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Tempo distribuído e pragmática do presente entre os Wauja do Alto Xingu

Distributed tense and pragmatics of the present in Wauja (Xingu Arawak)

Resumo

Neste artigo, discute-se referência temporal em línguas sem tempo gramatical, aqui descritas como ‘línguas de tempo distribuído’. Propõe-se que tal característica motiva falantes a elaborar o ‘tempo’ e suas qualidades de forma sofisticada e pragmática. A partir de dados linguísticos, etnográficos e etnoarqueológicos, coletados nas aldeias e em expedições de mapeamento etnohistórico entre os Wauja do Alto Xingu, sustenta-se o argumento de que o presente, à semelhança da paisagem arqueológica, é entendido e representado pelos Wauja como a intersecção de múltiplos planos temporais e escalas de duração. Analisam-se eventos de nomeação e discursos produzidos em contextos de interação com lugares históricos como constitutivos dos modos de temporalização Wauja e de suas disposições temporais. Em foco estão as relações dos Wauja com suas paisagens e como estas reproduzem um campo temporal mediado por ‘cronotopos’ discursivos, configurações espaço-temporais que compõem presentes dinâmicos e dotados de profundidade temporal. Nesta perspectiva, língua e materialidade coproduzem percepções de continuidade e mudança, constituindo um presente densamente multitemporal.

Palavras-chave
Tempo gramatical; Indexicalidade temporal; Cronotopo; Multitemporalidade

Abstract

This paper advances a critical discussion on time reference in ‘tenseless’ languages, here described as ‘distributed tense languages,’ and suggests that speakers of these languages may expand upon and elaborate the multiple qualities of time in pragmatic and sophisticated ways. Drawing on Upper-Xinguan Wauja linguistic, ethnographic, and ethnoarchaeological data collected in local villages and during mapping expeditions, the authors argue that much like the archaeological landscape, the present is understood and represented by the Wauja people as a temporally dense intersection of multiple times and durations. Speech events of place-naming and discourses produced in interactions with ethnohistorical sites are analyzed as constituting Wauja modes of temporalization and orientations to time. The goal is to demonstrate how these people’s interactional engagement with their landscapes continually reproduces a densely mediated temporal field of discursive ‘chronotopes,’ spatiotemporal envelopes that combine to make up dynamic and deep presents. From this viewpoint, language and materiality contribute to perceptions of change and continuity that together form a present that is densely multitemporal.

Keywords
Tense; Time indexicality; Chronotope; Multi-temporality

Multiplicidade é um tema recorrente na etnologia amazônica; multiplicidade de seres, de corpos, de egos e de perspectivas. Multiplicidade, como tal, está em todo o lado na Amazônia, e tem recebido a devida atenção. Tome-se como exemplo disso a ascendência do multinaturalismo de Viveiros de Castro (2004)Viveiros de Castro, E. (2004). Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. O que nos faz Pensar, 14(18), 225-254. https://grupodeestudosdeleuze.files.wordpress.com/2016/10/82791467-eduardo-viveiros-de-castro-perspectivismo-e-multinaturalismo-na-america-indigena.pdf
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e de Descola (2006)Descola, P. (2006). Beyond nature and culture. Proceedings-British Academy, 139, 137-155. https://www.thebritishacademy.ac.uk/documents/2029/pba139p137.pdf
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. Igualmente recorrente é a noção de presente, em especial no contexto de discussões críticas sobre o chamado ‘presentismo etnográfico’ patente em abordagens clássicas da etnografia. Esse termo se refere à descrição sincrônica, como se fosse ‘fora do tempo’ (Thomas, 1996Thomas, N. (1996 [1989]). Out of time: history and evolution in anthropological discourse. University of Michigan Press. [1989]; Fabian, 2014Fabian, J. (2014 [2002]). Time and the other: How anthropology makes its object, with a new postscript by the author. Columbia University Press. [2002]; Birth, 2017Birth, K. (2017). Time blind: problems in perceiving other temporalities. Springer.), mas também a uma percepção equivocada de que as sociedades amazônicas habitam um tempo ‘raso’, como se fossem envoltas por uma temporalidade orientada para o presente (vejam-se discussões críticas de tal leitura em Hill, 1988Hill, J. D. (1988). Rethinking history and myth: indigenous South American perspectives on the past. University of Illinois Press.; Fausto & Heckenberger, 2007bFausto, C., & Heckenberger, M. (2007b). Indigenous history and the history of the Indians. In M. Heckenberger & C. Fausto (Eds.), Time and memory in indigenous Amazonia. Anthropological perspectives (pp. 1-43). The University Press of Florida.; entre outros). Para o leitor incauto de obras da etnologia clássica, a capacidade das sociedades amazônicas para a multiplicidade pode parecer não se aplicar à temporalidade, por exemplo, quando citadas como sociedades ‘sem’ história ou como falantes de línguas que ‘carecem’ de tempo gramatical (‘tenseless languages’).

Em proposição neste artigo está a ideia de que a multiplicidade que caracteriza a existência (distribuída espacialmente no mundo fenomenal) é uma imagem útil para se entender a temporalidade, ou melhor, as temporalidades amazônicas. Não se quer aqui dizer que o ‘tempo’ e suas múltiplas facetas tenham sido ignorados ou tratados de forma monolítica pela Antropologia amazônica. Pelo contrário, o campo é marcado por questões fundacionais e debates voltados ao caráter peculiar da relação um tanto ambígua que os povos amazônicos estabelecem com a passagem do tempo. Remetendo aos estudos onde a pluralidade de tempos vem recebendo atenção, observa-se um idioma comum que distingue tempo ‘mítico’ e tempo ‘histórico’ (Lévi-Strauss, 1963Lévi-Strauss, C. (1963). Introduction: history and anthropology. Structural anthropology. Basic Books., 1971Lévi-Strauss, C. (1971). Le temps du mythe. Annales. Histoire, Sciences Sociales, 26(3-4), 533-540. https://doi.org/10.3406/ahess.1971.422428
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; Turner, 1998Turner, T. (1998). History, myth, and social consciousness among the Kayapo of Central Brazil. In J. Hill (Ed.), Rethinking history and myth (pp. 195-213). University of Illinois Press.; Fausto & Heckenberger, 2007aFausto, C., & Heckenberger, M. (2007a). Time and memory in indigenous Amazonia: anthropological perspectives. University Press of Florida.; Franchetto & Santos, 2009Franchetto, B., & Santos, M. (2009). Tempo nominal em Kuikuro (Karib alto-xinguano). Revista Virtual de Estudos da Linguagem-ReVEL: Estudos Linguísticos de Línguas Indígenas Brasileiras, (3), 1-16. http://www.revel.inf.br/files/artigos/revel_especial_3_tempo_nominal_em_kuikuro.pdf
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; Franchetto, 2011Franchetto, B. (2011). Alto Xingu: uma sociedade multilíngue. Museu do Índio/FUNAI.; entre outros). Neste artigo, mantém-se o foco nessa distinção como ponto de partida.

Argumenta-se que, independentemente de como vem sendo articulada por diferentes autores, a distinção entre ‘mito’ e ‘história’ reflete uma divisão nativa entre ontologias: realidades fundamentalmente distintas e com distintas condições de existência, que são ordenadas em um ‘antes’ e um ‘depois’. O que importa aqui enfatizar é que, não obstante essa ordenação, ‘mito’ e ‘história’ se interpenetram, parecendo, com frequência, acontecer ‘ao mesmo tempo’. Por exemplo, quando uma figura mítica, situação ou tema se faz presente no agora.

Se a ontologia histórica na Amazônia é caracterizada por multiplicidades – de línguas, de povos, de historicidades –, então, essas multiplicidades se encontram aninhadas dentro de seu próprio sistema (mínimo) de contraste com um tempo mítico relativamente ‘não múltiplo’ quando os seres eram indiferenciados (ou, ao menos, não diferenciados em seus corpos e afetos, como os conhecemos hoje; Viveiros de Castro, 1996Viveiros de Castro, E. (1996). Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana, 2(2), 115-144. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200005
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). Assim, o tempo amazônico tem sua própria multiplicidade; uma multiplicidade no mínimo dual.

Busca-se colocar ‘mito’ e ‘história’ – aqui entendidos como conceitos da etnologia amazônica sobre multiplicidade temporal – em diálogo com perspectivas teóricas da antropologia linguística sobre referência temporal. Equacionam-se, em específico, os conceitos de cronotopo (‘chronotope’) da semiótica (Bakhtin, 2010Bakhtin, M. (2010). Forms of time and of the Chronotope in the novel. In M. Holquist (Ed.), The dialogic imagination (pp. 84-259). University of Texas Press.) e de ‘espacialização do tempo’ da relatividade linguística whorfiana, bem como a categoria dêitica linguística estrutural de tempo (tense) (Whorf, 1956Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. [1939]).

Sugere-se que a atenção dedicada à teorização do presente em estudos fundacionais da etnologia amazônica, como as “Mythologiques” (1964 a 1971) e a “Antropologia estrutural”, de Lévi-Strauss (1974)Lévi-Strauss, C. (1974). Structural anthropology. Persona & Derecho, 1, 571., não é totalmente equivocada. No entanto, a razão pela qual o momento presente é tão significativo na Amazônia se deve à sua pluralidade, ou seja, à saliência de múltiplos planos temporais e durações que se intersectam constituindo o ‘agora’. Procura-se, neste artigo, demonstrar como essa saliência se manifesta no discurso e na prática etnográfica entre os Wauja do Alto Xingu, em especial no que diz respeito à sua relação com a paisagem histórica.

Para tanto, combinam-se dados e observações reunidas no âmbito dos projetos de pesquisa dos dois autores. Embora distintos, os projetos em curso se relacionam em pontos-chave, como a atenção ao uso da linguagem em contextos de interação em/com lugares etno-históricos e o registro de narrativas e discursos sobre o território tradicional Wauja. A pesquisa de Christopher Ball inclui um foco na prática linguística no contexto de rituais xamânicos e comunitários, bem como no contexto de projetos de desenvolvimento na região. Sua pesquisa atual analisa narrativas históricas associadas a lugares na paisagem fluvial. O autor explora eventos de nomeação e de contação de histórias como modos de estabelecer e expressar pertencimento, usualmente com referência ao passado e ao futuro do espaço territorializado. O projeto de Patrícia Rodrigues-Niu explora interações dos Wauja com a paisagem histórica e antropogênica, debruçando-se sobre práticas etnográficas, linguísticas, etnoarqueológicas e paisagísticas, com enfoque em relações e expressões de posse e cuidado entre humanos e entre humanos e não humanos que emanam dessas práticas. No âmbito dessa investigação, questiona-se como o uso atual de espaços e recursos é percebido e discursivamente representado pelos Wauja como estando em sintonia (ou dessintonia) com os múltiplos tempos de uma paisagem plenamente histórica e ontologicamente plural.

O presente artigo se divide em duas partes: a primeira trata das línguas de tempo distribuído e a segunda da pragmática do presente entre os Wauja do Alto Xingu. Na primeira parte, avançam-se dados e leituras predominantemente baseados na experiência linguística e etnográfica de Christopher Ball junto aos Wauja e discorre-se sobre os fundamentos teóricos da presente discussão. Na segunda, discutem-se excertos de entrevistas e eventos de narração e ensaiam-se propostas interpretativas predominantemente informadas pelas pesquisas recentes de Patrícia Rodrigues-Niu.

PARTE I: LÍNGUAS DE TEMPO DISTRIBUÍDO

REFERÊNCIA TEMPORAL EM WAUJA

Nesta seção, discutem-se modos de referência temporal na língua Wauja (Arawak Xinguano). Em destaque está a categoria linguística de ‘aspecto’, recorrente na língua Wauja, em contraposição com a categoria de tempo gramatical (tense), também presente nas línguas europeias. Chama-se a atenção para a forma como o aspecto, em combinação com outras categorias linguísticas (como modo, evidencialidade etc.), incentiva os falantes da língua Wauja a caracterizar o tempo em termos do desenrolar de eventos e sua relação interna, ao invés de depender da ‘localização’ de acontecimentos numa linha de tempo dividida entre ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’.

Como explicado por Comrie (1976, p. 6, tradução nossa)Comrie, B. (1976). Aspect. Cambridge University Press., “aspecto tipicamente se refere à estrutura interna de uma situação”, caracterizando situações como em curso, recorrentes, finalizadas etc. Na língua Wauja, os marcadores aspectuais mais frequentes são o perfectivo e o imperfectivo, seguidas do habitual e progressivo. Ressaltam-se, aqui, as formas perfectiva -wiu e imperfectiva -pai.

(1) Awojopai   Awojo-pai   3.ser bom-impf   “É/estar bom”
(2) Awojowiu   Awojo-wiu   3.ser bom-pftv   “Já ficou bom” [“era/estava bom”]

Os exemplos acima exemplificam o contraste entre evento/estado em curso, ou incompleto, indicado pelo imperfectivo -pai, versus o evento concluído, ou completo, indicado pelo perfectivo -wiu. Apesar dessas formas poderem ser traduzidas em português com morfologias de tempo verbal (que dependem da localização do evento em relação a um ponto de referência temporal externo à situação), na língua Wauja, o que é codificado é o decorrer do evento – no sentido de um ‘ser bom - em curso/incompleto’ versus um ‘ser bom – concluído/completo’. Em alguns casos, a diferença entre imperfectivo e perfectivo pode acarretar acentuadas diferenças semânticas. Por exemplo, o verbo Wauja akama diz respeito ao ato da morte. A adição do perfectivo -wiu - (‘completo/concluído’) – indica o fato da morte, enquanto a adição do imperfectivo -pai – (‘incompleto/em curso’) – indica um processo comumente entendido pelos Wauja como um estado de doença cujo possível resultado é a morte ou ‘morte em curso’ (veja-se exemplos 3 e 4).

(3) akamawiu   akama-wiu   3.morrer-pftv   “Ele morreu”
(4) akamapai   akama-pai   3.morrer-impf   “Ele está morrendo” [“Ele está doente”]

Marcadores de modo (mood) são também utilizados na denotação temporal, como a forma modal -we (exemplo 5), frequentemente usada para indicar futuridade. No entanto, esta forma modal também não é rigorosamente um morfema de tempo futuro. O morfema -we indica irrealis e/ou intencionalidade, eventos que (ainda) não existem, mas que são esperados ou desejados, gerando leituras relacionadas a futuridade em muitos contextos de fala.

