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O conceito de ideologema na criação artística da obra de Dostoiévski

RESUMO

O objetivo do presente ensaio é compreender a complementaridade do campo conceitual, desenvolvido pelos estudos do dialogismo, para explorar a composição das ideias a partir das relações dialógicas manifestadas em ideologemas construídos pelos ideólogos nas obras romanescas de Dostoiévski. Para cumprir tal objetivo, a investigação de Volóchinov se coloca como premissa fundamental. Graças à compreensão do signo ideológico como formação discursiva constituída nas refrações que abrem os caminhos indagativos a novas possibilidades especulativas, ou melhor, a ideologemas, podemos compreender a magnitude do trabalho do ideólogo e de sua produção intensiva de ideologia geradora de formas no romance polifônico.

PALAVRAS-CHAVE:
Ideias; Ideólogo; Ideologema; Refração; Grande tempo

ABSTRACT

The aim of this essay is to better understand the complementarity of the conceptual field developed in dialogism studies, to explore the composition of ideas from the dialogic relations expressed in ideologemes, in Dostoevsky’s novels, as constructed by the theorists. To achieve this aim, Vološinov’s investigation is presented as a fundamental premise. Thanks to the understanding of the ideological sign as a discursive formation, established in the refractions that open up the investigative pathways to new speculative possibilities – or rather, to ideologemes – we are able to understand the magnitude of the ideologist’s work and their intensive production of ideology, creating forms in the polyphonic novel.

KEYWORDS:
Ideas; Ideologist; Ideologeme; Refraction; Great Time

Introdução

Um estudo que propõe examinar os “problemas” criativos de trabalhos no campo da arte verbal revela, dentre outros objetivos, a preocupação em alcançar caminhos analíticos por meio dos quais tais obras conquistam seus procedimentos fundamentais. No caso do livro Problemas da obra de Dostoiévski (1929), M. M. Bakhtin apresenta com muita clareza sua preocupação: examinar como Dostoiévski inventa uma nova forma de “representar artisticamente as ideias” em seus romances e, com isso, desenvolver procedimentos de construção artística baseados na interação, no diálogo, na busca, se não de entendimento, pelo menos das discussões a respeito dos conflitos de ideias que afligem suas personagens.

Para isso, Bakhtin propõe examinar o modo de construção de um fazer artístico em que o próprio ato criador se desenvolve segundo um caminho analítico de caráter dialógico – o que confere a Bakhtin também o desígnio de descobridor não apenas dos procedimentos específicos da poiesis dostoievskiana, como também de seu próprio método crítico-analítico para a construção de sua poética histórico-dialógica. Como se pode acompanhar este movimento transformador de uma descoberta que emerge de um exercício de criação artística e transforma o próprio gesto teórico-analítico? Tal é a questão que motivou o estudo proposto no presente ensaio.

Logo no início do livro Problemas da obra de Dostoiévski (1929), cujos noventa anos foram celebrados em 2019, Bakhtin esclarece seu interesse em examinar o funcionamento da representação da ideia que é flagrada, nos romances dostoievskianos, em sua interação com outras ideias, vale dizer, em seu deslocamento em relação a um outro. Trata-se de uma representação em que a ideia é explorada na extensão de suas possibilidades, e não como demonstração conclusiva de pensamentos acabados e definidos de uma vez por todas no plano autoral. A representação da ideia é tomada como problema fundamental da criação artística da obra de Dostoiévski naquilo que ela tem de mais essencial: a indagação que busca entendimentos para suas próprias questões.

Na demanda claramente colocada no livro de Bakhtin ressoa uma preocupação que se estende a outros trabalhos do círculo intelectual voltados para o entendimento da representação das ideias em interação. No livro Marxismo e filosofia da linguagem (1929), de V. N. Volóchinov, tal preocupação é examinada nos processos de construção em que a ideia é materializada em alguma forma discursiva, de modo a interagir com outrem. Pensamento e discurso traduzem a dimensão operativa da ideia em diferentes formas de transmissão, que não apenas refletem pressupostos concluídos, como também refratam, isto é, abrem para discussões de possibilidades num espaço indagativo integrado por diferentes pontos de vista, sem que nenhum caminhe para o fechamento da questão.

Enquanto o caminho investigativo de Volóchinov se orienta para a sistematização dos elementos do discurso materializados por diferentes acentos e pontos de vista, Bakhtin avança para situar como, de discursos multiacentuais, emergem movimentos de ideias abertas às suas próprias possibilidades e inacabamentos. De tais investigações surgiram campos teóricos estruturais para a constituição do dialogismo. De um lado, Volóchinov formulou a noção de ideologema para designar as práticas discursivas com diferentes acentuações de pontos de vista. De outro, Bakhtin explora a prática discursiva baseadas em ideologemas construídos pelo ideólogo – o herói que no romance enuncia seu discurso como sujeito de seus próprios pontos de vista.

Como se pode observar, as investigações que sustentam os estudos da poiesis de Dostoiévski como marco da criação artística dialógico-polifônica movimenta-se por caminhos de questões emergentes que se organizam em focalizações distintas. Daí a necessidade de se compreender a criação da ideia artística no complexo campo de sua articulação.

Não obstante há que se considerar que o pensamento voltado para o estudo das relações dialógicas desencadeadas pela dinâmica das ideias na representação artística se constitui, ele próprio, num ambiente indagativo em que as diferentes especulações são conduzidas como um ato ético. Ato ético de pensamentos teórico-filosóficos não fechados em suas únicas proposições, o que se observa no diálogo entre as concepções de Volóchinov e Bakhtin, e também com outros membros do círculo intelectual constituído em torno dos estudos dialógicos. Resta lembrar algo não menos significativo: os dois livros, o de Volóchinov e o de Bakhtin, vieram a público no mesmo ano de 1929; é natural, pois, a complementaridade de concepções sobre as questões emergentes.

O objetivo do presente ensaio é compreender a complementaridade do campo conceitual que os estudos do dialogismo desenvolveram para explorar a representação da ideia a partir das relações discursivas emergentes em ideologemas construídos pelos ideólogos nas obras romanescas de Dostoiévski. Para cumprir tal objetivo, a investigação de Volóchinov coloca-se aqui como um desencadeante fundamental. Graças à compreensão do signo ideológico como formação discursiva constituída nas refrações que abrem os caminhos indagativos a novas possibilidades especulativas, ou melhor, a ideologemas, podemos compreender a magnitude do trabalho do ideólogo e de sua produção intensiva de ideologia geradora de formas no romance polifônico. No limite, nosso argumento examina a hipótese de que os conceitos formulados por Volóchinov se adensam e se expandem nas descobertas de Bakhtin sobre a dialogia discursiva e nas refrações do ato criador. A figura do ideólogo torna-se chave para tal processo. Na condição de sujeito que enuncia seu discurso e imprime nele seu acento que independe do acento autoral, o herói do romance se converte em ideólogo e seu discurso se constitui em ideologemas – nele os conflitos emergem sob forma de acentos que distinguem, qualificam e enunciam os diferentes pontos de vista em confronto.

