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A neta de Ahira: palavras de uma pajé mehinako

Ahira’s granddaughter: Words of a Mehinako shaman

Resumo

Este artigo apresenta uma abordagem etnográfica do xamanismo mehinako, suas materialidades e inovações. Para a vasta literatura sobre temas clássicos como parentesco, xamanismo e ritual, a presença das mulheres é tímida, inexpressiva. Ademais, lideranças e xamãs têm sido descritos normativamente como homens. A partir da trajetória de Kamaya (Iamony) Mehinako, incluindo sua iniciação xamânica, este artigo analisa a atuação de mulheres líderes e xamãs nos contextos de suas comunidades e para além delas. Os dados mehinako são analisados em diálogo com trabalhos da literatura da região (Barcelos Neto, 2008; Figueiredo, 2015; Guerreiro, 2015), com objetivo de refletir sobre gênero e corporalidade mehinako, a relação com a cidade e as transformações recentes. É com o interesse de verificar o lugar dessas mulheres junto ao seu povo, ao tecer redes de cuidado, e produzir cotidianamente, a um só tempo, parentesco e alteridade que esse texto se projeta.

Palavras-chave
Xamanismo; Alto Xingu; Mehinako; Amazônia indígena; Relações de gênero

Abstract

This article presents an ethnographic approach to shamanism, its materialities, and innovations. The presence of women in the vast literature on classic themes like kinship, shamanism, and ritual is timid and inexpressive, while leaders and shamans have been normatively described as men. Based on the trajectory of Kamaya (Iamony) Mehinako, including her shamanic initiation, this article analyzes the actions of women leaders and shamans within the contexts of their communities and beyond. The Mehinako data are analyzed in dialogue with literature from the region (Barcelos Neto, 2008; Figueiredo, 2015; Guerreiro, 2015) in order to reflect on Mehinako gender and corporeality, the relationship with the city, and recent transformations. This text is intended to investigate the place of these women among their people by weaving networks of care and simultaneously producing kinship and otherness every day.

Keywords
Shamanism; Upper Xingu; Mehinako; Indigenous Amazonia; Gender relations

Este artigo apresenta a trajetória de vida da pajé Kamaya Mehinako (incluindo sua iniciação xamânica) e dela deriva uma reflexão antropológica sobre transformações recentes em instituições indígenas, sobre a presença de indígenas na cidade e sobre relações de gênero no Alto Xingu. Trago materiais etnográficos da minha dissertação de mestrado para serem retrabalhados e reflexões recentes da pesquisa de doutorado em curso. Examino a atuação de mulheres xamãs em suas comunidades e para além delas, e verifico quais ações não apenas pajés, mas também lideranças, conhecedoras de rezas e de raízes, empreendem para manter relativa estabilidade da vida de seus parentes.

Kamaya, mais conhecida por Iamony1 1 Apesar de eu me referir a Iamony como Iamony, um costume que é difícil de abrir mão, e que persistiu por não a incomodar, ela passou a se chamar Kamaya desde que sua neta menstruou pela primeira vez e recebeu seu último nome. Entre o povo mehinako, as pessoas mudam de nome ao longo da vida, e eles precisam ser passados (de avós/avôs para seus netos). Pode-se dizer agora que Kamaya foi seu último nome, herdado de Kamaya Wauja, prima-irmã de sua avó materna Kahití Wauja, ceramista e cantora, sob autorização da tia. Kahití era cacica da aldeia Mehinako, casada com o cacique, ceramista, pajé e, segundo me contou Iamony (comunicação pessoal, 2020), “sabia das coisas de rezar e sabia das coisas de cantar”. , foi uma amuluneju (liderança política), ceramista, pajé, raizeira, rezadeira e parteira. Filha de pai mehinako e mãe wuauja, ela viveu uma infância feliz na aldeia do povo mehinako, no Alto Xingu (ao sul do Território Indígena do Xingu - TIX). Essa região abriga nove povos (mehinako, wauja, aweti, kalapalo, kuikuro, kamaiura, yawalapiti, nahukwa e matipu) que, apesar de apresentarem diferenças étnicas e linguísticas, se relacionam como parentes. Casam entre si, festejam juntos a vida e a morte, têm em comum (reservadas suas especificidades) o desenho de suas casas, de suas aldeias, os modos de produzir e consumir alimentos, o calendário de festas, os padrões iconográficos, dentre tantas coisas mais. Entre os mehinako, tüneshu (mulheres) e enüshu (homens) se constroem diariamente como tais por meio das atividades que empreendem. Não estão inseridos em um contexto de eterna guerra dos sexos e tampouco de perpétua paz. De modo geral, há esforços cotidianos para se viver bem e em harmonia, evitando-se os excessos e garantindo a produção contínua e ativa de corpos humanos saudáveis, ativos e belos2 2 Como mostra Viveiros de Castro (1979), a corporalidade é uma dimensão focal do sistema alto-xinguano, de modo que é preciso fabricar-se humano frente às possibilidade de tornar-se bicho/tornar-se espírito. .

Quem conhecia Iamony pôde apreciar seu senso de humor fino, suas piadas debochadas, e pôde ouvir sua risada calorosa, desconfia de uma leitura que enquadre as mulheres mehinako como coadjuvantes de uma vida que supostamente só lhes reserva o tédio, como a que apresenta Gregor (1985)Gregor, T. (1985). Anxious pleasures: the sexual lives of Amazonian people. The University of Chicago Press.3 3 Gregor (1985) recorre a mitos e explora símbolos de gênero de modo a compor um discurso ‘local’ de antagonismo e dominação sexual entre este povo. No entanto, a base de seu trabalho se dá por uma transposição de diversas questões e fenômenos próprios das sociedades ocidentais, para o contexto xinguano – como o patriarcado e suas estratégias de dominação e subordinação das mulheres aos homens. Assumindo os limites de sua interlocução com as mulheres, o autor ainda insiste que as mulheres mehinako não fazem sexo por prazer, como os homens, mas por interesse, por troca; presume que elas não se masturbem e tampouco gozem. Subordinadas e diminuídas, a vida dessas mulheres seria, segundo ele, um confinamento tedioso, acompanhado de medo e ansiedade. . Ela se divertiu vivendo, lutando e cuidando de seu povo. Kamaya era, de fato, uma mulher singular, que se destacava não apenas no mundo alto-xinguano. O trânsito livre entre as aldeias e as cidades, e a potencialidade de ativar redes de relações com não indígenas, não é comum a todas as mulheres. Há muitas Mehinako que passam a vida toda sem sair do estado do Mato Grosso, há também mulheres que não falam português e que não tecem relações fora de suas redes de parentesco. Mas isso não torna a história de Kamaya menos informativa sobre gênero na região.

Sua história é particularmente interessante também e precisamente por a pajé chegar a um lugar onde poucas mulheres chegaram. Ela abriu caminhos que ficaram marcados por seu carisma e sua humildade. Circulou todo o TIX com seu cigarro, diagnosticando e tratando pacientes como pajé poderosa que era. Encontrou potentes insumos de resistência que faziam reverberar as vozes de suas parentes Yawalapiti e Mehinako, a quem representava. Apesar de tudo isso, ela nunca esteve isenta de ser afetada, assim como as demais mulheres, pelos arranjos de gênero correntes. Seus prazeres e suas dores eram comuns às de muitas de suas parentes, incluindo mulheres de outras etnias do Alto Xingu4 4 Para explorar o tema das relações de gênero no Alto Xingu, sugiro duas leituras: o artigo seminal de Franchetto (1996) em que ela discorre sobre as características definidoras da mulher kuikuro e tece uma crítica às noções de complementaridade e de dominação sexual; e o artigo recente de Ireland (2021) sobre as mudanças nas relações de gênero wauja nos últimos vinte anos, impactadas sobretudo pelo contato com a cidade. . Cresceu na companhia de suas primas e irmãs, correndo entre as casas, os quintais e o rio. Foi cedo escolhida pelo cacique para ser liderança de sua comunidade, e passou a ser treinada5 5 Entre os Mehinako, pessoas são feitas lideranças a partir de um treinamento que geralmente tem início na primeira infância e que é contínuo. A ideia desenvolvida por Guerreiro (2015) sobre o chefe kalapalo enquanto esteio de gente, como o protótipo de pessoa em que os outros vão se espelhar para o ser, é válida para os Mehinako. Por isso, os chefes e chefas mehinako são treinados por outras lideranças para serem pessoas calmas, generosas, que não fazem fofoca, nem se envolvem em intrigas. para a empreitada. Aprendeu com as mulheres mais velhas de sua família a ser mulher, por meio do trabalho na roça e em casa, participando de festas e atravessando uma reclusão pubertária6 6 Como verifico em minha dissertação, a reclusão pubertária é um momento-chave de transformação para meninos e meninas que vão sair da casa, onde ficam reclusos por meses, feitos homens e mulheres. Um período em que as práticas de fabricação corporal são intensificadas, em que se amarra e se escarifica braços e pernas, pois é hora de “trocar de pele” (Regitano, 2019, p. 38). .

