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Alfabetização, discurso e produção de sentidos sociais: dimensões e balizas para a pesquisa e para o ensino da escrita

RESUMO

Este texto apresenta parte de pesquisa recém-concluída, que delineia dimensões e balizas para o que vem sendo denominado perspectiva discursiva de alfabetização. Princípios da teoria da enunciação (Círculo de Bakhtin) e de estudos que analisam as relações entre sujeito e linguagem e o papel das interações discursivas nos processos de ensino e aprendizagem organizam a base teórico-metodológica do estudo, em que se analisam relatos escritos por cinco professoras alfabetizadoras durante 18 meses. Duas dimensões teórico-metodológicas de análise são trabalhadas: discursiva e indiciária. Mergulha-se nos modos como a prática pedagógica é movimentada em sala de aula, em busca de indícios para descrever a situação discursiva em que foram colhidos, analisá-los e interpretá-los. A pesquisa tem como horizonte compreender como podem ser concebidas metodologias de alfabetização em que o trabalho com a vida das crianças na cultura escrita se sobreponha ao trabalho tradicionalmente realizado com foco no sistema de escrita.

PALAVRAS-CHAVE:
Alfabetização; Perspectiva discursiva; Paradigma indiciário; Cultura escrita; Círculo de Bakhtin

ABSTRACT

This paper presents data from a recently finished research that outlines dimensions and guidelines for what has been named discursive perspective on literacy. Principles of the theory of enunciation (Bakhtin's Circle) and studies that analyze the relationships between subject and language as well as the role of discursive interactions in the teaching and learning processes, organize the theoretical and methodological basis of the study. We analyzed reports written by five literacy teachers for 18 months. Two theoretical-methodological dimensions of analysis were employed, the discursive and the evidential. We focus on the ways the pedagogical practice is developed in the classroom, seeking for indexes to describe the discursive situation from which they were collected, and to analyze and interpret them. The aim of the research was to understand how to construct literacy methodologies in which working with children's lives in written culture overcomes the traditional work focused on the writing system.

KEYWORDS:
Literacy; Discursive perspective; Evidential paradigm; Written culture; Bakhtin Circle

Apresentação do estudo

O artigo se organiza no panorama da pesquisa “Práticas pedagógicas no processo escolar de alfabetização: conhecimentos e dilemas nas ações cotidianas”, desenvolvida pelo grupo Linguagem, cultura e práticas educativas no período 2015-20191 1 Os resultados da pesquisa estão publicados em Goulart, Garcia e Corais (2019), e vinculados ao projeto CAAE: 0317368.4.0000.5243. , que destaca especialmente diretrizes teórico-metodológicas para o campo da alfabetização. Os objetivos do estudo são: 1- construir dimensões e balizas para o que vem sendo denominado de “perspectiva discursiva de alfabetização”; 2- compreender conhecimentos envolvidos nas tomadas de decisão cotidianas, no sentido de ensinar a ler e a escrever, e nas dificuldades e questões com que as professoras se defrontam no processo; e 3- investigar como a escrita é apresentada e trabalhada com as crianças e que aspectos e práticas se destacam.

O material de estudo é composto de relatos escritos de atividades para o ensino da leitura e da escrita por cinco professoras alfabetizadoras de escolas públicas (duas de redes municipais e três da rede federal) que integraram o grupo de pesquisa, durante 18 meses. A prática dessas professoras é distinguida por seus pares em função da qualidade da atuação pedagógica, em que o diálogo se destaca como princípio educativo.

Inicialmente, foi-lhes solicitado que elaborassem relatórios semanais das atividades realizadas em sala de aula. Diante das dificuldades em administrar o tempo investido no trabalho com as crianças e no registro para a pesquisa, chegou-se à proposta de escrita de relatos mensais em que as professoras selecionariam atividades cujo desenvolvimento iriam descrever e comentar.

Para investigar os modos como a prática pedagógica é movimentada em sala de aula pelas alfabetizadoras e analisar as atividades de leitura e escrita que propõem, utilizamos como referência os principais eixos sugeridos por Geraldi (1991)GERALDI, J. W. Portos de passagem. Prefácio de Carlos Franchi. São Paulo: Martins Fontes, 1991.: práticas de leitura, práticas de produção de textos orais e escritos e práticas de análise linguística.

Para compreender fatores que condicionam os dilemas e as dificuldades vivenciados pelas professoras no cotidiano da prática pedagógica, tomamos como base os estudos de Zabalza (1994ZABALZA, M. A. Diários de aula: contributo para o estudo dos dilemas práticos dos professores. Tradução de Ernani Rosa. Porto: Porto Editora, 1994., 2004)ZABALZA, M. A. Diários de aula: um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional. Tradução de Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2004.. Essa diretriz da pesquisa, entretanto, por sua especificidade, está fora dos limites do presente artigo.

O material escrito pelas professoras se mostra representativo de suas práticas, ressaltando-se a qualidade ligada à possibilidade que oferece de abranger diferentes dimensões do processo de ensino. Tivemos como norte a organização de princípios e diretrizes para uma proposta de ensino da leitura e da escrita em que as realidades de vida das crianças se concretizem como ponto de partida. Fundamentadas em Bakhtin, entendemos que uma proposta pedagógica como essa somente terá vigor se o discurso e a compreensão do mundo das crianças merecerem a escuta atenta e a resposta responsável nos contínuos processos de interlocução da sala de aula.

