Acessibilidade / Reportar erro

GONÇALVES, J. C. et al. (org.). Além da tese: percursos de pesquisa em ciências humanas. São Paulo: Hucitec, 2022. 212 p.

GONÇALVES, J. C.. Além da tese. : percursos de pesquisa em ciências humanas. São Paulo: Hucitec, 2022. 212 p

No meio do caminho da tese, tem (a) gente e uma pandemia

A finalidade das pesquisas científicas e o dinheiro público nelas investido nunca foram tão discutidos quanto nos últimos dois anos, em que a vida humana foi ameaçada (e ceifada) por um vírus invisível de alta propagação, avassalador em seus efeitos. A praga chegava pelo ar e medidas de proteção variadas não prescindiram do isolamento e do afastamento do convívio social que constitui os seres humanos. Em poucos meses, desde o primeiro caso de contaminação registrado (dezembro de 20191 1 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Origin of SARS-CoV-2. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/332197/WHO-2019-nCoV-FAQ-Virus_origin-2020.1eng.pdf. Acesso em 15 jul. 2022. ), o mundo se uniu em torno de um mesmo assunto, de uma mesma luta pela sobrevivência, o que se caracterizou, indiscutivelmente, como a grande crise global do século XXI.

“A primeira revelação fulminante dessa crise inédita é que tudo o que parecia separado é inseparável” (MORIN, 2021, p.21). Com essa afirmação, o centenário pensador francês Edgar Morin, em É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus, de 2021, defende que a crise a ser superada é a do paradigma da modernidade do Ocidente e exorta à necessidade urgente de mudança de via. As reflexões do autor poderiam ser resumidas na busca pela qualidade de vida, que depende do “bem-estar no sentido existencial, e não apenas no material. Implica a qualidade das relações com o próximo e a poesia dos envolvimentos afetivos e afetuosos” (MORIN, 2021, p.75). A isso, o autor chama de “política civilizacional” do “menos eu” e do “mais nós”, uma política de humanidade. Não há, nesse livro, lições específicas para a educação, mas um mandamento assertivo de que a reforma do pensamento subjacente às lições oferecidas pela pandemia “deve ser acompanhada por uma política de reeducação da educação” (MORIN, 2021, p.68).

Nesse movimento plural alargado de propostas de reforma e regeneração do humano, encontra-se a área das Ciências Humanas a que se filia o Programa de PósGraduação em Educação (PPGE/UFPR), onde se desenvolveu a disciplina de doutorado Seminário de Tese em Linguagem, Corpo e Estética na Educação, cujos professores ministrantes ofereceram a seus estudantes e/ou orientandos a liberdade de uma escrita de si. O objeto da proposta, que culmina no Além da tese: percursos de pesquisa em Ciências Humanas, reside nos discursos que envolvem aqueles sujeitos constituídos sóciohistórico-cultural e eticamente por meio da escuta ativa de corpos sociais, de vidas que acontecem ao mesmo tempo em que uma pesquisa de doutorado se desenvolve e uma pandemia se impõe. A obra aqui resenhada coloca-se na direção da construção de uma nova via, de um novo modo de fazer Ciências Humanas, que compreende o olhar para si e para o outro, por meio do afetar e deixar-se afetar para se compreender no percurso feito por mãos, mentes e corações humanos.

Além da tese: percursos de pesquisa em Ciências Humanas é o quinto livro da coleção LiCorEs - Linguagem, Corpo, Estética, dirigida por Beth Brait e Jean Carlos Gonçalves, e foi lançado em 2022 pela editora Hucitec. O volume de 212 páginas, organizado por Jean Carlos Gonçalves, Michelle Bocchi Gonçalves, Otilia Lizete de O. M. Heinig, Maria Helena Cruz Pistori e Valéria Silva Ferreira, compõe-se de dezesseis textos.

O ensaio foi o gênero discursivo escolhido pelos autores dos diferentes textos, todos eles primando por uma exposição organizada e lógica, ainda que de estilos variados. Há um texto exposto em cartas, outro, dividido em atos, vários entremeados de poesias, relatos mais ou menos íntimos, todos escritos em primeira pessoa, oscilando entre o prosaico e o poético. Um ensaio por si só denota provisoriedade, não acabamento, o que se coaduna com a proposta desses textos de oferecer um panorama das condições materiais e subjetivas da pesquisa de doutoramento em andamento à época da escrita, com total liberdade de expressão.

