado por Bruna Franchetto (Museu Nacional) e Helena Pinto Lima (MPEG); Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da UFRJ.

  • Sá, T. B., Franchetto, B., Santos, G. M. F., Moraes, B., & Kuikuro, A. D. (2023). Tempo, espaço e chefias no Alto Xingu: uma análise de akinha kuikuro. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220024. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0024.

REFERÊNCIAS

  • Basso, E. B. (1987). In favour of deceit. A study of tricksters in an Amazonian society The University of Arizona Press.
  • Basso, E. B. (1995). The last cannibals: A South American oral history University of Texas Press.
  • Basso, E. B. (2008). Epistemic deixis in Kalapalo. Pragmatics, 18(2), 215-252. https://doi.org/10.1075/prag.18.2.03bas
    » https://doi.org/10.1075/prag.18.2.03bas
  • Basso, E. B. (2012). A grammar of Kalapalo, a Southern Cariban language The archive of Indigenous Languages of Latin America. University of Texas. https://ailla.utexas.org/islandora/object/ailla%3A134166
    » https://ailla.utexas.org/islandora/object/ailla%3A134166
  • Carneiro, R. L. (2001). A origem do lago Tahununu, um mito Kuikuro. In B. Franchetto & M. Heckenberger (Orgs.), Os povos do Alto Xingu. História e cultura (pp. 287-292). Editora da UFRJ.
  • Derbyshire, D. C. (1985). Hixkaryana and linguistic typology. Summer Institute of Linguistics.
  • Fausto, C. (2008). Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, 14(2), 329-366. https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
    » https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
  • Fausto, C., Russell, C., Heckenberger, M. J., Toney, J. R., Schmidt, M. J., Pereira, E., Franchetto, B., & Kuikuro, A. (2008). Pre-Columbian urbanism, anthropogenic landscapes, and the future of the Amazon. Science, 321(5893), 1214-1217. AAAS. https://www.science.org/doi/10.1126/science.1159769
    » https://doi.org/10.1126/science.1159769
  • Fausto, C. (2020). Chiefly jaguar, chiefly tree: Mastery and authority in the Upper Xingu. In S. Kosiba, J. & T. Cummins (Eds.), Sacred matter: Animism and authority in the Pre-Columbian Americas (pp. 37-69). Harvard University Press.
  • Fausto, C., Costa, T. O., Schmidt, M., Franchetto, B., & Kuikuro, A. (2021). The marriage of earth and sky: Grounding LiDAR in indigenous knowledge [Video]. Earth Arquive Virtual Congress. https://www.youtube.com/watch?v=8JTWfg3hSi8
    » https://www.youtube.com/watch?v=8JTWfg3hSi8
  • Franchetto, B. (1986). Falar Kuikúro: estudo etnolinguístico de um grupo karíbe do Alto Xingu [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Afranchetto-1986/Franchetto_1986_Falar_Kuikuro_completo_3vols.pdf
    » https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Afranchetto-1986/Franchetto_1986_Falar_Kuikuro_completo_3vols.pdf
  • Franchetto, B. (1992). O aparecimento dos caraíba: para uma história kuikuro e alto-xinguana. In M. C. Cunha (Org.), História dos índios no Brasil (pp. 339-356). Companhia das Letras, FAPESP, SMC.
  • Franchetto, B. (1993). A celebração da história nos discursos cerimoniais kuikúro (Alto Xingu). In E. Viveiros de Castro & M. C. Cunha (Orgs.), Amazônia: etnologia e história indígena (pp. 95-116). NHII/USP, FAPESP.
  • Franchetto, B. (2000). Rencontres rituelles dans le Haut Xingu: La parole du chef. In A. B. Monod & P. Erikson (Orgs.), Les rituels du dialogue. Promenades ethnolinguistiques en terres amérindiennes (pp. 481-510). Societé d’Ethnologie.
  • Franchetto, B. (2003). L’autre du même: Parallélisme et grammaire dans l’art verbal des récits Kuikuro (caribe du Haut Xingu, Brésil). Amerindia, (28), 213-248.
  • Franchetto, B. (2007). Les marques de la parole vraie en Kuikuro, langue caribe du Haut-Xingu (Brésil). In Z. Guentcheva & I. Landaburu (Orgs.), L’énonciation médiatisée II. Le traitement épistémologique de l’information: illustrations amerindiennes et caucasiennes (pp. 173-204). Éditions Peeters.
  • Franchetto, B. (2009). O aparecimento dos caraíba: Para uma história kuikúro e alto-xinguana. In M. C. Cunha (Org.), História dos índios no Brasil (pp. 339-356). Companhia das Letras, FAPESP.
  • Franchetto, B. (2010). The ergativity effect in Kuikuro (Southern Carib, Brazil). In S. Gildea & F. Queixalós (Orgs.), Ergativity in Amazonia (pp. 121-158). John Benjamins Publishing Company.
  • Franchetto, B., & Santos, G. M. F. (2010). Cartography of expanded CP in Kuikuro (Southern Carib, Brazil). In J. Camacho, R. Gutiérrez-Bravo & L. Sánchez (Eds.), Information structure in indigenous languages of the Americas, syntactic approaches (pp. 87-113). De Gruyter Mouton.
  • Franchetto, B. (2014). Autobiographies of a memorable man and other memorable persons. In: S. Oakdale & M. Course (Orgs.), Fluent selves: autobiography, person, and history in Lowland South America (pp. 271-310). University of Nebraska Press.