A meta do presente artigo é ressaltar o processo de construção do arcabouço teórico-metodológico organizado para darmos conta dos objetivos definidos. Para tanto, instituímos duas dimensões trabalhadas de modo conjugado: a primeira se fundamenta em princípios da teoria da enunciação, desenvolvida por autores do Círculo de Bakhtin (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1988BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução (do francês) Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira com a colaboração de Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. Prefácio Roman Jakobson. Apresentação Marina Yaguello. São Paulo: Hucitec, 1988.; BAKHTIN, 1997)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997., e em estudos mais tematicamente específicos à alfabetização, de Smolka (1988SMOLKA, A. L. B. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo. 9. ed. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1988., 2017)SMOLKA, A. L. B. Da alfabetização como processo discursivo: os espaços de elaboração nas relações de ensino. In: GOULART, C. M. A.; GONTIJO, C. M. M.; FERREIRA, N. S. de A. (orgs.). A alfabetização como processo discursivo: 30 anos de “A criança na fase inicial da escrita”. São Paulo: Cortez, 2017. p.23-46., Geraldi (1991GERALDI, J. W. Portos de passagem. Prefácio de Carlos Franchi. São Paulo: Martins Fontes, 1991., 2010)GERALDI, J. W. A linguagem e a constituição da subjetividade. In: GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2010. p.29-32. e Goulart (2014)GOULART, C. M. A. Perspectivas de alfabetização: lições da pesquisa e da prática pedagógica. Revista Raido, Dourados, v. 8, n. 16, p.157-175, 2014.. Estudos anteriores realizados por integrantes do próprio grupo de pesquisa apresentam também importante contribuição: Goulart (2011GOULART, C. M. A. Alfabetização, discurso científico e argumentação. In: LEITÃO, S.; DAMIANOVIC, M. C. Argumentação na escola: o conhecimento em construção. São Paulo: Pontes, 2011. p.129-151., 2013GOULART, C. M. A. Política como ação responsiva - breve ensaio sobre educação e arte. In: FREITAS, M. T. (org.). Educação, arte e vida em Bakhtin. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p.69-93., 2017GOULART, C. M. A. Para conceber o processo de alfabetização na relação com o trabalho da Educação Infantil: questões culturais, políticas e pedagógicas. In: MACEDO, M. do S. A.; GONTIJO, C. M. (org.). Políticas e práticas de alfabetização. Recife: Ed. UFPE, 2017. p.13-28., 2019)GOULART, C. M. A.; GARCIA, I. H. M.; CORAIS, M. C. (orgs.). Alfabetização e discurso: dilemas e caminhos metodológicos . Campinas, SP: Mercado de Letras, 2019.; Goulart et al. (2005)GOULART, C. M. A. et al. Processos de letramento na infância: modos de letrar e ser letrado na família e no espaço educativo formal. Relatório final de pesquisa. Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, CNPq: Niterói, 2005.; Goulart e Souza (2015)GOULART, C. M. A.; SOUZA, M. L. de (orgs.). Como alfabetizar? Na roda com professoras dos anos iniciais. São Paulo: Papirus, 2015.; Medeiros (2006)MEDEIROS, V. V. S. A produção de textos escritos na terceira série do Ensino Fundamental: uma análise de marcas de autoria em relatos de aulas-passeio e registros de experiências científicas. 2012. 186 f. Dissertação. (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.; Gonçalves (2012)GONÇALVES, A. V. Alfabetização: o olhar do sujeito aprendiz. 2012. 190 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012. ; Santos (2015)SANTOS, A. P. Linguagem, gêneros do discurso e práticas pedagógicas: a organização dos textos escritos de alunos dos anos iniciais do ensino fundamental. 2015. 286 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015. ; Mata (2017)MATA, A. S. da. Linguagens sociais: modos de dizer e compreender o mundo em histórias e desenhos de crianças da educação infantil. 2017. 250 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2017.; Corais (2018)CORAIS, M. C. Alfabetização como processo discursivo: princípios teóricos e metodológicos que sustentam uma prática. 2018. 386 f. Tese. (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018., entre outros. Esta primeira dimensão, então, caracteriza o estudo discursivamente.

A segunda dimensão tem natureza indicial e se organiza com base em Ginzburg (1989GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.), matriz para decisões metodológicas relativas ao paradigma indiciário. E o que são indícios? Indícios são pistas, até infinitesimais, capazes de revelar aspectos de uma realidade mais profunda: “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas - sinais, indícios - que permitem decifrá-la”, de acordo com Ginzburg (1989, p.177)GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.. No cotejo dessa matriz com aspectos da teoria da enunciação de Bakhtin, revisamos alguns pontos de apoio.

A primeira revisão nos levou a identificar e selecionar partes do material de estudo como representativas do que consideramos singular, uma vez que, no sentido trivial do termo singular, qualquer dado é singular e qualquer material é singular. E, no sentido discursivo, cada enunciado é singular. A segunda revisão está ligada ao conceito de rigor metodológico que, neste contexto, não pode ser entendido de modo rígido, e sim como um rigor flexível, em que a intuição do investigador, na observação do singular e do idiossincrático, revele sua capacidade de organizar explicações interessantes para aspectos da realidade.

No movimento investigativo, entendemos, com base em Abaurre (1999)ABAURRE, M. B. M. Horizontes e limites de um programa de investigação em aquisição da escrita. In: LAMPRECHT, R. R. (org.). Aquisição da linguagem: questões e análises. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. p.167-186., que, a partir da flagrante singularidade de determinado indício, podemos chegar a discernimentos valiosos, a ricos momentos de inferências abdutivas. A abdução é uma inferência lógica, diferente tanto da indução quanto da dedução - os dois procedimentos inferenciais clássicos de acordo com Peirce (1977)PEIRCE, C. S. Semiótica. Tradução José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 1977.. No processo abdutivo, recolhem-se nos indícios pequenas observações e percepções, para se chegar à compreensão de um determinado fenômeno, a uma conclusão.

