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O papel da arqueologia brasileira na discussão sobre os cenários e os processos das primeiras ocupações humanas das Américas

Temos acompanhado, com entusiasmo, um crescimento significativo das pesquisas arqueológicas no Brasil nas últimas décadas. Vários sítios arqueológicos novos foram documentados, alguns dos materiais e sítios já conhecidos foram retomados e reestudados com novas perspectivas. Como resultado, podemos observar um amadurecimento do debate a respeito de questões que, inclusive, ultrapassam as fronteiras do território brasileiro.

Uma dessas questões refere-se ao papel da arqueologia e dos sítios arqueológicos brasileiros para o entendimento dos primeiros povoamentos das Américas. Passadas mais de duas décadas da realização, em São Raimundo Nonato, no Piauí, da Conferência Internacional sobre o Povoamento das Américas (International Symposium on the Peopling of the Americas, 1996INTERNATIONAL SYMPOSIUM ON THE PEOPLING OF THE AMERICAS, 1993, São Raimundo Nonato, Piauí. Papers presented. In: FUMDHAMentos: Revista da Fundação Museu do Homem Americano, São Raimundo Nonato, v. 1, n. 1, dez. 1996.), o cenário hoje envolve muito mais sítios e pesquisadores do que naquele momento. O sítio de Monte Verde, no Chile, já não é mais uma anomalia solitária na América do Sul – se bem que, naquela ocasião, já não era – e, como veremos em alguns dos artigos que compõem o dossiê “Cenários e processos das primeiras ocupações humanas no Brasil: o papel da pesquisa arqueológica”, questões políticas e escolhas sobre quais sítios e pesquisas arqueológicas devem ser consideradas mais importantes podem ser os principais fatores responsáveis pela validade ou pelo descarte dos dados de determinados contextos.

Os trabalhos reunidos neste dossiê não têm a pretensão de esgotar as possibilidades de atualização a respeito do que tem acontecido nas pesquisas sobre o povoamento e os sítios antigos do território brasileiro. Tendo em vista que, para a abordagem dessas questões, a amplitude dos temas deve ser necessariamente multidisciplinar, os nove artigos a seguir são somente exemplos temáticos de uma discussão que, certamente, deve envolver mais pesquisadores e mais áreas do conhecimento. Ausências importantes serão notadas, esperamos que isso motive mais pesquisadores a organizarem eventos e espaços que possam integrar cada vez mais a amplitude desta discussão.

Depois de alertar sobre as lacunas, é importante, então, apresentar o que motivou a reunião desses trabalhos em um dossiê veiculado pelo Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. A proposta surgiu no contexto de um projeto financiado por um convênio entre a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e o Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil (COFECUB), e pelos esforços pessoais dos participantes que, durante quatro anos, reuniram-se para debater, rever documentos, coleções e visitar sítios arqueológicos no Brasil e na França. A partir desses encontros e de suas pesquisas pessoais, que em alguns casos são de longa duração, a proposta foi refletir sobre a possibilidade de dialogar com estes dados de maneira integrada.

No Brasil, foram realizados sete encontros, respectivamente em São Paulo, Santa Catarina, Minas Gerais, Pará, Piauí, Mato Grosso e, novamente, Minas Gerais, os quais contaram com a participação de pesquisadores externos e de estudantes de graduação e de pós-graduação em arqueologia e em áreas afins.

No Pará, nas cidades de Santarém e de Monte Alegre, foi realizado o II Simpósio Internacional Discutindo o Povoamento (2017)SIMPÓSIO INTERNACIONAL DISCUTINDO O POVOAMENTO, 2., 2017, Santarém. Trabalhos apresentados [...]. Santarém: Universidade Federal do Oeste do Pará, 2017. Tema: Cenários e processos das primeiras ocupações humanas da América do Sul. Existe uma Tradição Amazônica na Transição Pleistoceno-Holoceno?, cujo título foi “Cenários e processos das primeiras ocupações humanas da América do Sul”. Este evento teve como enfoque principal a necessidade de discutir, de maneira integrada, os dados da Amazônia e do restante do Brasil, que, em alguns casos, já são conhecidos há muito tempo, mas que, por conta da geopolítica atual ou das correntes teóricas que orientaram as pesquisas, não foram colocados em confronto. A maior parte dos artigos que integram o dossiê é composta por textos produzidos a partir das discussões que aconteceram neste evento. Sendo o Museu Goeldi uma instituição amazônica e uma das mais importantes do Brasil, pensamos que esta publicação será uma boa oportunidade para que pesquisas futuras reflitam sobre a necessidade de integração regional de maior amplitude.