Os textos são, em sua maioria, autobiográficos e seus temas se aproximam da filosofia, filosofia da linguagem, estudos da performance, das artes do corpo e da estética, na clara pretensão de comunicar, de expressar o ser doutorando em construção. Em razão das áreas diversas e da característica ensaística quanto à forma composicional, os que apresentam as suas referências bibliográficas expressas ao final do texto (oito) alternamse entre as obras de Mikhail Bakhtin, Paulo Freire, Richard Schechner, Umberto Eco, Valentin Volóchinov, manuais de metodologia científica e outros de autoria própria e de membros do Grupo de Pesquisa do Laboratório de Estudos em Educação, Linguagem e Teatralidades (Labelit/UFPR/CNPq). Há um ensaio ancorado em Gilles Deleuze e Félix Guattari.

A pandemia que aconteceu (acontece2 2 Em julho de 2022, a Organização Mundial da Saúde mantém a situação da pandemia como Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional. Disponível em: https://www.who.int/multi-media/details/whopress-conference-on-covid-19-and-other-global-health-issues---12-july-2022. Acesso em: 13 jul. 2022. ) dentro e fora das casas pressionou as universidades, entre as quais, a Universidade Federal do Paraná (UFPR), a encontrar outros meios de funcionamento que não o presencial. Assim, as atividades de ensino, pesquisa e extensão passaram a ser mediadas, integralmente, por recursos tecnológicos de comunicação e ensino, num formato remoto, no qual se desenvolveu a disciplina de doutorado já citada.

No texto introdutório, “Além da tese: dores e delícias da pesquisa em Ciências Humanas”, os docentes/orientadores e organizadores da obra, Jean Carlos Gonçalves e Michelle Bocchi Gonçalves, apresentam-na em texto escrito no outono de 2021, situando o germe de sua proposta na disciplina ofertada em 2020, que objetivou preparar os estudantes para o exame de qualificação de tese. Como forma de apresentar os quinze seguintes, este texto cita os autores divididos entre os nove discentes do Seminário, os quatro convidados e as três professoras participantes de outras universidades, também organizadoras da obra, a maior parte integrante da linha de pesquisa Linguagem, Corpo e Estética na Educação (PPGE/UFPR).

Os textos aqui reunidos são repletos de vida. Muitas vezes esquecemos, no ambiente universitário, que o pesquisador tem uma vida, que tem demandas não muito reconhecidas e às vezes pouco valorizadas pela esfera acadêmica, que solicita incessantemente produtos científicos resultantes das suas investigações. Mas será que é possível sermos pesquisadores em Ciências Humanas e, ao mesmo tempo, esquecermos da própria humanidade que nos constitui? (p.10).

Assim, os autores anunciam o tema da obra, que se assenta nas tensões e incertezas do pesquisar nas ciências do humano, questionando o ritmo avassalador de produções variadas, de normas internas e externas aos programas, dos órgãos avaliadores e de fomento, de pressões, até justificáveis pela busca de reconhecimento e excelência. E lembram que, no meio disso tudo, há pessoas. E pessoas sofrem. E pessoas adoecem:

A busca incessante, nesta obra, é da ordem da angústia - não tem como ser diferente. Ser pesquisador, especialmente nas e das Ciências Humanas, nesse tempo perturbado e triste, é entregar-se ao não saber, como nunca antes. Não sabemos, e não sabemos se um dia saberemos. Portanto, o que nos resta é pesquisar (p.12).

Desse modo, nessa apresentação, Gonçalves e Gonçalves convidam os leitores (acadêmicos) a refletirem sobre a epistemologia do fazer Ciências Humanas na academia por meio de questões pontuais - quais são o objeto e os objetivos das pesquisas em Ciências Humanas e a que realmente se destinam. Mais que isso, defendem que a obra reflete um cotidiano particular de telas através das quais o grupo de pesquisadores se manteve conectado, construindo uma nova socialização entre pessoas. Assim, justificam o “além da tese” por tudo aquilo que circunda a vida do pesquisador da/nas CHs e, por que não, de outras ciências, inclusive a busca por uma pertinência atualizada pela doença que varre o mundo e exige resultados rápidos da ciência.

