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O teatro ateniense como cenário para as facções políticas: uma disputa de poder na comédia As rãs de Aristófanes (405 a.C.)

RESUMO

O objetivo desse artigo é fundamentar uma avaliação sobre o final do século V a.C. em Atenas pelas lentes de uma comédia aristofânica. Atenta-se para a atuação das facções políticas (ou hetaireías), que não se restringiam apenas ao espaço das assembleias públicas, mas consolidavam, pelo financiamento das obras dramáticas, uma forma de atingir o público politicamente de maneira persuasiva: os cidadãos que poderiam votar nas ideias debatidas dentro das assembleias. Para tanto, propõem-se uma reflexão acerca do sistema da choregía como forma de dominação, uma análise acerca das orações de Andócides de 415 a.C. sobre as disputas pelo espaço político - seja atuando no teatro, seja de forma oculta, pela ação de grupos de sublevação de poder - e, por fim, uma investigação do tema no exame discursivo da comédia As rãs de Aristófanes (Bátrachoi - 405 a.C.).

PALAVRAS-CHAVE:
Teatro ateniense; Facções políticas; Choregía; Comédia As rãs

ABSTRACT

The objective of this study is to analyze the late 5th century BC in Athens through the lens of an Aristophanic comedy. We shed light on the role of political factions (the hetaireia), which were not limited to public assemblies: by funding stage plays, they constituted a form of political persuasion over the citizens who would vote on matters discussed in the assemblies. For this purpose, we examined the choregic system as a form of domination, analyzed Andocides’ speeches from 415 BC about political disputes (both in theater and, more subtly, in opposition groups), and investigated the topic through a discourse analysis of the comedy The Frogs by Aristophanes (Bátrakhoi, 405 BC).

KEYWORDS:
Athenian theater; Political factions; Choregia; Comedy The Frogs

Introdução

A arte, em seus atributos, deve ser pensada muito além do entretenimento. Por menor engajamento que se queira apresentar num produto artístico ou por mais sutis que sejam as mensagens de uma obra dramática, ainda assim, ela se posiciona e, por isso, tem em seu bojo um caráter político. Sob essas premissas, deve ser analisado o teatro grego antigo, que também assume um posicionamento ao definir seus enredos.

Em perspectivas históricas, dado o próprio desenvolvimento dos conflitos do Peloponeso, da crise em Atenas e dos golpes oligárquicos em 411 a.C., tornam-se mais latentes as disputas poéticas quando estas são analisadas pelo viés político. O elemento persuasivo do teatro sistematiza uma ferramenta importante para o pensamento da arte teatral como precursora de intencionalidades sociopolíticas e econômicas; nesse sentido, ele traduz a necessidade de convencimento do público, pois são os cidadãos que sairão do espetáculo e participarão das discussões em assembleia pública. Contudo, isso não significa afirmar que, no início e ao longo do século V a.C., já não houvesse uma preocupação de rivalidade poética e política por parte dos envolvidos nas produções das peças teatrais. Na realidade, parte-se exatamente dessa premissa, ou seja, do uso do teatro na Antiguidade como um lugar de abrangência do campo de disputas - ainda que sob controle estético - de grupos sociais; um espaço primordialmente de forte apelo político.

A polis ateniense do final do século V a.C. é analisada, então, pelo movimento estabelecido na construção e cristalização de identidades que se fundamentam pelos significados elaborados a partir de espaços sociais, políticos e religiosos. Seus sentidos são inventados e reinventados por poetas dramaturgos do período clássico, que, ao criarem obras dramáticas, tinham o dever cívico de pensar a própria cidade de Atenas com olhares que situavam interesses e posicionamentos. É por isso que as documentações referentes ao teatro antigo - entre elas, a comédia aristofânica As rãs (Bátrachoi)2 2 O termo bátrachoi, que significa “rãs” em grego clássico, fundamenta-se de uma imitação do som que fazem esses animais. Na obra de Aristófanes, o título da comédia vem a fazer uma sátira ao som que produzem os próprios gregos ao falar. Para o comediógrafo, esse som seria como aquele feito pelas rãs. , a ser analisada nesta pesquisa - são apreendidas como instrumentos de poder e perpetuação de ideias de facções (ou as chamadas hetaireías)3 3 “O termo hetaireía deriva de hetairiké - “camaradagem guerreira”. Durante o período arcaico, esse tipo de amizade passará do âmbito guerreiro para o político, assumindo assim as ideias de solidariedade e de ações combinadas com o intuito de defender posições particulares de poder. Uma hetaireía pode passar de um simples grupo político a uma synomosía, ou seja, a um grupo de descontentes que confabula contra o regime vigente em sua pólis” (LIMA, 2001, p.22-23). . Sendo assim, tais documentações acabam sendo legitimadoras de um registro político de grupos, até mesmo em se tratando das atuações daqueles que se envolvem indiretamente em sua produção, como os que pagavam as chamadas liturgíai (as liturgias) do teatro.4 4 As liturgias teatrais eram designadas como choregía.