Focalizando o raciocínio abdutivo sob o olhar da teoria bakhtiniana, entendemos que podemos considerá-lo como altamente dialógico, por implicar grande espaço para diferentes interpretações e para invenção, gerando margem para erros (GOULART, 2014GOULART, C. M. A. Perspectivas de alfabetização: lições da pesquisa e da prática pedagógica. Revista Raido, Dourados, v. 8, n. 16, p.157-175, 2014.).

Com base no modo como Peirce concebe a forma lógica da inferência, podemos supor que a forma dialógica da inferência aconteça da seguinte forma:

  • 1) Alguma situação surpreendente F é observada.

  • 2) F será aceita, se determinada hipótese H for consistente. Por quê? Porque o enunciado da situação F que depreendemos dialoga (no sentido bakhtiniano) com nossos fundamentos e pressupostos.

  • 3) Então, há razão para se pensar que H seja consistente. Para se tornarem dialógicas, as relações lógicas precisam ser concretizadas por diferentes vozes no discurso, já que a orientação dialógica é um princípio de todo discurso (BAKHTIN, 1998BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni et al. 4. ed. São Paulo: UNESP, Hucitec, 1998., p.88-89).

O passo crucial nas inferências abdutivas, do ponto de vista lógico, é o segundo dos três aqui apontados, apoiando-se em condições de verdade para aceitar a hipótese. Do ponto de vista dialógico, entretanto, podemos considerar que o passo crucial seja também o segundo, mas visto do ponto de vista da concretude das relações entre F e H, lembrando que o conceito de verdade em Bakhtin se relaciona com as condições de produção dos enunciados. Não há verdades absolutas em si mesmas (GOULART, 2019GOULART, C. M. A. Para início da conversa sobre os processos de alfabetização e de pesquisa. In: GOULART, C. M. A., GARCIA, I. H. M.; CORAIS, M. C. (orgs.). Alfabetização e discurso: dilemas e caminhos metodológicos. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2019. p.13-45., p.32).

Estudos realizados anteriormente (GOULART, 2001GOULART, C. M. A. Letramento e polifonia: um estudo de aspectos discursivos do processo de alfabetização. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 18, p.5-21, set./dez, 2001., 2013GOULART, C. M. A. Política como ação responsiva - breve ensaio sobre educação e arte. In: FREITAS, M. T. (org.). Educação, arte e vida em Bakhtin. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p.69-93., 2014GOULART, C. M. A. Perspectivas de alfabetização: lições da pesquisa e da prática pedagógica. Revista Raido, Dourados, v. 8, n. 16, p.157-175, 2014., 2019GOULART, C. M. A. Para início da conversa sobre os processos de alfabetização e de pesquisa. In: GOULART, C. M. A., GARCIA, I. H. M.; CORAIS, M. C. (orgs.). Alfabetização e discurso: dilemas e caminhos metodológicos. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2019. p.13-45.; CORAIS, 2018CORAIS, M. C. Alfabetização como processo discursivo: princípios teóricos e metodológicos que sustentam uma prática. 2018. 386 f. Tese. (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.) nos levaram a constituir um conjunto de pressupostos (ver Quadro 1) para ancorar, com base na teoria da enunciação de Bakhtin, o que temos nomeado de perspectiva discursiva de alfabetização. Tais pressupostos são fundamentais para o reconhecimento de indícios deste modo de conceber o processo de alfabetização e propõem refletir sobre essas questões: Quem propõe atividades, e que atividades propõe, para que crianças aprendam a produzir sentidos por escrito no contexto do mundo da escrita social? Que lugar os sujeitos e seus conhecimentos ocupam nas atividades? Que formas de intervenção e de trabalho são propostas para o ensino-aprendizagem da escrita? O que se ensina quando se alfabetiza? O que as crianças aprendem?

Quadro 1
Pressupostos que norteiam o reconhecimento de indícios de uma perspectiva discursiva de alfabetização2 2 O quadro “Pressupostos que norteiam a seleção de indícios” está publicado em Goulart (2019, p.3-36), com o título “Pressupostos /Hipóteses que organizam a perspectiva discursiva de alfabetização”, e suas ideias foram originalmente publicadas em Goulart (2014, p.157-175). .

A construção do material de pesquisa e o reconhecimento de indícios dos pressupostos que organizam o estudo se fazem a partir dos questionamentos que formulamos sobre eles. Os mais importantes são aqueles que melhor ajudam a compreender e a interpretar o problema em estudo. A partir de 1997, começamos a trabalhar com o paradigma indiciário e, ao longo do processo de investigação, temos buscado ampliar sua compreensão (GINZBURG, 1989GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.; ABAURRE, 1990ABAURRE, M. B. M. Língua oral, língua escrita: interessam à linguística os dados da representação escrita da linguagem? In: Congresso Internacional da ALFAL, 9, 1990, Campinas. Atas do IX Congresso Internacional da ALFAL. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1990.; PACHECO, 1997PACHECO, C. M. G. [atual GOULART]. Era uma vez os sete cabritinhos: a gênese do processo de produção de textos escritos. 1997. 297 f. Tese. (Doutorado em Letras) - Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997.; CHACON, 1998CHACON, L. Ritmo da escrita. Uma organização do heterogêneo da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1998.; CORRÊA, 2004CORRÊA, M. L. G. O modo heterogêneo de constituição da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.; CAPISTRANO, 2007CAPISTRANO, C. C. Segmentação na escrita infantil. São Paulo: Martins Fontes, 2007., entre outros).