(5) niyawe   n-iya-we   1-ir-irr   “Eu irei”

Estes breves exemplos ilustram como, apesar de a língua Wauja não fazer uso de morfologias explicitamente identificáveis, como de tempo gramatical (tense), esta não carece de soluções linguísticas para expressar o decorrer do tempo e sua diacronia. Facundes (2015, p. 138)Facundes, S. (2015). Negation is Apurina (Arawak). In L. Michael & T. Granadillo (Eds.), Negation in Arawak languages (pp. 121-146). Brill. documenta uma situação similar na língua Apurinã, do sudeste amazônico. Note-se que as línguas Wauja e Apurinã são línguas Arawak do tronco Sudoeste.

There is no specialized morphological marker for present or past tense, and -ku can only be used with future events. Such facts make it tempting to think that the real opposition in the language is not one of future versus non-future tense, but one of realis versus irrealis

(Facundes, 2015Facundes, S. (2015). Negation is Apurina (Arawak). In L. Michael & T. Granadillo (Eds.), Negation in Arawak languages (pp. 121-146). Brill., p. 138).

Facundes (2015)Facundes, S. (2015). Negation is Apurina (Arawak). In L. Michael & T. Granadillo (Eds.), Negation in Arawak languages (pp. 121-146). Brill. explica que a língua Apurinã caracteriza a temporalidade de eventos através do uso de aspecto e modo, mas não de tempo gramatical (tense). Isto é, tal como na língua Wauja, não existe distinção gramatical de tempo (tense) passado e presente, diferença que é indicada pelo contraste aspectual. Sugere-se também não existir distinção gramatical de tempo (tense) presente e futuro, diferença que é indicada pelo contraste modal entre realis e irrealis: uma oposição entre o que é atual e o que é não atual.

DÊIXIS E INDEXICALIDADE TEMPORAL

A variedade de sistemas de referência temporal é uma realidade insuficientemente estudada. Um dos primeiros e mais impactantes estudos a respeito remonta a 1956, quando Benjamin L. Whorf publica “The relation of habitual thought and behavior to language”, que oferece uma descrição de referência temporal na língua Hopi (Uto-Azteca do sudoeste norte-americano). Chave na análise de Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. é, entre outras, a observação de que a língua Hopi não tem a categoria gramatical de tempo (tense). ‘Tense’, ou tempo gramatical, é uma categoria linguística formal que ‘localiza’ eventos no tempo em relação a um ponto de referência, por exemplo, o momento da fala, ao mesmo tempo que codifica a descrição narrativa de acontecimentos deslocados espaço-temporalmente em relação a esse momento (Comrie, 1985Comrie, B. (1985). Tense. Cambridge University Press.).

Comrie (1985, p. 14, tradução nossa) explica que:

Um sistema que relaciona entidades a um ponto de referência é denominado de dêitico e logo pode-se afirmar que o tempo gramatical é dêitico. Em contraste, aspecto é não dêitico, pois a discussão da constituição temporal interna de uma situação é independente da sua relação com qualquer outro marcador temporal.

O sentido de sinais dêiticos é dependente da ‘fonte’, ‘ponto de origem’ ou ‘origo’ dêitico (Jakobson, 1971Jakobson, R. (1971). Shifters, verbal categories, and the Russian verb. In Autor, Selected writings (Vol. 2, pp. 41-58). Mouton.). Por exemplo, no caso dos pronomes pessoais, isto significa que o sentido de ‘eu’ ou ‘você’ depende de quem está falando e a quem está sendo endereçado (Benveniste, 1971Benveniste, E. (1971). The nature of pronouns: problems in general linguistics. University of Miami Press.). No caso do tempo gramatical (tense), o sentido depende do tempo usado como ponto de referência, frequentemente o evento de fala – o ‘aqui e agora’ da fala como interação.

Assim, todo o dêitico é indéxico, pois significa o que significa por virtude de uma conexão ao contexto de uso (quem disser ‘eu’ num evento de fala em português assume o papel de orador). A dêixis – como no caso dos pronomes pessoais e do tempo gramatical – constitui um exemplo claro de como aspectos pragmáticos da língua em contextos de uso são incorporados na própria codificação do sistema semântico de sentido. Porém, grande parte da indexicalidade linguística é não dêitica. Além disso, todas as línguas humanas fazem uso prolífico de sinalização indexical, entendida de forma mais ampla, inclusive para expressar temporalidade.

Línguas sem tempo dêitico/gramatical vêm sendo denominadas de ‘tenseless’ e, não raro, caracterizadas como ‘carecendo’ de meios de referência temporal. No entanto, como exemplificado pelas línguas arawak Wauja e Apurinã, indexicalidade temporal não depende de dêixis e pode manifestar-se, por exemplo, através do uso de marcadores aspectuais e modais em combinação com múltiplos outros sinais que remetem para sentidos contextuais e aspectos pragmáticos da língua.

Seguindo-se a sugestão de Franchetto (2021)Franchetto, B. (2021). Arqueologia e Linguística do Alto Xingu: pesquisas recentes [Comunicação oral]. Workshop de Antropologia, online., ensaia-se a aplicação do conceito de ‘línguas de tempo distribuído’, ou ‘distributed tense languages’, como substituto à expressão negativa ‘tenseless languages’, ou ‘línguas sem tempo gramatical’. A partir da análise do caso Wauja, visa-se sublinhar que línguas usam o tempo gramatical (tempo dêitico ou ‘tense’), não limitam a expressão temporal de seus falantes. Suporta-se o argumento teórico de que a indexicalidade temporal se encontra necessariamente manifesta no discurso – constituindo um aspecto universal da linguagem humana –, no entanto, se apresenta de diferentes formas em diferentes línguas. Por exemplo, em morfologias de tempo dêitico (tense) em algumas línguas, e mais pragmaticamente (ou contextualmente) em outras, por exemplo, através de combinações de categorias não dêiticas, como aspecto e modo, entre outras.

A noção de ‘línguas de tempo distribuído’ (‘distributed tense languages’) se apoia, portanto, na ideia de que línguas que não codificam referência temporal através de dêixis (ou tempo dêitico/gramatical) proporcionam aos seus falantes outras formas de desenvolver padrões gramaticais e discursivos que conduzem a inferências temporais equivalentes, porém diferentes da marcação de tense.

ESPACIALIZAÇÃO DO TEMPO E OS TEMAS ESTATIVOS

Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. descreveu tal situação para a língua Hopi, em contraste com o que ele apelidou de “Standard Average European languages”, doravante SAE (glosadas como línguas europeias de padrão mediano). Leituras redutoras de seu trabalho vêm, no entanto, gerando análises problemáticas que associam ‘tenselessness’ a uma certa inaptidão temporal de certas línguas (e seus falantes). O trabalho de Daniel L. Everett é um exemplo notável disso. Everett (2005Everett, D. L. (2005). Cultural constraints on grammar and cognition in Pirahã: another look at the design features of human language. Current Anthropology, 46(4), 621-646. https://www1.icsi.berkeley.edu/~kay/Everett.CA.Piraha.pdf
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, 2009)Everett, D. L. (2009). Pirahã culture and grammar: a response to some criticisms. Language, 85(2), 405-442. https://www.jstor.org/stable/40492872
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interpreta a ausência de tempo gramatical na língua Pirahã, do nordeste amazônico, como indício de uma simplicidade cognitiva e cultural. O argumento se combina com proposições mais esotéricas sobre uma suposta falta de mecanismos formais de imbuir as narrativas de temporalidade para se alegar que falantes de Pirahã se encontram cognitiva e culturalmente restritos a uma temporalidade rasa e um presentismo simplista. Ou seja, a partir da ausência de tempo gramatical, Everett (2005Everett, D. L. (2005). Cultural constraints on grammar and cognition in Pirahã: another look at the design features of human language. Current Anthropology, 46(4), 621-646. https://www1.icsi.berkeley.edu/~kay/Everett.CA.Piraha.pdf
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, 2009)Everett, D. L. (2009). Pirahã culture and grammar: a response to some criticisms. Language, 85(2), 405-442. https://www.jstor.org/stable/40492872
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infere uma espécie de incapacidade dos falantes de Pirahã com respeito à percepção temporal diacrônica e com respeito a conceitos culturais de tempo ‘mais complexos’.

Pese embora o teor, no mínimo bizarro, e, para todos os efeitos, primitivista, da tese de Everett (2005Everett, D. L. (2005). Cultural constraints on grammar and cognition in Pirahã: another look at the design features of human language. Current Anthropology, 46(4), 621-646. https://www1.icsi.berkeley.edu/~kay/Everett.CA.Piraha.pdf
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, 2009)Everett, D. L. (2009). Pirahã culture and grammar: a response to some criticisms. Language, 85(2), 405-442. https://www.jstor.org/stable/40492872
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, ela não é de todo excepcional e nem mesmo incomum na história do discurso acadêmico sobre a Amazônia. Os argumentos de Everett se imbuem e reiteram velhos estereótipos sobre as sociedades amazônicas como marcadas por ausências e incompletudes (veja-se, a este respeito, a análise crítica avançada por Neves, 2022Neves, E. G. (2022). A incipiência permanente: a Amazônia sob a insistente sina da incompletude. Memória, cultura material e sensibilidade. In Autor, Estudos em homenagem a Pedro Paulo Funari (pp. 203-216). EDUFMA. https://repositorio.usp.br/directbitstream/c0c36175-0f7b-4f86-b676-cc28bdeab1a8/PEGN.194%20-%203075433.pdf
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), notadamente de história, diacronia e temporalidade (veja-se Fausto & Heckenberger, 2007aFausto, C., & Heckenberger, M. (2007a). Time and memory in indigenous Amazonia: anthropological perspectives. University Press of Florida.). O que é relevante para a presente discussão é a lição que a obra proporciona. Apesar de pretender aplicar o ‘princípio de relatividade linguística’, de Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. (cf. Sapir & Swadesh, 1946Sapir, E., & Swadesh, M. (1946). American Indian grammatical categories. Word, 2(2), 103-112. https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/00437956.1946.11659281
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), a abordagem cognitivista de Everett ignora, e inclusive reverte e contradiz, preceitos básicos da proposta analítica e da visão teórica de Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press..

Como se discutirá neste artigo, Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. sugere que Hopi e outras línguas nativas norte-americanas, que não possuem tempo gramatical e estruturas mensurativas similares, simplesmente não exprimem noções temporais em termos de unidades de tempo, enquanto quantidades absolutas organizadas em sequência linear, como é habitual em línguas europeias SAE. O autor demonstra que um dos efeitos conceituais do tempo dêitico (tense), junto com outras características das línguas SAE, como frases mensurativas (exemplo: ‘três copos de água’), é a ‘espacialização do tempo’. Tal termo refere-se a uma operação comparativa através da qual propriedades da esfera de experiência conceitual ‘espaço’ são metaforicamente projetadas sobre a esfera ‘tempo’ (veja-se, também, Shankar & Cavanaugh, 2012Shankar, S., & Cavanaugh, J. R. (2012). Language and materiality in global capitalism. Annual Review of Anthropology, 41, 355-369. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-092611-145811
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, p. 5). Isto significa que o tempo é intuitivamente lido por falantes de SAE como quantificável e mensurável: ‘três dias [de tempo]’. Isto é, como substância sem forma em contentores organizados linearmente e em sequência entre passado-presente-futuro.

Na língua Hopi, ao invés, ênfase é dada à ordem de ocorrência, ou, mais precisamente, de presença, existência, manifestação ou transformação e na complexidade temporal interna dos eventos, conforme percepcionados. Whorf (1956 [1939], p. 201)Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. descreve tal ênfase como uma consciência: “[na] awareness of time” marcada pela sensação subjetiva “of ‘becoming later and later’”. Com efeito, padrões similares são observados em muitas línguas amazônicas. Considere-se, por exemplo, a análise comparativa entre Huni Kuĩ (Pano do nordeste amazônico) e as línguas Tupi alto-xinguanas Aweti e Kamaiurá, feita por Vera Sinha (2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia., 2019)Sinha, V. S. (2019). Event-based time in three indigenous Amazonian and Xinguan cultures and languages. Frontiers in Psychology, 10, 1-21. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2019.00454
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. Em sua dissertação de doutorado, Sinha (2018)Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia. argumenta que, nas línguas Tupi e Pano, o que é gramaticalizado, através de combinações de aspecto, modo e evidencialidade, não é “tempo como tal”, mas “state of being” (estados de ser/estar). A noção de ‘estados de ser/estar’, ou ‘temas estativos’, foi primeiro introduzida no estudo da língua Aweti, por Monserrat (1976Monserrat, R. M. F. (1976). Prefixos pessoais em Aweti. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional.; veja-se, também, Drude, 2008Drude, S. (2008). Tense, aspect and mood in Awetí verb-paradigms: analytic and synthetic forms. In K. D. Harrison, D. S. Rood & A. Dwyer (Eds.), Typological studies in language (pp. 67-110). John Benjamins Publishing Company. https://doi.org/10.1075/tsl.78.04dru
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), para designar a classe de palavras compostas por um nome ou um adjetivo combinado com o prefixo pessoal estativo e sufixo aspectual. Essa classe de palavras foi descrita como “indicating a situation or transitory state of the [subject] which is the focus of the utterance” (Monserrat, 1976Monserrat, R. M. F. (1976). Prefixos pessoais em Aweti. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional., p. 23).

A análise de Sinha (2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia., 2019)Sinha, V. S. (2019). Event-based time in three indigenous Amazonian and Xinguan cultures and languages. Frontiers in Psychology, 10, 1-21. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2019.00454
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é, ao menos parcialmente, coerente com a proposta, aqui desenvolvida, de que a referência temporal em línguas de tempo distribuído se manifesta pragmaticamente (e contextualmente) na fala. Combinações entre aspecto, modo e evidencialidade, em específico, estão atreladas a percepções de conclusão, completude e/ou atualidade de eventos (acontecimentos ou manifestações), ao invés da posição destes ao longo de uma linha de tempo.

