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O Uivo de Ginsberg: a linguagem em julgamento

RESUMO

Neste artigo, tomo o julgamento da obra Howl [Uivo], de Allen Ginsberg, ocorrido em 1957, nos EUA, como ponto de partida para discussões sobre linguagem, levantadas durante o processo. No decorrer do julgamento, questões que concernem desde a organização e funcionamento da linguagem poética até ao que pode ser dito ou não de acordo com as imposições de uma sociedade foram colocadas em questão. Busco, neste texto, portanto, discutir algumas dessas questões suscitadas por tal debate à luz de reflexões e apontamentos propostos pelo linguista Émile Benveniste e leitores de sua obra, tais como Gérard Dessons e Henri Meschonnic.

PALAVRAS-CHAVE:
Uivo ; Ginsberg; Benveniste; Linguagem poética; O ético e o político

ABSTRACT

In this article, I take the trial of the work Howl by Allen Ginsberg – which took place in the USA, in 1957 – as a starting point to discuss issues concerning language that were raised throughout the legal proceedings. During the trial, matters were questioned ranging from the organization and functioning of the poetic language to what can be said or not according to the impositions of a society. Therefore, the aim of this text is to discuss some of these matters, based on the reflections and ideas of the linguist Émile Benveniste and some of the readers of his work, such as Gérard Dessons and Henri Meschonnic.

KEYWORDS:
Howl; Ginsberg; Benveniste; Poetic Language; The Ethical and the Political

Introdução

O “Uivo”, poema da obra Howl and other poems, estreia de Allen Ginsberg em 1956, tinha como intencionado2 2 Utilizei aqui a tradução da palavra intenté, empregada pelo linguista Émile Benveniste (2006a; 2006c) para se referir a uma intenção que não se configura enquanto prévia, mas que se constrói ao mesmo tempo que se configura o discurso. , conforme afirma Lawrence Ferlinghetti (2006), utilizando as palavras de Mark Schorer, configurar-se como um grito que denunciasse os elementos da sociedade da época e que, segundo o poeta, destruíam as melhores qualidades da natureza humana e das melhores cabeças. Esses elementos podem ser descritos como materialismo, conformidade, mecanização que levava à guerra.

Contudo, esse “Uivo” acabou por se tornar também um grito por liberdade de expressão. Em um primeiro momento, houve uma tentativa de apreender as primeiras publicações que haviam sido produzidas no Reino Unido e que chegavam por navios aos EUA. Em seguida, um atendente da livraria, cujo dono havia sido o responsável pela edição e publicação da obra, foi preso por vender o livro que havia sido considerado “obsceno” pelos policiais que, à paisana, compraram a obra. Por fim, o Estado da Califórnia acabou por processar o atendente e o dono da editora e livraria, respectivamente, Shigeyoshi Murao e Lawrence Ferlinghetti, em 1957.

O julgamento em questão tornou-se um marco nos EUA. Após a decisão proferida pelo juiz do caso, que não considerou a obra obscena, conforme pretendia a acusação, “uma série de decisões judiciais começaram a remover restrições de literatura supostamente obscena” (MORGAN; PETERS, 2006, p.5MORGAN, B.; PETERS, N. J. Howl on Trial: the battle for free expression. San Francisco: City Lights Books San Francisco, 2006.)3 3 Todas as traduções foram feitas por mim. No original, lê-se: “a series of court decisions began to remove restrictions on purportedly obscene literature”. .

Muitas questões sobre linguagem vieram à tona durante o julgamento devido ao fato de a questão principal debatida ter sido a obra Howl e à necessidade de determinar se se tratava de uma obra obscena ou não. Tais questões envolvem desde o funcionamento e a configuração da linguagem poética até os limites determinados pela sociedade em relação ao que pode ser dito ou não.

Tais questões ainda suscitam debates em nossa sociedade e são, por isso, de grande relevância e atuais, em especial neste momento em que assistimos não apenas no Brasil, mas também no mundo, a uma tentativa de cerceamento de liberdades. Proponho-me, pois, neste texto, a retomar tais debates, considerando o ponto de vista acerca da linguagem construído na obra de Émile Benveniste, com o amparo de leitores de sua obra.

1 A linguagem poética em debate

Nesta primeira seção, pretendo discutir algumas questões levantadas pelo julgamento e atreladas diretamente ao que denomino aqui “linguagem poética”. Em um primeiro momento, o livro foi considerado obsceno pela acusação devido à abordagem de alguns tópicos sensíveis e ao uso de algumas palavras, dentre elas, “fuck”. No entanto, desde o início do processo, determinou-se que, para que fosse condenada, a obra deveria ser considerada obscena como um todo, não apenas devido ao uso de algumas palavras, o que levou ao questionamento acerca do seu valor literário. Pretendo, assim, elaborar algumas reflexões, a seguir, que auxiliem a problematização de tais questionamentos surgidos durante o processo.

Para isso, é importante partir do texto “Semiologia da língua”, de Émile Benveniste, publicado originalmente em 1969. Neste texto, como bem o notam Meschonnic (2008)MESCHONNIC, H. Seul comme Benveniste. In: MESCHONNIC, H. Dans le bois de la langue. Éditions Laurence Teper: Paris, 2008, p. 359-389. e Dessons (1997)DESSONS, G. Pour une sémantique de l’art. NORMAND, C.; ARRIVÉ, M. Émile Benveniste vingt ans après. Numéro Spécial de LINX. Nanterre, 1997,p. 327-333. Disponível em: https://journals.openedition.org/linx/1077?lang=fr. Acesso em 16 out. 2021.
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, o linguista inicia uma discussão que será importante para pensar a arte e a linguagem poética. Ao comparar diversos sistemas semiológicos, dentre eles a arte, para definir o que é próprio da língua, Benveniste (2006a)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. Campinas: Editora Pontes, 2006a, p.43-67. propõe que a língua é o único sistema de significação a ter a propriedade de congregar de uma só vez o domínio semiótico e o domínio semântico4 4 Benveniste (2006a) caracteriza o domínio semiótico como aquele que se constitui de signos linguísticos, os quais formam um sistema; já o domínio semântico é aquele em que a unidade é o próprio discurso, o qual atribui valor às partes, às palavras. . Os outros sistemas ou são constituídos apenas pelo semiótico, gestos de cortesia, mudrās, ou são constituídos apenas pelo semântico, como as expressões artísticas.