A caracterização do indício faz com que seu reconhecimento já se constitua parte do procedimento analítico, assumindo que todo indício e todo fato já são interpretações, maneiras de construirmos a relevância da realidade (MINAYO, 2000MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 2000.). Mergulhamos nos modos como se organizam e são movimentadas as práticas pedagógicas das professoras em sala de aula, em busca de indícios, objetivando compreender e descrever a situação discursiva em que são colhidos, analisando-as para interpretá-los (BRAIT, 2006BRAIT, B. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p.9-31.). A definição de bases e fins que orientem o processo de alfabetização é relevante não para delinear uma orientação metodológica comum. O sentido da busca está associado à concepção de um processo alfabetizador que contribua para a formação de uma sociedade democrática - um sentido político, portanto.

Com a busca de indícios de caminhos metodológicos na vida discursiva do processo de alfabetização, chegamos à concepção de análise dos relatos das professoras. A análise se vincula à formulação de boas hipóteses explicativas, boas interpretações para aspectos da realidade em estudo, com base no caráter iluminador da singularidade dos indícios. O estudo de Sobral e Giacomelli (2016)SOBRAL, A.; GIACOMELLI, K. Observações didáticas sobre a análise dialógica do discurso - ADD. Domínios de lingu@gem, Uberlândia, v. 10, n. 3, p.1076-1094, 2016. se coaduna com a proposta de análise de Brait (2006)BRAIT, B. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p.9-31. e fornece indicações didáticas para a realização da Análise Dialógica do Discurso (ADD), a qual, segundo estes autores, implica descrever a materialidade linguística e as características dos enunciados; analisar as relações estabelecidas entre o plano da língua e o da enunciação; e interpretar os sentidos que são criados na junção da materialidade com o ato enunciativo, no contexto dos objetivos do estudo. No intuito de realizar tal análise, ao trilhar o caminho da descrição, da análise e da interpretação encontramos indícios dos pressupostos e parâmetros da ação pedagógica das professoras.

O material geral da pesquisa se constituiu dos relatos escritos das cinco professoras ao longo de 18 meses, conforme informado no início deste artigo. Analisamos os relatos de cada uma, individualmente, e em seguida como conjunto, com base na teoria da enunciação e nos pressupostos apresentados anteriormente, para, ao final, cotejar os indícios e as compreensões possibilitados pelos textos das cinco professoras. O objetivo não foi harmonizar, mas compreender uma perspectiva de alfabetizar que considera a dinâmica realidade dialógica que constitui a prática pedagógica de ensino-aprendizagem da escrita. A organização aqui delineada fez parte do processo de elaboração do arcabouço teórico-metodológico para darmos conta das metas da pesquisa. As duas dimensões trabalhadas de modo conjugado, a discursiva e a indiciária, formaram o tecido para a realização da Análise Dialógica do Discurso, ainda que saibamos da necessidade de continuar aprofundando-a.

Neste artigo, para ilustrar os caminhos da pesquisa, selecionamos situações de sala de aula de três das cinco professoras alfabetizadoras cujos relatos de trabalho foram investigados, evidenciando indícios do que pressupomos como uma perspectiva discursiva de alfabetização, na direção da ADD, conforme apresentada anteriormente. Passemos a elas:

1 “Nossa, como eu tô lindo!!!”: relações entre sujeito e linguagem na alfabetização

Na turma de 1.º Ano da professora Gabriela as aulas somente se iniciaram no final do mês de março do ano que estava em curso, diferentemente das demais escolas da rede de Niterói, município do estado do Rio de Janeiro, que iniciaram as aulas em fevereiro. Localizada em comunidade marcada pelo tráfico de drogas, pela pobreza, pelo descaso do poder público e pela violência, a escola pública municipal em que Gabriela trabalha recebeu 70 pedidos de transferência para outras escolas nos primeiros meses de aula, em 2016. De acordo com a professora, a formação tardia da turma tem relação direta com a questão da violência instaurada na região, o que causa uma rotatividade muito grande de alunos, fator que se impõe como grande dilema.

Com 13 alunos, Gabriela passou o ano (pre)ocupada em conhecer suas crianças, aprender seus nomes, saber de suas histórias, conhecer as pessoas que as levam à escola e as buscam, e que relações têm com suas vidas. Identificar seus interesses e anseios, o que sabem sobre a escrita, “envolvê-las com os colegas de modo que aprendessem a se respeitar e se divertirem juntos” (Relato da professora). A ação pedagógica da professora evidencia que, para ela, a instituição escola implica relação, enunciação, troca entre sujeitos que se constituem em linguagem. Gabriela atua no sentido de colocar em diálogo as crianças e suas realidades, fortalecendo a atuação conjunta do grupo.

O trabalho alfabetizador se organiza no interior desse grupo e começa com os nomes próprios das crianças, palavras afetivas que as identificam, singularizando-as. Criam coletivamente o Mural dos Nomes, confeccionam crachás de mesa, personalizam a contracapa de suas agendas e cadernos, montam uma chamadinha, escrevem os nomes no quadro, analisando suas letras e sílabas, realizam pesquisa e uma roda de conversa para compartilhar a história da escolha de seus nomes, além de jogos e trabalhos diversos.

Gabriela elabora diferentes atividades de escrita envolvendo os nomes das crianças, inserindo as fotos de cada aluno: atividade para escrever o nome ao lado da foto do colega; para ligar a foto aos nomes, a foto do colega à letra inicial, dentre outras.