Casou-se jovem, com 15 anos, indo viver na aldeia de seu marido, Pirakumã Yawalapiti. E logo os filhos vieram, tiveram quatro: dois meninos e duas meninas, sendo um deles (o mais novo) adotado. Embora tenha saído da aldeia de seu povo, a pajé continuou sendo uma figura importante para seus parentes Mehinako. Acostumou-se a viver entre os Yawalapiti, aprendeu a ser mãe por lá, e se tornou uma figura de referência também para as mulheres desse grupo. Era parteira, sendo frequentemente chamada para auxiliar em um parto ‘segurando’ a parturiente pelas costas7 7 O parto mehinako, quando acontecia em casa, na rede, previa a participação de ao menos duas mulheres para ajudar, sendo uma responsável por segurar as pernas da parturiente e outra por segurá-la desde trás, sustentando suas costas e pressionando a barriga (no momento de expulsão do bebê), posicionando os braços por debaixo dos seios. . Era uma grande conhecedora de sua língua materna, uma ouvinte atenta dos aunaki (narrativa mítica) contados por seus pais e avós, o que a fez uma exímia contadora de histórias. Sabia de rezas mehinako que agiam com diversos fins, conhecia a potência das folhas e raízes existentes nas extensões de seus quintais, no mato e no campo, e de como com elas se faziam preparados. Era uma cantora de Yamurikumã, Kaxatapá e outros cantos mehinako. Seu cotidiano era composto por essas múltiplas facetas, da maternidade, dos processos terapêuticos, dos saberes mehinako, da atuação política, e, em determinado momento, transcendeu as barreiras do então Parque Indígena do Xingu.

À medida em que a trajetória política de seu marido, liderança na luta pelo Xingu e pelos direitos indígenas, se projetava para fora e ganhava alcance nacional e internacional, ela circulava e aprendia sobre como tecer relações com não indígenas. Passou a falar português, o que permitiu a ela se comunicar mais efetivamente fora da aldeia, e a transitar pelo Brasil e pelo mundo. Os filhos eram pequenos quando a quente e árida Canarana, cidade mato-grossense às margens do TIX, se tornou um local de morada. Compraram uma casa, que ainda hoje abriga aos seus – filhos e netos –, quando o marido, servidor público da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), tinha a cidade como base. Por anos, moraram também em Brasília, quando o companheiro trabalhava na capital. Ela se construiu como uma liderança política e passou a fazer a política dos não indígenas, com estratégias de luta emprestada deles, como as marchas indígenas.

Seu lado artesã também a permitiu circular por caminhos próprios; por ser filha de mãe wauja (povo conhecido por sua maestria na cerâmica), sempre vivenciou a especialidade em seu cotidiano e tornou-se uma grande ceramista. Fazia panelas grandes, panelas pequenas, beijuzeiras, bichinhos. Produzia e colocava em circulação muitas peças. Ficou amiga de donas de lojas de artesanatos para quem vendia essas peças. Era conhecida dos funcionários de empresas transportadoras de onde enviava encomendas. Andava pelas avenidas de São Paulo e pelas ruas de pedras de Paraty. A pajelança veio mais tarde, na menopausa, com filhos criados. Ela já tinha sinais de que estava a virar pajé, mas, por medo do que poderia acontecer, os negligenciava. A narrativa sobre sua iniciação xamânica é apresentada na segunda parte deste texto. Por ora, vale dizer que, uma vez que aceitou o ofício, teve de abdicar de sua função de parteira8 8 A pajé, por ter uma relação próxima com Ahira, não pode ter contato com o sangue do parto e/ou o sangue menstrual, pois ele, como outros apapayêy, não suportam seu cheiro. Como o parto envolve sangue, e ser parteira pressupõe se relacionar com ele, ser parteira e pajé se mostraram funções irreconciliáveis, e Kamaya optou por abdicar da primeira. ; e que esse acontecimento instaurou uma nova fase, na qual ela passou a circular por novas rotas e com novos fins, agora de diagnosticar e, se possível, curar, por meio de seu tabaco e com a ajuda de Ahira, seu espírito auxiliar a quem lhe chama de neta9 9 Guerreiro (2015) verifica, a partir do caso kalapalo, que é comum que humanos chamem espíritos de avô, enquanto os espíritos chamem humanos de netos, e que esse tratamento marca a diferença entre os dois e entre os tempos em que vivem (espíritos são avôs porque existem há muito tempo). Entre os Mehinako, vemos que, em casos excepcionais, essa terminologia também pode representar uma relação de parentesco, como a que Kamaya estabelece com seu avô Ahira, por quem é diariamente cuidada e aconselhada. .

Em 2015, ela perdeu, de maneira abrupta e inesperada, seu companheiro de vida. Sua morte marcou os anos finais da vida de Iamony como um tempo de luto e saudade. Não quis voltar a morar na aldeia do marido, preferiu viver esses anos em sua casa, em Canarana. Como geralmente acontece com toda pessoa enlutada no Alto Xingu, ela teve os cabelos cortados e passou a deixar a franja crescer. Ficava, sobretudo, em casa, e, quando ia para a aldeia de seus irmãos mehinako, evitava os lugares públicos, como o wenekutaku (centro da aldeia), se limitando à maloca em que dormia e ao caminho do rio para banhar-se. Passados alguns anos, foi liberada pelos cunhados para sair dessa que era como uma primeira fase do luto. Teve a franja cortada e pôde passar a circular com um pouco mais de liberdade. Ela se preparava para a festa Jawari que aconteceria na aldeia do seu marido em homenagem a ele, e onde ela sairia, finalmente, do luto. Tinha expectativas e projetos. Era essa a fase que vivia quando o mundo foi surpreendido pela pandemia de COVID-19. Então, ficou muito assustada com o que via, temendo pela saúde de seus filhos e netos e pela sua própria.

Quando a doença chegou ao Brasil, ela estava na aldeia Uyaipiuku, do povo Mehinako, onde vive um de seus irmãos. Apesar de ter passado bastante tempo na cidade, ela tinha muita vontade de voltar a viver na aldeia. Esse era o seu plano. Quando os primeiros casos de COVID-19 foram registrados no Xingu, ela foi às pressas para Canarana, a fim de se preservar, e ficou isolada, na medida do possível, em sua casa, na presença do filho mais novo e dos netos. Nesse meio tempo, sua filha mais nova, que estava na aldeia, foi infectada e ficou em estado grave de saúde. Os meses de angústia acabaram ao ver a filha sair de perigo, quando, então, voltou a olhar para frente e pensar no futuro. Contudo, não contava que ela própria sofreria os males dessa doença e da situação calamitosa em que se encontrava nosso país. Foi infectada e seu corpo sentiu o peso, sobretudo seus pulmões de pajé, que não iam bem. Precisou ser hospitalizada e, depois de alguns dias, foi transferida para outra cidade, onde teve uma piora e não resistiu. Crítica do governo Bolsonaro e das respostas endereçadas (ou não endereçadas) por ele à pandemia de COVID-19 no Brasil, Kamaya tornou-se mais uma de suas vítimas, e partiu deste plano antes do tempo, deixando saudades.