  • Franchetto, B. (2015). Construções de foco e arredores em Kuikuro. ReVEL, (10), 246-264). http://www.revel.inf.br/files/0328c3b96d1290a45852e709631e44d5.pdf
    » http://www.revel.inf.br/files/0328c3b96d1290a45852e709631e44d5.pdf
  • Franchetto, B., & Thomas, G. (2016). The nominal temporal marker-pe in Kuikuro. In T. Bui & I. Rudmila-Rodica (Orgs.), SULA 9: Proceedings of the Ninth Conference on the Semantics of Under-Represented Languages in the Americas (pp. 25-40). GLSA.
  • Franchetto, B. (2017). A beleza desta língua: Tempo no nome. Mana, 23(1), 269-291. https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23n1p269
    » https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23n1p269
  • Franchetto, B., & Stenzel, K. (2017). Amazonian narrative verbal arts and typological gems. In K. Stenzel & B. Franchetto (Orgs.), On this and other worlds: Voices from Amazonia (pp. 3-6). Language Science Press.
  • Franchetto, B. (2021). Counterfactual and non-counterfactual conditional constructions in Kuikuro (Upper Xingu Carib). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 16(3), e20200107. https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2020-0107
    » https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2020-0107
  • Franchetto, B. (Org.) (No prelo). Dicionário Kuikuro-Português. Volume Temático I: Inhanhigü – Cultura Material Kuikuro Edição própria.
  • Gildea, S. O. (1998). On reconstructing grammar: Comparative Cariban morphosyntax Oxford University Press.
  • Godoy, G., & Ka’apor, W. (2017). Ka’apor. In K. Stenzel & B. Franchetto (Orgs.), On this and other worlds: Voices from Amazonia (pp. 467-480). Language Science Press.
  • Guerreiro, A. R. (2015a). Ancestrais e suas sombras: Uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário Editora da Unicamp.
  • Guerreiro, A. R. (2015b). Political Chimeras: The uncertainty of the chief’s speech in the Upper Xingu. HAU: Journal of Ethnographic Teory, 5(1), 59-85. https://doi.org/10.14318/hau5.1.004
    » https://doi.org/10.14318/hau5.1.004
  • Heckenberger, M. (2001). Epidemias, índios bravos e brancos: Contato cultural e etnogênese. In B. Franchetto & M. Heckenberger (Orgs.), Os povos do Alto Xingu: história e cultura (pp. 77-110). Editora da UFRJ.
  • Heckenberger, M. (2005). The ecology of power: Culture, place, and personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000 Routledge.
  • Kalin, L. (2014). The syntax of OVS word order in Hixkaryana. Natural Language and Linguist Theory, 32, 1089-1104. https://doi.org/10.1007/s11049-014-9244-x
    » https://doi.org/10.1007/s11049-014-9244-x
  • Kelly, J. A., & Matos, M. A. (2019). Política da consideração: ação e influência nas terras baixas da América do Sul. Mana, 25(2), 391-426. https://doi.org/10.1590/1678-49442019v25n2p391
    » https://doi.org/10.1590/1678-49442019v25n2p391
  • Lévi-Strauss, C. (2012 [1949]). As estruturas elementares do parentesco Editora Vozes.
  • Maia, M., Franchetto, B., Lemle, M., & Vieira, M. D. (2019). Línguas indígenas e gramática universal Contexto.
  • Marx, K. (2013 [1867]). O capital: crítica da economia política Boitempo Editorial.
  • Mehinaku, M. (2010). Tetsualü: pluralismo de línguas e pessoas no Alto Xingu [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese:mehinaku-2010/mehinaku_2010.pdf
    » https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese:mehinaku-2010/mehinaku_2010.pdf
  • Sá, T. B. (2021). Esboço de uma topogramática alto-xinguana: reflexões em torno de chefes, aldeias e dêiticos espaço-temporais em Kuikuro [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro].
  • Santos, G. M. F. (2007). Morfologia Kuikuro: gerando nomes e verbos [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://amerindias.github.io/referencias/san07kuikuro.pdf
    » https://amerindias.github.io/referencias/san07kuikuro.pdf
  • Santos, G. M. F. (2008). As classes morfológicas flexionais da língua Kuikuro. Revista LIAMES, 8(1), 105-120. https://doi.org/10.20396/liames.v8i1.1474
    » https://doi.org/10.20396/liames.v8i1.1474
  • Silva, G. R., & Franchetto, B. (2011). Prosodic distinctions between the varieties of the Upper Xingu Carib language: Results of an acoustic analysis. Amerindia, (35), 41-52.

Editado por

Responsabilidade editorial: Hein van der Voort

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2022
  • Aceito
    08 Set 2023
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação, Av. Perimetral. 1901 - Terra Firme, 66077-830 - Belém - PA, Tel.: (55 91) 3075-6186 - Belém - PA - Brazil
E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br