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Abrindo caminhos no Brasil: a mobilidade Warao em Manaus, Amazonas, e Belém, Pará

Opening the way in Brazil: Warao mobility in Manaus, Amazonas, and Belém, Pará

Rosa, M. 2021. A mobilidade Warao no Brasil e os modos de gestão de uma população em trânsito: reflexões a partir das experiências de Manaus-AM e de Belém-PA. 1. ed.E-papers,

O livro “A mobilidade Warao no Brasil e os modos de gestão de uma população em trânsito: reflexões a partir das experiências de Manaus-AM e de Belém-PA”, lançado em 2021, é a publicação da tese de Marlise Rosa, defendida em julho de 2020, meses após a irrompimento da pandemia de covid-19 no mundo. Por isso, além das reflexões correspondentes à mobilidade Warao, traz um valioso epílogo acerca das percepções e reações dos Warao à pandemia de covid-19. A pesquisa foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional e conta com o prefácio de João Pacheco de Oliveira, orientador da tese.

Marlise Rosa nos conta que se encontrava em Manaus, no começo de 2017, para realizar sua pesquisa de campo sobre a circulação de crianças indígenas em contexto urbano, quando se viu diante da guinada provocada pela inviabilidade do campo pretendido e pela articulação despretensiosa de um novo, em meio à urgência de conhecimento antropológico sobre o povo Warao e a crise institucional que se instaurou ante a sua chegada. Juntamente com os criollos, como se chamam aqueles considerados mestiços na Venezuela, eles formavam um acampamento no entorno do terminal rodoviário de Manaus desde dezembro de 2016, requerendo ações da sociedade civil e do poder público.

Ainda hoje, oito anos após o registro de sua primeira incursão na fronteira brasileira, em 2014, o fato de ser um povo oriundo de outro país faz deles e de sua trajetória até e pelo Brasil elementos de uma história pouco conhecida, mesmo no meio antropológico. Rosa nos apresenta respostas para perguntas que até hoje os Warao suscitam à população e a entes governamentais das cidades aonde chegam: Por que vieram para o Brasil? Por que pedem dinheiro nas ruas? São nômades? Buscam por terras?

Assim, o livro é dividido em duas partes, cada qual com dois capítulos. Na primeira, a partir de outras etnografias, documentos e reportagens, a antropóloga nos apresenta o povo Warao, suas características etnológicas, os registros históricos sobre eles, o perfil da colonização espanhola no delta do Orinoco, território onde vivem há cerca de 7.500 anos, falando sobre indigenismo e a política indigenista na Venezuela.

Tais temas são ricamente guiados pelo encadeamento das situações históricas ao longo do século passado, que transformaram os modos de vida tradicionais, levando-os à mobilidade entre as cidades venezuelanas: a introdução da plantação de ocumo chino, um tipo de tubérculo, na região pelos missionários capuchinos na década de 1920, o que deslocou a importância da organização da vida em torno da sazonalidade da extração de buriti (fruto da palmeira Mauritia flexuosa) para a nova atividade, modificando o padrão de moradias e introduzindo a dependência monetária a partir do trabalho assalariado nas lavouras; o represamento do rio Mañamo, na década de 1960, que teve um desastroso impacto ambiental em parte significativa do território warao, impossibilitando, em algumas épocas do ano, até o consumo de água potável; e o estabelecimento da exploração petrolífera na década de 1990, com impactos ambientais e sociais característicos desse tipo de atividade, tais como a poluição de recursos, especialmente hídricos, introdução de doenças, prostituição, aumento de conflitos e do consumo problemático de entorpecentes e álcool. Além de uma lista de outras práticas predatórias ao longo de décadas, tais como a instalação de grandes plantações de arroz e a exploração pela indústria pesqueira.

Rosa destaca uma seção para nos contar sobre a epidemia de cólera que ocorreu na década de 1990, com registro de óbito de cerca de 500 indígenas warao e cuja gestão de crise produziu um estado desastroso de miserabilização das comunidades atingidas, tanto no território quanto nas cidades para onde foram em busca de socorro. Além disso, os indígenas foram culpabilizados pela epidemia.

A autora chama atenção para o fato de a política indigenista na Venezuela, desde a colônia, ter sido executada quase exclusivamente pela Igreja Católica e, por volta de 1950, também pela missão evangélica Novas Tribos – inclusive, as ações de saúde e educação, a realização do censo populacional indígena e a organização territorial das comunidades são feitas até hoje por meio das paróquias.

