Acessibilidade / Reportar erro

Intermidialidade e intericonicidade: um diálogo possível?

RESUMO

Este artigo propõe um diálogo entre dois conceitos disponíveis para análise de imagens no âmbito dos estudos discursivos: intermidialidade e intericonicidade. O primeiro tem como característica a intencionalidade autoral de reproduzir uma imagem em outro ambiente midiático. O segundo postula que a inter-relação entre imagens é inconsciente. Entendemos que, apesar de categorias de análise distintas, há pontos de abertura para a individualidade no segundo e para o social no primeiro. Como forma de dar concretude a essa discussão, analisamos diferentes representações do sepultamento de Cristo a partir de três suportes: (i) os Evangelhos (discurso cristão escrito); (ii) as pinturas de van der Weyden e Rubens (discurso católico pictórico); (iii) e a fotografia de Clóvis Miranda (discurso jornalístico).

PALAVRAS-CHAVE:
Análise do discurso; Discurso cristão; Intericonicidade; Intermidialidade

ABSTRACT

This paper proposes a dialogue between two concepts available for image analysis within the scope of discourse studies: intermediality and intericonicity. The former is characterized by the authorial intent to reproduce an image in a different medium environment. The latter postulates that the interrelationship between images is unconscious. It is argued that the bringing together of these distinct categories allows for the expansion of the theoretical perspectives they embody, namely, social and psychological. Different representations of the burial of Christ are analyzed as they appear in three supports: (i) the Gospels (written Christian discourse); (ii) the paintings by van der Weyden and Rubens (Catholic Christian pictorial discourse); (iii) and the photograph of Clóvis Miranda (photographic journalistic discourse).

KEYWORDS:
Discourse Analysis; Christian Discourse; Intericonicity; Intermediality

Introdução

Quando produzimos ou interpretamos uma imagem, somos guiados pela nossa intuição ou por um arquivo previamente configurado em nossa paisagem mental? É essa pergunta que move este artigo e, se não podemos respondê-la categoricamente, levantar a questão parece-nos algo relevante para os estudos do discurso. Com efeito, o limite entre o individual e o coletivo é sempre uma constante quando nos deparamos com textualidades diversas. E isso parece tornar-se tarefa ainda mais complexa quando nos deparamos com a materialidade visual.

Para acrescentar um pouco mais de complexidade a esse panorama, é produtivo abordarmos um discurso que costuma gerar não raras discordâncias e polêmicas: o religioso cristão. Vivemos em uma sociedade dividida por diversas crenças e práticas religiosas. Algumas restringem-se a pequenos grupos de adeptos, enquanto outras abarcam uma grande parcela da população mundial, como é o caso do cristianismo, considerada uma das religiões com o maior número de fiéis no mundo.

Uma das passagens bíblicas mais significativas do cristianismo é a que narra o sepultamento de Cristo. Materializada nos quatro Evangelhos (Mt 27, 57-61; Mc 15, 42-47; Lc 23, 50-56; Jo 19, 38-42), esta passagem deixou o espaço do texto bíblico escrito e se tornou pivô de uma polêmica no interior do discurso cristão no século XVI. Efetivamente, pelo efeito de superinterpretação do texto bíblico, as pinturas que têm por tema a descida da cruz fazem parte do embate entre o discurso cristão católico e o discurso cristão protestante. É nesse cenário que as imagens da descida entram para a história da arte a partir de várias representações emblemáticas que têm, na pintura de Rogier van der Weyden, uma espécie de arquétipo: “o grande ‘arque-criador de arquétipos’ flamengo ganhou fama na Itália e seus trabalhos foram conhecidos e admirados nas cortes de Milão, Ferrara e Urbino” (HAMBURGH, 1981, p.49HAMBURGH, H. E. The Problem of Lo Spasimo of the Virgin in Cinquecento Paintings of the Descent from the Cross. The Sixteenth Century Journal, v. 12, n. 4, 1981, pp.45-75. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2539878. Acesso em: 29 jan. 2021.
http://www.jstor.org/stable/2539878...
)1 1 No original: “the great Flemish ‘arch-creator of archetypes’ had achieved fame in Italy, and his works were known and admired in the courts of Milan, Ferrara, and Urbino”. .

A permanência dessa narrativa na cultura ocidental apresenta-se ao analista como ponto de reflexão sobre a natureza “inter”, tanto no que concerne ao ícone, quanto às diferentes mídias nas quais a cena se inscreve. Cenas da crucificação e do sepultamento de Cristo são reproduzidas até hoje em diferentes mídias, renovando efeitos de sentido e ressignificando narrativas.

Isto posto, este artigo trabalha, indiretamente, uma problemática por vezes mal dimensionada, a saber, a da relação entre sentido e produto de mídia. Com efeito, não é incomum pré-admitirmos que a mudança de suporte implica necessariamente uma alteração no sentido, sem que isso fique explicitado na análise. Desse modo, pela demonstração de como os efeitos de sentido se alteram com a mudança de mídia, atrelamos a relevância da discussão sobre a mídia – “toda imagem deve ser analisada a partir do médium, isto é, do suporte material que é o seu” (COURTINE, 2013, p.43COURTINE, J-J. Decifrar o corpo: pensar com Foucault. Tradução Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2013.) – a uma reflexão sobre o funcionamento do discurso. Isto é, ao descrevermos e interpretarmos o discurso religioso cristão pelos conceitos de intermidialidade e intericonicidade, partimos do pressuposto de que nem sempre mudar de suporte é mudar o discurso.