1 Refração discursiva nas variações acentuais de ideologemas

Qualquer exame que busque posicionar o campo da refração no processo de geração discursiva das ideias, particularmente no campo da obra verbal criada por Dostoiévski, merece ser antecedido pelo conceito de refração tal como concebido por Volóchinov no âmbito de sua compreensão semiótica da ideologia, ou, melhor dizendo, nos casos em que ideologia só se manifesta em produções sígnicas.

Na definição formulada por Volóchinov, signo ideológico foi concebido como processo de significação resultante da reflexão e da refração de uma dada realidade – natural e/ou social – na qual a significação se desenvolve e de onde se projeta numa outra dimensão. Enquanto na reflexão a significação se aproxima da referência, na refração se articula um movimento que se abre em possibilidades previsíveis e imprevisíveis de significação.

Ainda que os dois movimentos – reflexão e refração – sejam constitutivos do signo ideológico e mutuamente interdependentes, não raramente a noção de signo ideológico apenas como reflexo ignora a refração. Além da inquestionável desqualificação do conceito – ou melhor, da perda da qualidade inalienável de sua constituição –, perdem-se bases fundadoras daquilo que Bakhtin concebeu como “ideologia geradora de formas” (BAKHTIN, 2008, p.92 e segsBAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008..) – base de distinção qualitativa entre princípio monológico e o princípio dialógico-polifônico criado por Dostoiévski, um dos problemas examinados neste ensaio.

Se, por um lado, a formulação da ideia reflete um contexto de pensamento único dominado pelo movimento centrípeto no universo monológico, ao dirigir-se para o outro, a ideia reage e se expande em diferentes posicionamentos centrífugos, ampliando as fronteiras enunciativas da dialogia.

Como se pode dimensionar, o conceito de refração define não apenas a noção de signo ideológico, mas a própria construção dialógica da ideologia – que em diferentes momentos se confronta com a construção dialética. Em última análise: qualquer estudo comprometido com o estudo da “ideologia geradora de formas” não pode ignorar o papel da refração como constituinte inalienável do signo ideológico.

Considerando que os posicionamentos não se constituem em elaborações decorrentes de um foco único e uniforme, mas de enunciados concretos em confronto com diferentes gradientes de focalização, o entendimento do signo ideológico não se limita aos procedimentos de sua formação. Nele a gradação de acentos em luta configura entonações em diferentes escalas de valores. E eis que nos defrontamos com a concepção de Volóchinov sobre a concretude do ideologema e sua qualidade diferencial: a capacidade de distinguir acentos de valores.

Para nomear a distinção das experiências discursivas no gradiente de seus acentos valorativos, Volóchinov formula a noção de ideologema. como se pode ler no trecho a seguir.

De fato, a personalidade falante, os seus sentimentos, as suas intenções subjetivas, os propósitos, os planos estilísticos conscientes não existem fora da sua objetivação material na língua. Pois fora da sua manifestação linguística, mesmo que seja no discurso interior, a personalidade não é dada nem a si mesma nem aos outros; ela pode iluminar e conceber em sua alma apenas aquilo que possui um material objetivo elucidativo, uma luz de consciência materializada em palavras formadas, em avaliações, em ênfases. A personalidade subjetiva interior com sua autoconsciência própria é dada não como um fato material, que pode servir de apoio a uma explicação causal, mas como um ideologema. A personalidade interior com todas as suas intenções subjetivas, com todas as suas profundezas interiores, é apenas um ideologema e ainda por cima um ideologema impreciso e instável enquanto ela não se definir em produtos mais estáveis e elaborados da criação ideológica (VOLÓCHINOV, 2017, pp.310-311VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.).

É no ideologema que a refração distingue a força dos posicionamentos, ao mesmo tempo em que confere concretude aos enunciados de um em relação aos outros. Isso porque o ideologema define, a um só tempo, os acentos de valores na criação dialógica e o processo analítico que permite formular criticamente o entendimento das interações no embate das relações dialógicas e das refrações que nela se manifestam como reações ativas de alteridade. O estudo do ideologema não se separa nem da noção de refração nem da produção discursiva que o ideólogo elabora como discurso errante de ideias em atrito com o(s) outro(o) e com as visões de mundo de seu entorno.

Volóchinov realiza o entendimento analítico de sua formulação no romance O idiota, de Dostoiévski, citando um episódio em que o príncipe Liev N. Míchkin entra num embate interior com Parfen Rogójin, sobretudo porque sente que o seu olhar o persegue e ele entra em profundo conflito de ideias interiormente. Rogójin, como se sabe, é o comerciante com quem Míchkin trava conversa no trem quando ele regressara a Petersburgo depois de quatro anos ausente para tratamento de epilepsia na Suíça. Se, num primeiro momento, Rogójin e Míchkin sentem empatia um pelo outro, quando Míchkin conhece Nastácia Filíppovna, o amigo torna-se seu rival, embora Míchkin sinta nele uma projeção: a de seu duplo reverso. Sua bondade, ingenuidade e disponibilidade contrastam com a brutalidade, a cobiça e a obsessão de Rogójin, sobretudo com relação ao amor que diz sentir por Nastácia.

Traços da compaixão que constrói o mundo interior de Míchkin podem ser encontrados em outros episódios sobre a temática do olhar que perpassa o romance. Logo no início da narrativa, quando o príncipe visita a família do general Iepántchin, numa conversa com as filhas e a mulher do general, narra um episódio que marcara sua vida, que ele vivera intensamente graças ao olhar que dirigiu ao um conhecido seu prestes a ser fuzilado. A cena em que o príncipe enuncia seu relato é trivial, mas o tom de seu discurso vai criando uma escala de acentos que se distinguem da banalidade da conversa. Segue o episódio.

– Arranje-me um tema para um quadro, príncipe.

– Eu não entendo nada disso. Acho que é olhar e pintar.

– Não sei olhar.

– Por que vocês estão falando por enigmas? Não entendo nada! – interrompeu a generala. – Que história é essa de não sei olhar? Tem olhos, é só olhar. Não sabes olhar aqui, então não vais aprender no exterior... O melhor é contar como o senhor mesmo viu as coisas, príncipe.

– Isso vai ser melhor – acrescentou Adelaida. – Porque o príncipe aprendeu a olhar no exterior.

– Não sei; lá eu apenas recuperei a saúde; não sei se aprendi a olhar. Aliás, eu fui muito feliz quase o tempo todo.

– Feliz? O senhor consegue ser feliz? – exclamou Aglaia. – Então como é que o senhor diz que não aprendeu a olhar? Ainda vai nos ensinar.

– Ensine, por favor – riu Adelaida.

– Eu não posso ensinar nada – riu o príncipe. – Passei quase o tempo todo no exterior em uma aldeia suíça, raramente ia a algum lugar próximo o que é que eu vou ensinar às senhoras?

[...]

– Tudo isso é filosofia – observou Adelaida – o senhor é um filósofo e veio para nos ensinar.

– A senhorita talvez esteja certa – sorriu o príncipe, e vai ver que eu sou mesmo um filósofo e, quem sabe, pode ser até que saiba ensinar a pensar... Isso é possível; palavra, é possível.

[...]