Sinha e colegas (2011Sinha, C., Sinha, V. S., Zinken, J., & Sampaio, W. (2011). When time is not space: the social and linguistic construction of time intervals and temporal event relations in an Amazonian culture. Language and Cognition, 3(1), 137-169. https://doi.org/10.1515/langcog.2011.006
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, 2012)Sinha, V. S., Sinha, C., Sampaio, W., & Zinken, J. (2012). Event-based time intervals in an Amazonian culture. In L. Filipovi? & K. M. Jaszczolt (Eds.), Space and time in languages and cultures, language, culture, and cognition (pp. 15-35). John Benjamins Publishing Company. avançam a hipótese de um complexo cultural incluindo famílias linguísticas amazônicas e outras sul-americanas caracterizadas pela preponderância de temas estativos (‘state of being’) e ausência de tempo gramatical. Porém, os autores conectam a ‘falta’ de tempo gramatical a uma ausência ‘de conceptualizações culturais de tempo linear’. O conceito de tempo linear é aí entendido como correspondente a ‘tempo como tal’ (‘time as such’, na expressão dos autores). Se por um lado, a primeira parte da proposição é coerente com a tese original de Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. – de que as categorias dêiticas de tempo gramatical não são um universal linguístico. Por outro lado, a segunda parte da tese se apoia numa leitura cognitivista de Whorf, sustentando que o ‘conceito abstrato de tempo’ não é um universal cognitivo. Reproduz-se, neste contexto, a tese primitivista de Everett (2005Everett, D. L. (2005). Cultural constraints on grammar and cognition in Pirahã: another look at the design features of human language. Current Anthropology, 46(4), 621-646. https://www1.icsi.berkeley.edu/~kay/Everett.CA.Piraha.pdf
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, 2009)Everett, D. L. (2009). Pirahã culture and grammar: a response to some criticisms. Language, 85(2), 405-442. https://www.jstor.org/stable/40492872
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sobre uma suposta inaptidão temporal, neste caso cognitiva, para se conceber ‘tempo’ e diacronia.

HÁBITOS DE FALA E ENQUADRAMENTOS CRONOTÓPICOS

A dissertação de Sinha (2018)Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia. apresenta dados muito relevantes, porém que não sustentam as premissas cognitivistas nas quais a autora baseia a suas conclusões. Premissas essas que não se coadunam com, e inclusive contradizem, a proposta teórica de Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press.. A essência da abordagem de Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. era pragmática, como indicado pela ênfase em hábitos discursivos, denominados de ‘fashions of speaking’, e nos efeitos cumulativos que tais padrões têm no contexto da representação linguística. Para Whorf (1956 [1939]), estes hábitos atravessam o sistema semântico-gramatical e adentram na esfera pragmática da fala em interação. Em sua ubiquidade, estas ‘maneiras de falar’ motivam hábitos de pensamento que, por sua vez, se relacionam dialeticamente com categorias culturais de tempo e espaço. Assim, o argumento de Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. é coerente com abordagens da semiótica pragmática de Charles S. Peirce (1983-2009 [1857-1892])Peirce, C. S. (1983-2009 [1857-1892]). Writings of Charles S. Peirce: a chronological edition (Vol. 1-8). Indiana University Press., bem mais do que com as abordagens cognitivistas desde então adotadas por muitos pesquisadores na área da relatividade linguística (como apontado por Lucy, 1997Lucy, J. A. (1997). Linguistic relativity. Annual Review of Anthropology, 26, 291-312. https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.26.1.291
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; Enfield, 2015Enfield, N. (2015). The utility of meaning. Oxford University Press.; Leavitt, 2015Leavitt, J. (2015). Linguistic relativity: precursors and transformations. In F. Sharifian (Ed.), The Routledge handbook of language and culture (pp. 18-30). Routledge.).

Peirce afirmou que sinais linguísticos facilitam a razão humana, servindo, simultaneamente, como instrumentos de comunicação e meio de cognição (Parmentier, 1985Parmentier, R. J. (1985). Times of the signs: modalities of history and levels of social structure in Belau. Semiotic Mediation: Sociocultural and Psychological Perspectives, 1, 131-154. https://doi.org/10.1016/B978-0-12-491280-9.50012-1
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). De igual forma, Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. propôs que hábitos discursivos dispõem os falantes para certos hábitos de pensamento. Tais disposições ou ‘pensamentos habituais’, na expressão do autor, são mediados, por um lado, pelas possibilidades linguísticas proporcionadas pelas gramáticas de cada língua e, por outro, pelas possibilidades de sentido que emergem na prática (etnográfica e pragmática) da fala em interação. Chave, aqui, são as noções de mediação e disposição, pois conquanto seja razoável supor que línguas possam desafiar, facilitar ou requerer certas operações mentais, elas não impedem maneiras possíveis de se pensar ou mesmo de se expressar todo o tipo de ideias.

A partir de 1979, Michael Silverstein desenvolve essas ideias e as generaliza para o plano macrossocial da ideologia linguística. Sua reformulação, nomeada “principle of linguistic uncertainty” (Silverstein, 2003Silverstein, M. (2003). Indexical order and the dialectics of sociolinguistic life. Language & Communication, 23, 193-229. https://doi.org/10.1016/S0271-5309(03)00013-2
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), parte da sugestão original de Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. de que categorias gramaticais pervasivas e especialmente obrigatórias – como ‘aspecto’, no caso da língua Wauja e de outras línguas amazônicas – orientem a atenção do falante para certos aspectos da experiência. Isto é o que Silverstein (2003)Silverstein, M. (2003). Indexical order and the dialectics of sociolinguistic life. Language & Communication, 23, 193-229. https://doi.org/10.1016/S0271-5309(03)00013-2
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descreve como indexicalidade dentro da gramática, que são estruturas de referência e predicação, tais como léxico temporal baseado em eventos e o uso de marcadores de aspecto, modo e evidencialidade, que orientam falantes e ouvintes para a consciência de certos fenômenos e seu estado de completude.

Segundo Silverstein (1979)Silverstein, M. (1979). Language structure and linguistic ideology. In R. Cline, W. Hanks & C. Hofbauer (Eds.), The elements: a parasession on linguistic units and levels (pp. 193-247). Chicago Linguistic Society., as próprias categorias de referência e predicação de um sistema linguístico são frequentemente indéxicas, na medida em que grupos regimentam regularidades na comunicação de acordo com condições contextuais (sociais e materiais) recorrentes, respondendo a propósitos de efetividade da fala em contextos de uso. Assim, por exemplo, conquanto na língua portuguesa se usam expressões como ‘meio-dia’ e ‘meia-noite’ – como predicados do ‘dia’, como unidade básica de medição do tempo – em Wauja, diz-se kamotejojokã (‘a viragem do Sol’) e mutogakiya (‘escuro por toda a parte’) em referência a eventos celestes atuais. Efeitos performáticos contextuais – como a proeminência do uso de relógios ou de manifestações celestes como base para referência temporal – tendem a ser convencionalizados (ou estabilizados) em estruturas de ‘referência-e-predicação’, entendidas como denotativas de um mundo ‘lá fora’. Tal fenômeno é frequentemente apelidado de ‘naturalização’ ou, mais raramente, de ‘objetificação’ (Keane, 2009Keane, W. (2009). On multiple ontologies and the temporality of things. Material World Blog, 7. https://www.materialworldblog.com/2009/07/on-multiple-ontologies-and-the-temporality-of-things/
https://www.materialworldblog.com/2009/0...
, 2018Keane, W. (2018). On semiotic ideology. Signs and Society, 6(1), 64-87. https://www.journals.uchicago.edu/doi/full/10.1086/695387
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), ‘regimentação’ (Parmentier, 2016Parmentier, R. (2016). Signs and society: Further studies in semiotic anthropology. Indiana University Press.) ou ‘estabilização metapragmática’ (Silverstein, 1979Silverstein, M. (1979). Language structure and linguistic ideology. In R. Cline, W. Hanks & C. Hofbauer (Eds.), The elements: a parasession on linguistic units and levels (pp. 193-247). Chicago Linguistic Society., 2003Silverstein, M. (2003). Indexical order and the dialectics of sociolinguistic life. Language & Communication, 23, 193-229. https://doi.org/10.1016/S0271-5309(03)00013-2
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).

As próprias teorias locais sobre a função da linguagem e suas possibilidades de significação (por exemplo, mensurativas, descritivas etc.) são ‘naturalizadas’ a serviço da racionalidade prática (e pragmática). No processo, agentes semióticos, dotados de disposições ideológicas, acessam o plano macrossocial de categorias e conceitos (através dos quais ideologias são veiculadas) e os indexam como valores no reino microcontextual da fala em interação (Silverstein, 2003Silverstein, M. (2003). Indexical order and the dialectics of sociolinguistic life. Language & Communication, 23, 193-229. https://doi.org/10.1016/S0271-5309(03)00013-2
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). O que se oferece, portanto, é uma descrição de como a indexicalidade na linguagem ocorre em múltiplos níveis, ou ‘ordens’.

A forma como dada língua fomenta certos modos prevalentes de se analisar e reportar a experiência vivida depende, em parte, de tal racionalização/naturalização, ou seja, de conexões indexicais de várias ordens. Logo, o modo como falantes analisam e representam relações complexas entre diferentes eventos – por exemplo, eventos no tempo ‘mítico’ e no tempo cronológico –, seus estados de completude e nexo em relação a uma estrutura narrativa interna, a um tempo sequencial e a um tempo de fala depende, em parte, dessa dialética entre o uso, a estrutura da língua e ideias locais sobre as possibilidades de significação que eles trazem – ou seja, ideias sobre como e para o quê a língua serve, ou ‘ideologia linguística’ (Silverstein, 2003Silverstein, M. (2003). Indexical order and the dialectics of sociolinguistic life. Language & Communication, 23, 193-229. https://doi.org/10.1016/S0271-5309(03)00013-2
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).

A reformulação de Silverstein (2003)Silverstein, M. (2003). Indexical order and the dialectics of sociolinguistic life. Language & Communication, 23, 193-229. https://doi.org/10.1016/S0271-5309(03)00013-2
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alude não apenas ao papel da identidade e convivência social na construção do ‘mundo’, mas também à relevância de indexicalidade espaço-temporal, ou ‘cronotópica’. Cunhado por Mikhail Bakhtin (2010)Bakhtin, M. (2010). Forms of time and of the Chronotope in the novel. In M. Holquist (Ed.), The dialogic imagination (pp. 84-259). University of Texas Press., cronotopo (do grego ‘chronos-tópos’, ou ‘tempo-espaço’) refere-se à forma como configurações espaço-temporais são encapsuladas no discurso e aplicadas na criação de enredos narrativos, na literatura e para além desta. Cite-se, como exemplo, o termo ‘paraíso’ que remete para um tempo-espaço original – ‘na terra’–, e destinado – ‘no céu’ –, no imaginário teleológico cristão. Cronotopos são, portanto, configurações espaço-temporais que enquadram conteúdos discursivos, contribuindo para o posicionamento do falante com respeito aos eventos descritos, bem como para o deslindar de relações entre o conteúdo representado e os contextos de narração.

De relevo para a presente discussão é a ideia de que o conteúdo mítico ou cosmológico, em qualquer língua ou contexto social, pode ser analisado em termos de seus enquadramentos cronotópicos dominantes como parte de processos de ‘naturalização’ (ou ‘estabilização metapragmática’) através do qual as pessoas vêm a entender a linguagem (e suas cronotopias) como um sistema de classificação de entidades ‘reais’ num universo ‘lá fora’ (Silverstein, 1979Silverstein, M. (1979). Language structure and linguistic ideology. In R. Cline, W. Hanks & C. Hofbauer (Eds.), The elements: a parasession on linguistic units and levels (pp. 193-247). Chicago Linguistic Society., p. 201). Para Enfield (2015)Enfield, N. (2015). The utility of meaning. Oxford University Press., a categorização linguística jamais será capaz de reproduzir uma imagem total do objeto, limitando-se, ao invés, a destacar certos tipos de informação em detrimento (omissão) de outros, e, com isso, proporcionando diferentes facilidades e desafios ao um universo de descrições possíveis. Isto se aplica tanto ao plano da ‘realidade’ do presente decorrente, quanto a combinações de eventos e estados que caem dentro da rubrica de ‘história’, ‘mito’ e ‘cosmologia’. Também a consolidação do ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’ como objetos semióticos correlacionados é ideologicamente mediada. Assim, qualquer estudo que analise estes conceitos se beneficiará de um enfoque sobre o enquadramento cronotópico (ou ‘espaço-temporal’) de eventos, abrangendo desde o quotidiano à criação do próprio cosmos.

A excelente análise de Thiago Sá (2021)Sá, T. B. (2021). Esboço de uma topogramática xinguana. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional. das narrativas de contato Kuikuro, língua Karib do Alto Xingu, é elucidativa. Sá (2021)Sá, T. B. (2021). Esboço de uma topogramática xinguana. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional. mostra que, quando produzindo narrativas sobre o contato com os brancos in loco nos lugares onde tais contatos ocorreram, os narradores Kuikuro não localizam os lugares no ‘tempo’ – o que seria a função do tempo gramatical (tense) –, ao invés, eles localizam o tempo no lugar. Isto significa que os narradores exploram as potencialidades da gramática Kuikuro e do uso de marcadores não dêiticos de aspecto para representar não um ‘lugar passado’, mas um lugar caracterizado como temporalmente contínuo, ao invés de pontual. Como sugerido por Sá (2021, p. 77)Sá, T. B. (2021). Esboço de uma topogramática xinguana. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional.: “não são mais relatos de um passado e de um espaço distantes, mas sim reflexões atuais e relevantes para o espaço em que vive o próprio narrador”.

O uso de perspectivas aspectuais sobre eventos facilita a continuidade entre o que seria marcado como passado ‘distante’ e transposto sob uma estrutura de tempo gramatical, ao se sublinhar continuidade entre temporalidades de acontecimentos transcorridos, atuais e expectáveis/desejáveis. Perspectivas aspectuais proporcionam uma ênfase na relação estrutural interna de eventos plurais ou mesmo o colapsar de eventos ocorridos em diferentes tempos numa estrutura acontecimental isomórfica, expressa como uma relação do passado com o presente.

Considere-se a descrição de Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. sobre como a língua Hopi conta fases de tempo (exemplo: o dia) ordinalmente (como expressão de uma ordem ou série na qual se encontra inserido), ao invés de cardinalmente (como expressão de uma quantidade absoluta). Isto é, como manifestações sucessivas da mesma unidade, não como unidades distintas de tempo em fila sequencial. Essa propensão explica a atenção dada à complexidade temporal interna de eventos, bem como à possibilidade de se atuar no momento presente para afetar a qualidade do amanhã. A conclusão de Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. não foi a de que a ausência de tempo gramatical em dada língua confina irremediavelmente os seus falantes a um presente achatado e unidimensional. Pelo contrário, o autor conclui que, nessas línguas, o presente tende a ser enfatizado porque é especialmente elaborado.