1 Intermidialidade, discurso e intencionalidade

Com o avanço dos estudos no campo da intermidialidade e a irradiação de seus preceitos para outros campos além daquele de sua origem, a saber, o da literatura, a pesquisa sobre fenômenos envolvendo vários produtos, agora também entendidos como “mídia”, encontra uma nova amplitude. Claus Clüver (2006, p.18)CLÜVER, C. Inter textos/Inter artes/Inter media. In: Aletria: Revista de Estudos de Literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, n. 14, jul./dez. 2006. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/18067/14857 Acesso em: 29-01-2021.
https://periodicos.ufmg.br/index.php/ale...
aponta que a intermidialidade abarca aquilo compreendido mais “amplamente como ‘artes’ (música, literatura, dança, pintura e demais artes plásticas, arquitetura, bem como formas mistas, como ópera, teatro e cinema) mas também as ‘mídias’ e seus textos”. Com isso, Clüver reforça uma dilatação no campo de estudo que antes se restringia à arte entendida como erudita.

Decorrem disso novas maneiras de entender a relação que se estabelece entre dois ou mais produtos de mídia e de estabelecer uma categoria analítica. O termo “mídia” tem contemporaneamente recebido os mais diversos significados e, mesmo que não se possa atribuir a ele uma definição definitiva, é necessário estabelecer alguns parâmetros para que se possa tomar dois ou mais produtos diferentes e entender as relações intermidiáticas produzidas entre eles. Para o presente estudo, propõe-se a definição de Wolf (2011)WOLF, W. (Inter)mediality and the Study of Literature. CLCWeb: Comparative Literature and Culture 13.3 (2011). https://docs.lib.purdue.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1789&context=clcweb Acesso em 19 fev. 2021.
https://docs.lib.purdue.edu/cgi/viewcont...
, que esclarece o modo como este artigo tratará o termo mídia:

Mídia, como utilizada em estudos literários e de intermidialidade, são meios de comunicação convencionalmente e culturalmente distintos, especificados não apenas por canais institucionais ou técnicos particulares (ou por apenas um canal) mas, prioritariamente, pelo uso de um ou mais sistemas semióticos na transmissão pública de conteúdos que incluem, mas não se restringem, a ‘mensagens’ referenciais. De maneira geral, a mídia faz diferença no tipo de conteúdo que pode ser evocado, em como esses conteúdos são apresentados e em como são experimentados (p.2; tradução nossa)2 2 No original: I propose the following definition: “Medium, as used in literary and intermediality studies, is a conventionally and culturally distinct means of communication, specified not only by particular technical or institutional channels (or one channel) but primarily by the use of one or more semiotic systems in the public transmission of contents that include, but are not restricted to, referential ‘messages.’ Generally, the medium makes a difference as to what kind of content can be evoked, how these contents are presented, and how they are experienced” (WOLF, 2011, p.2). .

A partir do conceito de intermidialidade e mídia, é possível explorar ferramentas que fomentam este campo para analisar as relações estabelecidas entre o texto bíblico, as pinturas de van der Weyden e Rubens e a fotografia de Miranda. Tomam-se aqui produtos de mídia com ambientes semióticos internos diferentes e analisa-se como o cruzamento de fronteiras entre as mídias estabelece relações intermidiáticas. Para isso, a análise será feita à luz da proposta de subcategorias da intermidialidade desenvolvida por Irina Rajewsky. Rajewsky (2015) introduz três subcategorias analíticas no campo da intermidialidade: 1) transposição midiática, “a transformação de um texto fonte ancorado em uma mídia específica que através de uma transformação midiática gera uma outra mídia”; 2) combinação de mídias, “implica a combinação e portanto a co-presença de pelo menos duas mídias ou formas midiáticas de articulação percebidas como distintas” (RAMAZZINA-GHIRARDI, A. L.; RAJEWSKY, I.; DINIZ, T. F. N., 2020RAMAZZINA-GHIRARDI, A. L.; RAJEWSKY, I.; DINIZ, T. F. N. Intermidialidade e referências intermidiáticas: uma introdução. Revista Letras Raras, v. 9, n. 3, p.11-23, ago. 2020. Disponível em: http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/issue/view/80/showToc. Acesso em: 20-01-2021.
http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php...
); e 3) referências intermidiáticas,

que significa a superação de fronteiras midiáticas não por envolver de fato, isto é, materialmente, mais de uma mídia ou forma midiática de articulação como na combinação midiática (co-presença), mas por referir-se a uma outra mídia, por exemplo, tematizando, evocando ou imitando/simulando certos elementos, técnicas ou estruturas de outra mídia, utili-zando seus próprios meios e instrumentos específicos para fazê-lo (RAMAZZINA-GHIRARDI, A. L.; RAJEWSKY, I.; DINIZ, T. F. N., 2020, p.19RAMAZZINA-GHIRARDI, A. L.; RAJEWSKY, I.; DINIZ, T. F. N. Intermidialidade e referências intermidiáticas: uma introdução. Revista Letras Raras, v. 9, n. 3, p.11-23, ago. 2020. Disponível em: http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/issue/view/80/showToc. Acesso em: 20-01-2021.
http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php...
).