Durante a apresentação, para a turma, do Jogo da Memória feito com as fotos tiradas pela professora e os nomes dos alunos, Marcos (6a) exclama: “Nossa, como eu tô lindo!!!”. E dá um belo sorriso!

Gabriela comenta em seu relatório: “Muito bom ver uma criança que se valoriza [...], infelizmente, estou muito mais acostumada com crianças que se acham feias e burras, crianças com baixa autoestima”. Nas atividades que realiza, observamos um movimento constante da professora de ir ao encontro de seus alunos, de valorizá-los como pessoas, reconhecendo que compreendê-los como sujeitos concretos, banhados em história e cultura, dá sentido ao seu fazer e à aprendizagem das crianças.

Alguma leitora ou algum leitor pode estar se perguntando sobre a atividade, endereçada às crianças, de escrita dos nomes próprios, analisando letras e sílabas: essa análise se coaduna com uma proposta que tem o discurso como eixo? Ponderamos: a aprendizagem da escrita envolve a análise da cadeia escrita, e a questão, para nós, é quem realiza a análise. Quando Gabriela solicita que as crianças escrevam seus nomes para aprender e liguem os nomes às fotos correspondentes, está provocando-as para a analisar a língua. Isso não impede que ela faça outro tipo de provocação, explorando em voz alta a sequência de letras dos nomes ou escandindo as sílabas de cada nome de criança. A atividade de observar a escrita com a professora não garante que as crianças compreendam o sistema de escrita. É necessário que elas mesmas vão compreendendo a organização da escrita, estabelecendo relações que nem sempre são as que pedagogos, linguistas e professores conhecem. Esses caminhos não são os mesmos. Com espaço para refletir e errar sem dor, as crianças abdutivamente fazem suposições e, cada vez mais, vão-se aproximando das convenções da escrita, conforme observamos em Pacheco (1997 [atual GOULART]PACHECO, C. M. G. [atual GOULART]. Era uma vez os sete cabritinhos: a gênese do processo de produção de textos escritos. 1997. 297 f. Tese. (Doutorado em Letras) - Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997.).

A questão mais ampla que se coloca para uma abordagem discursiva da alfabetização é um modo de conceber o sentido político-social da escola e da escrita. O que nos importa nessa abordagem são as relações que se estabelecem - entre alunos e professores e na comunidade escolar - para a organização de uma ética em que as relações de ensino confirmem as pessoas que as crianças já são e o conhecimento que possuem. Esse entendimento dá relevo a formas de atividade mais dialógicas, que possibilitem às crianças mais oportunidades de criar, refletir, inventar, antes de conseguirem “dar a resposta certa”.

O trabalho de Gabriela encarna um princípio discursivo importante da alfabetização, se organizado com base nas relações entre sujeito e linguagem: ela afetuosamente compreende que “atentar para quem as crianças são e não para quem elas poderiam ou deveriam ser” faz toda a diferença na aprendizagem da leitura e da escrita, dá sentido político a este fazer”.

2 “Vivemos todos misturados porque assim o mundo é mais bonito!”: língua e linguagem, formas diferentes de apresentar e trabalhar a escrita com as crianças

Concebemos a alfabetização como um processo de interação discursiva que modifica os modos de internalização da cultura humana. Ao se apropriar da escrita, a criança ganha novas formas de se relacionar com o mundo, de significá-lo e apreendê-lo, dando prosseguimento ao “nascimento cultural” a que se refere Pino (2005)PINO, A. As marcas do humano: as origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005. .

Para que se provoque na criança o desejo de mergulhar na corrente ininterrupta de enunciados que se materializam em textos escritos, é preciso tomar os sujeitos em suas realidades de vida como ponto de partida para os processos de ensinar e aprender a escrita.

Com efeito, também na turma de Natália, textos, escrita e vida se entrelaçam no cotidiano da sala de aula com 20 crianças de origens sociais diversas, em uma escola pública federal localizada na zona central do município do Rio de Janeiro. Com a leitura do livro Romeu e Julieta,3 3 Romeu e Julieta – Texto de Ruth Rocha e ilustrações de Mariana Massarani. São Paulo: Editora Salamandra. “Um reino colorido e cheio de flores, onde as coisas são separadas pelas cores. Tudo muito lindo para cheirar e ver, mas quem mora ali nem pode se conhecer! Será que a cor das asas de Romeu e Julieta vai mesmo separar essas crianças-borboletas?” (Disponível em: http://www.ruthrocha.com.br/livro/romeu-e-julieta, acessado em 04 abr. 2018). de Ruth Rocha, a professora inicia um trabalho sobre a temática das diferenças, ao mesmo tempo em que ensina a ler e a escrever. Apresenta a capa do livro e, ao dizer que o título era “Romeu e Julieta”, uma criança pergunta: “Vai falar sobre pizza?”, revelando sua vivência com pizza cujos ingredientes são queijo e goiabada. A professora não responde diretamente, mostra a capa do livro para as crianças e solicita que respondam. As crianças apostam que a história seja sobre borboletas, já que há duas desenhadas na capa.