A próxima secção discute como a língua Wauja, com seu enfoque gramático e aspectual na estrutura temporal interna dos eventos, parece estimular, por entre seus falantes, uma atenção voltada para o desenrolar de acontecimentos no momento presente. As hipóteses aqui levantadas são de que: 1) a língua Wauja não faz uso de tempo gramatical; 2) o não uso de tempo gramatical proporciona aos seus falantes uma formidável amplitude de possibilidades para a elaboração do que se entende por ‘presente’. Através da análise de excertos de entrevistas e eventos de narração em Wauja, exemplificam-se alguns dos modos nos quais esse presente se manifesta no discurso e nas práticas etnográficas como plenos de sentidos temporais: uma concomitância de diferentes planos, ritmos e escalas de duração, caracterizada pelos autores como uma ‘densidade’ que se faz particularmente proeminente em lugares imbuídos de antiguidade.

PARTE II: PRAGMÁTICA DO PRESENTE ENTRE OS WAUJA DO ALTO XINGU

Nesta seção, representações cognitivistas de línguas sem tempo gramatical são colocadas em contraste com uma abordagem pragmática à referência temporal na língua Wauja, aqui descrita como ‘língua de tempo distribuído’. Exploram-se os argumentos de Sinha (2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia., 2019)Sinha, V. S. (2019). Event-based time in three indigenous Amazonian and Xinguan cultures and languages. Frontiers in Psychology, 10, 1-21. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2019.00454
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que inferem uma ausência cultural de abstração de tempo linear (ou de ‘tempo como tal’, na expressão da autora), a partir do não uso de tempo gramatical (‘tense’) nas línguas por si estudadas. Implícita em sua tese está a representação de ‘tenselessness’ como indício de uma espécie de adiacronia conceitual, de natureza cognitiva, em falantes destas línguas.

As análises de Sinha (2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia., 2019)Sinha, V. S. (2019). Event-based time in three indigenous Amazonian and Xinguan cultures and languages. Frontiers in Psychology, 10, 1-21. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2019.00454
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e colegas (Sinha et al., 2011Sinha, C., Sinha, V. S., Zinken, J., & Sampaio, W. (2011). When time is not space: the social and linguistic construction of time intervals and temporal event relations in an Amazonian culture. Language and Cognition, 3(1), 137-169. https://doi.org/10.1515/langcog.2011.006
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, 2012Sinha, V. S., Sinha, C., Sampaio, W., & Zinken, J. (2012). Event-based time intervals in an Amazonian culture. In L. Filipovi? & K. M. Jaszczolt (Eds.), Space and time in languages and cultures, language, culture, and cognition (pp. 15-35). John Benjamins Publishing Company.) proporcionam um exemplo claro de como abordagens cognitivistas (ou seja, individualisticamente subjetivistas e não contextuais sócio-historicamente) negligenciam a real significância dos dados sob análise, por não considerarem os processos dialéticos pelos quais ideologia e linguagem são coproduzidas na prática etnográfica. Demonstra-se, neste artigo, que as respostas dadas pelos interlocutores Huni Kuĩ, Aweti e Kamaiurá aos questionamentos de Sinha (2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia., 2019)Sinha, V. S. (2019). Event-based time in three indigenous Amazonian and Xinguan cultures and languages. Frontiers in Psychology, 10, 1-21. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2019.00454
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não indicam qualquer inépcia em se conceber linearidade ou ‘tempo’, abstratamente. Os dados apresentados pela autora apontam, pelo contrário, para temporalidades especialmente ricas e elaboradas, sugerindo que leituras simplistas e unidimensionais de tempo como linear e unidirecional não fazem sentido pragmático (e cosmológico) nos contextos em estudo.

TEMPO BASEADO EM EVENTOS

Sinha (2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia., 2019)Sinha, V. S. (2019). Event-based time in three indigenous Amazonian and Xinguan cultures and languages. Frontiers in Psychology, 10, 1-21. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2019.00454
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investiga as práticas Huni Kuĩ, Aweti e Kamaiurá de computação de tempo (‘time reckoning’) e argumenta que estas, por tradição, se baseiam em eventos (‘event-based time’), isto é, em acontecimentos e não num sistema métrico/cronológico. A autora remete ao caráter ‘não numérico’ dos sistemas de números destas sociedades, onde ‘um’ pode significar ‘sozinho’, ‘dois’ pode significar ‘par’ ou ‘parceiro’ etc. Porém, ao invés de esclarecer sobre a presença de um foco cultural voltado a manifestações atuais, Sinha, se inspirando em Everett (2005Everett, D. L. (2005). Cultural constraints on grammar and cognition in Pirahã: another look at the design features of human language. Current Anthropology, 46(4), 621-646. https://www1.icsi.berkeley.edu/~kay/Everett.CA.Piraha.pdf
https://www1.icsi.berkeley.edu/~kay/Ever...
, citado em Sinha, 2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia.), percebe e sublinha uma série de ‘ausências’.

O foco de Sinha (2018)Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia. numa suposta ‘atemporalidade’ gramatical (‘tenselessness’), mas também cognitiva, conduz a um de seus mais interessantes exercícios, cujo objetivo é avaliar a congruência linguístico-cultural de construções metafóricas de uma linha temporal abstrata. Para tanto, Sinha (2018)Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia. pediu a falantes de Huni Kuĩ, Aweti e Kamaiurá para considerar a relação entre si mesmos e eventos no passado e no futuro. Questionados sobre ‘a localização’ de eventos passados, interlocutores Aweti e Kamaiurá situaram, de forma unânime, ‘o passado’ em seus olhos. “A explicação dada era a de que o passado consiste em memórias, e memórias podem ser ‘vistas’ no ‘olho da mente’”. Já o futuro se localiza “na frente dos olhos, mas não muito longe” (Sinha, 2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia., p. 167, tradução nossa).

Sinha (2018)Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia. também investiga construções metafóricas do tipo ‘ego em movimento’ (‘moving ego’), o movimento do ponto de vista subjetivo (por exemplo: ‘ele está chegando na adolescência’) e ‘tempo em movimento’ (‘moving time’), o movimento de um evento (por exemplo: ‘o verão passou muito rápido’) ao longo de uma linha de tempo abstrata. Falantes Huni Kuĩ entenderam as atividades propostas como ‘sem sentido’. Falantes Aweti e Kamaiurá descreveram as metáforas do tipo ‘ego em movimento’ como ‘sem sentido’ ou ‘impossíveis de expressar linguisticamente’. Já as construções metafóricas do tipo ‘tempo em movimento’ foram descritas pelos alto-xinguanos como comuns, porém “possíveis como expressões de um movimento espacial real de uma entidade” (Sinha, 2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia., p. 130, tradução nossa), por exemplo: ‘as chuvas chegaram muito rápido’.

A avaliação da agramaticalidade de esquemas metafóricos para descrever a relação linear entre passado, presente e futuro leva a pesquisadora a concluir que esta é conceitualizada em termos não de orientação espacial (em frente/atrás, esquerda/direita, em cima/em baixo), mas dos sentidos e da incorporação de capacidades mentais representacionais, como memória, antecipação, intenção e imaginação (Sinha, 2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia., p. 181). Ela interpreta esses resultados como evidência de que os povos Huni Kuĩ, Aweti e Kamaiurá não compartilham de um conceito abstrato de linha de tempo.

De alta relevância para a presente análise é a descrição oferecida pelos interlocutores Aweti e Kamaiurá para ‘tempo em movimento’ como ‘possível’, enquanto ‘expressões de um movimento espacial real de uma entidade’. Outros exemplos incluem as fases da lua, o movimento das estrelas, o nível dos rios etc. Tal descrição leva Sinha (2018)Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia. a concluir que o espaço desempenha um papel crucial em práticas de temporalização nas línguas por si analisadas, porém o faz como base para indexação metonímica de intervalos de tempo e não para a ‘espacialização do tempo’, via projeção metafórica, como é o caso em línguas SAE. Fenômenos espaciais são usados para representar fenômenos temporais, via substituição/transnominação metonímica, pois são entendidos como realidades associadas ou ‘adjacentes’.

Os dados apresentados por Sinha (2018)Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia. são coerentes com as observações dos autores entre os Wauja, em que intervalos de tempo são frequentemente indexados pelos movimentos, posições ou configurações espaciais de ocorrências celestiais e ambientais.

(6) Kamotejojokã   Kamo-tejojo-kã   Sol-virar-nom   “O sol vira / a viragem do Sol” [meio-dia]
(7) Kisuwawakiya   Kisuwa-waka-ya   Branco-dstr-enf   “Branco por toda parte” [amanhecer]

A autora denomina tais expressões de “conceptualizações indéxico-metonímicas” (Sinha, 2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia., p. 161 e ss., tradução nossa). No entanto, defende-se, aqui, ser mais correto caracterizar essa relação de significação/conceptualização como sinedóquica, ao invés de meramente metonímica. Isto porque o sentido de tais expressões se apoia na inextricabilidade entre esferas de experiência, e não na mera adjacência conceptual entre ‘espaço’ e ‘tempo’.

Essa inextricabilidade encontra-se implícita, por exemplo, nas palavras Wauja kisuwa-wakiya e muto-gakiya (na glossa, ‘branco por toda a parte’ ou ‘manhã’, e ‘escuro por toda a parte’ ou ‘noite’; excerto 7). O sufixo waka, um distribuitivo, acarreta o significado semântico de ser/estar disseminado tanto no espaço quanto no tempo, podendo ser usado para expressar tanto dispersão espacial quanto repetitividade temporal. Acresce-lhe a partícula -ya, que parece funcionar como um enfático, denotando intensidade e, neste caso, convicção experiencial sobre a ocorrência iterativa do evento: pois esse é o movimento do cosmos.

Conforme se argumentará a seguir, os dados apontam para uma relação de conceptualiação/significação baseada na inextricabilidade entre a parte e o todo ou, nos termos da semiótica de Peirce (1983-2009 [1857-1892]), e de acordo com concepções da lógica moderna (Agha, 2007Agha, A. (2007). Language and social relations. Cambridge University Press.), entre manifestação singular (ou ‘token’) e padrão/regra (ou ‘tipo’).

A sinédoque consiste no uso da parte para significar o todo (‘teto’ significando ‘casa’), ou, vice-versa, do todo significando a parte (‘corpo’ significando ‘carne’). Enquanto figura da linguagem, a sinédoque caracteriza a transferência do valor semântico de um termo para outro, implicando uma redução ou ampliação do sentido do termo original. Outros exemplos incluem o uso do indivíduo como intercambiável com a classe (‘homem’ como ‘ser humano’), da espécie para significar a ordem (‘macacos’ ao invés de ‘primatas’), do singular para significar o plural (‘aluno’ para significar ‘alunos’), e vice-versa.

Práticas de conceptualiação/significação (ou ‘semiotização’) temporal indéxico-sinedóquicas direcionam a atenção para fenômenos (eventos ou acontecimentos) como partes integrantes de um todo espaço-temporal (‘o cosmos’) ou, vice-versa, para o todo espaço-temporal como aspecto indissociável de ocorrências singulares. Por outras palavras, a noção de contiguidade indéxico-sinedóquica convida à consideração de relações entre todo e parte como consubstanciando manifestações atuais (tokens) de padrões virtuais (tipos) que estruturam a experiência – ‘história’ e ‘cosmologia’.

MOVIMENTO COMO LOCUS DE INDEXAÇÃO TEMPORAL

Estruturas de referência e predicação da língua Wauja evidenciam a inextricabilidade conceitual entre ‘espaço’ e ‘tempo’, ou melhor, entre movimento e temporalidade. Por exemplo, a palavra Wauja o-na-tsa codifica sentidos genericamente traduzíveis como ‘quando’ e ‘aonde’, simultânea ou alternativamente, dependendo do contexto. A raiz composta na-tsa (ou naitsa) combina o locativo na (e variante inpossuída nai) e um morfema ablativo -tsa. Atente-se aos sentidos possíveis deste último, o morfema ablativo -tsa, usado para expressar movimento ou extensão a partir de, ou para fora de, algo ou de algum lugar: uma emanação ou irradiação.

No caso de uma localização absoluta, a raiz composta na-tsa é prefixada ou precedida pelo nome de um local ou marcador espacial, gerando sentidos como ‘deste [ou neste] local’.

(8) Kupatotaku onaitsa   Kupato-taku o-nai-tsa   Peixe-cl.superfície.plana/lugar 3-loc-abl   “Saíram do lugar de pescaria”
(9) Tulupixumã oponá onatsa tuwawiu   Tulupi-xumã o-poná o-na-tsa tuwa-wiu   Pintado-cl.hiper 3-casa 3-loc-abl vir-pftv   “Ele veio lá da casa do pintado-grande”

Posições relativas são marcadas por partículas indicando direcionalidade ou relação a um ponto de referência, gerando sentidos como ‘daqui/dali’, ‘aqui/ali’.

(10) Halapa ojonatsahã, ojonatsaha   Halapa ojo-na-tsa-hã, ojo-na-tsa-há   3.espremer dem.prox-loc-abl-enf, dem.prox-loc-abl-enf   “Bem aqui apertaram, bem aqui”
(11) Onumanaitsa tuwakonenemiu   O-numa-nai-tsa tuwa-kone-ne-m-iu   3-direção-loc-abl vir-pass-rslt-também-pftv   “Dessa direção todos vieram”

Na ausência de um marcador espacial ou direção, a mesma raiz composta na-tsa na forma possessiva da 3ª pessoa do singular – o-na-tsa – expressa simultânea ou alternadamente ideias genéricas de ‘onde’ e ‘quando’. Esta forma poderia ser glosada como ‘[para fora/a partir] de seu [próprio] local’.

(12) Onatsa ponapukupamai ja uno   O-na-tsa pona-puku-pa-mai ja uno   3-loc-abl casa-lugar/habitat-impf-também dem água   “Lá tem um local onde também existe água funda”
(13) Onatsa ja kalihi Yakuwixeku tuwa   O-na-tsa ja kali-hi Yakuwixeku tuwa   3-loc-abl dem dem.dist-enf Yakuwixeku vir   “Em certo momento aquele Yakuwixekú veio”
(14) Onatsa akamawiu apotawogou   O-na-tsa akama-wiu apota-wo-gou   3-loc-abl 3-morrer-pftv enterrar-obj-pftv   “Daí ele morreu e foi enterrado.”