Neste texto, ainda, conforme Meschonnic (2008)MESCHONNIC, H. Seul comme Benveniste. In: MESCHONNIC, H. Dans le bois de la langue. Éditions Laurence Teper: Paris, 2008, p. 359-389., Benveniste faz uma dissociação entre a noção de signo e a de unidade. É importante notar que, em “Semiologia da língua”, o signo apresenta-se como uma unidade, no entanto, uma unidade não seria necessariamente um signo. Assim, é possível considerar, por exemplo, as obras de arte enquanto unidades produtoras de sentido, que não podem ter seus elementos discretizados, já que não são constituídas de unidades que teriam um valor dado previamente.

Na esteira dessa reflexão, as propostas tanto de Meschonnic (2008)MESCHONNIC, H. Seul comme Benveniste. In: MESCHONNIC, H. Dans le bois de la langue. Éditions Laurence Teper: Paris, 2008, p. 359-389. quanto de Dessons (1997)DESSONS, G. Pour une sémantique de l’art. NORMAND, C.; ARRIVÉ, M. Émile Benveniste vingt ans après. Numéro Spécial de LINX. Nanterre, 1997,p. 327-333. Disponível em: https://journals.openedition.org/linx/1077?lang=fr. Acesso em 16 out. 2021.
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5 5 É importante observar que essa discussão perpassa a obra de Henri Meschonnic e Gérard Dessons, ambos leitores da obra benvenistiana. Faço menção a esses textos especificamente, neste momento, porque auxiliarão mais diretamente na reflexão conduzida aqui. apontam para uma nova metodologia de trabalho. Enquanto nos estudos da linguagem geralmente se partia de análises em que se consideravam unidades carregadas de sentido que poderia ser alterado segundo as novas relações estabelecidas no discurso, os estudos de outros sistemas, aqueles de expressão artística, apontavam, via Benveniste (2006a)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. Campinas: Editora Pontes, 2006a, p.43-67., para que se considerasse a obra como um todo que atribuiria relação às partes. Pode-se assim dizer que se trata de uma consideração da obra, a partir do que foi denominado “semântico sem semiótico”, em que a obra cria seu próprio semiótico. Em uma obra de linguagem, é o seu próprio universo o responsável pela constituição do valor que é atribuído às suas partes.

Ao considerar o estudo da linguagem poética, Meschonnic propõe que se considere o poema6 6 Tomo aqui a noção de poema nos termos de Dessons (2011), para quem o poema não deve ser necessariamente escrito em verso, pois mesmo que o verso tenha sido historicamente a forma do poema durante muitos séculos, ele não o é mais desde que a ideia de poesia foi alterada no século XVII, quando houve a versificação da prosa, o que resultou, no século XIX, no poema em prosa. Dessa forma, o poema é considerado como o texto que inventa uma nova forma e um novo sentido, é uma criação. como uma obra de linguagem. Dessa forma, o teórico da linguagem considera, em suas análises, o poema como uma obra de arte, como aquele que constrói o seu próprio semiótico, a partir do domínio do semântico. Benveniste (2011, p.652BENVENISTE, É. Baudelaire. Limoges: Éditions Lambert-Lucas, 2011.; grifos no original), traçando um caminho similar, em manuscritos7 7 Refiro-me aqui às notas manuscritas de Benveniste, publicadas na França por Chloé Laplantine em 2011. Tais notas revelam uma tentativa de Benveniste de analisar a obra Flores do mal, de Charles Baudelaire, para compreender o que é próprio da linguagem poética. Dado que o linguista, em suas notas, aponta cada vez mais para a reflexão de que se trata da língua de um poeta, da língua de Baudelaire, o dossiê foi denominado, por Laplantine, Baudelaire. , afirma que “As cores, a matéria, os sons são os materiais / dos artistas pintores, escultores, músicos”, “E o poeta? O poeta combina palavras / são o material sobre o qual ele trabalha. É então / evidente que, tornadas material do poeta, as palavras não / podem mais ser os ‘signos’8 8 Em Saussure, assim como em Benveniste, signo refere-se à unidade do sistema que, ao ser utilizado no discurso, na fala, torna-se palavra. Nesta passagem, a palavra signo aparece entre aspas, a fim de denotar uma certa oposição entre a linguagem ordinária e a linguagem poética. A primeira partiria de unidades do sistema, ou seja, do signo, a segunda conceberia seu sistema, a partir do uso das palavras. do uso comum”9 9 No original: “Les couleurs, la matière, les sons sont des matériaux / des artistes peintre, sculpteurs, musicien”, “Et le poète? Le poète combine des mots / sont le matériau sur lequel il travaille. Il est dès lors / évident que, devenu matériau du poète, les mots ne / peuvent plus être les ‘signes’ de l’usage commun”. .

Tais constatações parecem encontrar eco em Benveniste (2005), no texto “Observações da função da linguagem na descoberta freudiana”, publicado originalmente em 1956. Nesse texto, Benveniste (2005a, p.90)BENVENISTE, É. Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I. Tradução Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri: revisão prof. Isaac Nicolau Salum. Campinas: Editora Pontes, 2005a, p.81-94., ao considerar a tentativa freudiana de encontrar um discurso análogo à linguagem do inconsciente e dos sonhos a fim de compreendê-los, afirma que o que “Freud perguntou em vão à linguagem ‘histórica’ teria podido, em certa medida, perguntar ao mito ou à poesia”.

A afirmação do linguista sírio é feita após uma tentativa dele mesmo de caracterizar a linguagem do inconsciente. Para Benveniste (2005a)BENVENISTE, É. Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I. Tradução Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri: revisão prof. Isaac Nicolau Salum. Campinas: Editora Pontes, 2005a, p.81-94., além do simbolismo inerente à linguagem, o analista pode perceber que há um simbolismo específico, que se constitui tanto a partir do que omite quanto a partir do que enuncia, sem o conhecimento do sujeito. Ademais, Benveniste (2005a, p.85)BENVENISTE, É. Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I. Tradução Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri: revisão prof. Isaac Nicolau Salum. Campinas: Editora Pontes, 2005a, p.81-94. considera que

Freud lançou luzes decisivas sobre a atividade verbal tal como se revela nas suas fraquezas, nos seus aspectos de jogo, na sua livre divagação quando se suspende o poder de censura [portanto] toda a força anárquica que refreia ou sublima a linguagem normalizada, tem a sua origem no inconsciente.

