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Respeitando diversidades, adiamos o fim do mundo

Krenak, A. 2019. Ideias para adiar o fim do mundo. 1 ed.São Paulo: Companhia das Letras,

Krenak, A. (2019)Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo (1 ed.). São Paulo: Companhia das Letras.. Ideias para adiar o fim do mundo (1 ed.). São Paulo: Companhia das Letras.

Ailton Krenak é um filósofo, escritor, jornalista e liderança indígena. Iniciou seu ativismo na década de 1970 e foi um importante ator na conquista do “Capítulo dos índios”, na Constituição Federal Brasileira de 1988Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (18 ed.). (1988). São Paulo: Saraiva. – instrumento legislativo que passou a garantir os direitos indígenas à cultura autóctone e à terra. Isso porque, em 1987, Krenak fez um pronunciamento na Assembleia Constituinte de Brasília que comoveu a opinião pública, ao pintar seu rosto de preto com pasta de jenipapo, em sinal de luto pelo retrocesso na tramitação dos direitos indígenas.

Krenak deu continuidade ao seu ativismo e, ancorado em sua oratória afiada, carismática e instigadora, discursou em diversos eventos mundo afora e teve algumas de suas palestras transformadas em livros. É o caso do “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019) – cujo título foi inspirado em uma atividade ministrada por ele no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. O livro possui três capítulos: os dois primeiros correspondem a duas palestras e o terceiro a uma entrevista, todas realizadas em Portugal, entre os anos de 2017 e 2019. Por se tratar de transcrições de falas de Krenak, é uma obra extremamente fluida – daquelas que se pode ler inteira de uma só vez. Contudo, as discussões trazidas por Krenak são densas e ancoradas em diversos teóricos e pensadores – no decorrer do livro, são citados B. S. Santos (2007)Santos, B. S. (2007). Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos Cebrap, (79), 71-94. doi: https://doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004
https://doi.org/10.1590/S0101-3300200700...
, Galeano (2010)Galeano, E. (2010). As veias abertas da América Latina. São Paulo: L&PM. e Viveiros de Castro (2017)Viveiros de Castro, E. (2017). A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu., por exemplo.

A ideia de fim do mundo, para o autor, foge das narrativas catastróficas do apocalipse global, mas a traz para uma ótica mais palpável, quando a associa aos desastres que provocam caos social. Para alguns povos ameríndios que morreram com as epidemias trazidas pelos invasores europeus, o fim do mundo foi no século XVI. Para a contemporaneidade, o fim do mundo é uma condenação precedida pelos elementos que caracterizam o Antropoceno, como a manutenção de desigualdades, das injustiças estruturais e a exploração da natureza.

Para falar sobre esse fim do mundo, no primeiro capítulo, o autor discute sobre uma homogeneização da humanidade e traz reflexões sobre o consumo e críticas às instituições e ao mito da sustentabilidade – temas continuados nos outros dois capítulos. A segunda parte traz a relação do Estado brasileiro com as sociedades indígenas, enquanto a terceira aprofunda críticas ao Antropoceno. A principal mensagem do livro, e que permeia os três capítulos, é a ideia de que a humanidade não pode ser separada da natureza.

O livro inicia com reflexões pessoais de Krenak com relação à sua visita a Portugal – país que, até então, resistia em visitar, devido ao histórico da colonização. O autor relata que sua primeira ida a este país foi acompanhada pelo seu desconforto em participar de festas ‘tipicamente portuguesas’, como aquelas que celebram o aniversário da invasão portuguesa às Américas. Ancorado nesse desconforto, o autor critica a premissa que guiou essas invasões – aquela que assume que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para o seio da civilização.

Atualmente, essa humanidade esclarecida é a sociedade globalizada que, para Krenak, é caracterizada pela ânsia em consumir as subjetividades a partir de uma narrativa globalizante que associa bem-estar ao modelo de progresso. Assim, na sociedade globalizada são anuladas as pluralidades dos modos de vida das mais diversas sociedades humanas, pois a narrativa compreende apenas uma perspectiva de existência humana, ou seja, uma forma correta de viver.