Antes de iniciar a leitura, Natália explica que existe uma famosa história de Shakespeare, com o mesmo título do livro, a respeito de dois jovens namorados que eram de famílias rivais. As crianças pensam, então, que a versão de Ruth Rocha conta a mesma história, só que com borboletas, e ainda desejam saber se as borboletinhas namoravam... A professora esclarece que o livro fala de crianças borboletas e inicia a leitura - as crianças se encantam. Aplaudem empolgadas e, durante a conversa, fazem valiosas reflexões envolvendo o tema da diversidade, falam sobre discriminação racial e preconceito. Relata a professora:

Perguntei se onde a gente vivia, “os canteiros” eram separados ou se vivia tudo misturado. As crianças fizeram associações às cores de pele e disseram que vivíamos misturados. Perguntei sobre as outras características que nos diferenciavam, quis saber se existiam “canteiros” separados para elas... Afirmaram que não e Maria Luísa4 4 Todas as crianças foram identificadas com codinomes escolhidos por elas. ainda finalizou dizendo que vivemos todos misturados porque assim o mundo é mais bonito! (Relatório da professora Natalia, set. 2018)

Dando continuidade à temática da diversidade, as crianças leem com a professora o livro O cabelo de Cora5 5 Livro: O cabelo de Cora, de Ana Zarco Câmara, ilustrações de Taline Schubach, Editora Pallas, 2013. , em que a menina Cora fica triste, ao ouvir de uma amiguinha que seu cabelo é feio e ruim e que seria bom colocar na água fria, pentear até ficar bem liso e usar uma fita bem bonita. Ao descobrir a origem de seus cabelos, contada por Tia Vilma, que tem cabelos como os seus, Cora conclui que cada um é bonito do jeito que é.

A leitura deu oportunidade a algumas crianças de dizerem que já haviam vivenciado situações parecidas com a da personagem. Ao relatar “Conversamos muito, acolhi as reclamações, algumas crianças deram exemplos de como agiriam e nós discutimos que as pessoas, por serem diferentes, também agem de maneiras diferentes”. Natalia toma a realidade de vida das crianças como o centro do trabalho escolar, e as leva a compreenderem o texto como um universo de sentidos, ao mesmo tempo em que as convida a pensar sobre a escrita. Após a leitura e a conversa, Natália inicia um trabalho de exploração das rimas das estrofes do livro, destacando relações sonoras e gráficas presentes no texto.

Propõe às crianças que escrevam a história de Cora. A seguir, trazemos a escrita de duas crianças, Emily e João Gabriel, ambos com 6 anos de idade.

Texto de Emily
(O CABELO DE CORA SORTE DE CORA QUE TINHA SUA TIA PARA SE DEFENDER/SUA CORA [ERA] NEGRA CABELOS PLYK PAUEW/FIM)

No processo contínuo de fala-leitura-escrita, que movimenta a ação de alfabetizar de Natália, as crianças vão aprendendo a escrita. O texto de Emily evidencia a discursividade singular, complexa, ao manifestar suas posições valorativas, e, além disso, apresenta muitos conhecimentos que a menina desenvolveu sobre a escrita em si. Indícios ligados à compreensão do princípio alfabético, à segmentação da escrita, à espacialidade da escrita no papel (escreve de cima para baixo e da esquerda para a direita), o reconhecimento do hífen para separar sílabas das palavras - Emily busca dar conta de uma linguagem nova sem medo, ousando inventar-se. Descreve as características de Cora, conforme solicitado pela professora, e se arrisca a escrever que a menina tinha cabelos black power, grafado como PLYK PAUEW. O uso das letras YKW na escrita da palavra parece indicar que reconhece que está diante de uma palavra estrangeira. A menina lança mão dos recursos de que dispõe para registrar o modo como enxergou a garota Cora. Na escrita de “cora negra”, parece aglutinar as palavras “COR” e “ERA”, utilizando o R final da palavra COR para escrever a forma verbal ERA. Podemos pensar que a presença marcante do nome CORA no texto tenha levado a tal construção.

Mas Emily vai além. Não registra a história, conforme solicitado; expressa de forma decidida como sentiu a discriminação vivenciada por Cora, refletindo sobre a história: “Sorte de Cora que tinha sua tia para se defender (denfeder)”. Esse é um dos pressupostos da alfabetização na dimensão discursiva: o desafio à criação, à expressão de sentimentos, saberes, ao mesmo tempo em que a criança vai elaborando seu discurso, aprendendo e aprimorando a escrita.

Texto de João Gabriel
(CORA ERA BONITA / TINHA CABELO GRANDE E ERA BOAZINHA E COMPORTADA / ELA TINHA AMIGAS / TINHA CABELO CACHEADO / E O CABELO DELA É CINZA E LEGAL / MUITO INTELIGENTE / ERA NEGRO)

A partir do texto de João Gabriel, Natalia destaca alguns aspectos formais da escrita. Ao observar que, nos textos, a maioria das crianças misturou características físicas da personagem com seu jeito de ser, convida a turma para, coletivamente, organizar o texto de João. Transcreve o texto sem as questões ortográficas e depois que as crianças percebem os dois tipos de informação, fazem marcações com cores diferentes e reestruturam o texto, conforme imagem seguinte:

CORA ERA BONITATINHA CABELO GRANDE E ERABOAZINHA E COMPORTADAELA TINHA AMIGASTINHA CABELO CACHEADOE O CABELO DELA É CINZA E LEGALMUITO INTELIGENTE / ERA NEGRA CORA ERA BONITACTINHA CABELO GRANDE E ERACACHEADO. O CABELO DELA ERA CINZA E LEGAL.ELA ERA NEGRA. ELA ERA BOAZINHA E COMPORTADA. TINHA AMIGAS EERA MUITO INTELIGENTE

Na semana seguinte, Natalia retoma essa discussão, ao escreverem um texto informativo sobre o gato, animal observado na aula de Ciências. Nesse movimento, vai levando as crianças a compreenderem como se organiza e se realiza a escrita, do ponto de vista de sua dimensão tanto dialógica quanto formal, o que envolve grande complexidade de conhecimentos.