É preciso ressaltar que esta última subcategoria destaca o ambiente de funcionamento interno da mídia derivada e produz uma referência por meio dos elementos possíveis de serem criados em seu funcionamento individual de mídia. O novo produto, a partir de seus próprios recursos de funcionamento interno, cria uma nova mídia que estabelece relações com a mídia fonte em uma relação de superação de fronteiras por se referir a outra mídia como sistema, e não por envolver a outra mídia de forma material. Apesar de se estabelecer uma relação entre as duas mídias, cada uma preserva seu ambiente textual. A superação de fronteiras não afeta a manifestação da mídia derivada, mas a qualidade da própria referência (a fotografia se refere a outra mídia, à pintura, mas continua fotografia). A fotografia de Miranda tematiza a descida da cruz, evoca as pinturas de van der Weyden e Rubens, imita o tema pintado, mas usa seus próprios elementos, técnicas e estrutura para se realizar e estabelece uma referência ao outro sistema midiático que está materialmente “ausente”. O texto bíblico aparece como mídia fonte das obras de van der Weyden e Rubens; as pinturas representam um produto resultado de uma transposição midiática do texto verbal e se tornam uma mídia intermediária para a fotografia de Miranda, a mídia destino.

Na transposição midiática do texto verbal para a pintura fica evidente o recurso à mídia fonte, enquanto, na fotografia de Miranda, a mídia intermediária (a pintura) surge de modo velado. Ela não contribui para a formação do novo produto midiaticamente pois a mídia derivada não incorpora elementos evocados, imitados ou tematizados; não há uma ligação direta entre as duas mídias. Como a mídia não é verbal, a tematização da outra mídia ocorre em sentido metafórico e há um apelo para a mente do receptor que aciona seu repertório sensorial.

2 Intericonicidade, discurso e regularidade

De acordo com Courtine (apud KOGAWA, 2015, p.411KOGAWA, J. Qual via para a análise do discurso?: uma entrevista com Jean-Jacques Courtine. Alfa, rev. linguíst., São José Rio Preto, São Paulo, v. 59, n. 2, p.407-417, ago. 2015. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/6518. Acesso em 19 fev. 2021.
https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/a...
), “Há, (...) na memória das imagens da qual cada um dispõe, uma parte individual e uma parte coletiva – algo que é da ordem da intericonicidade”. Se, por um lado, o autor investe muito de sua produção na historicidade das imagens e no aspecto inconsciente de sua inter-relação, por outro lado, ele pouco desenvolve a ideia de “memória individual das imagens”. Tal como apresentada na seção anterior, a intermidialidade poderia ser considerada, guardadas as devidas proporções, como o “elo perdido” da instrução teórica de Courtine, notadamente, em função do corpus que aqui se apresenta. Com efeito, na rede construída entre as três mídias – texto bíblico, a pintura e a fotografia –, há um fator histórico que exige uma reflexão sobre a intencionalidade e, por extensão, a individualidade. Não se trata de uma intenção e de uma individualidade de “indivíduo” – como consciência autorregulada e consciente apenas –, mas de uma intencionalidade institucional: a igreja católica encomendava pinturas para reprodução de sua doutrina. A pintura, nesse sentido, cumpriu um papel social propagandístico da fé católica. Mais do que uma decisão individual, portanto, as pinturas de van der Weyden e Rubens são o resultado material das determinações do discurso religioso católico.

A ideia de intencionalidade, já apresentada na seção anterior, é posta em suspenso nesta seção para que, numa discussão complementar, acrescentemos outro aspecto do funcionamento das imagens, a saber, sua natureza histórico-inconsciente. O conceito de intericonicidade é um caminho para descrever e interpretar as imagens como textualidades correferenciais, ou seja, como constructos materiais sempre vinculados a outros. Uma imagem, nesse aspecto, é sempre uma potencial retomada de um já-visto.

A mobilização do conceito implica a crítica de certos padrões descritivo-interpretativos que se propõem a interpretar uma imagem a partir de sua composição global ou de uma descrição do óbvio. Nesses termos, descrever uma pintura nos moldes do “Isso é isso que se vê” apaga justamente os efeitos históricos de uma série sempre extemporânea, que poderia ser sintetizada por uma descrição pela negatividade: “Isso não é isso que se vê”.

Interpretada à luz da intericonicidade, a fotografia de Miranda, Martírio no presídio, não é “a descida de um homem apoiado na escada e sustentado por três outros internos do presídio no centro da imagem”. Isso é o óbvio. Do ponto de vista discursivo, essa materialidade é o sintoma de uma cadeia icônica que semantiza o sofrimento. O discurso cristão perpassa e regula essa imagem fazendo com que ela – apesar do pertencimento ao discurso jornalístico – exista ancorada em outras, estabelecendo uma rede.

Esse olhar sintomatológico encontra eco no paradigma indiciário diagnosticado por Ginzburg em sua análise epistemológica sobre o final do século XIX: “atitude que leva a apreciar os pormenores, de preferência à obra em seu conjunto” (GINZBURG, 1989, p.145GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. Tradução Federico Caroti. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p.143-180.). Efetivamente, Courtine recorre a essa ideia de paradigma indiciário para elaborar a intericonicidade como efeito de funcionamento do indício, materializado visualmente em um gesto, em uma pose, em um vetor – no nosso corpus, a descida: “Nada de signos, mas de indícios, de rastos do surgimento de um sentido imprevisto” (COURTINE, 2013, p.42COURTINE, J-J. Decifrar o corpo: pensar com Foucault. Tradução Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2013.). É flagrante, à luz da intericonicidade, que a descida do interno pela escada no presídio não é uma construção isolada e desprovida de uma perspectiva de longa duração. Resta demonstrar, portanto, os efeitos dessa regularidade à luz do funcionamento do discurso religioso cristão.