... Mas é melhor que eu lhes conte sobre um outro encontro que tive no ano passado com um homem. Aí houve uma circunstância muito estranha – estranha propriamente pelo fato de que um caso como esse é muito raro. Uma vez esse homem foi condenado com outros ao patíbulo e foi lida para ele a sentença de morte por fuzilamento por crime político. Uns vinte minutos depois foi lido também o indulto e designado outro grau de punição; mas, não obstante, no intervalo entre as duas sentenças, vinte minutos ou ao menos quinze, ele passou na indiscutível convicção de que uns minutos depois ele morreria de repente. Eu tinha uma vontade terrível de ouvi-lo quando vez por outra ele recordava as suas impressões daquele momento e várias vezes me pus a interrogá-lo. Ele se lembrava de tudo com uma nitidez incomum e dizia que nunca iria esquecer nada daqueles instantes. A uns vinte passos da forca, em torno da qual se aglomeravam populares e soldados, haviam sido fincados três postes, uma vez que eram vários os criminosos. Os três primeiros foram levados aos postes, amarrados, vestidos com vestes mortuárias (longos casacões brancos) e fizeram cair-lhes sobre os olhos os barretes brancos para que eles não vissem os fuzis; em seguida puseram diante de cada poste um pelotão de alguns soldados. Meu conhecido era o oitavo da fila, logo, teria de marchar para os postes na terceira fileira. O sacerdote correu a cruz sobre todos eles. Restavam não mais que cinco minutos de vida. Ele dizia que esses cinco minutos lhe pareceram uma eternidade, uma imensa riqueza; parecia-lhe que nesses cinco minutos ele estava vivendo várias vidas, que nesse momento não tinha nada que ficar pensando no último instante, de sorte que ele ainda tomou diferentes deliberações; calculou o tempo para se despedir dos companheiros, e nisso gastou uns dois minutos, depois deixou mais dois minutos para pensar pela última vez em si mesmo, e depois para olhar em volta pela última vez. Ele se lembrava muito bem de que havia tomado precisamente essas três deliberações, e foi identemente. No entanto, crês verdadeiramente que todo o movimento católico dos derradeiros séculos seja apenas inspirado pela sede do poder, em vista somente dos bens terrestres?

[...]

– Alia-se a quem, a que pessoas de espírito? – exclamou Aliócha, quase zangado. – Não tem espírito, não detém mistérios, nem segredos... O ateísmo, eis o segredo deles. Teu inquisidor não crê em Deus.

– Pois bem, e se assim fosse? Adivinhaste, afinal. É bem isto, eis todo o segredo, mas não é um sofrimento, pelo menos para um homem como ele, que sacrificou sua vida a seu ideal no deserto e não cessou de amar a humanidade?

[...]

– Como acabou teu poema? – continuou de olhos baixos. – Ou já se acabou?

– Queria acabá-lo assim: o inquisidor se cala, espera um momento a resposta do prisioneiro. Seu silêncio lhe pesa. O cativo escutou-o todo o tempo, fixando-o com o seu olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a não lhe dar resposta. O velho queria que ele lhe dissesse alguma coisa, ainda mesmo palavras amargas e terríveis. De repente, o prisioneiro aproxima-se em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. É toda sua resposta. O velho estremece, seus lábios tremem, vai à porta, abre-a e diz: “Vai-te e não voltes mais... nunca mais!” E deixa que ele se vá pelas trevas da cidade. O prisioneiro sai (DOSTOIÉVSKI, 1970, p.195-196DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.).

O poema do grande inquisidor integra aquilo que Bakhtin concebeu como “imagens artísticas vivas das ideias”, em que a forma monológica é destruída para ser incorporada ao “ao grande diálogo de seus [de Dostoiévski] romances, o

Súbito o príncipe calou; todos esperavam que ele continuasse e tirasse uma conclusão.

– O senhor terminou? – perguntou Aglaia.

– O quê? Terminei – disse o príncipe, saindo de uma meditação momentânea.

– Então por que o senhor contou sobre isso? – Por contar... Lembrei-me... A título de conversa (DOSTOIÉVSKI, 2002, p.81-84DOSTOIÉVSKI, F. M. O idiota. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2002.).

Em seu longo relato, o príncipe mergulha na consciência discursiva de seu interlocutor – o prisioneiro; seus olhos interagiam com o acontecimento e a consciência do prisioneiro, a confundir os campos discursivos. O príncipe fala com sua voz a entonação do discurso do outro e bivocaliza os acentos de um transe que entra em confronto com os interlocutores, que não interagem e não entendem o que ouviram e só esperam pela conclusão que não existe. O diálogo inconcluso do príncipe enuncia passagens: do discurso do prisioneiro enunciado pelo príncipe e deste para suas interlocutoras. O príncipe cumpriu seu papel: deu sua lição de olhar para o exterior e ver; contudo, as personagens não assimilaram a lição. O príncipe, porém, continua exercitando sua capacidade de ler os olhos e as faces de modo a adentrar pelo interior de pessoas, como se pode ler em episódios com Nastácia Filíppovna, Ragógin e outros, buscando, em cada um, a encarnação sonora das diferentes entonações tão cara ao ideologema.

Em última análise: o processo de refração no signo ideológico torna-se a base elementar da criação artística cujos acentos transformam os discursos em ideologemas, permitindo que se entenda na criação a ideologia criadora de formas, e aqui nos deslocamos para um outro caminho analítico.

Considerando que o sistema de ideias desconhece o isolamento e a unidade sistematizada de uma visão, Bakhtin examina com mais vagar a especificidade do processo criativo em que a ideologia se constitui como potencial gerador de formas. E esta é outra força definidora do ideologema – o que nos leva de volta ao estudo de Volóchinov, particularmente quando ele define o ideologema como força geradora de acentos a partir dos quais a representação da ideia emerge em confronto entre discurso citado e citação na arena discursiva das ideias (VOLÓCHINOV, 2017, p.291-322VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Na enunciação de ideólogos, o ideologema sustenta o vigor dos pontos de vista graças aos fluxos que organizam sistemas de ideias, de modo a oferecer uma imagem hipotética do mundo igualmente fluido e em constante devir. No conceito de ideologema, situamos o movimento das ideias em que a ideologia se manifesta como a potencial geradora de formas.

2 Ideologia geradora de formas

Pela noção de ideologia geradora de formas, Bakhtin nos coloca face a face com o exame do grau de refração do signo ideológico e sua manifestação em criação artístico-cultural – quer dizer, o processo de geração das ideias sem as quais nenhuma ideologia se constitui. Seu ponto de partida são os princípios de toda a cultura ideológica dos tempos modernos que alimentou a propagação da monologia “em todos os campos da vida ideológica” (BAKHTIN, 2008, p.91BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.). Se, por um lado, observa o funcionamento de todo um processo criativo fundado na ideologia geradora de formas segundo o princípio monológico – dominante na cultura ocidental –, por outro, situa a criação de Dostoiévski na ruptura de tal princípio. Em sua obra romanesca, Dostoiévski explora a variedade dos diferentes acentos discursivos nos quais Bakhtin descobre a orientação que segue a ideologia geradora de formas segundo o princípio dialógico-polifônico – do que se depreende um duplo caráter da ideologia geradora de formas, vale dizer, das ideias monológicas e das ideias dialógicas, a orientar os diferentes processos criativos e composicionais.