1 O teatro como espaço político: as liturgíai e a choregía

Os cidadãos políades que assistiam aos espetáculos, apesar de já terem conhecimento prévio dos diversos mitos que circulavam pela vida cultural dos povos da Antiguidade grega, iam até às apresentações dos festivais teatrais com o intuito não apenas de conhecer qual versão dessa religiosidade seria abordada, mas também de atentar para a visão sociopolítica construída a partir da obra de arte apresentada. Nesse sentido, além de vislumbrar perspectivas mitológicas e a religiosidade em si mesma, o público observava os usos culturais e, sobretudo, políticos desses mitos no teatro, conforme interesses e estratégias.

Dentro dos estudos acadêmicos, faz-se necessária uma análise crítica acerca de perspectivas historiográficas que já se tornaram tradicionais nas avaliações sobre o teatro clássico (sobretudo o ateniense). Referimo-nos aos estudos realizados por autores como Jean-Pierre Vernant, Pierre Vidal-Naquet, Claude Mossé e Jacqueline de Romilly5 5 Entre esses estudos, podemos destacar: Mito e tragédia na Grécia Antiga (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1977); Cidadão na Grécia Antiga (MOSSÉ, 1993); A tragédia grega (ROMILLY, 1998). , os quais, devido a formações e questionamentos dentro de cada contexto, propuseram reflexões filosóficas e generalizantes do teatro e do “homem grego”, homem este que perdeu sua característica plural de sujeito histórico. A ideia do surgimento de uma consciência e de um homem trágicos (VERNANT; VIDAL-NAQUET; 1977VERNANT, J.-P.; VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977., p.9) e a funcionalidade do teatro dentro de avaliações apenas mitológicas foram o estopim para concepções de uma polis baseada na coesão social e na unicidade política e democrática.

Sendo assim, este artigo implica um olhar alternativo não apenas sobre os estudos teatrais, mas também sobre a própria visão estruturada do espaço político na Antiguidade, uma vez que essa concepção estrutural, em si mesma, é simplificadora quando se analisam as práticas sociais. Partindo do pressuposto da existência de um dinamismo nas perspectivas da sociedade ateniense, as quais devem ser examinadas em seus vários âmbitos, sobretudo institucionais, compreendemos a multiplicidade do fazer político através dos pensamentos e ações dos cidadãos. Tais pensamentos e ações são resultantes de diversas estratégias, não exclusivamente da concretude de suas atividades em cargos públicos, mas, até mesmo, das brechas apontadas pelos discursos no interesse persuasivo e pela existência dos grupos de interesse mútuo que disputam o poder entre si.