3 Da intermidialidade à intericonicidade: deslizamentos de sentido na iconografia da descida

No século XV, o cristianismo já estava plenamente estabelecido como doutrina e sob tutela da Igreja Católica, que então exercia grande influência e domínio sobre a sociedade, sobretudo, europeia. Neste período, tivemos grandes inovações nas ciências, na filosofia e nas artes. Essa época ficou conhecida como Renascimento e revelou ao mundo grandes artistas como Rafael, Michelangelo, Leonardo da Vinci e tantos outros. Boa parte dessa grande proliferação de artistas se deve ao surgimento das primeiras tintas a óleo, que substituiriam as têmperas feitas à base de ovo e pigmentos, o que propiciaria aos pintores um maior refinamento técnico, elevando o nível das representações pictóricas. Segundo Gombrich (2011, p.240)GOMBRICH, E. H. A História da arte. 16.ed. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2011.:

Usando óleo em vez de ovo, podia trabalhar muito mais devagar e com maior exatidão. Podia fazer cores lustrosas, suscetíveis de serem aplicadas em camadas transparentes ou “vidradas”; podia adicionar cintilantes detalhes em relevo com um pincel de ponta fina, e realizar todos aqueles milagres de precisão.

Esse progresso técnico, já no século XV e sob regime da dominação religiosa, foi objeto de apropriação do discurso cristão católico, que fez funcionar a inovação como espaço de consolidação de sua doutrina. É nesse momento que emerge uma iconografia da narrativa do sepultamento de Cristo como espaço de emergência para a figura de Maria, mãe de Cristo, como metáfora da Igreja. Com efeito, do século XV em diante – com intensificação no XVI pelos embates entre a leitura católica do texto bíblico e aquela derivada da Reforma Protestante –, uma série de versões – com títulos idênticos e autoria variada – da Descida da cruz será feita. Como marco inicial possível dessa tradição iconográfica destaca-se a pintura de Rogier van der Weyden (1400-1464), no século XV: “Considerando a vitalidade posterior do tema do desmaio nas pinturas da Descida no Cinquecento, destaca-se que nenhuma pintura italiana do tema do desmaio da virgem existiu antes do aparecimento, na Itália, de Rogier van der Weyden” (HAMBURGH, 1981, p.49HAMBURGH, H. E. The Problem of Lo Spasimo of the Virgin in Cinquecento Paintings of the Descent from the Cross. The Sixteenth Century Journal, v. 12, n. 4, 1981, pp.45-75. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2539878. Acesso em: 29 jan. 2021.
http://www.jstor.org/stable/2539878...
)3 3 No original: “Considering the later vitality of the theme of the swoon in Cinquecento paintings of the Descent, it should be noted that no Italian painting of the subject with a swooning Virgin existed before the appearance in Italy of Rogier van der Weyden in 1450”. .

Figura 1
Rogier van der Weyden – A descida da cruz - 1435 – Museu do Prado – Madri - Espanha4 4 Disponível em: https://bit.ly/3d7iPP1. Acesso em: 14 jun. 2020.

Embora o interesse específico de Hamburgh (1981)HAMBURGH, H. E. The Problem of Lo Spasimo of the Virgin in Cinquecento Paintings of the Descent from the Cross. The Sixteenth Century Journal, v. 12, n. 4, 1981, pp.45-75. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2539878. Acesso em: 29 jan. 2021.
http://www.jstor.org/stable/2539878...
seja a imagem do desmaio da virgem como símbolo da leitura católica concernente à santidade de Maria e sua função na representação da Igreja e seus desígnios, seu estudo das pinturas sobre a descida dão alguma medida da popularização dessa iconografia no século XVI por conta dos embates intensificados entre o discurso católico e o protestante. Essa disputa é, efetivamente, preparada no final do século XV pela insatisfação de Lutero com a doutrina católica e suas práticas. Isso culmina, em 31 de outubro de 1517, com a publicação das 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg.

A disputa no interior do cristianismo fomenta, por parte da instituição católica, dominante nesse momento, uma “campanha propagandística” que dá lugar justamente a uma série de pinturas ao longo do século XVI e seguintes. Uma delas, também intitulada – como a de van der Weyden – Descida da cruz, é a do pintor Paul Rubens (1577-1640). Rubens chegou a Roma em 1600, aos 23 anos de idade, onde começou a estudar arte sob influência de grandes mestres (GOMBRICH, 2011GOMBRICH, E. H. A História da arte. 16.ed. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2011.) como Carraci e Caravaggio – que também tem uma versão da Descida da cruz.

Entre os anos de 1612 e 1614, Rubens, sob encomenda da Confraria dos Arcabuzeiros, pinta sua obra mais icônica: A descida da cruz:

Figura 2
Peter Paul Rubens – A descida da cruz - 1612 e 1614 – Catedral de Nossa Senhora – Antuérpia - Bélgica5 5 Disponível em: https://bit.ly/3pfz0wa. Acesso em: 14 jun. 2020.