Freud, segundo Benveniste (2005a, p.85)BENVENISTE, É. Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I. Tradução Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri: revisão prof. Isaac Nicolau Salum. Campinas: Editora Pontes, 2005a, p.81-94., observou que havia “profunda afinidade entre essas formas da linguagem e a natureza das associações que se estabelecem no sonho – outra expressão das motivações inconscientes”. Seguindo sua reflexão, Benveniste traz as palavras de Freud, em citação direta, para quem “essa linguagem simbólica”

(...) não é específica do sonho; encontramo-la em toda a imagística inconsciente, em todas as representações coletivas, principalmente populares: no folclore, nos mitos, nas lendas, nos ditados, nos provérbios, nos trocadilhos correntes; ela é, mesmo, mais completa aí que no sonho (2005a, p.93).

As observações sobre a linguagem poética, apresentadas por Meschonnic e Dessons a partir da reflexão benvenistiana, relacionando-a à linguagem do inconsciente e do sonho, encontram eco nas próprias palavras de Ginsberg acerca de seu fazer poético, em carta enviada a John Hollander, após este último escrever uma crítica depreciativa acerca de Howl:

Quero dizer que, ao assistir ao pensamento natural (como no tipo de meditação budista) você vê a estrutura do seu pensamento aparentemente aleatório e você pode construir uma estrutura inteira de prosa ou poesia nele. Não sem esforço primeiro, pois é preciso imensa disciplina própria e esforço para aprender a não pensar (IBM), mas para meditar e assistir ao pensamento sem interrompê-lo com uma autoconsciência literária e pré-conceitos e regras constrangidas (MORGAN; PETERS, 2006, p.93-94MORGAN, B.; PETERS, N. J. Howl on Trial: the battle for free expression. San Francisco: City Lights Books San Francisco, 2006.; grifos no original)10 10 No original: “I mean that in watching natural thought (like in meditation Buddhist type) you see the structure of your random seeming thought and you can build whole prose or poetry structures on it. Not without effort at first, for it takes immense self discipline and effort to learn not to think (IBM) but to meditate and watch thought without interrupting it by literary self-consciousness and embarrassed preconceptions and rules”. .

A proposta desenvolvida aqui é então de buscar, a partir da discussão teórica apresentada, considerar o funcionamento da linguagem poética como aquele percebido no domínio das expressões artísticas.

2 O “Uivo” de Ginsberg

O poema é, então, uma obra de linguagem. Assim, estendendo a reflexão acerca da obra de arte para a obra de linguagem, percebemos que “confundir a significância de uma obra plástica com a designação lexical de seus componentes tem por consequência não somente o sair fora do sistema da obra, mas, sobretudo, a introdução da descontinuidade em um sistema em que nenhuma unidade é discreta” (DESSONS, 1997, p.328DESSONS, G. Pour une sémantique de l’art. NORMAND, C.; ARRIVÉ, M. Émile Benveniste vingt ans après. Numéro Spécial de LINX. Nanterre, 1997,p. 327-333. Disponível em: https://journals.openedition.org/linx/1077?lang=fr. Acesso em 16 out. 2021.
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)11 11 No original: “confondre la significance d’une œuvre plastique avec la désignation lexicale de ses composantes a pour conséquence non seulement la sortie hors du système de l’œuvre, mais surtout, l’introduction de la discontinuité dans un système dont aucune unité n’est discrète”. . Seria, portanto, impossível que se avaliasse uma obra de linguagem através do pinçamento de palavras utilizadas nessa obra. Na mesma esteira, percebe-se que não seria possível que se substituíssem algumas palavras utilizadas em Howl por eufemismos, conforme se conjecturou durante alguns momentos tanto nas correspondências de Ginsberg quanto na argumentação proferida durante o julgamento.

Em Benveniste (2011, p.308BENVENISTE, É. Baudelaire. Limoges: Éditions Lambert-Lucas, 2011.; grifo no original), o linguista afirma que “o poeta faz sua língua e sua expressão, mesmo / quando ele toma os elementos da língua ordinária”12 12 No original: “Le poète fait sa langue et son expression, même / quand il en prend les éléments dans la langue ordinaire”. . Contudo, não há signos isolados que possam ser considerados em si como próprios à linguagem poética, ou que realizem um efeito poético, pois tudo está no conjunto da obra (BENVENISTE, 2011BENVENISTE, É. Baudelaire. Limoges: Éditions Lambert-Lucas, 2011.).

O linguista pontua ainda, em seus manuscritos, que o material de que se serve o poeta está no dicionário, “salvo / exceção rara, todas as palavras de Baudelaire, de Marllarmé, / estão individualmente no dicionário” (BENVENISTE, 2011, p.444BENVENISTE, É. Baudelaire. Limoges: Éditions Lambert-Lucas, 2011.)13 13 No original: “sauf / exception rare, tous les mots de Baudelaire, de Mallarmé, / sont individuellement dans le dictionnaire”. . E, no entanto, “não é a mesma língua” (BENVENISTE, 2011, p.444BENVENISTE, É. Baudelaire. Limoges: Éditions Lambert-Lucas, 2011.)14 14 No original: “ce n’est pas la même langue”. . Tais constatações permitem a Benveniste afirmar que “cada poeta tem / sua língua poética” (BENVENISTE, 2011, p.454BENVENISTE, É. Baudelaire. Limoges: Éditions Lambert-Lucas, 2011.)15 15 No original: “chaque poète a / sa langue poétique”. .