Muitos dos pesquisadores que assinam os textos deste número são professores de cursos de graduação em arqueologia no Brasil. Um dos objetivos do dossiê também é fornecer material publicados em língua portuguesa que sirva de subsídio para promover este debate com os futuros arqueólogos brasileiros.

Os autores, além de apresentarem dados científicos e sínteses sobre temas importantes para a questão, vêm também chamar a atenção para o papel político que permeia a arqueologia, bem como para a necessidade de repensar conceitos antigos que continuamos repetindo, muitas vezes por não avaliarmos o significado que tiveram no momento em que foram apresentados. Afirmando a necessidade de especializações temáticas para o bom andamento das pesquisas, os autores também apontam a necessidade de pensar os resultados em conjunto, pois as especialidades fazem sentido para pesquisadores, mas não para as pessoas que deixaram os vestígios.

Na sequência, os leitores, então, encontrarão as seguintes discussões:

Myrtle Shock e Claide de Paula Moraes, com o texto “A floresta é o domus: evidências arqueobotânicas e arqueológicas das antigas ocupações humanas amazônicas”, fazem um apanhado dos dados botânicos em sítios antigos para pensar que, na floresta tropical, onde as primeiras pesquisas avaliaram com pessimismo a possibilidade de preservação de vestígios orgânicos, estes têm se tornado uma das principais ferramentas para entender o papel que os humanos exerceram na transformação do que conhecemos hoje como floresta amazônica. Os estudos das plantas, integrados com outros dados arqueológicos, também apontam para a necessidade de pensar que a Amazônia é muito mais heterogênea do que as pesquisas pioneiras propuseram. Assim, suas fronteiras com outros biomas também devem ter exercido um papel menos importante na trajetória dos humanos desde suas primeiras ocupações.

Marcos Pereira Magalhães e colaboradores, com o texto “O Holoceno inferior e a antropogênese amazônica na longa história indígena da Amazônia oriental (Carajás, Pará, Brasil)”, trazem, mais uma vez, os dados botânicos para pensarem nos processos que conduziram os humanos em suas diferentes estratégias de ocupação da Amazônia, tendo como pano de fundo os dados arqueológicos da região de Carajás e como a relação simbiótica entre humano e ambiente transformou ambos de maneira permanente. Assim como Bueno, em seu texto, Magalhães et al. chamam atenção para a contextualização histórica do conceito de caçador-coletor e sua inadequação como termo para denominar as populações responsáveis pelas transformações verificadas por eles nos contextos estudados.

Seguindo com os textos amazônicos, Edithe Pereira e Claide de Paula Moraes, no artigo “A cronologia das pinturas rupestres da Caverna da Pedra Pintada, Monte Alegre, Pará: revisão histórica e novos dados”, mostram que, mesmo diante de dificuldades de contextualização cronológica, os vestígios rupestres são importantes para pensar nas sequências de ocupações humanas na Amazônia.

Ainda na temática da arte rupestre, Agueda Vialou e Denis Vialou, discutindo um dos sítios mais antigos da América do Sul (Santa Elina), mostram, no artigo “Manifestações simbólicas em Santa Elina, Mato Grosso, Brasil: representações rupestres, objetos e adornos desde o Pleistoceno ao Holoceno recente”, como o simbolismo permeou as ocupações deste abrigo nos diferentes períodos.

Antoine Lourdeau, com uma ampla revisão dos dados produzidos em vários anos de pesquisa no Parque Nacional da Serra da Capivara, no artigo “A Serra da Capivara e os primeiros povoamentos sul-americanos: uma revisão bibliográfica”, chama atenção para o fato de que, ofuscados pelos questionamentos, ineditismo e singularidade dos dados arqueológicos do sítio Boqueirão da Pedra Furada, uma série de sítios e contextos com muito mais dados foram também ignorados antes mesmo de serem discutidos. Essa grande quantidade de dados provenientes da região poderia ter colocado a discussão sobre povoamento em outro patamar, desafiando, inclusive, barreiras cronológicas apresentadas em modelos mais recentes, como o Último Máximo Glacial.