Na materialidade do título e da imagem, a tela acima retoma intericonicamente a pintura de van der Weyden. Tanto lá quanto cá, a significação do sofrimento se dá pelo imaginário do sepultamento. Passada a crucificação, no silêncio da vida que se esvaiu, resta o tratamento do corpo. O sofrimento estendido na cruz encerra-se, simbolicamente, com o sepultamento. Esse desfecho é narrado nos quatro Evangelhos como se segue: “Então José pegou o corpo, enrolou num lençol novo de linho e o colocou no seu próprio túmulo, que há pouco tempo havia sido cavado na rocha” (Mt 27, 59-60); “José comprou um lençol de linho, tirou o corpo da cruz e o enrolou no lençol” (Mc 15, 46); “Então tirou o corpo da cruz e o enrolou num lençol de linho” (Lc 23, 53); “Nicodemos, aquele que tinha ido falar com Jesus à noite, foi com José, levando uns trinta e cinco quilos de uma mistura de aloés e mirra. Os dois homens pegaram o corpo de Jesus e o enrolaram em lençóis nos quais haviam espalhado essa mistura” (Jo 19, 39-40).

Face ao texto bíblico, as pinturas produzem um efeito de superinterpretação. Há diferenças narrativas importantes que contemplam desde a descida em si quanto a presença de certas pessoas como Maria, mãe de Jesus, na cena. Com relação ao primeiro aspecto, de fato, se um corpo foi subido à cruz, tem de ter descido, mas nem todos os Evangelhos descrevem esse processo com detalhes. A menção à descida é bem tímida nos Evangelhos de Mateus e João, embora fique subentendido que José de Arimateia, no primeiro, e José de Arimateia e Nicodemos, no segundo, “pegou/pegaram o corpo”. Primeiro efeito da superinterpretação, portanto: a condensação do sentido. Ali, onde há uma espécie de nebulosidade, a pintura preenche a falta. Essa alternância de mídia – do texto escrito para a pintura – promove, ao mesmo tempo, uma condensação – minimiza-se a incerteza de quem poderia ter tirado Cristo da cruz – e uma ampliação: se a narrativa dos Evangelhos aponta apenas duas personagens, José de Arimateia, no máximo acompanhado de Nicodemos, retirando o corpo de Cristo da cruz, as pinturas fazem multiplicar o número de participantes. Na obra de Rubens, mais particularmente, vemos sete personagens empreendendo a tarefa.

Esta liberdade condicionada do artista em adaptar o texto original foi possível devido ao movimento de transposição midiática (RAJEWSKY, 2012RAJEWSKY, I. Intermidialidade e estudos interartes: Desafios da arte contemporânea. Tradução Thaïs Flores Nogueira Diniz e André Soares Vieira, organizadores. Belo Horizonte: Rona Editora: FALE/UFMG, 2012. p.51-73.). Aqui é possível apontar a primeira subcategoria definida por Rajewsky, pois há a transformação do texto verbal, o bíblico, que serve como fonte para ancorar a criação de um novo produto midiático, a pintura.

Ao transpor o trecho bíblico, a tela amplia o texto, inserindo outras personagens à cena, re-significando a passagem na/pela adequação à pintura. A utilização de telas grandes, que serviam de decoração para igrejas (GOMBRICH, 2011GOMBRICH, E. H. A História da arte. 16.ed. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2011.), permitia a inserção de outras figuras que não apenas aquelas do texto fonte e, com isso, o quadro ganhou outras camadas de interpretação. Cristo agora estava amparado por mais discípulos fiéis. Mais fiéis era o que a igreja precisava naquele momento, especialmente depois de um século de Reforma Protestante e do aumento da concorrência na corrida da fé.

A presença de mais personagens – aí compreendida a figura materna de Maria – na cena confere maior dramaticidade ao sofrimento espetacularizado. O apelo dramático era uma forte característica do período em que a obra foi produzida, o barroco. Nesse contexto de Contrarreforma – ou Reforma Católica –, a Igreja valia-se de pinturas como forma de ilustrar o “esplendor divino” nas diversas passagens bíblicas e com isso atrair fiéis aos cultos.

As tensões entre a Igreja e o movimento protestante iniciado por Martinho Lutero (1483–1546) influenciaram o modo como a pintura serviria à Igreja na transmissão de seus valores: “os católicos responderam às invectivas protestantes com uma assertiva iconografia nova da virgem” (HAMBURGH, 1981, p.59HAMBURGH, H. E. The Problem of Lo Spasimo of the Virgin in Cinquecento Paintings of the Descent from the Cross. The Sixteenth Century Journal, v. 12, n. 4, 1981, pp.45-75. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2539878. Acesso em: 29 jan. 2021.
http://www.jstor.org/stable/2539878...
)6 6 No original: “the Catholics responded to Protestant assailants with an assertive new iconography of the Virgin”. . A importância de outros personagens, como Maria, em particular, é notável nesse sentido, já que essa mesma presença distende a ênfase na figura de Cristo. Se Cristo morreu, seus seguidores, em especial, sua mãe – metáfora da Igreja – está lá para dar continuidade à sua obra.

Em um período em que artistas tinham maiores possibilidades técnicas, possibilitando uma pintura mais realista, associada à tarefa de transmitir em suas obras os valores da Igreja, foram produzidas imagens que deram robustez ao discurso cristão e que integram nosso imaginário até os dias atuais. O contexto histórico e discursivo propiciou a criação de novos produtos midiáticos que afirmaram e perpetuaram o diálogo da igreja católica com a sociedade. Nos termos de Rajewsky (2012, p.56)RAJEWSKY, I. Intermidialidade e estudos interartes: Desafios da arte contemporânea. Tradução Thaïs Flores Nogueira Diniz e André Soares Vieira, organizadores. Belo Horizonte: Rona Editora: FALE/UFMG, 2012. p.51-73.,

A questão de como se deve definir uma mídia e distingui-la de outras mídias depende certamente dos contextos históricos e discursivos pertinentes e do tópico ou sistema de observação, além de levar em conta o progresso tecnológico e as relações entre mídias num panorama midiático global e num determinado momento no tempo.