A autora elenca avanços obtidos com o governo de Hugo Chavez e com a constituição promulgada em sua gestão, tais como a criação do Ministério do Poder Popular dos Povos Indígenas, em 2007, que concentrou os esforços na garantia de direitos a esse segmento, até então pulverizados em diferentes órgãos e departamentos estatais; e a tentativa de superar o caráter assimilacionista do indigenismo venezuelano e fomentar uma identidade pluriétnica com destaque para os povos indígenas. Porém, Rosa avalia que o acesso aos direitos indígenas não foi total, permanecendo no campo do discurso. Ela aponta, por exemplo, a frágil política de concessão de títulos de terras, nunca executada em nome dos povos e com grandes extensões de terra, dificultando a proteção de seus modos de vida coletivos. A emancipação dos povos indígenas na Venezuela no governo Chavez se deu via programas sociais e apoio produtivo, permitindo ascensão econômica, mas não acesso a direitos diferenciados.

Ao concluir a etapa venezuelana do livro, Rosa nos elucida os motivos e as condições que levaram parte dos Warao a iniciar o processo de mobilidade em busca de recursos e dinheiro, primeiramente no âmbito do próprio território; em seguida, entre as pequenas cidades da região do delta do rio Orinoco; a partir de 1990, até Caracas e cidades maiores; até, enfim, sua vinda para o Brasil.

Rosa utiliza o conceito de mobilidade e não imigração ou deslocamento forçado por compreender que a movimentação Warao se dá de modo processual e relacional, não se restringindo a um ponto de partida e chegada, mas ao movimento e ao percurso. Ela defende a tese de que sua mobilidade na Venezuela e, posteriormente, no Brasil, longe de ser a adaptação de uma característica cultural de coleta, nomadismo ou circularidade, é uma estratégia de sobrevivência e prova de seu protagonismo ante diferentes incursões sobre seu território, recursos e modos de vida. Cai como uma luva a sua analogia sobre a produção das redes, os chinchorros, feitas de fibra do buritizeiro, chamada por eles de ‘árvore da vida’, tal é sua importância econômica e simbólica para os Warao. Porém, quando a feitura com a fibra não é mais possível, em decorrência da dificuldade de acesso aos buritizais nas cidades ou a fibra já tratada no Brasil, as artesãs fazem seus tradicionais chinchorros com linhas coloridas de polipropileno, sempre se reinventando, construindo redes, encontrando caminhos e novas formas de seguir.

Rosa, a exemplo de outros autores que falam sobre os Warao na Venezuela, destaca o protagonismo das mulheres desse povo. Em sua etnografia, ela confirma que o padrão de expedições às cidades venezuelanas chefiadas e compostas por mulheres acompanhadas de seus filhos menores, inicialmente, foi reproduzido no Brasil. As estadias, em busca de dinheiro e doações, duravam entre duas semanas e quatro meses, sempre retornando à comunidade ou à cidade de origem para a repartição do que fora arrecadado.

Com o agravamento da crise política e econômica na Venezuela, houve um sério desabastecimento em 2016, sobretudo de alimentos e remédios. Várias famílias warao seguiram o fluxo juntamente com outros venezuelanos em direção à fronteira terrestre com o Brasil, onde passaram a lidar com outros desafios. Entre eles, Rosa destaca a incompreensão sobre a presença das crianças acompanhando suas mães na arrecadação de dinheiro e doações nas ruas, comumente entendida como exploração infantil e recebendo julgamentos preconceituosos e represálias agressivas por parte da sociedade e dos conselhos tutelares.

Na segunda parte do livro, a partir dos inquéritos civis públicos instaurados pelo Ministério Público Federal (MPF) em Manaus, Amazonas, e Belém, Pará, de reportagens e de sua pesquisa antropológica e atuação no apoio aos Warao, Rosa reconstrói o modo como a chegada deste povo no Brasil foi sendo gerenciada pelas instituições e sociedade brasileira.