Em suma, se um evento acontece ‘a partir de’ (‘out of’) uma localização especificada, a raiz composta na-tsa tem conotações mais explicitamente espaciais (‘aonde’). Se, pelo contrário, um evento ‘emana’ ou ‘irradia’ de uma localização não especificada, a mesma raiz na-tsa pode adquirir conotações temporais evidentes (‘quando’). Assim, enquanto na-tsa- ‘aonde’ expressa relações de posição, na-tsa- ‘quando’ parece ser linguisticamente entendido como emergindo do próprio todo espaço-temporal.

Atente-se, ainda, ao papel central que movimentos de corpos e substâncias desempenham na forma como o discurso Wauja é imbuído de temporalidade.

(15) Iyeneje yitapuwiu, ahalapa Awajahu oponiu, pixapa palalasukutojojokiu, onai onupapa tulupiyiu.   Iye-neje yitapu-wiu, ahala-pa Awajahu o-pon-iu, pixa-pa palalasuku-tojojok-iu, o-nai o-nupa-pa tulupi-yiu.   3.ir-dem noite-pftv, 3.raspar/passar-col Awajahu 3-casa-pftv, 3.chegar-col palalasuku-reta-pftv, 3-loc 3-ver-col peixe.pintado-pftv.   “Eles foram na noite, passaram na casa do Awajahu (o dono da baía), chegaram na reta do palalasuku, lá viram o peixe pintado.” [Garcia, Ramos e Rodrigues-Niu, 2015: DR-100_0041 - Arquivo do Livro de Kamukuwaká e Yakuwixeku, 20/09/2015, Piyulewene; narrado por Awapataku Waurá, anotação de Rodrigues-Niu e Ball, interpretação para português de Ukupiu Waurá]

A ênfase dada a movimentos, em especial em contextos narrativos, onde movimentos marcam o próprio ritmo de narração, é uma característica marcante das maneiras de falar Wauja. Um encadeamento de eventos, descritos como movimentos finalizados (perfectivos), proporciona o compasso e o nexo espaço-temporal da narrativa, sem uso de tempo dêitico/gramatical.

PERSISTÊNCIA REPETITIVA E A PLURALIDADE INTERNA DE EVENTOS

Segundo a cosmologia alto-xinguana, foi o movimento ascendente de Kamo (o Sol) e de Kejo (a Lua), os gêmeos fundadores, que dividiu o tempo corrente (dito ‘diacrônico’ e, de forma redutora, ‘histórico’) do tempo outro (dito ‘original’, ‘primordial’, ‘mitológico’ e, de forma quiçá equivocada, ‘atemporal’). Poder-se-ia dizer que o amanhecer do próprio ‘tempo’ emerge desse movimento singular e divisor e, não obstante, iterativo e contínuo. Sinha (2018)Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia. afirma que as línguas amazônicas carecem de um conceito de ‘tempo como tal’. No entanto, a autora reconhece que “cada acontecimento é pensado como uma instância única de um intervalo de tempo cíclico baseado em eventos” (Sinha, 2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia., p. 136, tradução nossa). Eventos são tokens transitórios e momentâneos de um tipo atemporal (Agha, 2007Agha, A. (2007). Language and social relations. Cambridge University Press.). Neste sentido, acontecimentos podem ser descritos como emanações, extensões existenciais de um evento-tipo, e entendidos não apenas como cíclicos e diacrônicos, mas como iterativos.

Esta noção de pluralidade interna de eventos, ou ‘mesmice’ iterativa, explicita uma terceira faceta do ‘tempo’ xinguano relevante à presente análise: o seu aspecto cumulativo. Ellen Basso (1981, p. 277)Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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explica a qualidade cumulativa do tempo entre os Kalapalo, povo de lingua Karib alto-xinguano, como estando enraizada na noção de persistência repetitiva: “an occurrence in ‘the Beginning’ is necessarily followed by persistent repetition and uninterrupted flow of action, an enduring unbrokenness of recurrence that is ‘endless’, ‘everywhere,’ and ‘forever,’ perhaps even ‘eternal’”.

O tempo como recorrente e seus efeitos cumulativos estão na base de uma proposição explicativa paradigmática: “that an event [usually at the beginning Time] can serve as causal precedent for similar events [in the historical time]” (Basso, 1981Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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, p. 277). Na esteira de Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press., argumenta-se, aqui, que um evento repetitivo, entendido por falantes de línguas de tempo distribuído como um acontecimento plural com efeitos cumulativos, possui força multiplicativa, ou melhor, ‘acretiva’ (na expressão de Basso, 1981Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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), em especial se vinculado a esse tempo outro, ‘original’.

A descrição de Basso (1981)Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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do tempo Kalapalo como ‘acretivo’ é curiosamente coerente com uma visão arqueológica de todo espaço-temporal como um processo antropogênico de crescimento (entrópico) pela acumulação gradual de camadas adicionais de matéria. Coincidentemente, sítios arqueológicos marcados pela abundância de recursos ecológicos vitais, especialmente Terra Preta Arqueológica, são descritos pelos Wauja como putakepe, antigas aldeias dos seres originais. Os Yerupoho, em sua forma humana original (os Iyãukumã, na glossa: ‘hiper-gente’), cuidam da terra, atraindo toda a espécie de donos e apapaatai (‘animais’). Estes locais, assim vinculados aos tempos do Começo, são entendidos como cumulativa e iterativamente investidos de fertilidade por virtude de sua ocupação mais-do-que-humana.

(16) 1. Aitsa apanapawo, mixanaponekeyiu, aitsa kapanãto yerupoho. Aitsa kapanãtoha, sekunya aitsa muinyakawakapai.2. Irixulakumãnejunãu akakawakatajano. Yerupoho aitsa kapanatopai. Opanatotsa kata atiuhã.Pa awinxinxa ata ipitsimiun, pa taka onaiyiun anta onai atiu pakahogawiu.3. Itsatai awintsixan ipitsi, kata kehotogou katanaiyiuno. Paa antawe pawawa katiuhã kapatá, kalahã ojohã epejo. Anta apawawa kalahã en epeyein, oukaka punapapai epeyeinyiun?4. Putakepe onakajiuhã, kiyãkãpai onai yakawakitsixe-eu. Onatsa putukawe onatsiu, putuka onatsa atiu, awojokeniu pa yakawakitsixe, kamano awintsinxapai ipitsi kehotogou.5. Atuwatawe kalãhã sula kalahã inein. Punupapai kaliuhã? Yuta isixa amapai ipitsi janaihã. Atakata taka onaiyiun awintsinxapai ipitsiyiu.6. Awojogakeniu, ããtawe yakawakakitsixe-eu. Aapohowiu, okahitsa ayapai aupahakatuwo, punupapata apukapai onai yakawakatope, kamano awintsinxapai ipitsi kehoto.Putakepe onakahã   1. “Não plantou, era tudo escuro, os yerupoho não tinham plantas. Antes não tinha plantas, antigamente não existia luz.2. Irixulakumãnejunãu que criou. O yerupoho não tem plantas. As plantas deles são essas matas [nativas]. Matagal gostou, aí trouxe junto outras plantas.3. É assim, porque gostou desta terra aqui. Aí vai trazer com ele essa kapata, esse aqui epejo. Trouxe epeyein, você está vendo epeyein?4. Esse é jeito de putakepe, tem muitas coisas. Quando você faz roça lá, derrubou a mata, quando está tudo limpo aí as plantinhas vão crescendo lá, porque gostaram muito da terra.5. Aí trouxe sula inein. Você está vendo? Yuta isixa que chamamos. Ele trouxe porque gostou daqui [dessa terra].6. Quando está limpo, vai trazer qualquer coisa. Vai fechar, aí a gente vai limpar, e veja mesmo assim cresce as coisas, porque gostam muito da terra.É o jeito [/cultura] do putakepe.” [Rodrigues-Niu, 2019: rec. ZOOM0135 - Expedição de reconhecimento, entorno Ulupuwene, 23/07/2019, entrevista aberta a Elewoka Waurá, interpretação para português de Arikutua Waurá]

A fala do cacique Elewoka exemplifica como putakepe, enquanto enquadramento cronotópico e lugar na paisagem, configura a interação espaço-temporal de múltiplas agências e tempos; escalas de duração e ritmos de crescimento, decadência e regeneração de uma paisagem plenamente histórica e ontologicamente plural. Não surpreende, por isso, que, além de lugar, putakepe seja um cronotopo particularmente preeminente nos discursos Wauja sobre posse e cuidado da terra.

‘LUGARES-EVENTO’

Tal como eventos celestiais e ambientais coalescem manifestações atuais (tokens) e padrões virtuais (tipos), sítios históricos embasam o momento presente na prática e no mito. Basso (1981)Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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já havia aludido às “aldeias de seres poderosos e perigosos” e à importância de movimentos no espaço para a referência temporal. A autora discute a viagem como dispositivo narrativo omnipresente nos mitos Kalapalo, usado na construção da distinção entre diferentes tipos de lugares: o espaço estruturado da aldeia (como ‘social, previsível, ordinário’) e o espaço não estruturado da floresta (como ‘antissocial, mágico, ambíguo e liminar’) (Basso, 1981Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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, p. 278, tradução nossa; veja-se, também, Tambiah, 1969Tambiah, S. J. (1969). Animals are good to think and good to prohibit. Ethnology, 8(4), 423-459. https://doi.org/10.2307/3772910
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). A autora explica que essa distinção emerge do uso de ‘imagens’ de tempo e de espaço – ou seja, de cronotopos – para transmitir, por um lado, sentidos de tempo (“[the] times within Time, and of the timelessness or flow of time”, Basso, 1981Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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, p. 278) e, por outro, sentidos paisagísticos, tanto dos sítios como pontos discretos no espaço e da possibilidade do espaço em si como eixo de liminaridade.

Por entre os Wauja, duas importantes sagas detalham as viagens épicas dos heróis culturais Kamukuwaká e Yakuwixeku rumo a estes espaços liminares (Rodrigues-Niu & Ramos, 2023Rodrigues-Niu, P., & Ramos, M. (2023). Entre o céu e a terra: subsídios para uma arqueologia de territórios multitemporais alto-xinguanos. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220022. https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0022
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). Considere-se os excertos 15, 17 e 18, trechos da história de Yakuwixeku, conforme narrada pelo ancião Awapataku Waurá, em 2015.

(17) 1. – Ehe, gakuwayiu toya, pogakuwata aitsu.     – Ehe, gakuwa-yiu toya, po-gakuwa-ta aitsu.     – Certo, voltar-pftv sócio, 2-voltar-vblz 1p.     “– Ehe! [O pintado] voltou, meu irmão, voltemos nós [também]”         2. Iyawiu, iyeniu...     Iya-wiu, iy-e-n-iu...     Ir-pftv, ir-irr-rslt-pftv     “Foram, vão embora...”         3. – Ojonaihataiyiuhã. Hojojokata onayiu. Aitsepei awiu enupaiyiu     – Ojo-nai-hatai-yiu-hã. Hojojo-kata o-na-yiu. Aits-e-pei a-wi-u enu-pai-yiu     – dem.prox-loc-apenas-pftv-enf. Parado-dem.prox 3-loc-pftv. 1p-irr-impf 1p-ir-pftv cima/céu -impf-pftv.     “– Está por aqui mesmo. Estamos parados no [mesmo] lugar. Porém nós subimos para o céu”

Na linha 3, excerto 17, o ‘céu’ se configura como enquadramento cronotópico, indicando a posição de Yakuwixeku e seus irmãos fora do tempo terreno, após movimento de ascensão ao rio Irapuwene (Via Láctea) nas costas do Tulupikumã (‘peixe pintado-hiper’) tornado canoa. Essa subida aos céus é precedida pela viagem dos irmãos rumo a espaços liminares, habitat de seres perigosos como Awajahu (o dono da baía) (excerto 15). A construção frásica iyeneje yitapuwiu, ‘[eles] vão na noite’ (excerto 15), contribui para esse sentido de ‘distância’, marcando a passagem do dia para o espaço liminar da noite.

(18) 1. – Ayiu, toya! akalawe-eu, akalawe-eu, akalawe-eu     A-y-iu, toya! a-kala-we-eu, a-kala-we-eu, a-kala-we-eu     1p-ir-pftv, sócio! vblz-dem.dist-irr-pftv, vblz-dem.dist-irr-pftv, vblz-dem.dist-irr-pftv,     “– Vamos, meu irmão, [está indo] para lá, [está indo] para lá, [está indo] para lá”         2. Umalayãitsapawe-eu, ahumaitsapawe-eu umalayãitsiu, umalayãitsa, umalayãitsa, umalayãitsa     Umalayãitsa-pa-we-eu, ahumaitsa-pa-we-eu umalayãits-iu, umalayãitsa, umalayãitsa, umalayãitsa     A seguir/depois/atrás de-3p-irr-pftv, 3p-correr-irr-pftv, a seguir, a seguir, a seguir     “Atrás [dele], correram atrás [dele], atrás [dele], atrás [dele], atrás [dele].” [Garcia, Ramos e Rodrigues-Niu, 2015: DR-100_0041 - Arquivo do Livro de Kamukuwaká e Yakuwixeku, 20/09/2015, Piyulewene, narrado por Awapataku Waurá, anotação de Rodrigues-Niu e Ball, interpretação para português de Ukupiu Waurá]

O uso repetitivo de verbos relacionados à experiência de movimento (veja-se excertos 15, 17 e 18) e um sentido de sucessividade cíclica proporciona o que Basso (1981, p. 286)Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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denomina de “intensificação do sentimento”. Basso (1981)Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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acredita que a performance narrativa, à semelhança da música e do ato ritual, suscita “uma consciência acentuada” e “uma relação privilegiada com o contexto espaço-temporal do mito, ‘o Começo’” (Basso, 1981Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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, p. 288, tradução nossa).

Basso (1981)Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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está interessada na análise do mito como performance narrativa e no papel da ‘viagem’ nas artes de contação de histórias Kalapalo, enquanto tecnologia de “intensificação e compressão do tempo e espaço ritual e da unidade da comunidade” (Basso, 1981Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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, p. 286, tradução nossa). O seu argumento, no entanto, levanta questões mais amplas, que a autora não articulou, sobre a fenomenologia do movimento real de pessoas pela paisagem histórica.