Hoje, passados mais de quatrocentos anos desde que Rubens pintou sua obra A descida da cruz, estamos cronologicamente bastante distantes daquele contexto histórico em que a Igreja buscava se reafirmar na Contrarreforma, e ainda mais distantes do momento em que Jesus foi sepultado. Esse percurso histórico interliga-se como um grande arquivo de memórias coletivas e individuais. Esse é o funcionamento que o conceito de intericonicidade permite descrever: “a rede de reminiscências pessoais e de memórias coletivas que religam as imagens umas às outras” (COURTINE, 2013, p.156COURTINE, J-J. Decifrar o corpo: pensar com Foucault. Tradução Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2013.).

É isto que faz com que, ao observarmos uma imagem, tenhamos a sensação dela nos reenviar a outro contexto, trazendo à tona outros discursos. Sobre isso, Courtine (2013, p.156)COURTINE, J-J. Decifrar o corpo: pensar com Foucault. Tradução Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2013., afirma: “As imagens possuem o poder insuperável de determinar o que memorizamos dos acontecimentos”. É por esse viés que se torna produtivo o funcionamento em rede próprio da intericonicidade. Vejamos a imagem:

Figura 3
Clóvis Miranda, Manaus, 2007, Martírio no presídio7 7 A fotografia foi publicada no jornal A crítica (www.acritica.com). O registro de obtenção do prêmio Esso pode ser verificado em https://bit.ly/3fOiuyV. Uma versão online da fotografia pode ser acessada em: https://bit.ly/315h8vo.

No alto do prédio, os presos seguravam alguns reféns. Dentre eles, destacava-se o detento que seria o alvo da fotografia (Figura 3). A atenção de Clóvis ficou dividida entre duas cenas, porém, quando viu o preso pendurado pelos braços tentando se desvencilhar de seus algozes, decidiu registrar o momento do resgate. No dia seguinte, sua fotografia havia se tornado capa daquela edição do jornal A crítica. Dias depois, Miranda recebeu o telefonema do editor de fotografia da Folha de S. Paulo dizendo que aquela era uma “fotografia bíblica”. Ele recebeu também uma carta de uma leitora do jornal, que dizia que ela havia se emocionado bastante com a cena, pois via ali o sofrimento de Jesus. Em 2008, Miranda recebeu o Prêmio Esso de Jornalismo na categoria Fotojornalismo por sua foto Martírio no presídio.

Como a fotografia, cada produto de mídia possui técnicas, instrumentos, procedimentos e desafios próprios para que seja possível produzir sentido e concretizar a mensagem ao receptor. O desenvolvimento de uma pintura exige que o artista elabore rascunhos prévios e estudos de iluminação e cores até chegar ao resultado final. O pintor conta com modelos que realizam as poses conforme sua orientação e ainda, de acordo com Gombrich (2011)GOMBRICH, E. H. A História da arte. 16.ed. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2011., no caso de Rubens, com diversos artistas talentosos que trabalhavam sob sua tutela.

Os modos de produção da pintura e da fotografia podem até se assemelhar em alguns aspectos. Um fotógrafo também pode dispor de modelos para compor a cena e ajudantes que o auxiliem na iluminação, mas não é este o caso da foto jornalística, que consiste primordialmente em documentar um acontecimento, não havendo a possibilidade de uma pré-produção como na fotografia de estúdio ou da pintura.

Este paralelo evidencia uma diferença significativa entre os dois produtos de mídia no que diz respeito à produção. Enquanto uma requer bastante tempo entre os primeiros esboços e as sobreposições de camadas de tinta – uma camada precisa secar para que a seguinte não a desconstrua –, a outra exige um olhar atento na captura de um breve instante, mas que ainda assim exige um senso artístico do fotógrafo para enquadrar a cena em algum esquema compositivo que seja agradável aos olhos. Rubens teve todo tempo possível para a execução da tela, o que lhe permitiu esboçar estudos da cena, composições de luz e cores, enquanto Miranda teve apenas o instante que durou o evento. Mesmo com esta grande distância contextual entre as duas imagens e a diferença entre os dois produtos de mídia e seus modos de produção, o efeito de retorno apreensível pela intericonicidade “faz falar”, na fotografia de Miranda, uma memória da pintura de Rubens.

A relação entre o trecho da Bíblia e a pintura de Rubens produz um efeito de superação de fronteiras midiáticas que configura uma transposição midiática: o texto do Evangelho serve como fonte para o pintor adaptar a passagem, criando em um novo ambiente midiático uma cena pictural a partir de sua perspectiva e da mensagem que deseja imprimir ao novo produto de mídia. A relação aqui estabelecida é a de um produto fonte que se mostra adaptado intencionalmente em uma nova mídia que veicula a percepção da mente do produtor. O produto de mídia, fruto da adaptação, recebe novas camadas de significado e cabe a cada receptor reinterpretar o produto final a partir de suas referências.

Já a intermidialidade estabelecida entre a pintura de Rubens e a fotografia de Miranda passa por uma relação intermidiática totalmente diversa e inédita neste campo. A fotografia retoma a pintura e usa seus próprios meios para citar a imagem. Os elementos constituintes da fotografia estabelecem as relações de sentido entre os dois produtos de mídia. Fica evidente a possível tematização da descida da cruz na fotografia. É como se intencionalmente o momento registrado evocasse as pinturas de van der Weyden e Rubens, imitando o tema pintado e estabelecendo uma referência ao outro sistema midiático que está materialmente “ausente”, superando fronteiras e se referindo a outra mídia como sistema.