A respeito das liturgíai (ou liturgias), Claude Mossé (2004)MOSSÉ, C. Dicionário da civilização grega. Tradução de Carlos Ramalhete e André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. afirma que: “Assim eram designadas certas funções a cargo dos cidadãos mais ricos, que colocavam suas fortunas a serviço da comunidade. (...) Ser designado pela cidade para exercer uma liturgia era uma honra de que se vangloriavam os escolhidos, sobretudo perante os tribunais (...)” (p.192).6 6 Anualmente, a cidade-estado designava cidadãos para exercerem cargos públicos de financiamento das principais atividades através do pagamento das liturgíai, ou seja, do provento de liturgias: seja para o teatro - o sistema da choregía, do qual advém o termo “coro”, parte fundamental do teatro grego e, por isso o contribuidor se torna um choregos, ou choregoi, no plural -, seja para a guerra - a trierarchía, do qual advém o termo “trirremes”, as embarcações utilizadas pelos gregos da Antiguidade - ou para os esportes e a competição de atletas - a gymnasiarchía, conceito pelo qual é possível identificar o termo “ginásio”, por exemplo. Dessa maneira, a riqueza estava diretamente relacionada com uma perspectiva oficial difundida pelo Estado, em que o mérito social, político e cultural de servir à comunidade ateniense baseava-se na doação de porções da fortuna, em forma de liturgia, para determinadas instituições lideradas pelo arconte-epônimo - entre elas, a trierarchía (liturgia voltada para a guerra) e a choregía, que dizia respeito aos custos das produções teatrais, especificamente aos custos com a formação dos coros.

Apesar de ser considerada uma das mais dispendiosas liturgias (CSAPO; SLATER, 2001CSAPO, E.; SLATER, W. J. The Context of Ancient Drama. Michigan: The University of Michigan Press, 2001., p.139) e uma das principais contribuições, devido à visibilidade e importância sociopolítica do teatro, a choregía tinha as vantagens de sustentação e de poder num espaço político onde se prezava uma imagem imbuída de dedicação e envolvimento (também financeiro) para uma das maiores instituições da Antiguidade clássica ateniense: a produção teatral. A disputa por coroas na premiação dos concursos dramáticos e pela imortalização de seus nomes por meio das gravações dos choregoí nos resultados finais da competição - conforme se atesta na inscrição epigráfica de código IG II2 2318 (MILLIS; OLSON, 2012MILLIS, B. W.; OLSON, S. D. Inscriptional Records for the Dramatic Festivals in Athens - IG II2 2318-2325 and Related Texts. Leiden/Boston: Brill, 2012., p.5-58)7 7 Essa inscrição epigráfica, também denominada de Fasti, era assim chamada por traduzir a lista cronológica dos registros, tanto dos participantes externos (os arconte-epônimos responsáveis pela organização geral do festival de cada época) quanto dos participantes internos das produções vitoriosas de cada ano no festival da Grande Dionísia. Ela consistia em onze itens assim dispostos para cada período, desde a primeira metade do século V: “(Item 1) o nome do arconte-epônimo; (Item 2) o nome da tribo que levou o prêmio dos garotos do ditirambo; (Item 3) o nome do choregós vitorioso dos garotos do ditirambo; (Item 4) o nome da tribo que levou o prêmio dos homens do ditirambo; (Item 5) o nome do choregós vitorioso dos homens do ditirambo; (Item 6) o notável komoidón (dos poetas cômicos); (Item 7) o nome do choregós cômico vitorioso; (Item 8) o nome do didáskalos (poeta) [que também poderia ser o diretor] cômico vitorioso; (Item 9) o notável tragoidón (dos poetas trágicos); (Item 10) o nome do choregós trágico vitorioso; e (Item 11) o nome do didáskalos (poeta) [que também poderia ser o diretor] trágico vitorioso.” (MILLIS; OLSON, 2012, p.6); tradução minha). No inglês: “(Item 1) the eponymous archon’s name; (Item 2) the name of the tribe that took the prize in the boys’ dithyramb; (Item 3) the name of the victorious chorêgos in the boys’ dithyramb; (Item 4) the name of the tribe that took the prize in the men’s dithyramb; (Item 5) the name of the victorious chorêgos in the men’s dithyramb; (Item 6) the notice ΚΩΜΩΙ∆ΩΝ (“of the comic poets”); (Item 7) the name of the victorious comic chorêgos; (Item 8) the name of the victorious comic didaskalos (poet); (Item 9) the notice ΤΡΑΓΩΙ∆ΩΝ (“of the tragic poets”); (Item 10) the name of the victorious tragic chorêgos; and (Item 11) the name of the victorious tragic didaskalos (poet)” (MILLIS; OLSON, 2012, p.6). - traduzia a honra de seus participantes.