Nos conhecemos em Canarana em 2016, um ano após a morte de seu marido. Sua casa foi minha base para entrada e saída da área indígena, eu ia para a aldeia Tuatuari, do povo Yawalapiti, a primeira que conhecia no Alto Xingu, a convite de sua filha mais velha, Watatakalu Yawalapiti. Meu filho fez um ano naquela viagem. Isso para dizer que conheci Kamaya no lugar de convidada não indígena, de pesquisadora e de mãe. Nesse último aspecto, reconhecemo-nos de imediato. De lá até a sua partida para a aldeia dos mortos, caminhamos muito lado a lado. Ela me apresentou seu povo, foi minha principal interlocutora durante minha pesquisa de mestrado e me ensinou coisas sobre temas diversos, da sexualidade ao animismo mehinako. Contou-me narrativas míticas, rezas de parto e canções de ninar. Encontramo-nos em aldeias dentro do TIX – às margens do rio Curisevo e das nascentes do Tuatuari –, na cidade de Canarana, no interior e na capital de São Paulo. Falavamos-nos por chamada de áudio, sempre que possível, trocando mensagens, fotos e pequenos vídeos. Trabalhamos muito juntas, mas nossa relação se fez extrapolando desde o princípio o âmbito profissional. Viramos grandes amigas, e terminamos por nos considerarmos como mãe e filha. Poucos meses antes de sua partida, havíamos acabado de voltar a pesquisar juntas, dessa vez em um estudo de caso sobre parto indígena, desenvolvido no âmbito do projeto da Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas a COVID-19 (PARI-c). Nesta plataforma, publiquei um artigo10 10 Regitano (2021). em que me dedico a explorar a minha relação com a Iamony.

Em síntese, a antropóloga que sou hoje deve muito a ela. A metodologia que utilizei e utilizo foi desenvolvida com a pajé, de forma orgânica, por meio de nossos experimentos, de erro e tentativa. Eu queria muito lhe ouvir e ela queria muito falar. Às vezes, minhas indagações faziam sentido, outras vezes, não nos levavam a lugar algum. Podia ser também que eu não apresentasse perguntas, mas que ela me oferecesse todas as respostas. Assim que quebramos o gelo da formalidade e rimos com o gravador ligado, a pesquisa fluiu. Íamos testando, vendo quando era interessante gravar, quando tomar notas no caderno de campo já bastava. Nossas conversas eram em português, embora falássemos sempre sobre a língua mehinako, enunciando pequenas sentenças em nosso cotidiano. – “Pitxu tü wiku?” (você acordou?), ela me perguntava de manhã; ao que eu lhe respondia: – “Nu kutüwiku. Pitxu tü wamiku?” (eu acordei, e você, acordou?). Foi esse o contexto das narrações de iniciação xamânica de Kamaya, sua casa em Canarana, em 2017. Ela estava passando uma temporada na cidade, produzindo cerâmica em seu quintal, que era como um ateliê. A acompanhei por uma semana, hospedada por lá junto de meu marido e filho, antes de entrar para uma nova incursão no TIX, agora na aldeia Uyaipiuku. Nesses dias na cidade, passamos muitas horas conversando enquanto ela modelava, assava, pintava e lixava as peças de cerâmica. Inicialmente, chegamos a gravar algumas narrativas em mehinako com a intenção de traduzi-las para a língua portuguesa em um momento posterior, mas logo ela sentiu segurança e percebeu que podia falar em português, para contar as histórias que desejava. Não propus nenhuma ordem de fala ou roteiro, Kamaya contou espontaneamente sobre seus sonhos como uma única história, encadeada em sequência linear. A transcrição integral dessa narrativa apresenta-se a seguir.

PALAVRAS DE UMA PAJÉ MEHINAKO, POR KAMAYA MEHINAKO

Então, Aline, eu me tornei pajé, eu não sabia não. Eu fiquei muito doente. Eu fiquei muito doente. Eu viajava bastante para ver se eu tinha doença, mas eu não tinha. Eu ficava com tontura, eu ficava com fraqueza. Só dormia, dormia, com tanta dor de cabeça. Eu não sentia sede, não sentia fome. Eu fiquei um tempão viajando, para Brasília, papapa, aí foi indo, aí em janeiro eu não conseguia mais levantar, ficava na rede, assim. Eu escutava as pessoas vindo. Parece maluquice, viu, o que eu vou contar para você. Eu escutava as pessoas vindo, mas eu não via. Eu escutava, ouvia vindo, entrando na casa. Quando eles entraram na casa, tinha um monte de gente fazendo uma festa, e deu sono para mim, ele dá sono, sono. Aí que eu vi, só no sonho, vi um monte de gente dançando, tudo magrinho, pretinho. Aí, uma pessoa que estava comigo, assim, falou: “Isso aí é festa para você. Essa festa é sua. Você que vai cuidar dessa festa”. Nem respondi, fiquei quieta na rede. “Sabe quem são eles? São as ariranhas, dançando, cantando”. Quando ele foi embora eu ouvi eles saindo para fora. Meu sono então acabou, e voltei a sentir tontura. Achei que fosse morrer naquela época.

No outro dia, a mesma coisa. Outro dia eu dormi às 17 h e vi uma pessoa vindo, falando para mim, trouxe coco para eu comer, e disse: “Ó, bebe essa água de coco, isso é remédio”. Aí, meu cunhado começou a me tratar com raiz. “Tunuli está trazendo remédio para você”, disseram. “Isso aqui, pode tomar. Quando você tomar isso aqui, você vai sentir sede, vai sentir fome. Você não está sentindo nada”. “Porque não estou sentindo nada?”, perguntei. Porque uma pessoa colocou energia aqui (boca) para eu curar as pessoas. Colocou um cigarrinho aqui (peito). Eu tenho um cigarrinho aqui, só que eu não vou tirar para você, Aline, porque você não é pajé. Eu já tirei para um monte de pajé. Eu tirei no meio dos pajés. Um cigarrinho bem pequenininho. Uma folha bem nova. Eu coloco aqui e ele entra, parece mágica. Então, ele falou para mim e eu peguei a fruta, ele levantou e foi embora. Eu bebi água de coco, aí daqui a pouco acordei, era 17 h, e senti minha boca seca. Não estava mais molhada, estava bem seca. Aí, meu marido colocou água na minha boca, para molhar. Aí, eu fiquei até mais de dias, dez ou 15 dias, não levantava mais.

Ficava só na rede, não comia. Aí, dormia por volta de meio-dia. Um dia, meu marido estava capinando lá fora, eu vi que a pessoa entrou na casa, magrinha, baixinha. Ele veio e sentou perto de mim. Ele estava com um cigarro. Foi nesse dia que eu descobri. Estava com um cigarro bem magrinho, fininho. Ele sentou e fumou. Jogou fumaça em cima de mim e falou assim: “Como está você?”. Eu falei, no sonho: “Eu estou fraca”. Ele deu risada e disse: “Você vai ficar bem”. Naquele momento, eu pensei que ia mesmo morrer. Não conseguia mais, estava muito fraca (meu marido... preocupado comigo. Agora eu estou aqui, viva, e ele foi embora…). Ele disse: “A cunhada está chegando hoje” (Mapulu Kamayurá). Vai fazer trabalho, vem curar seu cunhado. Ela está no caminho, e quando ela terminar pode chamar ela, e ela vai tirar sua energia”. “Energia? O que é energia?”, eu perguntei. “Você me conhece?”, ele perguntou. “Não”, respondi. Ele não se parecia com ninguém que eu conhecia. Não, disse não. Não conheço a pessoa não. E ele disse: “Eu sou Ahira, beija-flor”. Eu olhei pra ele e disse: “é o que?”. “Sou Ahira, sou pajé, grande pajé, eu que dei energia para você. “Por que? Para você curar as pessoas que vão precisar, pode ser que nós curemos as pessoas, eu e você juntos”, ele disse. Nem respondi. “Hoje você vai fumar isso aqui”, me disse. Ele não me deu o cigarro, e continuou: “Você tem energia nos olhos, para enxergar as pessoas e o que está acontecendo, tem energia na sua mão, para tirar a dor que eles estão sentindo, se quiser trabalhar na sua boca você tem”. Falou só isso. “Você tem, você está pronta para virar pajé. Se quiser trabalhar, você vai ver”, disse. Aí, ele levantou e falou assim pra mim: “Primeiro você vai mostrar sua mão pra ela, e ela vai tirar energia que você tem na sua mão. E vai tirar para todo mundo ver. Depois, vai devolver. Depois, vai tirar da sua boca. Depois, vai tirar dos olhos. Sou eu que estou dando minha energia para você”. Ele levantou, saiu e foi embora.