O surpreendente nesta relação é que os processos intermidiáticos realizados através da subcategoria “referência intermidiática” partem sempre da intenção da mente produtora de seu criador de citar um produto em uma nova mídia a partir dos recursos desta mídia. Ainda que tenha vindo de terceiros a percepção de que aquele registro fotográfico evoca a deposição de Cristo, posteriormente ao evento (o fotógrafo relatou que só fez a associação após as diversas manifestações do público), a relação entre a fotografia e a pintura é evidente.

Miranda não teve a intenção de criar essa referência intermidiática que se tornou óbvia aos olhos dos receptores. Então, como explicar essa relação intermidiática na subcategoria proposta por Rajewsky? Através da relação estabelecida por esses dois produtos de mídia, é possível adicionar aqui, aos estudos da intermidialidade, uma possibilidade não vislumbrada antes e que se configura – pelo diálogo entre o conceito de intermidialidade e o de intericonicidade – como um ineditismo nessa relação: a mente do produtor é capaz de criar uma referência intermidiática não intencional ativando inconscientemente seu repertório cultural. Miranda não teve a intenção de fazer a referência; contudo, é possível afirmar que a Descida da Cruz estava gravada em sua mente e foi ativada no momento que ele viu a cena no presídio. Como consequência desse processo, a associação da imagem fotografada à Descida da Cruz acontece graças ao repertório de modelos midiáticos do receptor, que o leva a entender a referência intermidiática estabelecida.

É preciso ressaltar que a referência intermidiática criada aqui só surtirá efeito com um receptor proficiente, capaz de fazer associações e desvelar o sentido da decida da cruz na fotografia. Se a relação é estabelecida, o produto de mídia criado se torna uma citação visual:

A imagem vai construir outras imagens e um dos elementos para essa construção é a própria citação. Apesar de ser uma imagem repetida, ela é qualificada. Mais que uma retomada genérica, a citação cria uma relação de copresença entre imagens/textos/conteúdo e temas retomados. O sentido dessa citação não se reduz ao que é citado, ela não constitui uma prática que guarda o sentido; há valores significantes que se acrescentam; o texto citante acolhe o texto citado (RAMAZZINA-GHIRARDI, 2019, p.129RAMAZZINA-GHIRARDI, A. L. Citação visual: cruzando fronteiras intermidiais em O diário de Anne Frank. / Visual citation: crossing intermedial borders in Anne Frank’s diary. Revista Letras Raras, v. 2, n. 8, p.108-132, 2019. Disponível em: http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/article/view/1369. Acesso em: 29-01-2020.
http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php...
).

A obra de Miranda cria uma relação tríptica entre a fotografia, o texto escrito do Evangelho e a pintura de Rubens: o martírio pelo qual o preso passa se assemelha àquele vivido por Cristo quando foi crucificado para salvar a humanidade.

Considerações finais

A fotografia Martírio no presídio é uma obra autônoma, cujo autor, segundo nos informou em conversa telefônica, não objetivava reproduzir A descida da cruz ou se reportar ao Evangelho. Seu objetivo primeiro foi o de registrar os eventos ocorridos naquele dia, durante a rebelião no centro de detenção. No entanto, o atravessamento de sentidos do discurso cristão em sua fotografia a ressignifica, pelo funcionamento intericônico, conduzindo a outro contexto que não o da violência sofrida por um detento em uma de tantas rebeliões prisionais.

Em um certo sentido, este novo contexto pode ser evocado graças ao volume de imagens consumido pela sociedade atual, que a torna sensível a este tipo de linguagem e a leva à busca da validação de uma suposta verdade através de “figuras que comprovam” apenas sua materialidade, deixando de lado o contexto de sua produção e os atravessamentos de sentido que elas podem sofrer.

Assim como as imagens, é difícil imaginar uma sociedade isolada no mundo e na História. Há uma subordinação ao que preexistiu e uma herança de saberes que influenciam o modo de viver e enxergar o mundo.

As diversas produções midiáticas ao longo da História exercem papel essencial nesse processo. Grande parte do imaginário popular é composto por cenas não vivenciadas, mas armazenadas em fragmentos da memória que constroem um repertório de modelos midiáticos pronto para ser ativado a cada contato com uma nova mídia. A pintura de Rubens é o resultado de sua mente perceptora, quando retrata intencionalmente sua leitura da passagem bíblica e de sua mente produtora que a concretiza visualmente em uma imagem. A tela, por sua vez, é propagada para um público receptor pronto para entender seu significado a partir de seu título: Descida da cruz. A partir da mente produtora do pintor, camadas de significado são acrescidas à nova mídia e ressignificam o martírio vivido por Cristo. A fotografia de Miranda comprova a vivacidade desta herança ao apresentar um novo produto de mídia, fruto de seu talento e da ativação inconsciente de seu conhecimento enciclopédico.

Neste processo, é possível notar um acréscimo de camadas de sentido aos diferentes produtos de mídia; Rubens intencionalmente reinterpretou um trecho bíblico e revelou ao mundo de forma imagética um discurso carregado de significados diversos. A força de sua obra denota a força do texto fonte e acrescenta a ideia de sua presença no momento da deposição documentando o acontecimento. De algum modo, Miranda repete a ação do pintor ao documentar na rebelião a “deposição de um preso” e criar um novo produto pleno de novos significados.