Andrei Isnardis, com o texto “Semelhanças, diferenças e rede de relações na transição Pleistoceno-Holoceno e no Holoceno inicial, no Brasil Central”, em uma proposta semelhante à apresentada por Antoine Lourdeau para o nordeste, revisita os sítios e os contextos do Brasil Central, dialogando com os dados contemporâneos provenientes do nordeste, mostrando que, além do lítico, abundante na região, outros vestígios e reflexões são importantes para pensarmos em um cenário de povoamento.

Pedro Da-Gloria, com o texto “Ocupação inicial das Américas sob uma perspectiva bioarqueológica” – versando sobre uma das disciplinas temáticas que, nas últimas décadas, vem ampliando bastante o leque das discussões sobre a presença humana no continente americano, a bioarqueologia –, reúne, em uma síntese, dados que geralmente aparecem em vários artigos com temáticas distintas, como genética, morfologia, migração e modelos de povoamento, facilitando uma análise integrada destas diferentes abordagens.

Compondo a última parte do dossiê, o leitor encontrará dois textos com propostas de discussões teóricas, políticas e reflexivas a respeito da arqueologia dos povoadores mais antigos do território americano, e as implicações que estas questões têm para a arqueologia brasileira e para os nativos americanos.

Adriana Dias, com o texto “Um réquiem para Clovis”, em uma etnografia com observação participativa no evento Paleoamerican Odyssey, ocorrido nos Estados Unidos em 2013, provoca o leitor a refletir sobre a forma como a arqueologia é desenvolvida e financiada, interferindo nos resultados e reforçando assimetrias entre centro e periferia de poder econômico e científico.

Lucas Bueno, em “Arqueologia do povoamento inicial da América ou História Antiga da América: quão antigo pode ser um ‘Novo Mundo’?”, convida o leitor a refletir a quem pertence o passado do território americano. Uma interrogação extraída do texto aponta os caminhos que o mesmo percorrerá: “[...] uma narrativa sobre o que, sobre quem, para quem e construída por quem?” (Bueno, 2019BUENO, Lucas. Arqueologia do povoamento inicial da América ou História Antiga da América: quão antigo pode ser um ‘Novo Mundo’? Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 14, n. 2, p. 477-495, maio/ago. 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222019000200011.
https://doi.org/10.1590/1981.81222019000...
, p. 478).

Esperamos que os trabalhos reunidos aqui possam contribuir para pensar o passado do território brasileiro, a importância que isso tem para o presente, e que abra caminhos para um futuro de novos debates e ideias.

Agradeço imensamente aos editores, pareceristas anônimos e autores, que, com profissionalismo, dedicação e paciência, contribuíram para a consolidação deste dossiê.

Vida longa aos nativos americanos...

Boa leitura!

REFERÊNCIAS

  • BUENO, Lucas. Arqueologia do povoamento inicial da América ou História Antiga da América: quão antigo pode ser um ‘Novo Mundo’? Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 14, n. 2, p. 477-495, maio/ago. 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222019000200011.
    » https://doi.org/10.1590/1981.81222019000200011.
  • INTERNATIONAL SYMPOSIUM ON THE PEOPLING OF THE AMERICAS, 1993, São Raimundo Nonato, Piauí. Papers presented. In: FUMDHAMentos: Revista da Fundação Museu do Homem Americano, São Raimundo Nonato, v. 1, n. 1, dez. 1996.
  • SIMPÓSIO INTERNACIONAL DISCUTINDO O POVOAMENTO, 2., 2017, Santarém. Trabalhos apresentados [...]. Santarém: Universidade Federal do Oeste do Pará, 2017. Tema: Cenários e processos das primeiras ocupações humanas da América do Sul. Existe uma Tradição Amazônica na Transição Pleistoceno-Holoceno?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2019
  • Aceito
    24 Jul 2019
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