Nesse sentido, a choregía revelava uma dualidade em seu significado: por um lado, uma perspectiva ideal de Estado construída sob as bases do discurso aristocrata, marcado pela honra advinda do provimento na produção de trabalhos artísticos de grande relevância social; por outro, um viés de pretensão individual pela manutenção de poder. De acordo com David Wiles, as ambições individuais, por parte da tradicional aristocracia do século VI a.C. e do início do V a.C., foram confinadas à necessidade do desenvolvimento de atuações políticas que visavam àquilo que, aos poucos, foi-se estruturando como práticas de uma democracia ateniense (WILES, 2000WILES, D. Greek Theatre Performance - An Introduction. Cambridge University Press: 2000., p.51). Dessa forma, as ambições deveriam ser limitadas a um ideal de provimento e de gerência da polis como um todo e não apenas dos grupos familiares (2000, p.51). Paulatinamente, com a abertura da possibilidade de atuação como choregós também por parte da oligarquia formada pelos comerciantes que ascendiam em riqueza e status, esse sistema passou a se estruturar com forte apelo de disputa política. No entanto, aparentemente, a simbologia de um ideal democrático, por parte da prática da choregía, configurou e definiu sua representatividade na vida social da Atenas clássica.

Segundo Marcel Mauss, as prestações econômicas das sociedades, as quais denomina como “primitivas”, “arcaicas” ou precedentes à nossa, podem fundamentar, de uma só vez, um conjunto de instituições. Isso se dá, em alguns momentos, através da união de perspectivas religiosas, jurídicas e, sobretudo, morais da vida política, familiar ou de grupo, as quais definem aquilo que o autor denomina de “fenômenos sociais totais” (MAUSS, 2003MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p.183-314., p.187). Essa definição de relação social intrínseca fornece subsídios para a compreensão do significado de prestações voluntárias - tal qual o encargo financeiro no caso de Atenas. Tais prestações são reconhecidas como dádivas dentro de um sistema que não está baseado no mercado, como se conhece na atualidade, mas na espera pela retribuição (MAUSS, 2003MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p.183-314., p.188). Nesse sentido, a charis pública, a qual simboliza o “senso de obrigação ou gratidão da comunidade perante os contribuintes individuais” (MAKRES, 2014MAKRES, A. Dionysiac Festivals in Athens and the Financing of Comic Performances. In: FONTAINE, M.; SCAFURO, A. C. (Orgs.). The Oxford Handbook of Greek and Roman Comedy. New York: Oxford University Press, 2014. p.70-94., p.72)8 8 Tradução minha. No inglês: “community's sense of obligation or gratitude towards individual contributors” (MAKRES, 2014, p.72). , é o resultado abstrato e geral esperado pelos choregoi ao final de suas atribuições.

Mauss auxilia, assim, as análises sobre a choregía, uma vez que permite ampliar a perspectiva econômica liberal e funcionalista mais conhecida. Nesse ínterim, o sujeito que contribui e aqueles que auferem a dádiva detêm, respectivamente, como num sistema de “dons e contradons”, a “obrigação de dar” e a consequente “obrigação de receber” num sistema de reciprocidade involuntária dentro do contrato social (MAUSS, 2003MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p.183-314., p.200).

No entanto, a resposta quanto à relação de obrigatoriedade no recebimento não fica apenas restrita à audiência do espetáculo e aos frequentadores das assembleias públicas (os quais, automaticamente, devem gratidão aos choregoí), mas, principalmente, aos poetas, que passam assim a ter, como trabalho artístico, o empenho de comprometimento com seus financiadores. A partir dessa relação, até mesmo as mensagens das obras dramáticas terão, mesmo em seus pormenores, indícios do comando dos choregoí e dos grupos sociais dos quais eles fazem parte.

A relação de poder disposta para os choregoí em seu desempenho não estava apenas na função sistemática de treinar e organizar as atividades do seu coro, mas sobretudo porque faziam parte desse jogo “prestígio, honra e vitória” - ou a denominada “economia de prestígio”, apontada por Peter Wilson (2000WILSON, P. The Athenian Institution of the Khoregia - the Chorus, the City and the Stage. Australia: Cambridge University Press, 2000., p.71) -, que lhes traziam status sociopolítico. Por isso, Wilson afirma a própria característica do sistema na presença de voluntários que solicitavam a inclusão de seus nomes para as próximas choregíai, incluindo aqueles que, por serem eventualmente mais pobres, poderiam pedir recursos emprestados para atuar na função (WILSON, 2000WILSON, P. The Athenian Institution of the Khoregia - the Chorus, the City and the Stage. Australia: Cambridge University Press, 2000., p.53).