O modo como Natalia apresenta a escrita para seus alunos, no contexto de questões sociais e dos valores das crianças; as intervenções que realiza; as propostas que organiza, coletiva e individualmente, convidam à aprendizagem da escrita discursivamente.

A vida das crianças na cultura escrita conduz sua prática alfabetizadora, o que abre e amplia caminhos para reflexões sobre o sistema da língua. A professora, então, instiga as crianças a observarem as características das palavras, sua composição em sílabas e letras, estruturando diferentes atividades para trabalhar o processo de alfabetização.

Tomar o sistema da língua como ponto de partida para apresentar e trabalhar a escrita com as crianças retira da cena pedagógica a vida da linguagem, produz o apagamento dos sujeitos envolvidos nesse aprendizado. Compreendemos a escrita como enunciação, em que o sistema alfabético é fundamental, mas não dá conta da escrita socialmente referenciada.

3 “Tia, aqui estão todas as palavras do mundo?”: a significação e o sentido das palavras pertencem ao discurso

A turma de 1.º Ano da professora Hebe é curiosa e alegre. A maior parte de seus 19 alunos gosta de ouvir histórias e participar das atividades que ela propõe. Hebe trabalha na mesma escola que Natália.

A curiosidade dos alunos pela escrita das palavras leva a professora Hebe a organizar diferentes atividades para ampliar esse conhecimento de forma lúdica. Anteriormente, Gabriel provocou interessante debate na turma quanto ao som final de seu nome: Por que seu nome não era escrito com a letra O, já que todos o chamavam de Gabrieo? Outro aluno, também chamado Gabriel, discordou, dizendo que se chamava Gabrieu, com som U, e assim seu nome deveria ser escrito.

Atenta às relações dialógicas e às posições enunciativas das crianças, a professora elabora com a turma uma lista de palavras em que variações como a destacada podem ocorrer, e as crianças chegam à descoberta de que existem “novos sons dentro das palavras”, levando a aluna Berenice a concluir que “as palavras gostam de fazer pegadinhas”.

Embalada por essa discussão, Hebe inicia nova atividade com a turma: a construção de verbetes para palavras escolhidas pelas crianças, atividade que faz parte do projeto Baú das Palavras, em que os alunos são convidados a colocar em seus baús palavras que gostariam de escrever de maneira convencional.

Figura 1
Baú das palavras da turma

A cada semana, a criança insere três palavras no seu baú e, no final de semana, leva para casa uma etiqueta em branco para pesquisar nova palavra com a família, de modo que cada baú vá sendo preenchido de maneira singular. A palavra escrita em casa é apresentada em aula, durante a “rodinha” e, por meio do voto, a turma escolhe uma para a construção de um verbete.

Na semana em destaque, a palavra escolhida foi “cinema” e, ao buscar dar o significado da palavra, muitas opiniões surgiram: “É um lugar grande que passa filme” (Marina); “Lá podemos comer pipoca” (Bruno) e “É um lugar grande que tem muitas cadeiras e um telão” (Carlos Eduardo).

Em seguida, foi apresentado à classe, o dicionário ilustrado e lida a definição da palavra. Isso permitiu que a turma comparasse com as informações que trouxeram para a criação do verbete, formando-o da seguinte maneira: “Cinema é uma sala, com cadeiras e telão, onde as pessoas vão ver filmes e precisam fazer silêncio”. Todos ficaram fascinados com a quantidade de palavras presentes no dicionário e Léo perguntou “Tia, aqui estão todas as palavras do mundo?”. (Relatório da professora Hebe, maio/2018)

Após a leitura do verbete criado pela turma, iniciaram a exploração de novas palavras com o mesmo som inicial, e Berenice mencionou que cinema se escreve com a letra “c”, já silêncio tem a letra “s”. Novas palavras como sinal, cinto, Cíntia e sítio foram descobertas e registradas pelas crianças.

As atividades apresentadas mostram que, ao se alfabetizarem, as crianças aprendem, para além da grafia das palavras, novos conceitos com os quais vão mediando sua relação com o mundo. Aprender o que é “cinema”, elaborar seu conceito, cotejar com o que diz o dicionário e, por fim, comparar sua escrita com outra palavra de som igual, mas de escrita diferente, tem toda uma significação que não está presente quando se apresenta para a criança uma lista de palavras para o domínio da diferença da grafia “ce/ci” e “se/si” no início das palavras.

O colorido expressivo dado à palavra “cinema” vem das enunciações das crianças sobre o significado dessa palavra, baseadas em suas vivências. A palavra, quando isolada do enunciado, não tem expressividade, é um sinal. Não provoca qualquer reação ou emoção. Como afirma Bakhtin (1997, p.311)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997., é uma ilusão pensar que as palavras carregam em sua significação alguma expressividade. Mesmo palavras como ‘amor’, ‘belo’ e ‘justiça’, que designam emoção ou valor, apresentam uma significação neutra, pertencem ao sistema da língua e não ao discurso. “O colorido expressivo lhes vem unicamente do enunciado”. O Baú de palavras dos alunos não traz “todas as palavras do mundo”, nem carrega todas as palavras que serão trabalhadas em sala, mas abre o caminho para a descoberta, para a compreensão de que a escrita precisa fazer sentido para as crianças.