Aí, eu acordei e falei: “O que está acontecendo comigo?”. Aí, ao mesmo tempo, acho que meu marido estava perto de ir embora... Quando ele (Ahira) acordava, meu marido ia ver. Acho que ele viu a pessoa. Ele falou para mim que alguém estava fumando em cima de mim, assim, perto de mim, enquanto eu dormia. Acho que ele via a pessoa, porque ele me acordava e dizia: “O que está acontecendo com você?”. “Não sei”. “Você está bem?”. “Não”. “Você não vê alguém no sonho?”. “Não”. “Tá”. “Por que?”. “Não, eu vejo você igualzinha ao meu tio”. O tio dele, o espírito que fez [pajé]. A esposa do Raul não, o pai que fez. O pai que passou energia para ela. Meu marido estava falando para o pai dela. “Eu vejo você igualzinha ao meu tio, porque quando meu tio virou um grande pajé ficou igual a você. Ficou doente. Não comia nada. Ele contava que tinha gente que estava acompanhando ele”. Eu mesma não sei de nada. Quando acordei, ele entrou na casa. Ele estava capinando lá fora. Aí, ele entrou na casa, foi lá, tomou banho, e depois ele foi e falou assim: “Iamony, você está bem?”. “Não, não estou bem não”. “Ó, minha prima está aí. Eu vou buscar ela para curar você, para ela ver o que está acontecendo com você. Eu acho que o espírito está fazendo alguma coisa com você. Meu tio está falando que o espírito está fazendo você virar pajé. Eu acho que sim”. Nem respondi.

Ele saiu, foi na casa do irmão, atrás da cunhada, de repente, ela chegou com ele, o marido dela, as filhas, ela foi lá e perguntou para mim: “O que está acontecendo?”. Aí, eu expliquei para ela, ela fez um cigarro e queria me curar. Aí, eu falei: “Ó, não sei o que está acontecendo, mas você não vai me curar. Uma pessoa veio hoje, quando eu estava dormindo, disse que é para você me mostrar, disse que eu tenho uma energia do espírito”. Ela deu risada. “Eu não sei, porque não foi o espírito que me fez virar pajé, meu pai me fez, eu quase morri quando meu pai me fez virar pajé”, ela disse. Aí, o marido dela perguntou: “Por que você não está tentando? Porque se quiser ele ensina para você”. “Tá, eu vou tentar”, ela respondeu, e então pegou a frutinha de pajé, ralou, esquentou um pouquinho e deixou. Lavou as mãos. “Tem uma pessoa... Não aconteceu nada com você e seu marido?”, perguntei. “Não, meu marido... A gente não tem muita relação (sexual) por eu estar pajé”. Ela respondeu. Eu perguntei porque se ela tivesse tido relação eu não ia deixar ela ficar perto.

Aí, ela lavou as mãos, fez um cigarro, fumou, fumou bastante, pegou minha mão, pegou um lado, aí jogou fumaça. Aí, lavou minha mão com chazinho, aí senti correndo, minha mão ficou tremendo, ela deu risada e falou: “Olha, tem alguma coisa”. Ficou na mão dela, ficou brilhando. Todo mundo viu. “Olha, ela tem energia. Ela tem mesmo energia”. Aí, depois, ela devolveu. Ficou geladinho quando entrou na minha mão, aí entrou aqui, brilhando. Depois ela devolveu. Aí, ela tirou do outro lado a mesma coisa. Só isso que ela fez comigo. Aí, pronto. Depois ela tirou daqui, abriu minha boca e tirou, mostrou para todo mundo, e disse: “Tem muito pajé falso. Estamos precisando de uma dessa”. Ela tirou uma resina de alguma coisa, misturada, aí ficou mexendo, aí devolveu. Só que eu não uso não. Não uso muito, porque é muito forte, ele puxa todo meu rosto quando faço trabalho. Eu uso mais minhas mãos. Então, ela fez um cigarro para mim, o primeiro que eu ia fumar. Aí, o marido falou: “Não fuma não. A energia dela é muito forte ainda”. Aí, ela não fumou, só fez o cigarro e me deu para eu fumar. Então ela falou: “Vocês vão ver, ela vai fumar direitinho, porque só a energia dela que vai puxar essa fumaça. Porque o cigarro que a gente tem é do espírito”.

Aí, pronto, eu fiquei e dormi. Aí, a Ana (filha mais nova) pagou duas panelas grandes (de cerâmica) para ela e um colar de caramujo. Aí, ela foi embora. Eu dormi e ele foi falar comigo: “Uai, por que ela não mostrou tudo?”. Falou assim, mas na hora que falou que tenho aqui, ali e na mão, não falou para mim: “Ah, você tem aqui, no pé”. Nos meus pés tem como um bonequinho, desse tamanhozinho assim (aponta com os dedos). Minha cunhada explicou que na hora que você vai fumar ele pega sempre aqui (barriga), parece que alguém vai bater em você na barriga. Aí, você não sabe mais o que está acontecendo com você. Aí, você dorme, vê o que está acontecendo com o paciente, se está morrendo, se não. Voce vê tudo. Aí, pronto. Ele falou tudo isso para mim. Quando acordei, eu estava bem. Aí, eu acordei meu marido e falei: “Estou bem, vamos banhar?”. Aí, ele falou: “tá vendo, ó, igual ao meu tio”. Aí, ele ficou feliz. “Que bom que você vai ser pajé. Estamos precisando de pajés bons”, me disse. Aí, a gente tomou banho, e ele falou para Ana fazer pimenta para mamãe. Pimenta um pouquinho ardida, um pouquinho salgada, porque ela quer comer salgado. Aí, Ana fez. A gente estava comendo com ele, aí eu contei: “O espírito veio hoje para mim e disse que estava esperando a cunhada me mostrar que os meus pés têm, que a perna tem, que o peito tem. Que isso aí que vai ficar no meu peito, que quando eu estiver fumando, vai me fazer ver a pessoa, e o que está acontecendo com ela.

Cinco dias depois, a gente veio para cá, para Canarana. Eu dormi, e ele veio falar comigo: “Ó, eu vim ensinar você. Eu vim ensinar você como é que é, você vai curar as pessoas”. Aí, como o meu marido estava sentindo dor lá embaixo, no sonho, ele disse: “Ó, tira aquela ali”. Aí, eu levantei dormindo, com ele também dormindo. Mais tarde, me disse que quando ele sentiu que eu estava respirando bem forte, eu estava lá em cima dele. Eu fiz assim, de longe, e caiu um peixinho. Na minha mão. Aí, ele perguntou: “Iamony, o que está acontecendo?”. “Não, eu estou curando você. Não está doendo as suas costas?”. “Tá”. “Olha isso aqui, é um peixinho. Eu também levei um susto. Acordei, nem vi mais os espíritos que estavam perto de mim, não vi mais”. Ele perguntou: “Você tirou?”. Eu falei: “Eu tirei”. “Mas o que está acontecendo?”. Aí, ele lembrou que quando estava tomando banho, faz tempo já, um peixinho caiu nas suas costas. Até agora está doendo. Mas meu marido ficou tão feliz comigo. Ele queria que ele fosse pajé, ou eu.