Dados coletados durante as expedições de mapeamento junto aos Wauja indicam que tais padrões comunicativos e ‘de sentimento’ extrapolam a esfera da narrativa mítica. Tome-se como exemplo este excerto do testemunho do cacique Atakaho Waurá sobre viagens rio acima em direção ao sítio sagrado Kamukuwaká.

(19) 1. Tomojo okahoga tuwakonapai sekunyiuha, weku.     Tomojo o-kaho-ga tuwa-kona-pai sekuny-iu-ha weku.     Vara 3-sobre-poss 3.vir-pass-impf no passado-pftv-enf neto.     “Há muito tempo usavam uma vara para remar e vir aqui [visitar esses lugares], neto”         2. Aitsa kawaka auwiu,     Aitsa ka-waka au-wiu,     neg atr-dist 1p-pftv,     “Não era longe para nós”         3. Aitsuwamiyiu, auhumaka jaanai, auhumaka jaanai, auhumaka jaanai.     Ai-tsuwa-miy-iu au-humaka jaa-nai, au.humaka jaa-nai, au.humaka jaa-nai.     1p-vir-cond-pftv, 1p-dormir dist-loc, 1p-dormir dist-loc, 1p-dormir dist-loc     “Se nós viéssemos, dormiríamos lá, dormiríamos lá, dormiríamos lá...”         4. Aipixa katanaiyiuno, aipixa katanumaniu.     Ai-pixa kata-nai-yiu-no, ai-pixa kata-numan-iu.     1p-chegar prox-loc-pftv-obj, 1p-chegar prox-abl-pftv     “Chegávamos aqui [lá], chegávamos aqui [lá]...”         5. Kamano kawakapai katiuno, petemepei?     Kamano ka-waka-pai kat-iu-no, p-eteme-pei?     caus atr-dstr-impf prox-pftv-obj 2-entender-impf?     “Porque era longe aqui, entendeu?” [Ball, 2016: rec. 00048 - Expedição de mapeamento, trecho Piyulaga-Ulupuwene, 22/11/2016, narrado por Atakaho Waurá, anotação de Rodrigues-Niu e Ball, interpretação para português de Arikutua Waurá]

O orador não se encontra, neste caso (excerto 19), nomeando lugares na paisagem histórica e, no entanto, a sua lógica expositiva pressupõe conhecimento dos locais de acampamento Wauja ao longo do rio Kamukuwakewene (Tamitatuala/Batovi). A sua fala sugere compreensão não apenas da posição relativa desses marcadores espaço-temporais, mas também de sua sucessividade como medida de duração (a qual, aliás, se vê fenomelogicamente comprimida pela substituição de canoas e remos por barcos a motor). Não obstante, e em apenas algumas palavras, o orador considera, ao mesmo tempo, as partes constitutivas da viagem como um evento espaço-temporal singular e a viagem como existindo num continuum com as incontáveis viagens que a precederam. Faz-se evidente, neste relato, a (multi)pluralidade interna de um evento iterativo.

Que a duração de qualquer viagem possa ser descrita com precisão em termos indéxico-sinedóquicos (ou seja, em termos de espaço-tempo) é evidente e, porém, elusivo, pois afirmações como as oferecidas por Sinha (2018, p. 175; nossa ênfase)Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia., de que “event-based time cannot be measured, cannot be punctual, cannot be precisely pointed to”, parecem precisas para falantes de línguas europeias SAE. Em sistemas de referência temporal baseados em eventos, marcadores espaciais funcionam, em certa medida, como “âncoras-materiais” (na expressão de Sinha, 2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia.), muito à semelhança do uso de dedos para contar, também cumulativamente, em Wauja).

Porém, lugares na paisagem etno-histórica não apenas assistem na percepção espaço-temporal (no sentido de ‘reckoning’), eles também operam como eventos temporais em si mesmos, pois indicam (indexam) intervalos nos quais é expectável a ocorrência de certas atividades. Assim, a ‘materialidade’ (ou ‘imaterialidade’) de um lugar etno-histórico, entendido como intervalo de tempo ou ‘lugar-evento’, é secundária à sua realidade enquanto contexto. Este raciocínio coloca em relevo o papel de sítios históricos como âncoras indéxicas (isto é, contextuais e pragmáticas) para práticas sociais e político-ecológicas.

Com efeito, uma das performances discursivas mais frequentes, entre os Wauja, corresponde a relatos sobre como eles são os últimos de uma longa linha de familiares visitando tais lugares, em viagens deste mesmo tipo (e que, cumulativamente, constituem a base da viagem atual, como manifestação atual, ‘a ponta’, da totalidade que representa: uma figuração poética de cadeias icônico-indexicais que incluem performances narrativas anteriores e do mesmo tipo, como atos iterativos de reterritorialização).

ESTADOS DE SER/ESTAR EM CONTEXTO

Um aspecto central de sistemas de referência temporal baseados em eventos, onde predominam os temas aspectuais e estativos (‘state of being’), é “a necessidade subjetiva das pessoas de experienciarem e fazerem coisas no momento ou em torno da ocorrência de eventos que irão desencadear certas atividades” (Sinha, 2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia., p. 175, tradução nossa). No âmbito do presente argumento, por ‘eventos’ entenda-se também lugares (ou ‘lugares-evento’) que desencadeiam certas atividades.

As noções de precedência e de repetição persistente avançadas por Basso (1981)Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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ajudam a explicar por que os Wauja entendem como imperativo (re)contar as histórias ‘sagradas’ no local de sua ocorrência original. Note-se que a função da performance narrativa por entre os Wauja não é a de ‘transportar o ouvinte’ – usando uma metáfora comum das línguas europeias SAE –, ao invés, um contador de histórias virtuoso (ou felicitous) consegue tornar os eventos narrados ‘visíveis’ à sua audiência. Imperativamente, o que se faz visível é a paisagem e os elementos que a perfazem.

Os projetos de mapeamento de ambos os autores vêm documentando como, muito mais do que cenário, a paisagem xinguana funciona como contexto indéxico e cronotópico. Como detalhado em Rodrigues-Niu & Ramos (2023)Rodrigues-Niu, P., & Ramos, M. (2023). Entre o céu e a terra: subsídios para uma arqueologia de territórios multitemporais alto-xinguanos. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220022. https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0022
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, viagens rio acima são reiterações experienciais de sagas fundacionais da cultura Wauja, constituindo o que aqui se apelida de tecnologias de atualização, facilitando a incorporação, por parte de jovens líderes em potencial, dos tipos de conhecimento e disposições prototípicas dos heróis culturais.

A contiguidade indéxico-sinedóquica entre tempo e espaço pressupõe, portanto, uma outra contiguidade: entre ‘tipos’ de tempo. O precedente pressupõe certos itinerários, a repetição persistente dos quais se vê imbuída de pluralidade interna. Como um evento plural, iterativo, as viagens rio acima ao mesmo tempo comprimem o tempo como experienciado e o estendem para além do momento presente e em direção ao passado profundo, o ‘atualizando’. Argumenta-se que tal dialética contribui, por sua vez, para a forma como sistemas de referência temporal baseados em eventos e tempo distribuído se encontram fenomenalmente ancorados no ‘agora’.

A viagem rio acima em direção à gruta do Kamukuwaká é o exemplo mais notável da força acretiva de um movimento pangeracional iterativo que atravessa o território histórico Wauja. A reterritorialização persistente do percurso e dos lugares que o pontuam é pautada por eventos de narração das histórias e uma pluralidade de outras práticas socioculturais e linguísticas. De entre estas, refira-se a prática aparentemente singela de nomeação. Veja-se o seguinte exemplo:

(20) 1. Itsenuta aukapaiyiu katiuno yunupogouha     Itsenu-ta a-uka-pai-yiu kat-iu-no y-unupo-gou-há     inst/com-tr 1p-chamar- impf-pftv dem.prox-pftv-obj 2p-olhar-pftv-enf     “Assim juntos [por esse nome] nós chamamos esse [lugar] que vocês vêm.”         2. Yipixenepete okaho     yi-pixe-ne-pete o-kaho     2p-chegar-rslt-rstri.irr 3-cl.sobre     “Vocês acabaram de chegar.”         3. Ojotsei, akanatoga, iyapai yixanatogou. Iyawe pisejonau okanatoga yetsopogou.     Ojo-tsei a-kanato-ga iya-pai yi-xanato-gou. Iya-we p-isejo-nau o-kanato-ga yetsopo-gou.     prox-abl 1p-boca-enf ir-impf 2p-boca-pftv. ir-irr 2-irmão caçula-col 3- boca-enf depois-pftv.     “Daqui em diante, nós citamos/proclamamos, vocês vão citar/proclamar. Seus irmãos mais novos vão citar/proclamar [esse nome] futuramente.”         4. Nana, yamukunau okanatoga iyawepete     Nana, yamuku-nau o-kanato-ga iya-we-pete     dem.pl, criança-col 3-boca-enf ir-irr-rstri     “Além disso, as crianças vão citar/proclamar apenas”         5. Okanatoga itseitsiwiyakepei iyawepete     o-kanato-ga itsei-tsiwi-yake-pei iya-we-pete     3-boca-enf fogo-cabeça-dstr-impf ir-irr-restr     “vão apenas citar/proclamar ‘lugar de toco da fogueira [brasa]’,”         6. Punupogouha, itsa aitsuha punupoha autukeneto atú itsenuma.     P-unupo-gou-há, itsa aitsu-ha p-unupo-ha a-utuke-ne-to atú itsenu-ma.     2-olhar-pftv-enf sim 1p-enf olhar- enf 1p-levar-rslt-obj avô inst/com     “Veja bem, assim [também] nós vimos e pegamos com seu avô.”         7. Iyeni-iyenete akanatogou yunupoha. Yiyehenei yiyu katamiuno nejo já auputapai yiyumiu.     Iye-n-i-iye-ne-te a-kanato-go y-unupo-há. Y-iye-henei y-iyu kata-m-iu-no nejo já a-uputa-pai y-iyu-m-iu.     ir-rslt-pftv-ir-rslt-pftv boca-pftv 2p-olhar-enf 2p-ir-progir-pftv prox-também-pftv-obj dem.dist 1p-dar-impf 2p-ir-também-pftv     “Vão e levem junto, vão citar/proclamar o que viram [conheceram]. Vocês vão ainda [levar junto], este nós já demos [repassamos] para vocês também.” [Ball, 2016: rec. 00047 - Expedição de mapeamento, trecho Piyulaga-Ulupuwene, 22/11/2016, “Kamo Iniyãtowogaká”, narrado por Atakaho Waurá, anotação de Rodrigues-Niu e Ball, interpretação para português de Arikutua Waurá]

O excerto exemplifica uma fórmula usada como proposição explanatória paradigmática sobre o porquê de certas coisas serem como são. Nela, o orador revela as múltiplas ocorrências de um evento singular como objeto central da história e memória oral Wauja, enquanto forma de conhecimento do tempo corrente.

As narrativas coletadas in situ nestes lugares etnohistóricos mostram que o tempo é consistentemente pensado em termos das relações causais estabelecidas entre planos passados, presentes e futuros sobrepostos no espaço: relações indéxicas que estabelecem correntes de conexão através da história1 1 Veja-se, também a este respeito, o trabalho de Sá (2021) junto aos Kuikuro. .

Veja-se o seguinte excerto de uma entrevista com o cacique e pajé Elewoka.

(23) 1. Nohumakape openuwiu, niya nisenpuwe-eu, niya onai nisenpuwe-e.     No-humaka-pe o-penu-wiu, n-iya ni-sepu-we-eu, n-iya o-nai ni-sepu-we-e.     1-dormir-irr 3-dentro-pftv, 1-ir 1-sonho-irr-pftv, 1p-ir 3-loc 1-sonho-irr.     “Eu dormi, fui dentro [embrulhado/envolto], eu fui no meu sonho, eu fui lá sonhando.”         2. Nunupa onai tonejunauwi. É! Katanaipai yitsumano? - Pa numa ipitsiyi. Ojonaipai yitsumano?     N-unupa o-nai toneju-nau-wi. É! Kata-nai-pai yitsu-ma-no? - Pa n-uma ipitsi-yi. Ojo-nai-pai yitsu-ma-no?     1-ver 3-loc mulher-col-pftv. I.surp! dem.prox-loc-impf 2p-também-obj, conj 1-dizer ben-pftv. dem.prox-pftv-loc 2p-também-obj?     “Eu vi lá as mulheres. Uai! Aqui vocês também? - Falei para elas. Vocês também aqui?”         3. Apokutuwawa katiuno, umã. Apokujiuno umã.     A-poku-tuwa-wa kat-iu-no, umã. A-poku-j-iu-no umã.     Lugar/habitat-vir-enf dem.prox -pftv-obj, dizer. 3p-lugar/habitat-dem-pftv-obj, dizer.     “Nós vimos nesse nosso lugar, disse. Esse é nosso lar, disse.”         4. Kuwikuru onai nejo pata, autapai aunakipei.     Kuwikuru o-nai nejo pata, a-uta-pai aunaki-pei,     Kuikuro 3-loc dem restr, 1p-saber-impf história-impf.     “Aquelas mesmo que estão lá no Kuikuro, sabemos que é a história.”         5. Aitsepei tuwapayiu peyuka kala onatsino. Onatsa iyapene wakapo-gamã peyukapa ojo-onatsi. Aitsa awojo ipitsi.     Aitse-pei tuwa-pa-yiu peyuka kala o-na-tsi-no. O-na-tsa iya-pe-ne wakapoga-mã peyuka-pa ojo-o-na-tsi. Aitsa awojo ipitsi.     neg-irr-impf 3p-vir-pftv sair dem.dist 3-loc-abl-obj. 3p-loc-abl 3p-ir-rslt fundo-também 3p-sair dem.prox-loc-abl. neg bom ben.     Mas vieram e saíram naquele lugar [no buraco casa da velha]. Depois seguiram pelo fundo também [por debaixo da terra] e saíram aqui. Não gostaram.”         6. Putukaweye onakutsi. Oukaka kiyagapai katano, umapai. Kiyagatai uno onai? Ehe, kiyagatai, kiyagapai já awá, kiyagayãgapai     P-utuka-we-ye o-naku-tsi. Oukaka kiyaga-pai kata-no, uma-pai. Kiyaga-tai uno o-nai? Ehe, kiyaga-tai, kiyaga-pai já awá, kiyaga-yãga-pai.     2-entrar-irr-enf 3-buraco-abl. Portanto sujo-impf dem-obj, dizer-impf. Sujo-dim água 3-loc? afirm, sujo-impf dem lagoa, sujo-lagoa-impf.     “Entraram novamente no buraco. Por isso que essa lagoa é manchada [suja], diz ela. Lá a água é manchada? Sim, é manchado lá, esse mar [lagoa] é manchado, mar de água manchada [alaranjada].”         7. Oukaká kiyagapai katano, umã. Kamano awayulelepepei kata au, umã. Nejo katano, umã. Aitsu awakulepegetepei katano, umapaiyi.     Oukaká kiyaga-pai kata-no, umã. Kamano awa-yulelepe-pei kata au, umã. Nejo kata-no, umã. Aitsu a-wakulepege-te-pei kata-no, uma-pai-yi.     Portanto manchado-impf prox-obj, 3.dizer. caus 1p-brincar-impf prox 1p, 3.dizer. dem dem.prox-obj, 3.dizer. 1p 1p-sujar-tr- impf prox-obj, dizer-impf-pftv.     “Por isso que essa lagoa é manchada, ela diz. Porque nós brincamos aqui, ela diz. É por isso, ela diz. Nós que estamos sujando essa água, ela diz.”       [Rodrigues-Niu, 2019: rec. ZOOM0033 - Expedição de reconhecimento, entorno Ulupuwene, 08/07/2019, entrevista aberta a Elewoka Waurá e Tapaye Waurá, anotação de Rodrigues-Niu e Ball, interpretação para português de Arikutua Waurá]