Não se trata, portanto, diante de uma obra de arte, de “condições gerais e constantes, mas de uma característica individual” (BENVENISTE, 2006a, p.57BENVENISTE, É. Semiologia da língua. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. Campinas: Editora Pontes, 2006a, p.43-67.), nesse sentido, “o artista cria (…) seu próprio semiótico” (BENVENISTE, 2006a, p.59BENVENISTE, É. Semiologia da língua. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. Campinas: Editora Pontes, 2006a, p.43-67.). Conforme destaca Dessons (1997, p.330)DESSONS, G. Pour une sémantique de l’art. NORMAND, C.; ARRIVÉ, M. Émile Benveniste vingt ans après. Numéro Spécial de LINX. Nanterre, 1997,p. 327-333. Disponível em: https://journals.openedition.org/linx/1077?lang=fr. Acesso em 16 out. 2021.
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, “‘significar’, do ponto de vista do modo semântico, não se refere a um ‘sentido’, mas radicalmente a uma situação: ‘O sentido da frase implica referência à situação de discurso e à atitude do locutor’16 16 “La forme et le sens dans le langage”, PLG II, p.225. , o que leva a tornar indissociáveis o sujeito, a história e a linguagem”17 17 No original: “‘signifier’, du point de vue du mode sémantique, ne réfère pas à un “sens”, mais, radicalement, à une situation: ‘Les sens de la phrase implique référence à la situation de discours, et l’attitude du locuteur’; ce qui revient à rendre indissociables le sujet, l’histoire et le langage”. .

Assim, esse semiótico pessoal, na obra de arte - aqui especificamente tratamos de uma obra de linguagem -, indissociavelmente de “uma matéria e [de] uma maneira, uma matéria informada de maneira que a estrutura e a torna significante” (DESSONS, 1997, p.333DESSONS, G. Pour une sémantique de l’art. NORMAND, C.; ARRIVÉ, M. Émile Benveniste vingt ans après. Numéro Spécial de LINX. Nanterre, 1997,p. 327-333. Disponível em: https://journals.openedition.org/linx/1077?lang=fr. Acesso em 16 out. 2021.
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)18 18 No original: “une matière et une manière, une matière informée de manière qui la structure et la rend signifiante”. . É exatamente essa tentativa de produzir uma obra como uma unidade, a qual produz o seu próprio semântico e seu próprio semiótico, que percebemos nas próprias palavras de Ginsberg, na carta a John Hollander já mencionada acima.

O poeta afirma que, na tentativa de manter a linguagem suficientemente densa, usou uma “gramática ingênua e primitiva (expelida por loucura)”19 19 No original: “primitive naive grammar (expelled for crazy)”. , eliminou “artigos prosaicos e restos sintáticos, justaposição de imagens de estilo cúbico ou ritmo quente” (MORGAN; PETERS, 2006, p.87MORGAN, B.; PETERS, N. J. Howl on Trial: the battle for free expression. San Francisco: City Lights Books San Francisco, 2006.)20 20 No original: “prosy articles and syntactical sawdust, juxtaposition of cubic style images, or hot rhythm”. . Explica ainda que “mudou de ideia sobre ‘medida’ enquanto escrevia” (MORGAN; PETERS, 2006, p.87MORGAN, B.; PETERS, N. J. Howl on Trial: the battle for free expression. San Francisco: City Lights Books San Francisco, 2006.)21 21 No original: “changed my mind about ‘measure’ while writing”. , assim, na parte I do poema, o que marcou o ritmo foi a repetição de base de “who”, como uma “kithara BLANG”, enquanto, na parte II, a palavra repetida foi “Moloch”, mas também o ritmo teria sido garantido por uma quebra de linhas longas por frases curtas com pontuação rítmica. Na parte III, segundo o poeta, haveria uma “original invention”, em que uma frase de base rítmica (“I’m with you”22 22 Em português: “estou com você”. , etc) seria seguida, como em uma litania, por uma resposta da mesma extensão (“where you’re madder”23 23 Em português: “onde você está mais louco”. , etc.), que seria repetida e iria se alongando devagar, “construindo como uma pirâmide um grito de emoção com um som de sirene, muito apropriado para expressar apelo emocional” (MORGAN; PETERS, 2006, p.88MORGAN, B.; PETERS, N. J. Howl on Trial: the battle for free expression. San Francisco: City Lights Books San Francisco, 2006.)24 24 No original: “building up like a pyramid, an emotion crying siren sound, very appropriate to the expressive appeal emotion”. .

Essa construção que implica a forma e o sentido indissociavelmente é mesmo, em muitas das próprias declarações do poeta, um problema a ser pensado e repensado. A construção do universo de Howl leva Ginsberg a afirmar que “quanto mais eu olho para ele [o poema] pior ele parece, esse caminho é realmente ruim, quero dizer que não se pode dizer o que estou fazendo, parecem apenas rabiscos em páginas. Eu não pretendia que a prosódia fosse tão arbitrária” (MORGAN; PETERS, 2006, p.44MORGAN, B.; PETERS, N. J. Howl on Trial: the battle for free expression. San Francisco: City Lights Books San Francisco, 2006.)25 25 No original: “the more I look at it the worse it seems, it’s real bad this way, I mean you can’t tell what I am doing, it looks like just primitive random scribblings in pages. I had not intended the prosody to be that arbitrary”. .

Ginsberg, tanto na construção de sua obra, quanto nos depoimentos que escreve em cartas, pontua que “qualquer poema que eu escrevo que eu já tenha escrito anteriormente, no qual não descubro alguma coisa nova (fisicamente) e talvez formalmente, é uma perda de tempo, não é viver” (MORGAN; PETERS, 2006, p.98MORGAN, B.; PETERS, N. J. Howl on Trial: the battle for free expression. San Francisco: City Lights Books San Francisco, 2006.)26 26 No original: “Any poem I write that I have written before, in which I don’t discover something new (psychically) and maybe formally, is a waste of time, it’s not living”. .

Esse viver na e pela linguagem, em que o poeta, ao mesmo tempo em que se descobre, descobre ideias, novas formas de pensar, de agir, encontra eco na definição proposta por D’Alembert (1763)D’ALEMBERT, J. R. Observations sur l’art de traduire [1763]. French Translators, 1600-1800: An Online Anthology of Prefaces and Criticism. 1. Disponível em: https://scholarworks.umass.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1000&context=french_translators. Acesso em 10 fev. 2021.
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de “expression de génie” [expressão de genialidade]. Segundo D’Alembert (1793), não se trata de uma palavra nova, ditada pela singularidade ou pela preguiça; é, antes, o encontro necessário e hábil de termos conhecidos, para introduzir energicamente uma nova ideia.