Nosso estudo evidencia que, no processo interdiscursivo constituído em sala de aula, as intervenções, tanto da professora quanto dos colegas de classe, expandem os modos de apreender informações linguísticas sobre o funcionamento da escrita pelas crianças, no contexto da ampliação do conhecimento de mundo. Os eixos organizadores da prática de trabalho com a linguagem na escola, considerados por Geraldi - produção de textos orais e escritos, leitura e análise linguística -, entrelaçam-se no processo pedagógico, como observado. Mostram-se como dimensões fundamentais para a organização do ensino-aprendizagem da escrita. A Análise Dialógica do Discurso foi orientada pela visão dialógica da descrição, da análise e da compreensão. Levou-nos a revelar a materialidade do discurso constitutivo das aulas e seus sentidos socialmente marcados. Os enunciados produzidos nas interações em aula carregam as histórias de seus autores e também se ligam aos movimentos envolvidos nas situações de produção em que são gerados, ligados a muitos fatores. No movimento dialógico, todos têm oportunidades de se expressar e ampliar suas reflexões e compreensões sobre a vida e a língua. Não se trata de uma aula em que se conversa, de forma genérica, com as crianças; a aula acontece no atravessamento de enunciados valorativos de pessoas concretas, organizadas responsavelmente no horizonte social do ensinar-aprender a escrita, em que as trocas de posição são previstas.

Para finalizar, destacamos, presentes nas aulas das professoras, aspectos que nos convidam compreender mais profundamente a complexidade do processo de alfabetização e da pesquisa sobre o trabalho escolar com a escrita. Muito além da visão de uma cadeia linear de letras, sílabas, palavras ou fonemas, existe a visão de uma cadeia de sentidos, de interligações sociais e individuais, que faz crescer a história de vida de cada um e de todos, formando novas histórias, não somente de aprendizagens, mas de vida. Embora todos os aspectos estejam interligados, para efeito do estudo os destaques servem para aguçar o entendimento de diferentes modos de aprender e ensinar. Um metaolhar nesse espaço de encontro de vidas, saberes e pessoas, sem retirar os pés do chão da sala de aula, faz sobressair o que Smolka já destacava em 1988: o movimento interativo e o lugar que este ocupa no cotidiano do ensinar-aprender.

Ressalta também que o conhecimento se constrói de muitas maneiras, e as falas das crianças o expressam e, ao mesmo tempo, explicitam caminhos da gestação e da geração de conhecimentos. As professoras, por sua vez, recebem as falas, contrapondo-as e balanceando-as com novas possibilidades de pensar, revisar e ampliar conhecimentos. Ressaltamos essa dialogia que se evidencia nas variadas situações em que importam menos os acertos e os erros e valem mais os modos de olhar e perguntar e com eles se inquietar.

Por causa de todo o conjunto complexo de fatores assinalado, trabalhamos com um rigor flexível que nos dê certas garantias, mas também que não nos feche a concretude de ser que existe em cada criança, em cada pessoa - coletivo e individual. Trata-se de um rigor ético, nesse sentido.

Na sala de aula, as conversas, as atividades propostas e as intervenções são vividas no contexto do mundo social, da escrita do mundo social. O lugar que os sujeitos e seus conhecimentos ocupam nas atividades expressa esse aspecto. As perguntas que, ao final de cada estudo, nos “acometem” são: o que se ensina quando se alfabetiza? O que as crianças aprendem? Elas continuam no horizonte.

  • Declaração de autoria e responsabilidade pelo conteúdo publicado
    Declaramos que as autoras tiveram acesso ao corpus de pesquisa, participaram ativamente da discussão dos resultados e revisaram e aprovaram a versão final do artigo.
  • 1
    Os resultados da pesquisa estão publicados em Goulart, Garcia e Corais (2019)GOULART, C. M. A.; GARCIA, I. H. M.; CORAIS, M. C. (orgs.). Alfabetização e discurso: dilemas e caminhos metodológicos . Campinas, SP: Mercado de Letras, 2019., e vinculados ao projeto CAAE: 0317368.4.0000.5243.
  • 2
    O quadro “Pressupostos que norteiam a seleção de indícios” está publicado em Goulart (2019, p.3-36)GOULART, C. M. A. Para início da conversa sobre os processos de alfabetização e de pesquisa. In: GOULART, C. M. A., GARCIA, I. H. M.; CORAIS, M. C. (orgs.). Alfabetização e discurso: dilemas e caminhos metodológicos. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2019. p.13-45., com o título “Pressupostos /Hipóteses que organizam a perspectiva discursiva de alfabetização”, e suas ideias foram originalmente publicadas em Goulart (2014, p.157-175)GOULART, C. M. A. Perspectivas de alfabetização: lições da pesquisa e da prática pedagógica. Revista Raido, Dourados, v. 8, n. 16, p.157-175, 2014..
  • 3
    Romeu e Julieta – Texto de Ruth Rocha e ilustrações de Mariana Massarani. São Paulo: Editora Salamandra. “Um reino colorido e cheio de flores, onde as coisas são separadas pelas cores. Tudo muito lindo para cheirar e ver, mas quem mora ali nem pode se conhecer! Será que a cor das asas de Romeu e Julieta vai mesmo separar essas crianças-borboletas?” (Disponível em: http://www.ruthrocha.com.br/livro/romeu-e-julieta, acessado em 04 abr. 2018).
  • 4
    Todas as crianças foram identificadas com codinomes escolhidos por elas.
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    Livro: O cabelo de Cora, de Ana Zarco Câmara, ilustrações de Taline Schubach, Editora Pallas, 2013.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2020
  • Aceito
    05 Set 2020
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