Elewoka descreve como, num estado virtual/não atual, marcado pela partícula irrealis -we e o perfectivo -eu, indicando uma imersão temporal total ou completa: ‘dentro do sonho’, ele identificou um de seus espíritos protetores, as Yamurikumã, como donas de um lago localizado em uma área contestada do território. As próprias Yamurikumã apontam para evidências corroborativas de sua existência no lago, indicando a cor laranja das águas como resultado direto de seu banho, lavando o urucum das peles pintadas (excerto 23, linha 5). O relato de Elewoka deixa claro tanto a passagem (linhas 4 e 5) quanto a presença (linhas 3 e 6) das Yamurikumã no lago. O cacique segue explicando que, através da mediação das Yamurikumã e outras entidades protetoras, demais negociações com espíritos donos, habitantes do lago, tomam lugar, garantindo a segurança dos pescadores e caçadores de sua aldeia. Assim, em virtude da relação de afinidade de Elewoka com as Yamurikumã, seu povo reivindica acesso privilegiado aos valiosos recursos que o lago proporciona.

A proficiência Wauja em combinar múltiplas formas de temporalização no discurso é equiparada apenas por sua aptidão em aferir e denotar múltiplas e concomitantes durações na paisagem histórica, arqueológica e antropogênica. Os Wauja exibem uma atenção especial por sinais no meio envolvente (realidades materiais e imateriais como sons, cheiros, pegadas, interferências na vegetação, remanescentes arqueológicos) que indiciam a presença de agências humanas e não humanas, bem como de diferentes tempos, ritmos ecológicos e compassos de continuidade e de transformação a estas associadas (por exemplo, o matagal de Irixulakumãnejunãu, no excerto 16, e a cor suja laranjada do lago, no excerto 23 etc.). Estas aptidões perceptivas (e comunicativas) estão ligadas a uma outra característica notável das interações dos Wauja com a paisagem: uma capacidade incomum de prestar atenção ao momento presente, o ‘agora’ fenomenal.

(24) 1. Aham, petemepei uwekehougou, tsin tun, tsin tun, tun.   2. Ukuponã tunupixapotoju. Uwatanã, ipitsi tunupixapotoju uwatanã amapai.   3. Uwekeho ukuponen-eun tunupixatoju, nejo tapanaku uwekehopeiyiu.   4. Itsatai putakepe-eu, kewekehotayiu, nejo umatapai ja kaliuhã tapanaku.   5. Kamano mixanaponekei.   6. Mixanapoekeyiu, punupa, kaliuhã awatukojo kuwamuntõ uma já kala ipitsiyiuhã wakuta aitsuwiu, awãixakonehenei kata kaliuhã munu utupulutsiu.   1. Sim, você está escutando o dono: tsin tun, tsin tun, tun.2. O nome dele é Tunupixatoju. É a flauta dele, isso chamamos flauta de Tunupixatoju.3. O nome do dono é Tunupixatoju, ele que é dono da vala.4. Assim que é putakepe, têm dono, foi ele que fez esta vala.5. Porque antes era tudo escuro.6. Era tudo escuro, veja, o nosso avô Kuwamuntõ falou para esse [passarinho] fazer a vala no entorno de terra preta, porque as onças estavam comendo a gente dentro do cupim. [Rodrigues-Niu, 2019: rec. ZOOM00137 - Expedição de reconhecimento, entorno Ulupuwene, 23/07/2019, entrevista aberta a Elewoka Waurá e Tapaye Waurá, interpretação para português de Arikutua Waurá]

No trecho de entrevista reproduzido acima, Elewoka interpreta a vala que circunda um sítio putakepe (sítio arqueológico de terra preta) como resultado das ações concertadas do pássaro Tunupixatoju e do Yamiruka (o trovão). Elewoka chama a atenção para o fato de que, no momento da travessia da vala, o momento da fala, Tunupixatoju estava cantando profusamente. Este é um bom exemplo de como eventos de fala em Wauja fazem uso de diversas técnicas para vincular contextos narrativos ao momento de fala, o ‘agora’ fenomenal, conhecido na linguística como centro dêitico de referência. Isto é feito sem recurso a dispositivos gramaticais mais familiares a falantes de línguas europeias de padrão mediano (SAE), como o tempo dêitico.

Ao fazer referência ao tempo quando não existia luz (excerto 24, linha 3), Elewoka exemplifica uma característica peculiar do discurso Wauja no contexto de expedições de reconhecimento do território: ele interliga percepções cosmológicas, ecológicas e etnoarqueológicas ao momento da fala como centro dêitico de calibração temporal. O entendimento da pluralidade de tempos é aqui representado como pelo menos dois tempos diferentes, o vivido e o cosmológico. Na esteira da análise de Rodrigues-Niu e Ramos (2023)Rodrigues-Niu, P., & Ramos, M. (2023). Entre o céu e a terra: subsídios para uma arqueologia de territórios multitemporais alto-xinguanos. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220022. https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0022
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, poder-se-á dizer que estes tempos indexam modos analógicos de diferenciação e de distância, comensurando coisas tão elementares como luz e escuridão, terra e céu.

A DENSIDADE DO PRESENTE ENTRE OS WAUJA

Entender os modos nos quais os Wauja percepcionam, analisam e representam relações complexas entre ocorrências no espaço-tempo, nos obriga a considerar como sinais no e do ambiente (sinais em contexto) são categorizados como entidades (incluindo como ‘lugares-evento’), e como entidades são ideologicamente consolidadas como objetos temporais na língua e prática etnográfica Wauja. Esta tarefa é particularmente intrigante no contexto amazônico, onde a paisagem é extraordinariamente viva e múltipla em sentidos além do biológico. Entidades no cenário amazônico são correntemente investidas de agência. Acresce-se a isso o fato de sua agência se encontrar, com frequência, distribuída no espaço e através de dimensões ontológicas e temporais.

Podemos pensar essas dimensões em termos do contraste panamazônico entre seres-donos e animais comuns. Os donos, ou mestres – apapaatai(-yajo), em Wauja – são tipos ‘atemporais’ que se manifestam, no presente, como tokens em corpos animais atuais (os apapaatai-mona) (Ball, 2018Ball, C. (2018). Exchanging words: language, ritual, and relationality in Brazil’s Xingu indigenous park. University of New Mexico Press.), e também possuem seus habitats nos rios e florestas. Os dois planos existem em dimensões temporais diferentes: os seres-tipo são ancestrais e permanentes, enquanto os animais-tokens nascem e morrem em ciclos mais curtos. Tal não os impede de aparecer aos olhos de humanos ‘ao mesmo tempo’, bem como de serem frequentemente referidos pelos Wauja pelo mesmo termo genérico apapaatai. Isso acontece, em parte, porque, associadas a essa concomitância de planos, estão práticas de temporalização indéxico-sinedóquicas.

Práticas de sentido indéxico-sinedóquicas remetem para uma conexão de contiguidade efetiva entre o todo e a parte (ou entre o plural e o singular), equivalente àquilo que Barcelos Neto (2008)Barcelos Neto, A. (2008). Apapaatai. Rituais de máscaras no Alto Xingu. Edusp. descreve como ‘emanações’ ou ‘extensões’ em sua exímia tese sobre apapaatai. O léxico apapaatai (animal), bem como o seu uso combinado com o sufixo yajo (na glosa: animal verdadeiro ou autêntico, ‘animal-Mestre, hiper ou Dono’) fazem parte de estruturas de referência e predicação da língua Wauja. Estas estruturas denotam um mundo ‘lá fora’, orientando falantes nativos para uma certa consciência de eventos. Isto é o que Silverstein (1979)Silverstein, M. (1979). Language structure and linguistic ideology. In R. Cline, W. Hanks & C. Hofbauer (Eds.), The elements: a parasession on linguistic units and levels (pp. 193-247). Chicago Linguistic Society. descreve como indexicalidade ao nível da estrutura gramatical.

Porém, o modo como falantes analisam e representam o nexo de relações temporais que caracterizam certos eventos – por exemplo, avistamentos de seres kuma e/ou suas versões não hiper – depende de conexões indéxicas em múltiplos níveis (Silverstein, 1979Silverstein, M. (1979). Language structure and linguistic ideology. In R. Cline, W. Hanks & C. Hofbauer (Eds.), The elements: a parasession on linguistic units and levels (pp. 193-247). Chicago Linguistic Society.). Ou seja, depende de uma dialética entre uso, estrutura e ideologia linguística, compreendendo ideias sobre como a língua funciona e para o que ela serve.

Ora, é razoável sugerir que a função mensurativa, indispensável na pragmática das línguas europeias SAE, não adquira, na língua Wauja e em outras línguas amazônicas, a mesma preeminência. Disso é indício o caráter dito ‘não numérico’ (Sinha, 2018Sinha, V. S. (2018). Linguistic and cultural conceptualisations of time in Huni Ku?, Awetý and Kamaiurá indigenous communities of Brazil. University East of Anglia.) dos sistemas de números destas sociedades. Números que não expressam valores estritamente numéricos apontam para um foco voltado para manifestações atuais, como dedos ou lugares, e sua ordenação interna, ao invés de um foco voltado para quantidades absolutas (veja-se, a este respeito, Vilaça, 2019Vilaça, A. (2019). Inventing nature: Christianity and science in indigenous Amazonia. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 9(1), 44-57. https://www.journals.uchicago.edu/doi/epdf/10.1086/703795
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). Outras funções da língua, como denotar contiguidades entre planos de existência, entre si mesmo contrastantes (‘tempo originário’ versus ‘tempo histórico’), e refletir sobre efeitos ou manifestações atuais de eventos multitemporais, parecem ser uma preocupação mais preponderante no contexto e na pragmática da língua Wauja.

Os efeitos dessa alteridade podem ser notados, inclusive, na forma como falantes nativos de Wauja fazem uso criativo de conceitos e estruturas da língua portuguesa em atos linguísticos metapragmáticos (falas explicativas) sobre sua própria cultura. Veja-se, a exemplo, os excertos (Figuras 1 e 2) de uma fala de Tukupe Waurá, jovem liderança bilíngue, que começou a adquirir domínio sobre a língua portuguesa a partir de seus 20 anos, há cerca de 20 anos.

Figura 1
Rodrigues-Niu, 2018: rec. DR0000-0303 - Expedição de reconhecimento, entorno Piyulewene, 14/07/2018, entrevista aberta a Tukupe Waurá; transcrito por Patrícia Rodrigues-Niu.
Figura 2
Rodrigues-Niu, 2019 - Cadernos de campo, paráfrase, conversa livre, no mesmo dia à noite.

Tukupe faz uso notadamente coerente de múltiplas noções temporais. Implícito em sua fala está um entendimento amplo e plural das relações de causalidade entre eventos no passado, presente e futuro-previsível, baseadas em noções de precedência, linearidade, permanência, virtualidade e atualização, repetição, estase, efeito cumulativo, sucessão, continuidade, descontinuidade e reversibilidade, entre outros.

Apesar da maestria e fluência de Tukupe na língua portuguesa e seus conceitos, muitos falantes nativos de línguas europeias de padrão mediano (SAE) darão por si fazendo um esforço para descortinar uma lógica de causalidade linear, apenas para descobrir que o sentido de sua fala é inteiramente outro. Propõe-se que essa equivocação inicial, de proporções quiçá incontornáveis, é causada pelo hábito instintivo de falantes de línguas SAE para verem descontinuidade e ruptura onde os Wauja significam continuidade sinedóquica (entre o todo e as partes). A descrição paradigmática de seres yerupoho como tendo ‘desaparecido’ ou ‘ido embora’, conquanto permanecendo ‘no mesmo lugar’, é expressiva de uma consciência de concomitância entre distintas temporalidades: uma marcada por rupturas e outra que é ‘para sempre’.

A ‘visibilidade’ de tais seres é faceta de uma história mais ampla a respeito da permeabilidade, no espaço, entre dimensões ontológicas e temporais distintas. Ou, na expressão de Sá (2021, p. 22)Sá, T. B. (2021). Esboço de uma topogramática xinguana. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional., uma “porosidade” e “diferença produtiva” entre “o mítico” e “o histórico”.

Por contraste, falantes de línguas europeias de padrão mediano (SAE) analisam e representam a relação entre tempo e espaço predominantemente em termos de descontinuidades. Wagner (2018)Wagner, R. (2018). The reciprocity of perspectives. Social Anthropology, 26(4), 502-510. https://doi.org/10.1111/1469-8676.12573
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destaca a dualidade na base da operação conceitual metafórica que projeta propriedades cartesianas do espaço no tempo. A metáfora, como toda a comparação, pressupõe uma distinção entre os termos da equação: enquanto significante e significado, ativo e passivo, sujeito e objeto, ‘espaço’ e ‘tempo’ são recriados por meio de sua própria dissociação autocontrastiva (ou metafórica). Assim, o tempo cronológico – em si mesmo produto de uma metáfora de descontinuidade entre tempo e espaço – resume-se a uma sequência de descontinuidades, dado que cada evento ocupa uma posição singular na cadeia linear de causa e efeito.