No universo monológico, a ideologia fomenta o desenvolvimento de formas composicionais geradas por uma única consciência que define a unidade do ser. No romance, tal processo implica a produção de ideias que se manifestam como acento único de uma única consciência: a consciência autoral. Dele emana a ideia acabada da qual a personagem é apenas um agente; a ele cabe o papel de representar o sujeito cognoscente que tem o domínio da verdade e deve, portanto, ensinar ao não-cognoscente – aquele que comete erros. Afinal, somente tal consciência autoral é ideológica e capaz de preservar a unidade acentual de uma dada representação. Temos, então, que no universo monológico se constitui a ideologia geradora de formas de representação orientada, evidentemente, pela monologia (BAKHTIN, 2008, p.89-91BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.).

A este universo em que se representa o mundo como um objeto sem voz e totalmente voltado para a conclusão ideológica da consciência autoral única e una, Bakhtin contrapõe a ideologia geradora de formas orientadas pelo princípio dialógico-polifônico. Trata-se, antes de mais nada, de um processo de criação organizado pela diversidade de acentos, em que as ideias se tornam manifestações de pontos de vista divergentes constituídos por diferentes formas de refração. Tais são as ideias em torno das quais se formou o conceito de ideologema. Em seu estudo sobre a multiacentualidade da enunciação discursiva, na terceira parte do livro Marxismo e filosofia da linguagem, Volóchinov (2017, p.317)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. entende o ideologema como uma espécie de citação superposta ao discurso autoral de modo a entoar a encarnação sonora de uma outra voz – uma voz que é por natureza bivocalizada.

Na obra de Dostoiévski, a ideologia geradora de formas dialógico-polifônicas confere ao herói a condição de se posicionar como sujeito responsável pelo seu próprio discurso e pontos de vista, o que implica o exercício de sua autoconsciência. Em vez de unidade do ser na consciência autoral, o que se observa é a autonomia e plenivalência das ideias e a consequente produção de acentos distintos.

Segundo Bakhtin, Dostoiévski se consagrou como “um grande artista da ideia” tornada, assim, “objeto da representação”, reservando ao herói o papel de “homem de ideias” (BAKHTIN, 2008, p.95; itálicos no originalBAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.). O homem de ideias torna-se, assim, no “único que pode ser portador de ideia plenivalente é o ‘homem no homem’ com sua falta de acabamento e solução” (BAKHTIN, 2008, p.96BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.). Contudo, vale ressaltar que “Ele não escreveu romances de ideias, romances filosóficos segundo o gosto do século XVIII mas romance sobre ideias” (BAKHTIN, 2008, p.25; itálicos no originalBAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.). E, “em termos paradoxais”, reconhecidos pelo próprio Bakhtin (2008, p.105)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008., “Dostoiévski não pensava através de ideias mas de pontos de vista, de consciências, de vozes”.

Tendo em vista que o homem de ideias se orienta pelo inacabamento e pela inconclusibilidade de suas questões, as ideias não se manifestam como formulações acabadas em torno de uma unidade de pensamento ou de uma consciência. Pelo contrário,

Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com as ideias dos outros é que a ideia começa a ter vida, isto é, a formar-se, desenvolver-se, a encontrar e renovar sua expressão verbal, a gerar novas ideias. O pensamento humano só se torna pensamento autêntico, isto é, ideia, sob as condições de um contato vivo com o pensamento dos outros, materializado na voz dos outros, ou seja, na consciência dos outros expressa na palavra (BAKHTIN, 2008, p.98BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.).

No fragmento de O idiota, citado anteriormente, o príncipe Míchkin, considerado um parvo, contraria todas as visões que veem nele um ser sem capacidade para pensar. No entanto, na cena em que presencia o possível fuzilamento de seu conhecido, o seu pensamento ganha intensidade na medida em que sua consciência se orienta para a consciência do outro pela empatia. O que nos leva a dizer com Bakhtin (2008)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008. que:

A ideia é um acontecimento vivo, que irrompe no ponto de contato dialogado entre suas ou várias consciências. Nesse sentido, a ideia é semelhante ao discurso, com o qual forma uma unidade dialética. Como o discurso, a ideia quer ser ouvida, entendida e “respondida” por outras vozes e de outras posições. Como o discurso, a ideia é por natureza dialógica [...] (p.98; itálicos no original).

Na obra de Dostoiévski, observa-se um firme posicionamento do ideólogo contra o monologismo que nega voz a pontos de vista distintos, sem sequer cogitar a possibilidade de refrações de ideologemas na gama de seus acentos posicionados. Como supremacia de um único polo monológico, a produção ideológica se manifesta apenas como dedução imune à ideia de outrem, como se pode ler no fragmento:

Enquanto conclusão, enquanto resumo semântico da representação, a ideologia, dentro desse princípio monológico, transforma inevitavelmente o mundo representado em objeto sem voz dessa conclusão. As próprias formas da conclusão ideológica podem ser bastante diversas. Dependendo delas, muda até a colocação do objeto representável: este pode ser uma simples ilustração à ideia, um simples exemplo, ou um material de generalização ideológica (romance experimental) ou, por último, pode manter-se dentro de uma relação mais complexa com o resultado definitivo. Onde a representação está totalmente voltada para a conclusão ideológica, há diante de nós um romance filosófico ideológico (BAKHTIN, 1998, p.93; itálicos no original).

Para Bakhtin, um posicionamento dedutivo não passa de uma forma ideológica tendenciosa que – e aqui dizemos nós – não ficou no tempo de Dostoiévski, mas que continua vigorando no cenário conturbado do século 21 em diferentes representações ideológicas surdas a emissões que não sejam o reflexo direto de um ponto de vista isolado. Tais pensamentos jamais alcançam a refração da bivocalidade discursiva da alteridade dialógica.

Como dedução, qualquer emissão é conclusiva e fechada em sua possibilidade, condicionando todos os acentos a um único ponto de vista e a suposta ideia se confunde com a forma.

A força criativa de Dostoiévski investe contra a unidade da forma monológica, atacando sua unicidade acentual pela refração de diferentes acentos. A obra verbal se torna arena discursiva em que a multiacentualidade de distintas entonações cumpre o papel de descentralizar pontos de vista em confronto. Cumpre-se o desígnio da ideologia geradora de formas da composição dialógico-polifônica em que a ideia se corporifica em entoações posicionadas de sujeitos discursivos cujos ideologemas os consagram como ideólogos ou simplesmente homens de ideias.

3 Força construtiva da ideia nos ideologemas enunciados pelo ideólogo

Ideia, ideólogo e ideologema constituem o núcleo do complexo formador do discurso dialógico-polifônico. Do ponto de vista filosófico, significa dizer que ideia-ideologema-ideólogo constituem o sistema definidor do homem como ser capaz de contemplar o mundo, nele intervir e produzir discursos valorativos de inteligência, sem a qual nenhuma consciência se desenvolve. No horizonte criativo deste sistema, configura-se a galeria de personagens emergentes na obra de Dostoiévski.