Para fazê-lo, Ginsberg precisa, em Howl, utilizar “ritmos da linguagem ordinária”, uma “dicção da linguagem ordinária”, bem como uma “linguagem vulgar”27 27 No original: “rhythms of ordinary speech”, “diction of ordinary speech” e “language of vulgarity”. , conforme pontuou Schroder, professor de inglês na Universidade da Califórnia (MORGAN; PETERS, 2006, p.98MORGAN, B.; PETERS, N. J. Howl on Trial: the battle for free expression. San Francisco: City Lights Books San Francisco, 2006.).

A obra de linguagem é, portanto, a partir do ponto de vista de que lanço mão aqui, um sistema, cuja significação é constituída por um semiótico e um semântico próprios, o que impossibilita que sua análise possa se fazer a partir do ponto de vista do semiótico, ou seja, da consideração das palavras, a partir do critério que tange ao compartilhado. No entanto, adotar o ponto de vista do semântico sem semiótico para analisar uma obra de linguagem nos leva a perceber que Howl de Ginsberg não somente constrói um dito, mas uma forma própria de dizer, em que a significância é construída a partir da indissociabilidade entre a forma e o sentido, o que constitui a experiência poética como uma aventura de linguagem. Do ponto de vista do semântico, trata-se da “abertura para o mundo”, o que é “completamente imprevisível” (BENVENISTE, 2006b, p.21BENVENISTE, É. Estruturalismo e linguística. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. Campinas: Editora Pontes, 2006b, p.11-28.).

Assim, não se pode, como o queriam os acusadores no processo que envolveu a obra Howl, de Ginsberg, reduzi-la ao que Benveniste denominou “modo semiótico” da língua, pois, conforme observou Dessons (1997, p.333)DESSONS, G. Pour une sémantique de l’art. NORMAND, C.; ARRIVÉ, M. Émile Benveniste vingt ans après. Numéro Spécial de LINX. Nanterre, 1997,p. 327-333. Disponível em: https://journals.openedition.org/linx/1077?lang=fr. Acesso em 16 out. 2021.
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, “um objeto de arte excede a totalidade de seus signos”28 28 No original: “un objet d’art excède la totalité de ses signes”. , e esse excesso “não é nem um indizível (…), nem um imperceptível”29 29 No original: “ni un indicible (…), ni un imperceptible”. ; não cabe, contudo, numa tentativa de análise de textos e de obras de forma unívoca. Trata-se, sim, de uma tentativa, em Howl, de constituir um mundo próprio, em que se evoca a experiência do poeta a partir de sua experiência pessoal, de uma experiência emotiva. Para que se pudesse fazê-lo, foi necessário forçar os limites impostos pela língua, foi necessário inventar uma nova forma de dizer, a fim de que o poema não apenas dissesse algo, mas produzisse um efeito.

Para além da dificuldade de se definir o que seja “obsceno”, conforme o julgamento em questão propunha, uma obra de linguagem não pode ser tomada de forma unívoca, na medida em que essa abertura para o mundo, esse excesso, característicos e constitutivos de uma obra de linguagem, apontam para a pluralidade de sentidos e de leituras que dela podem ser feitas.

3 O ético e o político na linguagem

O ponto de vista a partir do qual se toma uma obra de linguagem revela sempre uma posição ética e política. Não seria diferente na discussão proposta neste artigo. A visada desde a qual tomei as questões levantadas no julgamento revela não somente uma concepção de linguagem, mas também uma concepção de arte em que esta deriva daquela.

A linguagem tomada do ponto de vista do discurso, do domínio semântico, para utilizar os termos benvenisitanos, coloca a linguagem como indissociável do sujeito e da história. É na linguagem tomada como discurso que há a possibilidade de subjetivação, já que, segundo Benveniste, a noção de semântico

nos introduz no domínio da língua em emprego e em ação; vemos desta vez na língua sua função mediadora entre o homem e o homem, entre o homem e o mundo, entre o espírito e as coisas, transmitindo a informação, comunicando a experiência, impondo a adesão, suscitando a resposta, implorando, constrangendo; em resumo, organizando toda a vida dos homens (2006b, p.229).

Essa concepção de linguagem está na base da definição de arte proposta por Baudelaire, conforme observou Meschonnic (2006)MESCHONNIC, H. La rime et la vie. France: Éditions Verdier, 1989/ Gallimard, 2006.. Baudelaire (1980)BAUDELAIRE, C. Œuvres complètes. Paris: R. Laffont, 1980. definiu “l’art pur” [a arte pura] como a criação de uma magia sugestiva, a qual contém ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o artista mesmo. Há assim em Baudelaire (1980)BAUDELAIRE, C. Œuvres complètes. Paris: R. Laffont, 1980., segundo Meschonnic (2006)MESCHONNIC, H. La rime et la vie. France: Éditions Verdier, 1989/ Gallimard, 2006., uma impossibilidade de dissociar a identidade da alteridade. A linguagem constitui ao memo tempo o eu e o outro. É na e pela linguagem que se constroem o homem e a sociedade, indissociavelmente.

Por isso, quando Baudelaire fala de arte, ele fala antes da vida (MESCHONNIC, 1988MESCHONNIC, H. Modernité, modernité. France: Gallimard, 1988.). A noção de belo na arte passa a ser substituída pela noção de ético, na medida em que o belo na linguagem passa a ser uma aventura da historicidade (MESCHONNIC, 2006MESCHONNIC, H. La rime et la vie. France: Éditions Verdier, 1989/ Gallimard, 2006.), ou seja, a noção de belo está estreitamente ligada ao processo de individuação.

A partir da ideia de que a linguagem e a arte são concebidas como um processo de individuação, conforme se observa em Benveniste e em Baudelaire, pode-se afirmar que toda e qualquer obra de linguagem constrói-se a partir do encontro entre a linguagem, o ético e o político. Toda e qualquer obra de linguagem constrói um universo próprio, a partir da indissociabilidade entre identidade e alteridade, que produz um efeito na realidade, já que promove uma estruturação das relações interpessoais. Assim, o ético e o político referem-se à individuação e, consequentemente, a esse efeito na estruturação das relações na sociedade.