O domínio sobre a produção teatral se dava de tal maneira que, muito embora, durante a maior parte do século V a.C., os diretores das obras dramáticas fossem os próprios poetas (por isso o termo didáskaloi designar os dois conceitos)9 9 Na realidade, o termo didáskalos significa “mestre”, “aquele que transmite conhecimento”. Pode ser designado para professores ou, no caso do teatro, para os poetas, que transmitiam conhecimento com suas obras, ou diretores teatrais, que eram os responsáveis por conduzir os demais envolvidos na produção de um espetáculo. , no final desse período e ao longo do século IV a.C., os diretores passaram a ser outros (PICKARD-CAMBRIDGE, 1953PICKARD-CAMBRIDGE, A. The Dramatic Festivals of Athens. London: Oxford University Press, 1953., p.91), sendo que os choregoí eram diretamente responsáveis pela contratação desses indivíduos terceiros, os quais, provavelmente, precisariam criar suas obras sob as considerações de seus financiadores10 10 Apesar de Peter Wilson afirmar que cabia aos choregoí apenas a viabilização de um “assistente de direção” (hypodidáskalos) (WILSON, 2000, p.83), é possível constatar a possibilidade de contratação de diretores a partir de um discurso de Demóstenes, intitulado Contra Mídias, no qual aponta-se a presença de um indivíduo chamado Sânio, que teria sido contratado como didáskalos por um “poderoso” choregós, denominado Teozótides (DEMOSTHENES, XXI, 58-59). . De forma geral, havia toda uma motivação pelas philotimía (desejo de prestar honras públicas) e philonikía (desejo de vencer concursos)11 11 Tanto philotimía quanto philonikía têm o radical philo, que significa “amor por algo” ou “desejar muito”. Philotimía seria o amor pela honra (sendo honra timé em grego clássico) e philonikía, o amor em concorrer e conseguir a vitória (sendo vitória níke). , as quais legitimavam não só a extravagância desses choregoí (WILSON, 2000WILSON, P. The Athenian Institution of the Khoregia - the Chorus, the City and the Stage. Australia: Cambridge University Press, 2000., p.145-146), mas especialmente a sustentação de uma realidade de agónes12 12 Agónes, plural do termo agón, significa “disputas, conflitos, competições”. não apenas poéticas, mas também político-econômicas entre os grupos sociais.

É preciso enfatizar que o drama grego se desenvolveu na transição de uma sociedade de domínio rural aristocrático para o domínio urbano de formação social democrática, cujos membros tradicionais eram, pouco a pouco, provocados a disputar espaço com uma ideologia cívica de nova fundamentação. Com o desenvolvimento urbano cada vez maior em Atenas no decorrer do Período Clássico (a partir do século V a.C.), muitos comerciantes e estrangeiros passaram a se tornar também uma elite enriquecida e a concorrer por espaços socioculturais e políticos, utilizando-se do teatro como um campo aberto para essas competições. Entre os aristocratas mais reconhecidos, temos, por exemplo, Péricles, grande estadista que teria financiado, na condição de choregós, a tragédia Os persas, de Ésquilo (Pérsai, de 472 a.C.). Todo o fundamento da grandiosidade ateniense diante das Guerras Greco-Pérsicas estava ali fundamentada - a intencionalidade do estadista em um trabalho conjunto com o tragediógrafo.

Nesse ínterim, a autoridade ateniense, diante das outras regiões gregas durante as batalhas com os persas, suscitou um descontentamento dos demais gregos, dando início à Guerra do Peloponeso - nome dado à região que se aliou à Esparta contra o poderio ateniense. A nova guerra, que durou de 431 a.C. até 404 a.C., com a derrota de Atenas, suscitou ainda mais o campo de disputas políticas, sobretudo na região ateniense, já fragilizada ao final desse período, marcado por golpes oligárquicos associados a Esparta (em 411 e 404 a.C.). A comédia As rãs, de Aristófanes, produzida em 405 a.C., está circunscrita aos acontecimentos decorrentes desses golpes e de toda a rede de conflitos entre aristocratas e novos oligarcas na busca pelo poder. Além disso, a peça ilustra o período em que os tragediógrafos gregos mais reconhecidos já haviam falecido.