Não podemos nos furtar aqui a citar o clássico episódio de Crime e castigo que serviu a Bakhtin para discorrer sobre a multiacentualidade do discurso no confronto de muitas entoações: a discussão do artigo de Raskólnikov sobre sua ideia acerca das circunstâncias de um ato criminoso. Segundo Bakhtin (2008, p.99)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008., “Dostoiévski nunca expõe esse artigo de forma monológica”. Na verdade, trata-se de um “diálogo tenso” entre Porfiri, Razumíkhin e Zamiétov, e continua Bakhtin (2008, p.99)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.:

E a própria exposição de Raskólnikov é impregnada de uma polêmica interna com o ponto de vista de Porfiri e seus asseclas. E Razumíkhin também replica. Como resultado, a idéia de Raskólnikov se nos apresenta na zona interindividual de uma tensa luta entre várias consciências individuais, sendo que o aspecto teórico da ideia combina inseparavelmente com as últimas posições dos participantes do diálogo em relação à vida.

Bakhtin não reproduz o trecho do romance, mas a leitura do fragmento nos coloca ante a cena viva das distintas entoações tensionadas pelos acentos de pontos de vista em confronto manifestados no diálogo:

– Mas como é que soube que o artigo era meu? Eu só assinava com as iniciais.

– Ah! Por casualidade e há apenas uns dias somente. Foi pelo diretor, é meu amigo. Interessou-me muito...

– Eu analisava, lembro-me, o estado psicológico dum criminoso no momento de cometer um crime.

– Isso mesmo; e afirmava que o ato de cometer o crime ia sempre acompanhado de um estado mórbido. Muito... muito original, mas... se bem que não foi esta a parte do seu artigo que mais me interessou, mas sim algumas ideias que expunha, no final, mas que o senhor expunha, e é pena, de uma maneira pouco clara, sob forma de alusões... Em resumo: se se recorda, havia lá uma certa alusão ao fato de existirem no mundo alguns indivíduos que poderiam... isto é, não se trata de poderem, mas antes que teriam completo direito de cometerem toda a espécie de atos desonestos e de crimes, e para os quais a lei não existisse.

Raskólnikov sorriu perante aquela forçada e laboriosa explicação de sua ideia.

– Como? Que vem a ser isso? O direito ao crime?! Mas não será por culpa do ambiente deletério! – perguntou Razumíkhin um pouco assustado.

– Não, não; não é nada disso – respondeu Porfiri. – O quid está em que no seu artigo o senhor divide os homens em ordinários e extraordinários. Os homens vulgares deviam viver na obediência e não têm direito a infringir as leis, pelo próprio fato de serem vulgares. Mas os extraordinários têm direito a cometer toda a espécie de crimes e a infringir as leis de todas as maneiras, pelo próprio fato de serem extraordinários. Se não estou enganado, parece-me que era isso o que o senhor dizia.

– Mas que é isso? Isso não pode ser! – resmungou Razumíkhin, perplexo.

Raskólnikov tornou a sorrir. Compreendia finalmente do que se tratava e por que queriam fazê-lo falar; lembrava-se do seu artigo. Decidiu aceitar o desafio.

– Não era precisamente isso que eu dizia – declarou com simplicidade e em voz alta. – Se bem que, reconheço-o, o senhor expôs a minha ideia quase fielmente e, se quiser, até com absoluta fidelidade...

– Eu me limitava simplesmente a insinuar que os indivíduos extraordinários tinham direito (claro que não um direito oficial) a autorizar a sua consciência a saltar por cima de certos obstáculos, e unicamente nos casos em que a execução de seu desígnio (às vezes salvador, talvez, para a humanidade) assim o exigisse. O senhor entendeu por bem dizer-me que o meu artigo não estava claro; eu estou disposto a explicar-lho até onde puder (DOSTOIÉVSKI, 1973, p.298-9; III parte, cap. 5DOSTOIÉVSKI, F. M. Crime e castigo. Tradução de Natalia Nunes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973.).

Trata-se de um episódio em que o discurso de Raskólnikov, concebido no âmbito de suas indagações sobre o caráter de se cometer crimes em função de objetivos que ultrapassam os limites individuais, é submetido a uma nova entoação dedutiva. Na síntese de Porfiri, não interessava o raciocínio do relato, mas sim a conclusão que distingue, a priori, os homens em ordinários e extraordinários e que, consequentemente, aos segundos se reservam certas vantagens morais. Ao simplificar o discurso de Raskólnikov, Porfiri acaba por excluir do discurso seu argumento de base e a polêmica se instala na conversa. Raskólnikov, contudo, indagava a respeito de uma questão que se colocara em sua mente e que envolvia inter-relações complexas, contrapondo-se não apenas às convicções de seus interlocutores, como também aos discursos da ética. Contudo, era a ideia que ele precisava resolver e em nome dela cometera o crime. Escapara a seus interlocutores o salto que a consciência impõe à ação de modo a atender a desígnios colocados numa dimensão maior. Em última análise: a polêmica surge pela neutralização dos acentos em convicções produzidas tão somente pela dedução.

A propósito do caráter do herói de Dostoiévski, que vive para enfrentar a questão posta à sua consciência e, em decorrência de tal demanda, acaba por se confrontar com pessoas e com o campo das ideias filosóficas, religiosas, morais, políticas, Bakhtin desenvolve seu conceito de ideólogo ou o homem de ideias, como se pode ler no fragmento: “O herói dostoievskiano não é apenas um discurso sobre si mesmo e sobre seu ambiente imediato, mas também um discurso sobre o mundo: ele não é apenas um ser consciente, é um ideólogo” (BAKHTIN, 2008, p.87BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.).

O ideólogo criado por Dostoiévski e que se torna protagonista do experimento polifônico nega qualquer premissa conclusiva e autodedutível como unidade de pensamento sistematizada. Como ser inconcluso e em luta com suas próprias ideias, em vez de dedução, sua consciência se apresenta como um manancial profuso de diversidades acentuais de ideologemas. Sem falar pelo viés da voz do autor, o personagem enuncia os discursos de sua consciência por meio de pontos de vista em confronto a desencadear outros pontos de vista, substituindo a dedução pela hipótese a ressoar no “universo imaginário de sua consciência”. A dedução é anulada pela hipótese a ressoar no “labirinto de vozes” de sua consciência que reflete e refrata a diversidade de confluências discursivas (BACHTIN, 1997, p.161-162BACHTIN, M. M. Problemi dell’opera di Dostoevskij. Introduzione, Traduzione e comento di Margherita De Michiel. Prezentazione di Augusto Ponzio. Bari: Edizioni dal Sud, 1997.).

O ideólogo materializa não apenas o discurso, mas igualmente os acentos refletindo posicionamentos e, ao mesmo tempo, refratando outros posicionamentos – ou convicções e deduções – em relação aos quais seu discurso se distingue no choque com as diferentes entoações e seus acentos. Enquanto a acentuação constrói o discurso como ideologema, a interação que coloca em confrontos posicionamentos de outras consciências define a força e o papel do ideólogo na criação.