No segundo texto da obra, “Viagem e pesquisa: mais que uma simples metáfora”, a professora convidada da disciplina Seminário de Tese, também organizadora da obra, Otilia Lizete de Oliveira Martins Heinig (Fundação Universidade Regional de Blumenau/ FURB), constrói um texto em prosa didática comparando a jornada que se percorre na pesquisa qualitativa em busca de respostas que motivam a investigação a uma viagem. Propondo um diálogo entre obras de metodologia científica e de pesquisa em educação e linguagem, conversa com o leitor oferecendo um esquema de organização que revela uma orientadora cuidadosa e uma pessoa viajante. Ao elencar elementos comuns às viagens (o tipo de viajante/pesquisador que se é, o planejamento/roteiro/reservas/mapa/registros, a escolha do companheiro/orientador e as expectativas reais e ideais), reforça que o trajeto deve ser flexível, mas sem prescindir de organização prévia, pois “é necessário trazer, nas malas, os conceitos que irão nortear as escolhas feitas ao longo do caminho” (p.23).

O terceiro texto, que antecede os textos dos doutorandos, é da editora do periódico Bakhtiniana, outra professora convidada, ministrante da disciplina e também organizadora do livro, Maria Helena Cruz Pistori (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP). “Publish or perish: a publicação científica na formação do pesquisador reforça o rigor científico, a responsabilidade (e a obrigação) envolvidos na divulgação das pesquisas realizadas, esta, “essencial para o desenvolvimento do conhecimento” (p.37). A autora ancora-se na teoria dialógica do discurso, que entende o fazer das Ciências Humanas como as ciências do homem que se exprime ao criar textos (BAKHTIN, 2006BAKHTIN, M. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. Uma experiência de análise filosófica. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4ed. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.307-336.), para situar os interlocutores, segundos sujeitos, envolvidos na produção, recepção e circulação dos artigos científicos, tais como autores, editores e pareceristas. A exposição é competente e revela intimidade com o universo das publicações científicas, explicando o conceito da Open Science, conjunto de procedimentos e política de ciência aberta em que todos os passos das pesquisas estão à disposição da sociedade, especialmente as financiadas pelo poder público.

O texto aborda ainda o sistema de avaliação dos periódicos e orienta o leitor/autor no processo de escolha de uma revista de qualidade para a publicação de seu trabalho, de acordo com a excelência expressa em critérios definidos no Qualis (CAPES/MEC); e critérios de excelência para que periódicos científicos figurem na biblioteca eletrônica SciELO (FAPESP). A partir daí, discorre sobre as características de um bom artigo científico, posicionando-se criticamente sobre o movimento ferrenho de publicar ou perecer, que “não significa necessariamente o avanço da ciência” (p.47). O texto configura-se como importante material de apresentação dos processos de divulgação científica para os diálogos entre orientador e orientando, não só na pós-graduação, mas nos processos de iniciação em pesquisa da universidade, por seu desvelar das práticas e sujeitos envolvidos, que concorrem para ultrapassar o ambiente solitário da pesquisa e sua escrita em um texto científico. Há não só os outros envolvidos no diálogo do autor com seu herói, mas todo um aparato ideológico organizado ao redor da pesquisa acadêmica, pois é “impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições” (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução do russo, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p.11-69., p.57).

Os trezes textos seguintes pertencem a discentes, sendo nove participantes do Seminário e quatro convidados. São relatos de si e do enfrentamento diário do percurso da pesquisa de doutoramento em uma pandemia; envolvem a escrita e a relação com os professores orientadores, além de (ou seria sobretudo?) oferecerem um retrato sensível de uma vida “que se move teórica e empiricamente, metafórica e literalmente”, como bem resumido no texto “Odisseia de uma pesquisadora em (des)construção”, de Déborah Helenise Lemes de Paula. Há vidas e importantes reflexões (inéditas?) nos textos que compõem essa obra, cada um emoldurado por um título poético e bem representativo do que vem a seguir.