Dessa forma, o “Uivo” de Ginsberg não produziu o estranhamento que levou à acusação de obscenidade somente devido à utilização da linguagem, nem ao fato de que a obra inovava em critérios formais de escrita de um poema, conforme tentaram defender os acusadores do processo. Essa forma de dizer, construída por uma linguagem e uma forma muito específicas, atacava “as raízes nuas da nossa cultura dominante, o coração Moloch30 30 Ginsberg utiliza a palavra “Moloch”, em “Uivo”. Essa expressão refere-se figurativamente a uma pessoa ou a algo que demanda um alto sacrifício. No caso do poema “Uivo”, “Moloch” vai sendo relacionado a tudo aquilo que é descrito como degradante na sociedade, a fim de intensificar a denúncia proposta pelo poema. de nossa sociedade de consumo” (MORGAN; PETERS, 2006, p.xiMORGAN, B.; PETERS, N. J. Howl on Trial: the battle for free expression. San Francisco: City Lights Books San Francisco, 2006.)31 31 No original: “the bare roots of our dominant culture, the very Moloch heart of our consumer society”. .

Além disso, a obra apresentava conteúdo sexual, especialmente homossexual. Ginsberg, em carta a Richard Eberhart, descreve Howl como “uma ‘afirmação’ de uma experiência individual de Deus, sexo, drogas, absurdo” (MORGAN; PETERS, 2006, p.40MORGAN, B.; PETERS, N. J. Howl on Trial: the battle for free expression. San Francisco: City Lights Books San Francisco, 2006.)32 32 No original: “‘affirmation’ of individual experience of God, sex, drugs, absurdity etc”. . O poema ainda descreve e rejeita o Moloch da sociedade, acusada de confundir e suprimir experiências individuais e de tachar como loucos aqueles que não rejeitam seus sentidos mais profundos. O poeta afirma que “a crítica à sociedade é que a ‘Sociedade’ é impiedosa”. Dessa forma, a alternativa é “atos de compaixão individuais e privados”; trata-se basicamente de um poema “claramente e conscientemente construído sobre a liberação de virtudes humanas básicas” (MORGAN; PETERS, 2006, p.40MORGAN, B.; PETERS, N. J. Howl on Trial: the battle for free expression. San Francisco: City Lights Books San Francisco, 2006.)33 33 No original: “The criticism of society is that ‘Society’ is merciless”; “private, individual acts of mercy”; “clearly and consciously built on a liberation of basic human virtues”. .

Foi esse ousar viver-escrever de Ginsberg via linguagem que se apresentou como uma inovação em relação não somente à língua, à forma do poema, mas também à construção de novas ideias instigadoras de novas formas de agir e pensar, que levou a obra a julgamento. Foi a concepção de arte de que se vale Howl, como aquela que transforma o cotidiano, o rejeitado, o comum, em sagrado, como aquela que dá voz e vez ao que é reprimido e rechaçado, que levou a obra a julgamento.

A obscenidade da obra não foi comprovada no julgamento, devido ao fato de a acusação ter falhado em demonstrá-la. O questionamento do valor literário também não pôde ser sustentado, já que, dos especialistas que testemunharam, poucos descartaram seu valor literário. Os argumentos desses poucos especialistas se pautavam numa concepção de arte segundo determinados padrões de beleza já estipulados.

O julgamento de Howl lançou luzes sobre o debate acerca do que se considera arte na sociedade e acerca de como se toma a linguagem. A própria obra colocou em cena uma concepção de arte e de linguagem estreitamente vinculadas ao processo de individuação, em que a individuação se confunde com a alteridade. O julgamento da obra evidenciou o seu caráter ético e político, desvelando criticamente o que estava em jogo na produção desse novo dizer, constituído a partir da invenção de novas formas e novos sentidos.

Palavras finais

Busquei, neste texto, discutir questões acerca da linguagem, em especial da linguagem poética, a partir do que foi levantado no julgamento da obra Howl, de Ginsberg. No debate realizado, considerei reflexões sobre linguagem em Benveniste, com o apoio de leitores, tais como Gérard Dessons e Henri Meschonnic.

Para isso, lancei mão da discussão sobre como se organiza e se configura a linguagem poética, a fim de, em seguida, pensar acerca da construção e organização da obra Howl, em especial, a partir dos debates e discussões realizados durante o julgamento e de textos e correspondências publicados sobre o tema em Morgan e Peters (2006)MORGAN, B.; PETERS, N. J. Howl on Trial: the battle for free expression. San Francisco: City Lights Books San Francisco, 2006..

Finalmente, dediquei-me a refletir acerca do caráter ético e político da linguagem, buscando atentar para o fato de que, embora a obra tenha sido questionada quanto ao uso de expressões e à sua forma de composição, ela também tem um impacto sociocultural. A obra inova ao renovar sua forma, a qual introduz energicamente novas ideias, novas formas de pensar. É nesse encontro entre a linguagem, o ético e o político que se situa com toda a potência o poder fundador da linguagem e sua capacidade de provocar efeitos.

A obra Howl e seu julgamento colocam em voga o fato de que a linguagem não é monolítica, as obras de linguagem e as obras de arte não podem ser tomadas a partir de um conceito de belo padronizado, mas somente a partir de seu movimento de individuação. Consequentemente, a obra e seu respectivo julgamento colocam em voga o caráter plural e diverso da cultura e da sociedade.

No entanto, as iniciativas de consideração da linguagem, da arte, da cultura e da sociedade a partir do que as constitui, ou seja, a partir da sua pluralidade, desencadeou e tem desencadeado ataques de setores e movimentos mais conservadores da sociedade. Tais movimentos buscam construir uma visão monolítica de linguagem, de arte, de cultura e de sociedade, a partir do julgamento advindo de um ponto de vista dualista, que se encerra entre o “certo” e o “errado”.

No Brasil, assistimos a uma cena semelhante àquela proporcionada pelo “Uivo” de Ginsberg durante o fechamento da exposição “Queermuseu”, no Santander Cultural, em Porto Alegre, em 2017. Os argumentos eram muito parecidos, quando grupos e movimentos tentaram associar a exposição à pedofilia e à zoofilia através do pincelamento de elementos de apenas cinco obras de toda a exposição.

Essas cenas motivaram este texto que, espero, seja um convite a outras reflexões envolvendo tudo o que esses debates colocam em cena: a linguagem, a obra de linguagem, a arte, a cultura, a sociedade e sua constituição. Tomar a linguagem enquanto individuação e, portanto, em seu poder de criação pode lançar novas luzes para pensar tais questões, a partir de seu caráter plural. Iniciar esse debate foi o que tentei promover neste texto.