Agradecimento

Agradecemos ao fotógrafo Clóvis de Miranda Pereira pela autorização para utilizarmos sua fotografia Martírio no presídio, indispensável às reflexões deste artigo.

  • 1
    No original: “the great Flemish ‘arch-creator of archetypes’ had achieved fame in Italy, and his works were known and admired in the courts of Milan, Ferrara, and Urbino”.
  • 2
    No original: I propose the following definition: “Medium, as used in literary and intermediality studies, is a conventionally and culturally distinct means of communication, specified not only by particular technical or institutional channels (or one channel) but primarily by the use of one or more semiotic systems in the public transmission of contents that include, but are not restricted to, referential ‘messages.’ Generally, the medium makes a difference as to what kind of content can be evoked, how these contents are presented, and how they are experienced” (WOLF, 2011, p.2WOLF, W. (Inter)mediality and the Study of Literature. CLCWeb: Comparative Literature and Culture 13.3 (2011). https://docs.lib.purdue.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1789&context=clcweb Acesso em 19 fev. 2021.
    https://docs.lib.purdue.edu/cgi/viewcont...
    ).
  • 3
    No original: “Considering the later vitality of the theme of the swoon in Cinquecento paintings of the Descent, it should be noted that no Italian painting of the subject with a swooning Virgin existed before the appearance in Italy of Rogier van der Weyden in 1450”.
  • 4
    Disponível em: https://bit.ly/3d7iPP1. Acesso em: 14 jun. 2020.
  • 5
    Disponível em: https://bit.ly/3pfz0wa. Acesso em: 14 jun. 2020.
  • 6
    No original: “the Catholics responded to Protestant assailants with an assertive new iconography of the Virgin”.
  • 7
    A fotografia foi publicada no jornal A crítica (www.acritica.com). O registro de obtenção do prêmio Esso pode ser verificado em https://bit.ly/3fOiuyV. Uma versão online da fotografia pode ser acessada em: https://bit.ly/315h8vo.

REFERÊNCIAS

  • BÍBLIA, N. T. Mateus. In: Bíblia: nova tradução na linguagem de hoje. Tradução João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013. p.957-998.
  • BÍBLIA, N. T. Marcos. In: Bíblia: nova tradução na linguagem de hoje. Tradução João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013. p.998-1024.
  • BÍBLIA, N. T. Lucas. In: Bíblia: nova tradução na linguagem de hoje. Tradução João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013. p.1025-1068.
  • BÍBLIA, N. T. João. In: Bíblia: nova tradução na linguagem de hoje. Tradução João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013. p.1068-1099.
  • CLÜVER, C. Inter textos/Inter artes/Inter media. In: Aletria: Revista de Estudos de Literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, n. 14, jul./dez. 2006. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/18067/14857 Acesso em: 29-01-2021.
    » https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/18067/14857
  • COURTINE, J-J. Decifrar o corpo: pensar com Foucault. Tradução Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2013.
  • FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7.ed. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
  • GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. Tradução Federico Caroti. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p.143-180.
  • GOMBRICH, E. H. A História da arte. 16.ed. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2011.
  • HAMBURGH, H. E. The Problem of Lo Spasimo of the Virgin in Cinquecento Paintings of the Descent from the Cross. The Sixteenth Century Journal, v. 12, n. 4, 1981, pp.45-75. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2539878 Acesso em: 29 jan. 2021.
    » http://www.jstor.org/stable/2539878.
  • KOGAWA, J. Qual via para a análise do discurso?: uma entrevista com Jean-Jacques Courtine. Alfa, rev. linguíst., São José Rio Preto, São Paulo, v. 59, n. 2, p.407-417, ago. 2015. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/6518 Acesso em 19 fev. 2021.
    » https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/6518
  • RAJEWSKY, I. Intermidialidade e estudos interartes: Desafios da arte contemporânea. Tradução Thaïs Flores Nogueira Diniz e André Soares Vieira, organizadores. Belo Horizonte: Rona Editora: FALE/UFMG, 2012. p.51-73.
  • RAJEWSKY, I. Intermidialidade, Intertextualidade e “Remediação”: uma perspectiva literária sobre a intermidialidade. Tradução Thaïs Flores Nogueira Diniz e Eliana Lourenço de Lima Reis. In: DINIZ, T. F. N. Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. Belo Horizonte: UFMG, 2012, p.15-46.
  • RAMAZZINA-GHIRARDI, A. L. Citação visual: cruzando fronteiras intermidiais em O diário de Anne Frank / Visual citation: crossing intermedial borders in Anne Frank’s diary. Revista Letras Raras, v. 2, n. 8, p.108-132, 2019. Disponível em: http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/article/view/1369 Acesso em: 29-01-2020.
    » http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/article/view/1369
  • RAMAZZINA-GHIRARDI, A. L.; RAJEWSKY, I.; DINIZ, T. F. N. Intermidialidade e referências intermidiáticas: uma introdução. Revista Letras Raras, v. 9, n. 3, p.11-23, ago. 2020. Disponível em: http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/issue/view/80/showToc Acesso em: 20-01-2021.
    » http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/issue/view/80/showToc
  • WOLF, W. (Inter)mediality and the Study of Literature. CLCWeb: Comparative Literature and Culture 13.3 (2011). https://docs.lib.purdue.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1789&context=clcweb Acesso em 19 fev. 2021.
    » https://docs.lib.purdue.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1789&context=clcweb

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2021
  • Aceito
    04 Ago 2021
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com