Aí, quando a gente chegou aqui ele falou isso para mim, esse espírito me chama de neta: “Ó, neta, eu vou ensinar você como que você vai conseguir ter visão. Ó, amanhã você vai mostrar o que tem aqui. Você joga fumaça, aí você fala, eu quero que você mostre, aí, nisso, ele vai sair. Amanhã vai vir uma pessoa. O primeiro trabalho que você vai fazer que vai ter visão. Amanhã você não vai ter seu cigarro grande. Vai fazer pequenininho. Eu não tenho cigarro grande. Se você inventar de fazer, não vai subir. Não vai fazer comprido não, se não vai desmanchar tudo. Seu vovô, cabeça grande, ele que tem cigarro grande. Desse tamanho o cigarro dele [indica com as mãos]. Ele é ruim. Ele também é ruim. Se ele faz uma pessoa virar pajé, ele é um grande pajé, mas ele é ruim. Ele não tem dó de ninguém não. Só que eu tenho cigarro pequeno. Aí, ele me ensinou, você quando vai puxando fumaça, não pode engolir fumaça. Você vai soltando... Puxa, solta, solta. Quando o cigarro está desse tamanho assim [indica com as mãos], isso que está nos seus pés vai puxar você, sua barriga. Aí, eu vou entrar dentro de você. Você não vai saber o que está acontecendo. Quem vai fumar? Eu. Aí, você vai dormir, e vai ver tudo o que está acontecendo”.

Aí, eu acordei e contei tudo para o meu marido e ele falou: “Será que o pessoal vai pedir para você fazer trabalho?”. Aí, às 10 h, bateu um menino na porta e disse: “Vai ver minha mãe, ela está passando mal”. “Eu? Eu não tenho isso não, eu não tenho visão não”, respondi. Aí, voltei, entrei, lembrei do meu sonho. Voltei, ele estava quase entrando no carro. Eu falei: “Menino, eu vou. Eu lembrei alguma coisa. Eu vou. Vou tentar. Às vezes, não vai dar certo”. Aí, fui com meu marido, quando fiz cigarro, foi rapidinho. Eu não conseguia fazer mais nada. Ele voltava. Aí, meu marido falou: “Se ele falou pra você, você tem que seguir o que ele fala”. Aí, eu fiz, e foi. Experimentei, fumei, aí bateu no meu pé e na minha barriga, não consegui dormir. Eu vi o que estava acontecendo. Ela tinha doença no estômago. Aí, eu voltei, a família perguntou. Eu falei: “Ela está doente, do estômago. Se vocês não acreditarem, podem pedir para a enfermeira ver”. Aí, a enfermeira perguntou: “Você viu?”. E eu falei: “Eu vi. Pede exame dela”. Depois a enfermeira falou, “Iamony, como você sabia?”. Porque fica iluminando para a gente. Porque tem uma ferida lá dentro. Pajé não vai curar, vai tirar a dor, mas não vai conseguir curar. Só raizeira que cura [nesse caso].

MATERIALIDADES XAMÂNICAS, MULHERES E INOVAÇÕES

As palavras de Kamaya dizem muito sobre ser mulher mehinako e sobre ser pajé no Alto Xingu. Ela, que experimentou por mais de cinco décadas as potências, os desafios e as limitações de ser mulher e mãe em trânsito, teve sua perspectiva de mundo gradativamente ampliada pela pajelança. Entre as e os mehinako, há dois caminhos para tornar-se pajé: por meio de um treinamento rigoroso, sob a tutoria de um(a) pajé; e por meio de um processo de adoecimento que precede a escolha de um espírito. Como vimos na narrativa acima, esse último caminho foi o que levou Iamony a ser xamã. Foi escolhida por Ahira, o beija-flor, aquele que se tornou o seu espírito auxiliar para sê-lo. Para compreender por que espíritos escolhem humanos para lhes ajudarem na custosa tarefa de cuidar de pessoas doentes, é preciso olhar para como a feitiçaria atravessa o cotidiano desses povos. Entender que ela penetra todas as camadas, é uma ameaça constante que está colocada, de modo que qualquer um pode vir a ser uma vítima de um feitiço, adoecer e flertar com a morte. Como nos mostra Figueiredo (2015)Figueiredo, M. V. (2015). A flecha do ciúme. O parentesco e seu avesso segundo os Aweti do Alto Xingu. Terceiro Nome/FAPESP., a feitiçaria está no centro da xinguanidade, pois é constituinte do processo de identificação entre parentes, e, embora seja o avesso do parentesco, é praticada por gente próxima. Assim, não basta que uma pessoa mehinako se empenhe diariamente na fabricação corporal de seus filhos e na sua própria para garantir sua humanidade, ela ainda pode se deparar com os imponderáveis da feitiçaria. Pajés e feiticeiros assumem posições antagônicas tanto entre os vivos, nas aldeias mehinako, como entre os não humanos, nas moradas dos apapayêy. Há um espelhamento dos mundos: assim como os humanos, os apapayêy têm suas casas em suas aldeias circulares, suas famílias, seus feiticeiros e seus pajés. Vimos, por exemplo, como Ahira se apresenta como pajé.

A relação que Kamaya estabelece com Ahira desde os primeiros encontros, em seus sonhos, e que foi nutrida até seus últimos dias, permitiu-lhe ver aquelas e aqueles que então não via, os apapayêy, e a viajar por meio dos sonhos. O beija-flor se empenhou ao conduzir sua iniciação xamânica; após se apresentar e convencê-la a aceitar o processo, ele fez, para ela, uma festa. Esse termo, ‘festa’, na língua portuguesa, é largamente usado pelos Mehinako e encontra ressonância no termo ‘ritual’. As festas/rituais têm um lugar fulcral na vida mehinako; o calendário de festas coincide com a época de colheita da mandioca e do pequi (alimentos que, junto dos peixes, formam a base de sua dieta); e o cotidiano gira em torno desses eventos. São espaços onde se reúnem parentes para celebrar momentos marcantes da vida, como a entrada e a saída da reclusão pubertária, ou o fim do luto, e onde se reafirmam e se reinventam enquanto grupo em relação aos parentes de outros grupos. No Alto Xingu, muitas das festas são interétnicas e pressupõem a participação de pessoas de outros povos no canto e na dança. A passagem da narrativa do sonho que cita a presença das ariranhas dançando e cantando na festa para Iamony indica um paralelo com esse contexto do mundo dos humanos, mostrando como ela era reconhecida como pajé não somente pelo beija-flor, mas também por outros apapayêy, em uma rede mais extensa de relações.

Esses sonhos que Kamaya teve durante seu adoecimento foram compartilhados diariamente com seu marido, e sua escuta teve um lugar fundamental nesse processo. Vemos com Langdon (1999)Langdon, E. J. (1999). Representações do poder xamanístico nas narrativas dos sonhos Siona. Ilha Revista de Antropologia, 1, 35-56. https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/14442
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como as sociedades amazônicas apreciam compartilhar suas experiências oníricas, que não são consideradas ilusórias, mas determinantes na vida diária. Assim como os Siona, para quem olha Langdon (1999)Langdon, E. J. (1999). Representações do poder xamanístico nas narrativas dos sonhos Siona. Ilha Revista de Antropologia, 1, 35-56. https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/14442
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, os Mehinako também têm costume de contar sobre os sonhos nas primeiras horas da manhã. A estrutura narrativa dos sonhos de Kamaya se assemelha ao que mostra Langdon (1999)Langdon, E. J. (1999). Representações do poder xamanístico nas narrativas dos sonhos Siona. Ilha Revista de Antropologia, 1, 35-56. https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/14442
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, ao analisar sonhos de iniciação xamânica: a descrição do processo de adoecimento, seguida do processo de cura e da produção de um xamã. Narrar os sonhos configura-se como um processo de aprendizagem e de transformação, de modo que, ao contar para o marido e refletir sobre os sonhos, Kamaya aprendia sobre o xamanismo e se curava.