Agradecimentos

Agradeço à colega Elisa Stumpf por ter me trazido à atenção a obra de Ginsberg, bem como seu julgamento e pelas qualificadas contribuições nesse diálogo que com ela se iniciou. Agradeço ainda à revisão cuidadosa do texto realizada por Aroldo Garcia dos Anjos.

  • 2
    Utilizei aqui a tradução da palavra intenté, empregada pelo linguista Émile Benveniste (2006aBENVENISTE, É. Semiologia da língua. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. Campinas: Editora Pontes, 2006a, p.43-67.; 2006c) para se referir a uma intenção que não se configura enquanto prévia, mas que se constrói ao mesmo tempo que se configura o discurso.
  • 3
    Todas as traduções foram feitas por mim. No original, lê-se: “a series of court decisions began to remove restrictions on purportedly obscene literature”.
  • 4
    Benveniste (2006a)BENVENISTE, É. Semiologia da língua. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. Campinas: Editora Pontes, 2006a, p.43-67. caracteriza o domínio semiótico como aquele que se constitui de signos linguísticos, os quais formam um sistema; já o domínio semântico é aquele em que a unidade é o próprio discurso, o qual atribui valor às partes, às palavras.
  • 5
    É importante observar que essa discussão perpassa a obra de Henri Meschonnic e Gérard Dessons, ambos leitores da obra benvenistiana. Faço menção a esses textos especificamente, neste momento, porque auxiliarão mais diretamente na reflexão conduzida aqui.
  • 6
    Tomo aqui a noção de poema nos termos de Dessons (2011)DESSONS, G. Le poème. Paris: Armand Colin, 2011., para quem o poema não deve ser necessariamente escrito em verso, pois mesmo que o verso tenha sido historicamente a forma do poema durante muitos séculos, ele não o é mais desde que a ideia de poesia foi alterada no século XVII, quando houve a versificação da prosa, o que resultou, no século XIX, no poema em prosa. Dessa forma, o poema é considerado como o texto que inventa uma nova forma e um novo sentido, é uma criação.
  • 7
    Refiro-me aqui às notas manuscritas de Benveniste, publicadas na França por Chloé Laplantine em 2011. Tais notas revelam uma tentativa de Benveniste de analisar a obra Flores do mal, de Charles Baudelaire, para compreender o que é próprio da linguagem poética. Dado que o linguista, em suas notas, aponta cada vez mais para a reflexão de que se trata da língua de um poeta, da língua de Baudelaire, o dossiê foi denominado, por Laplantine, Baudelaire.
  • 8
    Em Saussure, assim como em Benveniste, signo refere-se à unidade do sistema que, ao ser utilizado no discurso, na fala, torna-se palavra. Nesta passagem, a palavra signo aparece entre aspas, a fim de denotar uma certa oposição entre a linguagem ordinária e a linguagem poética. A primeira partiria de unidades do sistema, ou seja, do signo, a segunda conceberia seu sistema, a partir do uso das palavras.
  • 9
    No original: “Les couleurs, la matière, les sons sont des matériaux / des artistes peintre, sculpteurs, musicien”, “Et le poète? Le poète combine des mots / sont le matériau sur lequel il travaille. Il est dès lors / évident que, devenu matériau du poète, les mots ne / peuvent plus être les ‘signes’ de l’usage commun”.
  • 10
    No original: “I mean that in watching natural thought (like in meditation Buddhist type) you see the structure of your random seeming thought and you can build whole prose or poetry structures on it. Not without effort at first, for it takes immense self discipline and effort to learn not to think (IBM) but to meditate and watch thought without interrupting it by literary self-consciousness and embarrassed preconceptions and rules”.
  • 11
    No original: “confondre la significance d’une œuvre plastique avec la désignation lexicale de ses composantes a pour conséquence non seulement la sortie hors du système de l’œuvre, mais surtout, l’introduction de la discontinuité dans un système dont aucune unité n’est discrète”.
  • 12
    No original: “Le poète fait sa langue et son expression, même / quand il en prend les éléments dans la langue ordinaire”.
  • 13
    No original: “sauf / exception rare, tous les mots de Baudelaire, de Mallarmé, / sont individuellement dans le dictionnaire”.
  • 14
    No original: “ce n’est pas la même langue”.
  • 15
    No original: “chaque poète a / sa langue poétique”.
  • 16
    “La forme et le sens dans le langage”, PLG II, p.225.
  • 17
    No original: “‘signifier’, du point de vue du mode sémantique, ne réfère pas à un “sens”, mais, radicalement, à une situation: ‘Les sens de la phrase implique référence à la situation de discours, et l’attitude du locuteur’; ce qui revient à rendre indissociables le sujet, l’histoire et le langage”.
  • 18
    No original: “une matière et une manière, une matière informée de manière qui la structure et la rend signifiante”.
  • 19
    No original: “primitive naive grammar (expelled for crazy)”.
  • 20
    No original: “prosy articles and syntactical sawdust, juxtaposition of cubic style images, or hot rhythm”.
  • 21
    No original: “changed my mind about ‘measure’ while writing”.
  • 22
    Em português: “estou com você”.
  • 23
    Em português: “onde você está mais louco”.
  • 24
    No original: “building up like a pyramid, an emotion crying siren sound, very appropriate to the expressive appeal emotion”.
  • 25
    No original: “the more I look at it the worse it seems, it’s real bad this way, I mean you can’t tell what I am doing, it looks like just primitive random scribblings in pages. I had not intended the prosody to be that arbitrary”.
  • 26
    No original: “Any poem I write that I have written before, in which I don’t discover something new (psychically) and maybe formally, is a waste of time, it’s not living”.
  • 27
    No original: “rhythms of ordinary speech”, “diction of ordinary speech” e “language of vulgarity”.
  • 28
    No original: “un objet d’art excède la totalité de ses signes”.
  • 29
    No original: “ni un indicible (…), ni un imperceptible”.
  • 30
    Ginsberg utiliza a palavra “Moloch”, em “Uivo”. Essa expressão refere-se figurativamente a uma pessoa ou a algo que demanda um alto sacrifício. No caso do poema “Uivo”, “Moloch” vai sendo relacionado a tudo aquilo que é descrito como degradante na sociedade, a fim de intensificar a denúncia proposta pelo poema.
  • 31
    No original: “the bare roots of our dominant culture, the very Moloch heart of our consumer society”.
  • 32
    No original: “‘affirmation’ of individual experience of God, sex, drugs, absurdity etc”.
  • 33
    No original: “The criticism of society is that ‘Society’ is merciless”; “private, individual acts of mercy”; “clearly and consciously built on a liberation of basic human virtues”.