Estamos longe de um processo criativo motivado tão-somente pela necessidade de demonstrar uma ideia acabada, típica de um discurso dedutivo. Em confronto de pontos de vista, a ideia se constrói na bivocalidade das confluências do pensamento que não cabe na unidade de uma única voz. Pelo contrário, tal como a ideia, o pensamento é bilateral. Para Dostoiévski, segundo o entendimento de Bakhtin (2008, p.108)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.,

[...] pensar implica interrogar e ouvir, experimentar posicionamentos, combinando uns e desmascarando outros. É necessário salientar que no universo de Dostoiévski até o assentimento conserva o seu caráter dialógico, ou seja, nunca leva à fusão das vozes e verdades numa verdade impessoal una como ocorre no universo monológico.

Se o processo criativo não pode ser deduzido da demonstração que reflete máximas e aforismos conclusivos, há que se investigar como a representação da ideia é traduzida em obra artística. Bakhtin avalia duas condições para a criação da imagem da ideia em Dostoiévski.

A primeira condição se resume à indissolubilidade entre a imagem da ideia e a imagem do homem, uma vez que o homem nasce da ideia. Se o “homem no homem” torna-se, por um lado, o único portador possível da ideia, por outro, tal condição define seu inacabamento e sua eterna busca (BAKHTIN, 2008, p.96BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.).

A segunda condição para a criação da imagem da ideia diz respeito à capacidade de Dostoiévski de alcançar a vida da ideia em seu movimento que rompe limites e alcança horizontes de interlocução, intersubjetividade e intervenção que colocam o homem diante do mistério da existência, impedindo o inacabamento de qualquer discurso. Se, por um lado, este contato é observado como autoconsciência, por outro, ele não passa de uma manifestação de perplexidade do diálogo com a dimensionalidade das consciências e seus próprios conflitos na vida das ideias, visto que “[...] a esfera de sua existência não é a consciência individual mas a comunicação dialogada entre as consciências” (BAKHTIN, 2008, p.98BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.). O papel da interação aqui se torna fundamental, pois graças a ela se constrói o próprio ambiente de inter-relação entre consciências, abarcando o homem de ideias e sua época.

O ideólogo atua no romance com toda a intersubjetividade e interindividualidade, fazendo dele um ser que vive no jogo e nos conflitos das interações.

4 Relações dialógicas no grande tempo das culturas

O homem de ideias é, antes de mais nada, um ser inacabado em conflito com questões que não estão resolvidas dentro de si, em que pontos de vista se chocam em busca, não de sínteses, mas de movimentos renovadores, como Bakhtin afirma a partir de sua compreensão do herói de Os irmãos Karamázovi. Ivan Karamázovi debate-se contra sua ideia de que “se não há imortalidade da alma tudo é permitido” (BAKHTIN, 2008, p.100BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.). Tal como fizera em sua exposição questionadora da existência de Deus na presença do stariets Zózima, no monastério onde seu irmão mais novo decidira viver, Ivan participa de longas conversas com o irmão, desafiando sua crença religiosa. De igual modo, introduz ideias na mente de Smierdiákov, levando-o a entrar em conflito com suas próprias ações – o que mostra que Ivan põe à prova suas ideias em diferentes circunstâncias e com interlocutores distintos, inclusive consigo mesmo.

As questões que nascem na mente de Ivan e sustentam suas inquietações, tormentos e pavores levam-nos a pensar no papel do ideólogo como aquele que não teme levantar hipóteses e nem enfrentar os problemas de seu tempo e da história. Ao fomentar o debate que atravessa épocas históricas, e com elas se defrontar para avançar rompendo limites temporais, o ideólogo, bem como as ideias traduzidas em pontos de vista, mostra viver no “grande tempo da cultura”, tal como Bakhtin (2003, p.362)BAKHTIN, M. M. Os estudos literários hoje. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. formulara a respeito das obras em sua escalada histórico-cultural. As ideias vivem nas obras, sejam elas uma produção artística ou uma realização cultural.

No caso de Dostoiévski, coube às ideias a capacidade gerativa de criar a “ideia-força” na realidade de seu tempo, de modo a “auscultar a sua época como um grande diálogo, de captar nela não só as vozes isoladas mas antes de tudo as relações dialógicas entre as vozes, a interação dialógica entre elas” (BAKHTIN, 2008, p.100; itálicos no originalBAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.).

A noção de grande tempo da cultura foi formulada por Bakhtin como resposta ao vínculo estreito que os estudos literários estabelecem entre a obra e seu tempo, circunscrevendo o tom de sua construção monológica e excluindo tudo o que possa perturbar os reflexos imediatos. A visão pelo viés do grande tempo instaura um corte transversal nas relações temporais e apreende relações dialógicas profundas, em que diferentes temporalidades interagem e são capazes de explicitar ideias que ainda não foram enunciadas em nenhum discurso. Como “grande artista da ideia”, Dostoiévski “auscultava também os ecos das vozes-ideias do passado, tanto do passado mais próximo (anos 30-40) quanto do mais distante. Como já dissemos, ele procura auscultar também as vozes-ideias do futuro, [...]” (BAKHTIN, 2008, p.101BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.).

Ivan Karamázovi é um dos heróis dostoievskianos que vivenciou o conflito de ideias projetadas na perspectiva do grande tempo da cultura. Suas atuações participam de momentos decisivos dos confrontos que colocaram forças ideológicas do universo monológico em choque com a ética e a religião. Com os embates de suas questões convertidas em ideias inacabadas e pontos de vista em constante entrechocar de novas formulações, Ivan mergulha nos mistérios de suas ideias. Desajustado às ocorrências de sua vida cotidiana, lança-se na criação artística de um poema, narrado no capítulo O grande inquisidor – cuja força estética fez com que ele tenha conquistado quase uma existência autônoma no contexto do romance.

O grande inquisidor surge no romance como um poema em prosa escrito por Ivan e lido para Aliócha num encontro dos irmãos após um dos embates na casa paterna. A narração do poema é antecedida por um capítulo intitulado A revolta, em que Ivan expõe a Aliocha seu inconformismo com ideias de “amor ao próximo”, de “salvação eterna” e outros temas do dogma cristão, confrontando-os com questões éticas. Num dado momento da conversa, afirma:

– Os homens são os únicos culpados: tinham-lhes dado o paraíso, cobiçaram a liberdade e arrebataram o fogo do céu, sabendo que seriam felizes; não merecem, pois, nenhuma compaixão. Segundo meu pobre espírito terrestre, sei apenas que o sofrimento existe, que não há culpados, que tudo se encadeia, tudo passa e se equilibra. [...] (DOSTOIÉVSKI, 1970, p.183DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.).

Ao indagar se vale a pena a harmonia das pessoas mediante o sacrifício de crianças, ele se recusa a aceitar tal harmonia e afirma:

– [...] Por amor pela humanidade é que não quero essa harmonia. Prefiro conservar meus sofrimentos não redimidos e minha indignação persistente, mesmo se não tivesse razão! [...] Não recuso admitir Deus, mas muito respeitosamente devolvo-lhe meu bilhete.

– Mas isso é revolta – disse mansamente Aliócha, de olhos baixos.

– Revolta? Não era meu desejo ver-te empregar essa palavra. [...]

– Responde-me francamente. Imagina que os destinos da humanidade estejam entre tuas mãos e que, para tornar as pessoas definitivamente felizes, proporcionar-lhes afinal a paz e o repouso, seja indispensável torturar um ser apenas, a criança que batia no peito com seu pequeno punho, e basear sobre suas lágrimas a felicidade futura. Consentirias tu, nestas condições, em edificar semelhante felicidade? Responde sem mentir.