Sua recuperação plena, marcada pela volta do apetite, de, inclusive, coisa salgada e apimentada (a comida preferida dos apapayêy, geralmente evitada quando não se vai bem), acontece apenas após realizar seu primeiro atendimento. Mas até chegar a esse ponto, ela teve de trilhar um longo caminho. Seu corpo foi construído como corpo de pajé, o que inclui ter objetos concretos nele inseridos, como o seu cigarro. Certo dia, Ahira fez um ‘cigarrinho’ para ela, como vimos. Um pequeno como o seu próprio, pois, como explicou, os dois passariam a dividir aquele cigarro. Seu trago seria também o do pajé, por isso ele lhe advertiu de que deveria confeccionar cigarros pequenos como o seu. O cigarro é um importante elo entre a/o pajé e seu (ou seus) espírito(s) auxiliar(es). Em mehinako, iatamã (pajé) e iatamalu (pajé feminina) significam, literalmente, aquele/aquela que fuma. A potência não está necessariamente em seu recheio, o tabaco, mas sobretudo em seu invólucro, na folha que o envolve. O cigarro que se fuma é geralmente cultivado e confeccionado pela própria pajé, mas há aquele cigarro feito pelo espírito, e que está inserido dentro dela. Foi necessário que sua cunhada o desvendasse para que Kamaya se tornasse efetivamente uma pajé. Esse cigarro não é invisível ou figurativo, mas visível para todos, e palpável. A relevância da materialidade para esse conjunto de técnicas, tecnologias e relacionalidades é um traço definidor do xamanismo11 11 O termo xamanismo aparece aqui como um elemento para dialogar com a literatura antropológica, e a pajelança como palavra mobilizada por minhas interlocutoras e meus interlocutores indígenas falantes de português. mehinako, e também do xamanismo alto-xinguano.

Entre os Aweti, por exemplo, as kat u’wyp, ou ‘flechas de kat’, objetos patogênicos concretos, são lançadas por feiticeiros em direção aos seus alvos, como mostra Figueiredo (2015)Figueiredo, M. V. (2015). A flecha do ciúme. O parentesco e seu avesso segundo os Aweti do Alto Xingu. Terceiro Nome/FAPESP., de modo que o trabalho do pajé consiste, muitas vezes, em operações de extração dessas flechas. Cardoso et al. (2012)Cardoso, M. D., Guerreiro, A. R., & Novo, M. P. (2012). As flechas de Maria: xamanismo, poder político e feitiçaria no Alto Xingu. Tellus, 12(23), 11-33. https://doi.org/10.20435/tellus.v0i23.254
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verificaram, a partir do xamanismo kalapalo, que ele materializa os feitiços que causam mal. A feitiçaria, interseccionada com o xamanismo, também envolve flechas invisíveis, e “. . . pedaços de enfeites ou partes do corpo de suas vítimas, que amarram [feiticeiros] com pedaço de feitiço (kugihe) e escondem na aldeia, no mato ou na água” (Cardoso et al., 2012Cardoso, M. D., Guerreiro, A. R., & Novo, M. P. (2012). As flechas de Maria: xamanismo, poder político e feitiçaria no Alto Xingu. Tellus, 12(23), 11-33. https://doi.org/10.20435/tellus.v0i23.254
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, p. 14). Vemos, a partir dos Wauja, que há dois tipos de objetos patogênicos: as flechinhas lançadas pelos apapaatai, e o ixana, o feitiço feito por humanos, como evidencia Barcelos Neto (2008)Barcelos Neto, A. (2008). Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. Edusp.. Enquanto as flechinhas não são letais, são moles e mais facilmente extraíveis por pajés, o ixana é duro, mais difícil de ser encontrado e altamente letal. Além dos objetos patogênicos, o autor explora a materialidade e a estética de objetos fundamentais para práticas de cura, como as máscaras atuchua, que representam os apapaatai, acompanhadas de instrumentos musicais, como clarinetes, além de cestos, panelas, dentre outros objetos.

Na narrativa de Kamaya, além do cigarro, outras materialidades xamânicas são evidentes, como a fumaça, o peixinho que ela extrai do marido, a ‘frutinha do pajé’ que a cunhada usa, e mesmo a ‘energia’ que herda do beija-flor. Ahira passou noites fumando e soltando fumaça em cima da pajé adormecida, como um processo de cura e de transformação. A cunhada pajé também lhe sopra fumaça, e com a ‘frutinha do pajé’ faz um ‘chazinho’ que faz as mãos de Iamony tremerem e sua condição se revelar. Já o peixinho que Iamony extrai das costas de seu marido quando ela realiza seu primeiro atendimento xamânico é um dos muitos objetos que podem penetrar o corpo, causando dor e adoecimento. Outra materialidade bastante presente em sessões de pajelança são as pequenas bolas (irregulares) escuras resinadas, extraídas do corpo por um(a) pajé. Pude presenciar um acontecimento deste em um espaço terapêutico em São Paulo, quando Iamony liderava uma espécie de roda de ‘reza e benção’ com não indígenas, e fez como uma operação imprevista e espontânea em uma das pessoas ali presentes. Já a ‘energia’ de que fala Iamony em seu relato, a substância que brilha que ela tinha em seus olhos, mãos, pés, costas e barriga, passada como presente de Ahira, se configura como uma potência terapêutica xamânica poderosa.

Não tive a chance de perguntar a Iamony qual termo em mehinako ela tinha em mente ao falar dessa ‘energia’. Mas, no novo contexto de pesquisadora órfã em que me inseri após a sua morte, fui adotada por um pai, também pajé, o cacique Tukuyari Mehinako e, em um dia de verão, na aldeia Utawana, tive uma pista. Conversando com Wayeru, minha irmã mais nova, que sempre acompanhou nosso pai em suas viagens e nas sessões de pajelança, pude finalmente compreender do que falava Iamony. Trata-se do iyalawü, a ‘energia do pajé’, que são como pedrinhas resinadas, inseridas pelo espírito em partes do corpo da/do pajé, para torná-la(o) poderosa(o). Certa vez, Wayeru presenciou Tukuyari retirando seu iyalawü para exibir as pessoas presentes, e ficou impressionada com seu brilho. A extração dessas materialidades é feita sempre com cuidado, pois a perda delas leva imediatamente à perda das capacidades xamânicas. Ainda assim, isso se faz como uma forma de afirmar a veracidade dos eventos e de exibir a materialidade dos feitiços extraídos.

Entre os wauja, parentes próximos dos mehinako, que também são falantes de uma língua oriunda da família linguística Aruak, Barcelos Neto (2008)Barcelos Neto, A. (2008). Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. Edusp. discorre sobre o yalawo, uma substância própria dos yerupoho/apapaatai (seres não humanos), que se configura como a principal potência xamânica entre os pajés deste povo, e cuja capacidade de cura é ativada com a fumaça do tabaco. O autor descreve algo muito parecido com o que narra Iamony sobre o iyalawü. O yalawo é dado pelo espírito auxiliar ao pajé, que o coloca: em seus olhos, para que ele veja os apapaatai; na palma de suas mãos, para que pegue o feitiço dos humanos; em suas pernas, para que corra atrás da alma do doente; e em seu estômago, onde ficaria o yalawo principal, inserido na última etapa da iniciação xamânica (Barcelos Neto, 2008Barcelos Neto, A. (2008). Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. Edusp.). Kamaya teve revelada a energia da palma de suas mãos pela cunhada, e só no dia seguinte, quando Ahira lhe questionou por que a cunhada não havia lhe mostrado tudo, é que teve as outras energias, ou os iyalawü, reveladas. Seu processo de cura e o fim da iniciação xamânica coincidem com o fim da revelação do iyalawü, que se encerra com Kamaya levantando-se da rede, saindo da condição passiva, característica da pessoa doente, e chamando o marido para banhar-se com ela no rio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A despeito de chefes e xamãs serem descritos na literatura antropológica do Alto Xingu como homens, a narrativa de Kamaya é informativa da presença de mulheres pajés na sua região e de sua centralidade na vida de seu povo. Inclusive, como vimos, foi uma pajé mulher quem desvendou Kamaya, sua cunhada Mapulu Kamaiurá. Sobre Mapulu, há uma tese de doutorado que se dedica a registrar sua vida e caminhada, além de refletir sobre os rumos do feminismo indígena no Brasil, escrita por Silveira (2018)Silveira, M. L. (2018). Mapulu, a mulher pajé: a experiência Kamaiurá e os rumos do feminismo indígena no Brasil [Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. https://tede2.pucsp.br/handle/handle/21609
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. Silveira (2018)Silveira, M. L. (2018). Mapulu, a mulher pajé: a experiência Kamaiurá e os rumos do feminismo indígena no Brasil [Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. https://tede2.pucsp.br/handle/handle/21609
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argumenta que Mapulu, iniciada pelo seu pai, foi a primeira pajé do povo Kamaiurá, o que representou uma novidade para a história desse povo.