Essa perspectiva, por sua vez, é baseada em experiências projetadas na mercadoria. Há, portanto, uma íntima relação entre as experiências de vida dessa sociedade e o consumo. Para explicar esse ponto, o autor parafraseia o pajé Davi Kopenawa Yanomami (Kopenawa e Albert, 2015Kopenawa, D., & Albert, B. (2015). A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras.):

. . . o mundo acredita que tudo é mercadoria, a ponto de projetar nela tudo o que somos capazes de experimentar. A experiência das pessoas em diferentes lugares do mundo se projeta na mercadoria, significando que ela é tudo o que está fora de nós . . .

(Krenak, 2019Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo (1 ed.). São Paulo: Companhia das Letras., p. 45).

A sustentação de um modelo de sociedade que baseia suas relações no consumo é possibilitada pela dupla exploração sociedade-natureza. Com relação à sociedade, fala sobre a exploração da força de trabalho da maioria subalterna, que foi expulsa de suas terras para viver em periferias e virar mão de obra nos centros urbanos. Com relação à natureza, fala sobre a ganância das corporações em consumir florestas, montanhas e rios para produzir bens que gerem lucro.

A dupla exploração é aceita na sociedade globalizada porque, se a experiência social se resume à mercadoria, o consumo tomou o lugar das relações sociais e da cidadania. Ou, nas palavras de Krenak (2019, p. 25) “. . . para que ter cidadania, alteridade, estar no mundo de maneira crítica e consciente, se você pode ser um consumidor? Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido . . .”.

Embora não chegue a citá-lo, a teoria de Krenak encontra M.Santos (2007)Santos, M. (2007). O espaço do cidadão (7 ed.). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.. Isso porque ambos os autores colocam que o processo de produção e reprodução capitalista transformou o indivíduo em consumidor, ao invés de transformá-lo em cidadão. Nesse sentido, são esvaziadas as relações e o próprio sentido de viver em sociedade – ideia que pode ser estendida à teoria do fetichismo da mercadoria de Marx (1988)Marx, K. (1988). O capital (3 ed.). São Paulo: Nova Cultural., segundo o qual as relações sociais envolvidas na produção e no consumo não são vistas como relações entre pessoas, mas como relações entre o dinheiro e o produto.

Especificamente em relação à exploração da natureza, o autor coloca que, para torná-la aceitável, as instituições da sociedade globalizad>a inventaram o conceito de sustentabilidade. Aqui, o autor lança uma crítica às práticas sustentáveis reducionistas e ao papel das instituições na promoção da sustentabilidade. O livro deixa claro que, mais do que incentivar o greenwashing1 1 Greenwashing é um termo em inglês que indica a apropriação do discurso (mas não da prática) ambientalmente sustentável por organizações, mediante o uso de técnicas de marketing e relações públicas. das corporações e salvaguardar ‘amostras grátis’ da natureza, um futuro sustentável demanda um novo modelo de sociedade – modelo este que compreende a diversidade dos povos, restabelece as relações sociais e integra a humanidade à natureza.

A segunda parte do livro também inicia com reflexões pessoais. Krenak (2019)Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo (1 ed.). São Paulo: Companhia das Letras. fala sobre a terra indígena Krenak e a distinta visão desse povo e das corporações sobre a natureza. Para isso, fala do rio Doce – que, para eles, é um avô; para as corporações, um recurso a ser dominado e usado conforme as necessidades da reprodução de capital. Foi essa despersonalização do rio que permitiu que ele virasse um receptáculo de resíduos tóxicos em novembro de 2015 – quando houve o rompimento da barragem de resíduos tóxicos de uma mineradora. Esse crime ambiental, que desencadeou efeitos em longo prazo sobre a aldeia Krenak, ilustra uma das práticas que promoveram mudanças nos modos de vida tradicionais da aldeia.

O exemplo do povo Krenak é estendido para falar sobre as inúmeras práticas que promoveram mudanças nos modos de vida dos povos indígenas e que intensificaram a tensão nas relações políticas entre esses povos e o Estado brasileiro. Essa tensão surge com a busca do Estado pela integração dos povos indígenas ao conjunto da sociedade brasileira e se segue com a letargia do Estado em cumprir seu dever constitucional de assegurar o direito à terra e à cultura autóctone.

Diante disso, cabe aos povos indígenas disputarem as terras que podem garantir as condições para a continuidade dos seus respectivos modos de vida nos lugares onde a natureza ainda não foi transformada em recurso para a produção de mercadorias. Para o autor, a letargia do Estado em demarcar essas terras é justificada pelo contraponto dos modos de vida dos povos indígenas às condições que baseiam o projeto civilizatório de exaustão da natureza e que deu origem a uma nova era geológica, o Antropoceno.