– Não, não consentiria.

– Então, podes admitir que os homens consentiriam em aceitar essa felicidade ao preço do sangue dum pequeno mártir?

– Não, não posso admiti-lo, meu irmão – declarou Aliócha, com os olhos cintilantes. – Perguntaste se existe no mundo inteiro um ser que teria o direito de perdoar. Sim, esse ser existe. Pode tudo perdoar, a todos e por tudo, porque foi ele quem verteu seu sangue inocente por todos e por tudo. Tu o esqueceste, é ele a pedra angular do edifício e é ele que se deve gritar: “Tu tens razão, Senhor Deus, porque tuas vias nos são reveladas” (DOSTOIÉVSKI, 1970, p.184DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.).

Certamente, o diálogo entre os irmãos se encerra sem conclusão: não há consenso dos pontos de vista, uma vez que para Aliócha tudo se resolve na salvação da alma em Cristo, enquanto Ivan se alimenta de uma grande dúvida e de um permanente questionamento. É a indagação que o movimenta e o leva a apresentar ao irmão um poema que ele escrevera, mas que ainda se mantém inconcluso. Nele, a transversalidade do grande tempo da cultura emerge na aparição de Cristo na época da Inquisição, quando o filho de Deus passa por herege e todos os seus atos do passado são revistos aos olhos do presente tanto do inquisidor do século XVI, quanto do herói que vive no século XIX.

A própria escolha do gênero a partir do qual o poema foi escrito também evidencia relações dialógicas transtemporais – o que implica acompanhar a multiacentualidade da composição bivocalizada de um gênero medieval: os mistérios. Mistério é um gênero litúrgico, dedicado às intervenções de seres celestiais: anjos, santos, divindades. Num desses mistérios – A virgem entre os condenados –, Ivan encontrou o tema de seu poema. Segue a síntese de seu entendimento deste mistério:

– [...] A virgem visita o inferno, guiada por São Miguel Arcanjo. Vê os condenados e seus tormentos. Entre outras, há uma categoria de pecadores num lago de fogo. Alguns afundam-se no lago e não aparecem mais; são esses “esquecidos pelo próprio Deus”, expressão duma profundeza e duma energia notáveis. A Virgem, banhada em pranto, cai de joelhos diante do trono de Deus e pede perdão para todos os pecadores que viu no inferno, sem distinção. Seu diálogo com Deus é de um interesse extraordinário. Suplica, insiste e, quando Deus lhe mostra os pés e as mãos de seu filho traspassados pelos cravos e lhe pergunta: “Como poderei eu perdoar a seus carrascos?”, ordena ela a todos os santos, a todos os mártires, a todos os anjos que caiam de joelhos com ela e implorem o perdão para os pecadores, sem distinção. Afinal, obtém a cessação dos tormentos, cada ano, da sexta-feira santa a Pentecostes, e os condenados, do fundo do inferno, agradecem a Deus e exclamam: “Senhor, tua sentença é justa!” (DOSTOIÉVSKI, 1970, p.185DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.).

Do mistério apresentado, Ivan reconhece que se manteve a fé na volta do Senhor para a vida em harmonia, fé que se renova ao longo dos séculos, sem que Cristo retorne. Em seu poema, Deus mostra-se “por um instante pelo menos ao povo sofredor e miserável, ao povo que se arrasta no pecado, mas que o ama ingenuamente”. Era o tempo da Inquisição na cidade de Sevilha, na Espanha, e Cristo reaparece entre a multidão um dia após o grande inquisidor condenar à fogueira “uma centena de heréticos ad majorem gloriam Dei. Apareceu docemente, sem se fazer notar, e – coisa estranha – todos o reconheciam” (DOSTOIÉVSKI, 1970, p.187DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.). E o Cristo faz milagres na multidão: devolve a visão a um cego e ressuscita uma menina. O grande inquisidor passa pelo local e a tudo assiste: ordena aos guardas que o prendam. A multidão, habituada aos mandos do jesuíta, se afasta calada.

À noite, o inquisidor aparece na cela e dirige-se ao prisioneiro reconhecendo nele o Cristo que retornara e lhe diz:

– [...] Por que vieste estorvar-nos? Porque tu nos estorvas, bem o sabes. Mas sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem tu és e não quero sabê-lo: tu ou apenas tua aparência; mas amanhã eu te condenarei e será queimado como o pior dos heréticos, e esse mesmo povo que hoje te beijava os pés precipitar-se-á amanhã, a um sinal meu, para alimentar a fogueira (DOSTOIÉVSKI, 1970, p.187DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.).

Interrogado por Aliócha sobre o significado do episódio, Ivan afirma que se trata de uma narrativa que beira o sobrenatural e que seu inquisidor é um homem quase nonagenário que “revela afinal seu pensamento, desvenda o que calara durante toda sua carreira” (DOSTOIÉVSKI, 1970, p.187DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.), ainda que sua fala pareça mais um devaneio senil. Ao prisioneiro, não concede o direito de fala além do que fora dito no passado e o inquisidor, em tom de ameaça, lhe diz: “Tudo foi transmitido por ti ao papa, tudo depende pois agora do papa, não venhas estorvar-nos antes do tempo, pelo menos” (DOSTOIÉVSKI, 1970, p.187DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.).

O poema cresce em sua tonalidade acentual quando o inquisidor ironiza os ensinamentos de Cristo, tais como a “liberdade da fé” que os homens acabaram por depositar na Igreja romana ao longo dos quinze séculos. O inquisidor também desafia o prisioneiro a revelar o que aconteceu quando fora tentado pelo diabo com três perguntas que prediziam “toda a história ulterior da humanidade, são as três formas que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana” (DOSTOIÉVSKI, 1970, p.188DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.).

Ainda que interrompido várias vezes por Aliócha, que manifesta dificuldade de entender o poema, Ivan prossegue o relato, concentrando-se no discurso do inquisidor sobre as tentações a que o diabo submeteu Cristo, desafiando-o a descer da cruz e “ir para o mundo de mãos vazias, pregando aos homens uma liberdade que a estupidez e a ignomínia naturais deles os impedem de compreender...” (DOSTOIÉVSKI, 1970, p.188DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.).

O discurso do inquisidor acentua seu tom de revolta e questionamento sobre a liberdade que não conseguiu saciar a fome dos desvalidos, visto que Cristo não aceitou o desafio do diabo de ter compaixão de seu povo. Prometeu-lhes a liberdade, mas não lhes deu pão e somente não pereceram todos porque a Igreja romana os acolheu, porque seus membros são igualmente humanos e conhecem as fraquezas e os vícios humanos. Ao que o inquisidor arremata: “o segredo da existência humana consiste não somente em viver, mas ainda em encontrar um motivo de viver” (DOSTOIÉVSKI, 1970, p.190DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.). No entanto, Cristo rejeitou as “três forças, as únicas que possam subjugar para sempre a consciência desses fracos revoltados, a saber: o milagre, o mistério, a autoridade” (DOSTOIÉVSKI, 1970, p.191DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.).