Acreditamos que a referência temporal baseada em eventos e a baseada em tempo cronológico sejam ambas utilizadas, embora em diferentes proporções, quer pelos nativos de línguas SAE, quer pelos nativos contemporâneos de línguas de tempo distribuído, provando que tais sistemas de referência temporal não são incompatíveis. Como exemplificado na fala de Tukupe, a relevância da distinção entre os dois modelos está na lógica de causalidade que cada sistema facilita e a medida na qual tal lógica de causação prevalece sobre todas as outras. Enquanto o sistema cronológico (e de tempo gramatical/tense) enfatiza mudança e direcionalidade, o sistema de referência temporal baseado em eventos (ou de ‘tempo distribuído’) enfatiza recorrência e continuidade.

Esse é um dos motivos pelos quais esforços de reinterpretação para a língua portuguesa de enredos narrativos/discursivos que articulam múltiplas temporalidades e configurações cronotópicas em Wauja são antropologicamente fascinantes. Sem, aqui, se adentrar no interessante campo de estudo linguístico e sociocultural sobre bilinguismo e mudança de código (‘code-switching’), alude-se à pertinência de tais análises na compreensão de como a língua Wauja lida com o tempo. Na fala de Tukupe, intui-se o lugar central do presente na rede de relações causais que se estendem ao passado e ao futuro, bem como a preeminência do ‘agora’ na efetuação de um futuro desejado.

Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. explica que um dos efeitos da propensão Hopi de contar fases de tempo (tais como o dia) ordinalmente – ou seja, como manifestações sucessivas da mesma unidade, não como unidades distintas de tempo em fila sequencial – é se conceber o amanhecer como um ‘retorno do dia’, ao invés de como ‘um novo dia’. Tal perspectiva explica o trabalho ritual, dedicado pelos Hopi, no melhoramento do ‘hoje’, entendido como tendo efeitos cumulativos – ou ‘acretivos’, na expressão de Basso (1981)Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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– que podem retornar no ‘amanhã’.

Por contraste, a cronologia se apresenta como instrumento de proscrição do passado e condutor ideal para o mito de progresso, abrindo espaço para que o pensamento teleológico sature a esfera de experiência temporal. Nas palavras de Wagner (1986, p. 87)Wagner, R. (1986). Symbols that stand for themselves. University of Chicago Press., “the world of spatially constructed time has no center, no ‘now’”, uma vez que o ‘tempo’ se constitui, metaforicamente (via comparação e presunção de similaridade) como o análogo irrefreável do espaço.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entidades podem ‘desaparecer’, ‘ir embora’ e, no entanto, ‘ficar’ no mesmo lugar. Donos podem ‘morrer’ e ‘voltar’. Velhos fragmentos cerâmicos sinalizam o status humano de atuais habitantes não humanos. Estes temas, e outros afins, são recorrentes em relatos Wauja sobre lugares antigos e sobre as múltiplas dimensões ontológicas e temporais que colocam em relação. O sentido de tais expressões, em sua forma original ou reinterpretadas para o português, se encontra enraizado no universo linguístico e na cosmologia Wauja.

Neste artigo, argumenta-se que entender o ‘tempo’ em Wauja requer a consideração de questões contextuais primárias, de ordem cosmológica, ideológica e pragmática. Primeiro, o que constitui, em Wauja, uma ocorrência com potencial indéxico temporal? Isto é, que realidades materiais e imateriais (‘sinais’, nos termos da semiótica peirceana) são mais explicitamente notados e denotados como acontecimentos (e/ou ‘lugares-evento’) e quais as estruturas internas e diferenciações externas sobre as quais se premissa avaliações sobre a sua ‘completude’? E segundo, a partir de que ideologias linguísticas e princípios cosmológicos diferentes tipos de eventos (ou lugares) são colocados em relação temporal?

Para se começar a responder a estas questões, a pesquisa em curso de Rodrigues-Niu convida para a análise de sinais no e do ambiente e como estes são categorizados e ideologicamente consolidados como objetos temporais nas práticas socioculturais e linguísticas Wauja. Esta abordagem segue na esteira de um enfoque ou atenção analítica ao contexto espacial e etnográfico de enunciação – o ‘aqui e agora’ da fala como interação –, somando-se aos trabalhos em curso de documentação colaborativa de lugares com nome na paisagem fluvial, por parte de Ball. Como exemplificado, tal enfoque não exclui um interesse nos usos narrativos do movimento de corpos e substâncias, bem como nos sentidos possíveis de composições e morfemas do sistema de referência e predicação.

Em resposta aos questionamentos acima, os autores apresentam dados preliminares e ensaiam propostas interpretativas. Em relação à questão “o que constitui, em Wauja, uma ocorrência com potencial indéxico temporal?”, a resposta curta, aqui avançada, se relaciona com movimento, isto é, mudança no posicionamento espaço-temporal. Com respeito à segunda questão – “a partir de que princípios linguísticos e cosmológicos diferentes tipos de eventos/lugares são colocados em relação temporal?” –, sublinha-se uma contiguidade sinedóquica entre múltiplos planos de existência e dimensões ontológicas. Contrastam-se estas possíveis respostas com perspectivas informadas pela cosmologia progressista e ideologia linguística objetivista característica das sociedades europeias SAE.

Em suma, a presente discussão sobre a complexidade do tempo em Wauja enfatiza a sua irredutibilidade e relação intrínseca com as múltiplas dimensões do espaço. Busca-se, com este estudo de caso, contrapor modelos ocidentais de espacialização do tempo, que enfatizam diacronias télicas e unidimensionais flutuando no vazio, em detrimento da complexidade de processos indígenas de vivência e temporalização das paisagens. Nas palavras de Hegel (citado em Stone, 2000Stone, A. (2000). Hegel’s philosophy of nature: overcoming the division between matter and thought. Dialogue: Canadian Philosophical Review/Revue Canadienne de Philosophie, 39(4), 725-744. https://doi.org/10.1017/S0012217300007824
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, p. 732): “The truth of space is time, so that space becomes time”. A propósito desta citação, também as reflexões desenvolvidas por Viveiros de Castro e Danowski (2020)Viveiros de Castro, E., & Danowski, D. (2020). The past is yet to come. E-Flux Journal, (114). http://worker01.e-flux.com/pdf/article_364412.pdf
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não destoam do sentido aqui proposto de uma ‘pragmática do presente’ que enfatiza o ‘agora’ como a intersecção de uma multiplicidade de durações e modos de temporalização marcados por uma conexão indéxico-sinedóquica com o espaço.

Murphy (1971, p. 96)Murphy, R. F. (1971). The dialectics of social life. George Allen and Unwin., um pesquisador que atuou junto aos Munduruku, oferece a seguinte ilação:

Functional relationships, in the usual sense, take place only in space; dialectical ones occupy both time and space. One might say: positivism destroys time to assert common-sense reality; dialectical reasoning destroys common-sense reality to assert time. In the process, the locus of reality shifts from the things (objects) of the positivists, which are unidimensional and timeless, to relationships and processes, which convert the supposedly fixed in time into the temporally variable.

‘Temporalmente variável’, na expressão do autor, é aqui reinterpretado como ‘temporalmente múltiplo’, no sentido dado acima. A abordagem pragmática aqui proposta é processual e relacional, na esteira da dialética hegeliana e em seus desdobramentos no seio da semiótica triádica de C. S. Peirce. Os autores baseiam sua análise do tempo Wauja em perspectivas clássicas da antropologia linguística, inspirando-se, em particular, na visão teórica de Whorf (1956 [1939]; Sapir & Swadesh, 1946Sapir, E., & Swadesh, M. (1946). American Indian grammatical categories. Word, 2(2), 103-112. https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/00437956.1946.11659281
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) e seu foco nos padrões de entendimento de eventos em termos culturais e pragmáticos. A análise de Whorf (1956 [1939])Whorf, B. L. (1956 [1939]). The relation of habitual thought and behavior to language. In J. B. Carroll (Ed.), Language, thought, and reality (pp. 134-159). MIT Press. significou um salto qualitativo importante, impulsionando estudos que vão além da mera codificação gramatical do tempo, para contemplar o modo reflexivo de se interpretar sistematicamente os sentidos de sinais indéxicos em contextos de uso (conhecido na literatura recente como ‘enquadramento metapragmático’; Silverstein, 2003Silverstein, M. (2003). Indexical order and the dialectics of sociolinguistic life. Language & Communication, 23, 193-229. https://doi.org/10.1016/S0271-5309(03)00013-2
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).

Argumenta-se que modos linguísticos de marcar o tempo e modos culturais de entender o tempo são complexos e variáveis, de maneira que o não uso de tempo gramatical de forma alguma restringe a expressão ou cognição temporal. Pelo contrário, tal ‘ausência’ pode estar na base de uma propensão Wauja, quiçá amazônica, para a elaboração da complexidade espaço-temporal e relacional do presente, motivando falantes a se expandirem sobre as múltiplas qualidades do tempo de formas bem mais sofisticadas do que sugerido por metáforas acadêmicas de atemporalidade2 2 Veja-se, a propósito, os debates em torno do tempo ‘cíclico’ versus o ‘linear’ em Bloch (1977), Gell (1999), entre outros. .

Poder-se-ia, talvez, dizer que os Wauja estão excepcionalmente equipados para entender a máxima braudeliana: “En effet, dans le langage de l’histoire, il ne peut guère y avoir de synchronie parfaite: un arrêt instantané, suspendant toutes les durées, est presque absurde en soi” (Braudel, 1958Braudel, F. (1958). Histoire et sciences sociales: la longue durée. Annales. Histoire, Sciences Sociales, 13(4), 725-753. https://www.persee.fr/doc/ahess_0395-2649_1958_num_13_4_2781
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, p. 739). Exceto que a linguagem Wauja da história compreenda a possibilidade, virtual, da sincronia perfeita, na forma de uma simultaneidade ou (co)incidência do momento presente com tempos e agências outras. Esse é o momento ritual do “desenfatizar da consciência de ego e dos problemas individuais”; da “compressão do tempo e espaço e da unidade da comunidade”, na expressão de Basso (1981, p. 286, 288, tradução nossa)Basso, E. B. (1981). A “musical view of the universe”: Kalapalo Myth and ritual as religious performance. The Journal of American Folklore, 94(373), 273-291. https://doi.org/10.2307/540153
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. Assim se entende também a crítica de Lévi-Strauss (1963) à ênfase desmesurada dada à diacronia por parte de abordagens clássicas da História progressista e événementielle, com sua representação de ‘H’istória como mudança constante movida por indivíduos. Conforme sugerido por Harkin (2009)Harkin, M. E. (2009). Levi-Strauss and history. In B. Wiseman (Ed.), The Cambridge Companion to Lévi-Strauss (pp. 39-58). Cambridge University Press., o contraste levi-straussiano entre sociedades ‘frias’ e ‘quentes’ constitui, em última instância, uma crítica ao individualismo moderno e sua mitologia télica.

As descrições Wauja do presente como ponto de organização de múltiplas agências e temporalidades convida a uma visão dinâmica e não estática das paisagens históricas indígenas, bem como do ‘agora’ fenomenal. Etnograficamente, o que se observa é um ‘agora’ temporalmente denso, caracterizado por um interesse cultural voltado à plenitude de eventos e sua pluralidade temporal interna, bem como à concomitância de diferentes durações, planos e respectivas agências, que se fazem particularmente preeminentes em lugares dotados de ‘antiguidade’3 3 Veja-se, também, Rodrigues-Niu e Ramos (2023). .

ABREVIATURAS
  • 1  primeira pessoa
  • 2  segunda pessoa
  • 3  terceira pessoa
  • 1p  primeira pessoa do plural
  • 2p  segunda pessoa do plural
  • 3p  terceira pessoa do plural
  • abl  ablativo
  • afirm  afirmação
  • atr  atribuitivo
  • ben  benefativo
  • caus  causativo
  • cl  classificador
  • col  coletivo
  • cond  condicional
  • conj  conjuntivo
  • dem  demonstrativo
  • dem.dist  demonstrativo distal
  • dem.pl  demonstrativo plural
  • dem.prox  demonstrativo proximal
  • dim  diminuitivo
  • dstr  distribuitivo
  • enf  enfático
  • impf  imperfetivo
  • i.surp  Interjeição de surpresa
  • inst/com  instrumental-comitativo
  • irr  irrealis
  • loc  locativo
  • neg  negação
  • nom  nominalizador
  • obj  objeto
  • pass  passivo
  • pftv  perfectivo
  • poss  possessivo
  • prog  progressivo
  • prox  proximal
  • res  resultativo
  • rslt  resultativo
  • rstri  restritivo
  • sim  similativo
  • tr  transitivo
  • vblz  verbalizador
  • 1
    Veja-se, também a este respeito, o trabalho de Sá (2021) junto aos Kuikuro.
  • 2
    Veja-se, a propósito, os debates em torno do tempo ‘cíclico’ versus o ‘linear’ em Bloch (1977)Bloch, M. (1977). The past and the present in the present. Man, 12(2), 278-292. https://doi.org/10.2307/2800799
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    , Gell (1999)Gell, A. (1999). Time and social anthropology. In P. J. N. Baert (Ed.), Time in contemporary intellectual thought (pp. 251-265). Elsevier., entre outros.
  • 3
    Veja-se, também, Rodrigues-Niu e Ramos (2023)Rodrigues-Niu, P., & Ramos, M. (2023). Entre o céu e a terra: subsídios para uma arqueologia de territórios multitemporais alto-xinguanos. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220022. https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0022
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    .

AGRADECIMENTOS

A pesquisa de Christopher Ball contou com o apoio da National Science Foundation (NSF, Directorate for Social, Behavioral and Economic Sciences, 2017, Id: 1729151). A pesquisa de Rodrigues-Niu contou com o apoio da National Science Foundation (NSF, prêmio Cultural Anthropology Research Experience for Graduates, 2018, Id: 1729151) e da Wenner-Gren Foundation (WGF, Dissertation Fieldwork Grant, 2019-em curso, Gr. 9925). Os autores são gratos pelo acolhimento e colaboração das comunidades Wauja.

  • Rodrigues-Niu, P. F., & Ball, C. (2023). Tempo distribuído e pragmática do presente entre os Wauja do Alto Xingu. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220092. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0092.

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Editado por

Responsabilidade editorial: Lúcia Hussak van Velthem

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Jan 2023
  • Aceito
    20 Set 2023
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