Reflexões sobre essa era são aprofundadas na terceira e última parte do livro. O Antropoceno é uma era marcada pelas modificações das condições climáticas, biológicas e geológicas do planeta devido aos impactos gerados pelas atividades humanas. Para Krenak (2019)Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo (1 ed.). São Paulo: Companhia das Letras., são marcas desse novo período o caos social, bem como a perda de qualidade no cotidiano e nas relações. Essas marcas são resultados dos processos anteriormente colocados. O caos social é resultado da manutenção das desigualdades e da exploração da sociedade. A perda de qualidade no cotidiano vem do desrespeito à diversidade – ao não serem respeitadas as formas de organização que não estão integradas ao mundo da mercadoria, são postas em risco todas as outras formas de viver. A perda de qualidade nas relações, por sua vez, resulta da modificação das relações dos humanos entre si (transformadas em relações mercantis) e da humanidade com a natureza (transformadas em uma relação de exploração).

Os três capítulos colocam as críticas de Krenak (2019)Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo (1 ed.). São Paulo: Companhia das Letras. ao modelo globalizado da sociedade, às corporações, às instituições e à sustentabilidade. Diante de tão incisivas críticas, o livro parece assumir um tom pessimista. No entanto, entre seus afiados questionamentos, Krenak (2019)Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo (1 ed.). São Paulo: Companhia das Letras. coloca elementos que, mais do que suavizar o pessimismo, traz certo otimismo ao leitor. Frente à difícil tarefa de modificar um modelo consolidado da sociedade globalizada, o autor afirma que modificações no cotidiano e nas ocupações diárias podem ser voltadas para o restabelecimento das relações sociais e com a natureza. Perceber as próprias subjetividades e os problemas da homogeneização da humanidade nos permite adiar o fim do mundo – assim como fizeram os povos indígenas quando, para sobreviver, se viram obrigados a expandir suas respectivas subjetividades.

O livro tem os numerosos méritos que foram anteriormente descritos: é fluido, traz discussões densas, questionamentos e problematizações importantes ao leitor. O título é criativo e chama atenção – o que, provavelmente, contribuiu para que o livro tenha sido um dos três títulos mais vendidos no ano de 2019. Entretanto, se o fato de ser um compilado de palestras traz à obra o mérito da fluidez, também mostra um demérito de ter discussões tão densas resumidas em poucas linhas. Além disso, por serem três diferentes falas de Krenak (2019)Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo (1 ed.). São Paulo: Companhia das Letras., os temas se repetem e as colocações sobre eles estão divididas no decorrer do livro. Para ter uma visão geral do autor sobre determinado assunto, é necessário buscar seus argumentos seccionados entre os três capítulos – o que não é um grande problema, por serem capítulos curtos.

Este livro pode interessar a ambientalistas, estudiosos voltados às temáticas relacionadas à sustentabilidade, aos povos indígenas e à sociedade globalizada, mas também é interessante aos não especialistas, pois trata-se de uma leitura rápida, fácil e necessária.

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    Greenwashing é um termo em inglês que indica a apropriação do discurso (mas não da prática) ambientalmente sustentável por organizações, mediante o uso de técnicas de marketing e relações públicas.
  • Santos, A. A. (2020). Respeitando diversidades, adiamos o fim do mundo. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 15(3), e20200042. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2020-0042

REFERÊNCIAS

  • Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (18 ed.). (1988). São Paulo: Saraiva.
  • Galeano, E. (2010). As veias abertas da América Latina São Paulo: L&PM.
  • Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo (1 ed.). São Paulo: Companhia das Letras.
  • Kopenawa, D., & Albert, B. (2015). A queda do céu: palavras de um xamã yanomami São Paulo: Companhia das Letras.
  • Marx, K. (1988). O capital (3 ed.). São Paulo: Nova Cultural.
  • Santos, M. (2007). O espaço do cidadão (7 ed.). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
  • Santos, B. S. (2007). Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos Cebrap, (79), 71-94. doi: https://doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004
    » https://doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004
  • Viveiros de Castro, E. (2017). A inconstância da alma selvagem São Paulo: Ubu.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    21 Abr 2020
  • Aceito
    06 Jul 2020
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