Kamaya, embora não se recordasse de ter conhecido outras iatamalu, não se satisfazia com a tese de nunca antes ter existido mulheres pajés entre as Mehinako. Para ela, fazia sentido que, assim como sempre houve mulheres amuluneju, cantoras de cantos sagrados, conhecedoras de rezas e de raízes, já tivesse havido, em algum momento da história, mulheres xamãs. Antigo como o hipiulai, a tatuagem que estampa pulsos e braços de mulheres chefes, é o ofício exercido por elas. Não há desculpas para não as incluir nas análises etnográficas. Se estão ausentes de muitos textos da literatura antropológica, talvez não seja por inexistência dessas mulheres, mas por uma decisão de negligenciá-las como interlocutoras durante o trabalho de campo, e também como material de reflexão nas escritas. A crítica à invisibilização das mulheres na literatura antropológica tem sido indicada por antropólogas já há bastante tempo, como vemos com Rosaldo e Lamphere (1974)Rosaldo, M. Z., & Lamphere, L. (Eds.). Women, culture and society. Stanford University Press.. Felizmente, esse debate tem sido renovado, e autoras como Bacigalupo (2007)Bacigalupo, A. M. (2007). Shamans of the foye tree: gender, power and healing among chilean Mapuche. University of Texas Press., Colpron (2005)Colpron, A.-M. (2005). Monopólio masculino do xamanismo amazônico: o contra-exemplo das mulheres xamã shipibo-conibo. Mana, 11(1), 95-128. https://doi.org/10.1590/S0104-93132005000100004
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, Nahum-Claudel (2018)Nahum-Claudel, C. (2018). Vital diplomacy: the ritual everyday on a dammed river in Amazonia. Berghanh Books. e Barbira-Freedman (2010)Barbira-Freedman, F. (2010). Shamanic plants and gender in the healing forest. In E. Hsu & S. Harris (Eds.), Plants, health and healing: on the interface of ethnobotany and medical anthropology (pp. 135-178). Berghahn Books. trazem as mulheres pajés para o centro de suas etnografias.

Entre o povo mehinako, as mulheres chefes, ou mulheres especialistas como rezadeiras e pajé, não têm um lugar secundário frente aos chefes e especialistas homens. Kamaya não devia nada a eles, sendo igualmente ou mais poderosa do que muitos pajés, respeitada como iatamalu e amuluneju por muitos povos do Xingu. Não à toa, seu Kaumai12 12 Kaumai é a festa dos mortos ilustres, mais conhecida na versão aportuguesada por Quarup. Seu Kaumai aconteceu na aldeia Uyaipiuku do povo mehinako em agosto de 2022, e reuniu povos de todo o Alto Xingu. foi uma grande celebração e contou com a presença em peso dos parentes vizinhos. Ela circulava muito e era bastante procurada, inclusive por pessoas que vinham de longe em busca de seus cuidados. Lembro quando a vi como pajé pela primeira vez. Era verão de janeiro, na aldeia Pallushayupíti, próximo ao antigo sítio Mehinako (Jalapapú), onde os Mehinako moravam todos juntos, onde Kamaya cresceu, teve sua filha mais nova e enterrou sua placenta. Seu primo e sua prima viajaram embaixo de forte chuva, com raios e trovões desde a aldeia Uyaipiuku para lhe ver.

Os irmãos estavam preocupados com o pai, antigo cacique da aldeia Uyaipiuku, em luta há muitos anos contra um câncer, e que, vez ou outra, apresentava piora. Foram prontamente recebidos com beiju e peixe, e comeram em silêncio, enquanto a casa se esvaziava e Iamony se preparava para o trabalho. Feito o pagamento13 13 A economia alto-xinguana pressupõe a prestação de serviços remunerados, como ensinar saberes, então é possível que alguém que não herdou de família uma reza, ou um conhecimento sobre determinada raiz, possa acessá-lo por meio de um pagamento (que tradicionalmente é feito por meio de panelas de barro e colares de caramujo, mas que hoje também são feitos com miçangas tchecas, panelas de alumínio e dinheiro). , com fileiras de miçangas Jablonex/Preciosa e dinheiro, Iamony se sentou de costas para os convidados e passou a confeccionar seu cigarro. O filho mais novo, adolescente, se mantinha ao seu lado, em pé, oferecendo assistência. Ela enrolava folha por folha do cigarro em sua coxa, e colocava uma em sobreposição à outra, formando como um charuto. Seu filho acendeu com um isqueiro seu cigarro, e com os olhos fechados ela deu um primeiro e longo trago. Em seguida, os tragos foram mais curtos, e ritmados, até que seu corpo relaxou, sua cabeça pesou para frente, e o cigarro só não caiu porque foi recuperado pelo filho, que sustentou a cabeça da mãe, apoiando-a na cadeira, e segurou o cigarro para que ela desse os últimos tragos. O corpo da pajé foi então tomado por um transe vibratório, pude ver suas pupilas pulsarem. O cigarro caiu ao chão, e por lá ele ficou. Iamony desmaiou e tudo viu. Quando acordou, já tinha as respostas de que precisava e seus parentes já podiam retornar para suas casas.

Desmaiar é um traço característico de sua condição de pajé. Nem todas e todos os pajés desmaiam, mas ela sim, era no silêncio do transe que ela melhor pôde ver, ouvir e falar. Mas se o diagnóstico e a cura são os fins mais objetivos da pajelança, ela não está, contudo, limitada a isso, pois esta atividade se configura como um modo de ser e de agir no mundo, de se relacionar com os outros, ver o que os outros não veem, de se comunicar, aprender e negociar com seres não humanos. A relação próxima com a cidade trouxe uma série de inovações para o povo mehinako, e para Kamaya, de modo particular. Uma parte importante de sua iniciação xamânica foi vivenciada em Canarana. Seu espírito auxiliar Ahira deixou sua aldeia no pequizal alto-xinguano e se deslocou até a casa da neta, em Canarana, para lhe ver e lhe falar. O primeiro trabalho de Iamony aconteceu na cidade, quando extraiu o peixinho das costas do marido. Assim como se passou na cidade, o atendimento em que ela, pela primeira vez, fumou, desmaiou e entrou em transe, que lhe revelou que a paciente estava com uma doença da ordem das doenças dos não indígenas, isto é, que não são causadas por feitiçaria. Sua atuação extrapolou, assim, a esfera da aldeia, e ela agiu em conjunto com a enfermeira, que confirmou o diagnóstico antecipado pela pajé. Assim como ela passou a atender parentes na cidade, tratou também pacientes não indígenas que a procuraram, e de quem ela foi ao encontro.

Mas sua potência foi além da pajelança e da chefia. Como mulher, mãe e avó, ela incidiu de maneira determinante na vida diária de seu povo. A manutenção da vida na aldeia também se deve aos pequenos acontecimentos, que não são vistos nos centros das aldeias, mas se passam nos bastidores dos rituais, no banho que se dá no filho14 14 Mostro, a partir de um exercício de desenho com as crianças da aldeia Utawana, que o banho (sobretudo o banho de rio) é um evento central do cuidar mehinako, espaço de troca de afetos, de construção de corpos e de parentesco (Regitano, 2019). e no preparado de ervas que se oferece a parente gestante15 15 Muitas mulheres mehinako fazem uso de preparados à base de folhas e raízes durante a gestação para preparar seu corpo para o parto. . A produção do parentesco não está dissociada da produção da alteridade, estes são assuntos que se encontram imbricados. As relações com os outros e outras atravessam todas as esferas das socialidades mehinako, como percebo desde que fiz amigas e amigos desse grupo. Os corpos são moldados sempre com vistas a torná-los saudáveis e fortes para enfrentarem toda a sorte de adversidades que os mundos povoados de seres não humanos oferecem. Assim, uma mulher produz parentesco e alteridade a um só tempo, quando pinta o rosto de sua bebê com tinta de ulutáki, resina de uma árvore (que afasta espíritos ruins), com carvão; quando evita banhar-se no rio durante a menstruação, para não confrontar os apapayêy que ali vivem com seu cheiro; quando oferece comida para a Malahialo, a avó invisível (apapayêy) que acompanha o desenvolvimento dos bebês. A trajetória de Kamaya indica que uma mulher é feita de muitas outras mulheres, por meio das redes de cuidado que tecem. Mostra-nos que a aproximação com a cidade pode produzir continuidades da aldeia e inovações em instituições indígenas, como o xamanismo. Ensina que é urgente dar visibilidade às mulheres, que têm um lugar fulcral na produção e na manutenção da vida dos seus, dentro e fora das aldeias.