A partir da noção foucaultiana de governamentalidade, segundo a qual as formas de governar populações engendram práticas e saberes atravessados por moralidades e preconceitos, a antropóloga desloca sua análise do Estado para suas práticas. Ela descreve como as tecnologias de governo, definidas como forças legais, administrativas e orçamentárias, balizam as práticas dos Warao no Brasil. Assim como é para Fassin (2009)Fassin, D. (2009). Another politics of life is possible. Theory, Culture and Society, 26(5), 44-60. https://doi.org/10.1177/0263276409106349
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, Rosa entende que a forma de gestão dessas populações incide de maneira concreta sobre suas vidas, orientando suas decisões.

Um exemplo disso é como a pressão e as ameaças às mulheres acompanhadas por suas crianças os fazem modificar o padrão da mobilidade protagonizada por elas, que, com a experiência agressiva no país, passou a ser realizada por toda a família e provocou a introdução de homens sozinhos na arrecadação de dinheiro nas ruas.

Se, por um lado, há forte pressão em criminalizar aspectos culturais da presença warao nas cidades, por outro, há morosidade em encaminhar soluções, como ocorreu em Manaus, onde os entes do Estado, governo, prefeitura e União, jogaram a responsabilidade de um para o outro por seis meses, mesmo após seguidas recomendações do MPF para que providências fossem tomadas em relação ao acampamento que havia se formado no entorno da rodoviária.

Na cidade de Belém, a situação de negligência prolongou-se por um ano, tempo que demorou desde a chegada dos Warao até que a prefeitura decretasse situação de emergência social, requerendo ajuda financeira do ente federativo para encaminhar abrigos públicos para os indígenas.

Para a autora, trata-se de racismo estrutural e institucional, sendo “modos indiretos de levá-los à morte, negando-lhes atendimento, rejeitando-lhes ou culpabilizando-os pela própria vulnerabilidade é, justamente, o modo pelo qual o Estado tem feito a gestão dessa população” (p. 220).

Outra característica comum à gestão da presença warao nas duas cidades é o caráter provisório e emergencial de suas ações. Orientada pelas reflexões de Sayad (1998)Sayad, A. (1998). A imigração ou os paradoxos da alteridade (1. ed.). Edusp., Marlise Rosa analisa a morosidade em promover ações duradouras em longo prazo, tais como para saúde e educação, como demonstração do caráter indesejável de sua presença, já que são indígenas em contexto urbano, onde se entende que estejam fora do lugar; não são vistos como trabalhadores prontos para ser incorporados no mercado de trabalho formal, e sim como quem nada tem a contribuir e nos quais não compensa investir. Aponta ainda que os serviços e programas oferecidos aos Warao são os mesmos despendidos à população em geral, não se considerando as especificidades de sua condição indígena.

Rosa analisa que os abrigos públicos em Manaus e Belém destinados a eles se constituem como dispositivos de poder e se convertem em tentativas de pacificação contemporâneas, em que o controle e as regras estabelecidas sem participação dos indígenas têm por finalidade a sua domesticação para a vida no Brasil. O modelo centralizado, aglomerando conjuntos de famílias sem afinidade dentro da característica diversidade dos modos de ser do povo Warao, faz com que aumentem tensões e conflitos políticos e xamânicos, provocando novos deslocamentos e o afastamento de grupos já bastante vulnerabilizados dos agentes do Estado, aos quais, paradoxalmente, lhes resta recorrer para obter ajuda.

Ao longo do livro, Rosa demonstra como os Warao resistem ao se reinventarem, criando estratégias para sobreviver às incursões sobre seus territórios, seus modos de vida e sua medicina. Marlise Rosa defende que os indígenas desobedecem, reivindicam e desafiam as instituições brasileiras, mesmo diante da assimetria de poder, buscando fazer prevalecer seus interesses e sua visão de mundo.

AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

  • Nogueira, D. (2023). Abrindo caminhos no Brasil: a mobilidade Warao em Manaus, Amazonas, e Belém, Pará. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(2), e20220080. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0080.

REFERÊNCIAS

  • Fassin, D. (2009). Another politics of life is possible. Theory, Culture and Society, 26(5), 44-60. https://doi.org/10.1177/0263276409106349
    » https://doi.org/10.1177/0263276409106349
  • Sayad, A. (1998). A imigração ou os paradoxos da alteridade (1. ed.). Edusp.
Responsabilidade editorial: Claudia Leonor López-Garcés

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2022
  • Aceito
    25 Abr 2023
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