Ao ouvir o discurso inflamado do inquisidor declamado por Ivan, Aliócha diz:

– Mas... é absurdo! – exclamou, corando. – Teu poema é um elogio a Jesus e não uma censura... como o querias. Quem acreditará no que dizes da liberdade? É assim que se deva compreendê-la? É essa a concepção da Igreja Ortodoxa?... É Roma, e não toda, são os piores elementos do catolicismo, os inquisidores, os jesuítas!... [...] É simplesmente o exército romano, o instrumento da futura dominação universal, com um imperador, o pontífice romano, à sua frente... [...] Teu inquisidor não passa de uma ficção...

– Para, para! – disse, rindo, Ivan. – Como te acaloras! Uma ficção, dizes? Pois seja, evidentemente. No entanto, crês verdadeiramente que todo o movimento católico dos derradeiros séculos seja apenas inspirado pela sede do poder, em vista somente dos bens terrestres?

[...]

– Alia-se a quem, a que pessoas de espírito? – exclamou Aliócha, quase zangado. – Não tem espírito, não detém mistérios, nem segredos... O ateísmo, eis o segredo deles. Teu inquisidor não crê em Deus.

– Pois bem, e se assim fosse? Adivinhaste, afinal. É bem isto, eis todo o segredo, mas não é um sofrimento, pelo menos para um homem como ele, que sacrificou sua vida a seu ideal no deserto e não cessou de amar a humanidade?

[...]

– Como acabou teu poema? – continuou de olhos baixos. – Ou já se acabou?

– Queria acabá-lo assim: o inquisidor se cala, espera um momento a resposta do prisioneiro. Seu silêncio lhe pesa. O cativo escutou-o todo o tempo, fixando-o com o seu olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a não lhe dar resposta. O velho queria que ele lhe dissesse alguma coisa, ainda mesmo palavras amargas e terríveis. De repente, o prisioneiro aproxima-se em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. É toda sua resposta. O velho estremece, seus lábios tremem, vai à porta, abre-a e diz: “Vai-te e não voltes mais... nunca mais!” E deixa que ele se vá pelas trevas da cidade. O prisioneiro sai (DOSTOIÉVSKI, 1970, p.195-196DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.).

O poema do grande inquisidor integra aquilo que Bakhtin concebeu como “imagens artísticas vivas das ideias”, em que a forma monológica é destruída para ser incorporada ao “ao grande diálogo de seus [de Dostoiévski] romances, onde elas começam a viver uma nova vida artística factual” (BAKHTIN, 2008, p.103BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.). Nessa nova vida, as ideias do inquisidor apenas se revestem da religiosidade porque, na verdade, enunciam um discurso profano, dessacralizador e o religioso fala e age como um carrasco. A construção se revela dominada pelo princípio grotesco da inversão dialógica, também examinado por Bakhtin em seu estudo sobre a obra de Rabelais (BAKHTIN, 1987BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara F. Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Ed. UnB, 1987.). Não apenas o mistério, mas também o grotesco medieval entram para a construção do poema, que é assim inserido na perspectiva do grande tempo da cultura.

Além de evidenciar a diversidade do grande diálogo, do ponto de vista do ideologema, as ideias que se manifestam como imagens artísticas vivas também se reportam às diferentes temporalidades e, neste campo, os embates movimentam vivências e ambientes históricos igualmente multiacentuais. No poema de Ivan, o ambiente dos mistérios medievais se corporifica no contexto daqueles que viveram o drama da Inquisição. Contudo, ambos são atravessados por questões que implicam a liberdade da vida na fé; a devassidão da fragilidade humana; a ameaça do pecado e da punição; a esperança no milagre que também se alimenta na fé. Tudo isso converge para a questão que atormenta Ivan, que mantém uma relação de duplicidade com o grande inquisidor: tal como ele, Ivan duvida do amor fraterno e da capacidade de Cristo; diferentemente dele, Ivan não queimaria os hereges. Entre Ivan e o inquisidor há um abismo separado pelas convicções deste último, ao passo que Ivan debate-se na dúvida, dúvida de ideias vividas na pele de sujeitos que não são objetificados pelo discurso autoral.

No grande tempo das ideias, as convicções cedem espaço para as indagações que não temem fazer novas perguntas e movimentar campos de ideias – campos semióticos – desconhecidos. Contudo, o grande inquisidor age segundo suas convicções, o que quer dizer a ação de um ser amoral, capaz de queimar os hereges. Segundo Bakhtin, esta era uma questão ética do próprio Dostoiévski, embora ao entrar na obra não tenha por objetivo sua elucidação, mas insere-se “nesse mundo como imagem do homem, como um posicionamento entre outros posicionamentos, como palavras entre outras palavras” (BAKHTIN, 2008, p.111BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.).

O grande tempo da cultura que Bakhtin alcança na vida das obras literárias se estende, assim, para a compreensão do movimento das ideias no diálogo inconcluso da história na cultura. No poema do grande inquisidor, tal desígnio se realiza no longo ataque verbal que o religioso dirige ao prisioneiro. Não sem motivo, todo o confronto se assenta numa pergunta: por que ele voltara? Esta é a questão central, uma vez que a volta de Cristo afetaria a Igreja romana em suas práticas, o que Aliócha percebera com grande alívio. O retorno de Cristo colocaria em questão todo um tempo, ou melhor, o próprio tempo, já que, segundo o inquisidor, coube à Igreja na figura do papa acolher o rebanho de aflitos e desencaminhados e colocá-los no caminho da glória e da redenção. Como bem observara Ivan, ainda que sob forma indagativa, a volta de Cristo pressupunha uma disputa de poder. E a indagação de Ivan é a nova pergunta que se coloca para o tempo – para o presente, o passado e o futuro: para o grande tempo.

O poema ainda estava inacabado, mas Ivan pretendia finalizá-lo com o gesto do prisioneiro de beijar os lábios do ancião inquisidor que o libertaria do tribunal do Santo Ofício, mas nada afirma sobre sua partida da Terra. A questão permanece e ganha um outro tom: se a ideia de luta pelo poder procede, como seria esta luta? Diálogo inconcluso e problema de um grande tempo que só poderia nascer de um ideólogo em sua capacidade e ousadia de pronunciar ideologemas com perguntas e distanciamento que revelam “novas profundidades de sentido” (BAKHTIN, 2003, p.366BAKHTIN, M. M. Os estudos literários hoje. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ).

REFERÊNCIAS

  • BACHTIN, M. M. Problemi dell’opera di Dostoevskij Introduzione, Traduzione e comento di Margherita De Michiel. Prezentazione di Augusto Ponzio. Bari: Edizioni dal Sud, 1997.
  • BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara F. Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Ed. UnB, 1987.
  • BAKHTIN, M. M. Os estudos literários hoje. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • BAKHTIN, M. M. Probliémi tvórtchestva Dostoiévskogo. [Problemas da obra de Dostoiévski]. Leningrado: Priboi, 1929.
  • BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
  • DOSTOIÉVSKI, F. M. Crime e castigo Tradução de Natalia Nunes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973.
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  • DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázovi Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1970.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2020
  • Aceito
    02 Abr 2021
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