  • 1
    Apesar de eu me referir a Iamony como Iamony, um costume que é difícil de abrir mão, e que persistiu por não a incomodar, ela passou a se chamar Kamaya desde que sua neta menstruou pela primeira vez e recebeu seu último nome. Entre o povo mehinako, as pessoas mudam de nome ao longo da vida, e eles precisam ser passados (de avós/avôs para seus netos). Pode-se dizer agora que Kamaya foi seu último nome, herdado de Kamaya Wauja, prima-irmã de sua avó materna Kahití Wauja, ceramista e cantora, sob autorização da tia. Kahití era cacica da aldeia Mehinako, casada com o cacique, ceramista, pajé e, segundo me contou Iamony (comunicação pessoal, 2020), “sabia das coisas de rezar e sabia das coisas de cantar”.
  • 2
    Como mostra Viveiros de Castro (1979)Viveiros de Castro, E. B. V. (1979). A fabricação do corpo na sociedade xinguana. Boletim do Museu Nacional, Série Antropologia, (32), 40-49. http://www.etnolinguistica.org/pessoa:castro
    http://www.etnolinguistica.org/pessoa:ca...
    , a corporalidade é uma dimensão focal do sistema alto-xinguano, de modo que é preciso fabricar-se humano frente às possibilidade de tornar-se bicho/tornar-se espírito.
  • 3
    Gregor (1985)Gregor, T. (1985). Anxious pleasures: the sexual lives of Amazonian people. The University of Chicago Press. recorre a mitos e explora símbolos de gênero de modo a compor um discurso ‘local’ de antagonismo e dominação sexual entre este povo. No entanto, a base de seu trabalho se dá por uma transposição de diversas questões e fenômenos próprios das sociedades ocidentais, para o contexto xinguano – como o patriarcado e suas estratégias de dominação e subordinação das mulheres aos homens. Assumindo os limites de sua interlocução com as mulheres, o autor ainda insiste que as mulheres mehinako não fazem sexo por prazer, como os homens, mas por interesse, por troca; presume que elas não se masturbem e tampouco gozem. Subordinadas e diminuídas, a vida dessas mulheres seria, segundo ele, um confinamento tedioso, acompanhado de medo e ansiedade.
  • 4
    Para explorar o tema das relações de gênero no Alto Xingu, sugiro duas leituras: o artigo seminal de Franchetto (1996)Franchetto, B. (1996). Mulheres entre os Kuikuro. Estudos Feministas, 4(1), 35-54. https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16653
    https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref...
    em que ela discorre sobre as características definidoras da mulher kuikuro e tece uma crítica às noções de complementaridade e de dominação sexual; e o artigo recente de Ireland (2021)Ireland, E. M. (2021). The incomplete domestication of Wauja women. Cadernos de Campo (São Paulo - 1991), 30(2), e193357. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v30i2pe193357
    https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133....
    sobre as mudanças nas relações de gênero wauja nos últimos vinte anos, impactadas sobretudo pelo contato com a cidade.
  • 5
    Entre os Mehinako, pessoas são feitas lideranças a partir de um treinamento que geralmente tem início na primeira infância e que é contínuo. A ideia desenvolvida por Guerreiro (2015)Guerreiro, A. R. (2015). Ancestrais e suas sombras: uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário. Ed. Unb. sobre o chefe kalapalo enquanto esteio de gente, como o protótipo de pessoa em que os outros vão se espelhar para o ser, é válida para os Mehinako. Por isso, os chefes e chefas mehinako são treinados por outras lideranças para serem pessoas calmas, generosas, que não fazem fofoca, nem se envolvem em intrigas.
  • 6
    Como verifico em minha dissertação, a reclusão pubertária é um momento-chave de transformação para meninos e meninas que vão sair da casa, onde ficam reclusos por meses, feitos homens e mulheres. Um período em que as práticas de fabricação corporal são intensificadas, em que se amarra e se escarifica braços e pernas, pois é hora de “trocar de pele” (Regitano, 2019Regitano, A. P. (2019). “Cuida direitinho”: cuidado e corporalidade entre o povo Mehinako [Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas]. https://hdl.handle.net/20.500.12733/1637859
    https://hdl.handle.net/20.500.12733/1637...
    , p. 38).
  • 7
    O parto mehinako, quando acontecia em casa, na rede, previa a participação de ao menos duas mulheres para ajudar, sendo uma responsável por segurar as pernas da parturiente e outra por segurá-la desde trás, sustentando suas costas e pressionando a barriga (no momento de expulsão do bebê), posicionando os braços por debaixo dos seios.
  • 8
    A pajé, por ter uma relação próxima com Ahira, não pode ter contato com o sangue do parto e/ou o sangue menstrual, pois ele, como outros apapayêy, não suportam seu cheiro. Como o parto envolve sangue, e ser parteira pressupõe se relacionar com ele, ser parteira e pajé se mostraram funções irreconciliáveis, e Kamaya optou por abdicar da primeira.
  • 9
    Guerreiro (2015)Guerreiro, A. R. (2015). Ancestrais e suas sombras: uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário. Ed. Unb. verifica, a partir do caso kalapalo, que é comum que humanos chamem espíritos de avô, enquanto os espíritos chamem humanos de netos, e que esse tratamento marca a diferença entre os dois e entre os tempos em que vivem (espíritos são avôs porque existem há muito tempo). Entre os Mehinako, vemos que, em casos excepcionais, essa terminologia também pode representar uma relação de parentesco, como a que Kamaya estabelece com seu avô Ahira, por quem é diariamente cuidada e aconselhada.
  • 10
    Regitano (2021)Regitano, A. (2021). Minha mãe indígena, e a falta que ela faz. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, 1(10). www.pari-c.org
    www.pari-c.org...
    .
  • 11
    O termo xamanismo aparece aqui como um elemento para dialogar com a literatura antropológica, e a pajelança como palavra mobilizada por minhas interlocutoras e meus interlocutores indígenas falantes de português.
  • 12
    Kaumai é a festa dos mortos ilustres, mais conhecida na versão aportuguesada por Quarup. Seu Kaumai aconteceu na aldeia Uyaipiuku do povo mehinako em agosto de 2022, e reuniu povos de todo o Alto Xingu.
  • 13
    A economia alto-xinguana pressupõe a prestação de serviços remunerados, como ensinar saberes, então é possível que alguém que não herdou de família uma reza, ou um conhecimento sobre determinada raiz, possa acessá-lo por meio de um pagamento (que tradicionalmente é feito por meio de panelas de barro e colares de caramujo, mas que hoje também são feitos com miçangas tchecas, panelas de alumínio e dinheiro).
  • 14
    Mostro, a partir de um exercício de desenho com as crianças da aldeia Utawana, que o banho (sobretudo o banho de rio) é um evento central do cuidar mehinako, espaço de troca de afetos, de construção de corpos e de parentesco (Regitano, 2019Regitano, A. P. (2019). “Cuida direitinho”: cuidado e corporalidade entre o povo Mehinako [Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas]. https://hdl.handle.net/20.500.12733/1637859
    https://hdl.handle.net/20.500.12733/1637...
    ).
  • 15
    Muitas mulheres mehinako fazem uso de preparados à base de folhas e raízes durante a gestação para preparar seu corpo para o parto.

AGRADECIMENTOS

Este artigo foi fruto de pesquisas financiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (processos nº 2019/26364-5 e nº 2017/12972-8), e por este apoio fundamental sou infinitamente grata.

  • Regitano, A. (2023). A neta de Ahira: palavras de uma pajé mehinako. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220084. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0084.

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Editado por

Responsabilidade editorial: Priscila Faulhaber

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2022
  • Aceito
    23 Out 2023
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