Seria demasiado ousado dizer que as questões levantadas pelos autores do texto de apresentação poderiam se constituir nas bases de construção de uma nova via na academia? Se não tanto, a proposta é ousada, principalmente por assumir o risco de tornar simples, palpável, o/s percurso/s de doutoramento/s em uma pandemia.

Ainda que seja uma obra produzida dentro e a propósito da academia, saltam aos olhos, durante toda a leitura, a reiteração das palavras-chave3 3 Com o auxílio da funcionalidade Word Cloud GeneratorTM foi possível criar uma nuvem com as cinquenta palavras de conteúdo (substantivos, adjetivos, verbos e advérbios) mais frequentes do livro. O aplicativo funciona somente on-line como extensão do navegador de internet Google Chrome e não armazena dados. Disponível em: https://chrome.google.com/webstore/detail/word-cloudgenerator/abeaddpndnoipjlbkchghbpoilcmkdoj?hl=pt-BR. Acesso em: 01 jul. 2022. pesquisa, educação, corpo, vida, tempo e processo (processos do humano). Os vocábulos soltos assim somente produzem sentido quando se compreende a proposta de criação do livro e a sua materialização em cada texto que o compõe. No entanto, a mera disposição deles em sequência sugere o processo envolvido na pesquisa em Educação, que aponta para a vida de corpos sociais que habitam este tempo presente.

É impossível manter a distância fornecida pela terceira pessoa do singular, após o contato com esses textos. Por isso, desejo enfatizar que, enquanto o vírus circula(va) livremente, mantendo os corpos confinados, havia pessoas que se doutoravam. Então, esse livro conta as histórias: 1) da filha que acompanha o pai na fila da vacina contra a covid-19; 2) do ex-trabalhador rural de “MANdirituba”, PR; 3) da “sujeita” de sorte que mora perto da universidade; 4) da espiritualista amazônida que inala o ar das memórias dos banhos no Rio Negro enquanto seu pulmão se enche de outra matéria escura; 5) do moço privilegiado que tem mãe, pai, irmã e avós!; 6) da mãe do patinetista Bernardo; 7) da apaixonada por aprender que empresta seus livros; 8) da atriz passarinha de 26 anos que lê palavras dançantes nos livros; 9) do professor de arte que não é nem isso, nem aquilo, é tudo isso; 10) do moço que se olha no espelho e se lembra do medo que sentia da professora que batia em crianças; 11) da mulher/mãe/esposa/irmã/filha que nasceu em cidade pequena na década de 1970; 12) de uma engenheira acreana que veio olhar nos olhos dos outros em Curitiba; 13) da quinta filha de pais imigrantes italianos gaúchos que planta repolhos. Também conta as histórias: 1) do casal que existe/vê/liberta/orienta além da tese; 2) da viajante experiente que coleciona miniaturas do mundo e 3) da leitora que saboreia uma obra italiana e afetivamente a chama de “precioso livrinho”.

A obra destina-se ao estudante de pós-graduação e, concomitantemente, proporciona reflexão sobre o ser humano em diferentes perspectivas, a partir de um mesmo horizonte, o da escrita da tese, e convoca movimentos acadêmicos de abertura à singularidade e à poesia que constituem cada história de vida descrita aqui.

Bakhtin (2016, p.312)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução do russo, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p.11-69. afirma que a “atitude humana é um texto em potencial e pode ser compreendida [...] unicamente no contexto dialógico da própria época”. A leitura de Além da tese... permite ao leitor inserir-se na cadeia dialógica que emerge das vidas pessoais, profissionais e acadêmicas: seus autores são professores, são orientadores, são alunos que dividem esses e outros orientadores, vários compartilhando o grupo e a linha de pesquisa, as teorias, com suas normas e rigor científico inerentes, ao mesmo tempo que compartilham as angústias e a solidariedade.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso Organização, tradução do russo, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p.11-69.
  • BAKHTIN, M. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. Uma experiência de análise filosófica. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal 4ed. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.307-336.
  • MORIN, E. É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus. Colaboração de Sabah Abquessalam. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2022
  • Aceito
    15 Set 2022
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com