REFERÊNCIAS

  • BAUDELAIRE, C. Œuvres complètes. Paris: R. Laffont, 1980.
  • BENJAMIN, W. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem Organização, apresentação e notas Jeanne Marie Gagnebin; tradução Sausana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Editora 34, 2011.
  • BENVENISTE, É. Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I Tradução Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri: revisão prof. Isaac Nicolau Salum. Campinas: Editora Pontes, 2005a, p.81-94.
  • BENVENISTE, É. Da subjetividade na linguagem. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I Tradução Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri, Revisão Isaac Nicola Salum. Campinas: Editora Pontes, 2005b, p.284-293.
  • BENVENISTE, É. Semiologia da língua. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II Tradução Eduardo Guimarães et al Campinas: Editora Pontes, 2006a, p.43-67.
  • BENVENISTE, É. Estruturalismo e linguística. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. Campinas: Editora Pontes, 2006b, p.11-28.
  • BENVENISTE, É. Baudelaire Limoges: Éditions Lambert-Lucas, 2011.
  • D’ALEMBERT, J. R. Observations sur l’art de traduire [1763]. French Translators, 1600-1800: An Online Anthology of Prefaces and Criticism. 1. Disponível em: https://scholarworks.umass.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1000&context=french_translators Acesso em 10 fev. 2021.
    » https://scholarworks.umass.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1000&context=french_translators
  • DESSONS, G. Pour une sémantique de l’art. NORMAND, C.; ARRIVÉ, M. Émile Benveniste vingt ans après. Numéro Spécial de LINX Nanterre, 1997,p. 327-333. Disponível em: https://journals.openedition.org/linx/1077?lang=fr Acesso em 16 out. 2021.
    » https://journals.openedition.org/linx/1077?lang=fr
  • DESSONS, G. Le poème Paris: Armand Colin, 2011.
  • MESCHONNIC, H. Modernité, modernité France: Gallimard, 1988.
  • MESCHONNIC, H. La rime et la vie France: Éditions Verdier, 1989/ Gallimard, 2006.
  • MESCHONNIC, H. Seul comme Benveniste. In: MESCHONNIC, H. Dans le bois de la langue Éditions Laurence Teper: Paris, 2008, p. 359-389.
  • MORGAN, B.; PETERS, N. J. Howl on Trial: the battle for free expression. San Francisco: City Lights Books San Francisco, 2006.
  • WITHMAN, W. Leaves of Grass: 1855 edition. Omaha: Willian Ralph Press, 2015.

Pareceres

Parecer I

O texto apresenta uma discussão interessante e com relação a uma abordagem bastante singular da obra de Benveniste, enfocando os trabalhos voltados à dita “linguagem poética”. Toma por base dois excelentes leitores da obra benvenistiana, Meschonnic e Dessons, e a desloca para pensar o poema. O artigo é bem escrito, tem autoria e revela conhecimento desses atuais estudos acerca de Benveniste. O único ponto que chama a atenção é a falta de referência a estudos atuais, produzidos no Brasil, acerca da mesma abordagem. O/a autor/a opta por ignorar a bibliografia do campo, feita no escopo da reflexão de especialistas brasileiros. Sem dúvida, é uma opção que empobrece o diálogo acadêmico. No entanto, é justo que se admita que o texto cumpre, estritamente falando, com seus objetivos. É o parecer. APROVADO

Valdir do Nascimento Flores - https://orcid.org/0000-0003-2676-3834; vnf.ufrgs@gmail.com; Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

Parecer II

O título – “O Uivo de Ginsberg: a linguagem em julgamento” – está bem adequado ao artigo. O objetivo do trabalho – o de discutir questões acerca da linguagem, em especial da linguagem poética, a partir do que foi levantado no julgamento da obra Howl, de Ginsberg – é desenvolvido coerentemente ao longo do artigo. Vale-se, para tanto, de reflexões teórico-metodológicas de Émile Benveniste, para pensar sobretudo a relação entre o caráter ético e político da linguagem e a linguagem poética, assim como se sustenta em precisos leitores de Benveniste, tais como Gérard Dessons e Henri Meschonnic. A partir da análise da obra Howl e seu julgamento, é constatada uma significativa conclusão, a de evidenciar que é no “encontro entre a linguagem, o ético e o político que se situa com toda a potência o poder fundador da linguagem e sua capacidade de provocar efeitos”. Há, assim, dentro do campo de conhecimento eleito, escolha de bibliografia pertinente, atualizada e relevante. Há uma certa originalidade, ao relacionar linguagem, arte, cultura e sociedade a partir de sua pluralidade, isto é, daquilo que as constitui. O artigo traz relevantes contribuições aos estudos discursivos, dentre os quais: o de evidenciar o funcionamento da linguagem poética, no caso do artigo, a partir do poema enquanto obra de linguagem, como aquele percebido no domínio das expressões artísticas; o de mostrar que no Howl de Ginsberg a significância é construída, a partir da indissociabilidade entre a forma e o sentido, o que constitui a experiência poética como uma apropriação de linguagem. O texto é bem redigido, há clareza do início ao fim. A linguagem está adequada a um trabalho científico. O artigo está, portanto, aprovado. APROVADO

Juciane dos Santos Cavalheiro - https://orcid.org/0000-0002-5845-8079; jucianecavalheiro@gmail.com; Universidade do Estado do Amazonas, Manaus, Amazonas, Brasil.

Parecer final

Considerando o parecer anexado, o artigo “O uivo de Ginsberg: a linguagem em julgamento” está APROVADO. Solicitamos que realize a atenta leitura das orientações a seguir, com os próximos passos para edição e publicação em Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso e reenvie os textos para o email bakhtinianarevista@gmail.com até 28-03-2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2021
  • Aceito
    30 Jun 2021
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