Dentre alguns indivíduos desse momento histórico, é preciso situar Alcibíades, oriundo da tradicional família aristocrática ateniense dos Alcmeônidas, que se manteve de forma inconstante na arena política; Cleofonte, também aristocrata, que teria se posicionado contra os oligarcas; Táureas, um novo rico; Trasíbulo, general ateniense durante a Guerra do Peloponeso e trierarca (comandante da embarcação) na região de Samos, alinhado politicamente com Alcibíades; Frínico, também general ateniense, o qual teve papel preponderante no golpe oligárquico, sendo considerado, portanto, um traidor. Além disso, determinados cidadãos se interligaram de alguma maneira à instituição da choregía em meio ao buliçoso processo histórico; já outros foram citados de forma positiva ou negativa nas obras dramáticas, sobretudo em comédias como As rãs. Muitos desses cidadãos estavam associados a facções políticas, ou seja, a grupos de atuação sigilosa na busca pelo poder.

Sobre essas questões, a título de exemplo referente ao final do século V a.C., é possível analisar a oração de Andócides13 13 Andócides era logógrafo, não um orador profissional. “(...) participou durante os conflitos do Peloponeso da mutilação das hérmai [as colunas que continham cabeças de pedra do deus Hermes e eram espalhadas pelas regiões da Ática] na véspera da partida da expedição ateniense contra Sicília em 415 a. C. Embora ele salvasse sua vida tornando-se informante, foi condenado à perda parcial dos direitos civis e forçado a deixar Atenas. (...) se envolveu em atividades comerciais e retornou a Atenas no âmbito da anistia geral que se seguiu à restauração da democracia (403 a.C.), chegando até a preencher alguns importantes cargos. Em 391 a. C., ele foi um dos embaixadores enviados para Esparta para discutir termos de paz, mas as negociações falharam. Oligárquico em suas simpatias, ele ofendeu seu próprio grupo e gerou desconfiança entre os democratas” (WEISS, 2012, p.5; tradução minha). No inglês: “(...) he participated during the Peloponnesian conflicts in the mutilation of the hérmai on the eve of the departure of the Athenian expedition against Sicily in 415 BC. Although he saved his life by becoming an informant, he was sentenced to partial loss of civil rights and forced to leave Athens. (...) he became involved in commercial activities and returned to Athens under the general amnesty that followed the restoration of democracy (403 BC), even filling some important posts. In 391 BC, he was one of the ambassadors sent to Sparta to discuss peace terms, but the negotiations failed. Oligarchic in his sympathies, he offended his own group and generated distrust among Democrats” (WEISS, 2012, p.5). em seu discurso Contra Alcibíades, de 415 a.C., realizada em assembleia pública. Em sua alocução, identifica-se um maior prestígio de Alcibíades em detrimento do seu opositor na choregía, Táureas, permanecendo a disputa pela maior honra. Entre os representantes da assembleia, é possível destacar o histórico de grandes contribuições litúrgicas dos concorrentes na choregía, a avaliação das generosidades para com a cidade, o teor das ancestralidades e o poder da oratória e da respectiva experiência com os assuntos de guerra (WILSON, 2000WILSON, P. The Athenian Institution of the Khoregia - the Chorus, the City and the Stage. Australia: Cambridge University Press, 2000., p.148). Todas essas questões são características que poderiam ser vinculadas à figura de Alcibíades:

Então, novamente, lembrem-se de Táureas, que competiu contra Alcibíades como choregós de um coro de garotos. A lei permite a expulsão de qualquer membro que seja de um coro concorrente não nascido em Atenas e é proibido resistir a qualquer tentativa a tal exclusão. No entanto, na vossa presença, na presença dos outros gregos que observavam e antes de todos os magistrados de Atenas, Alcibíades partiu Táureas a golpes. Os espectadores mostraram sua simpatia com Táureas e seu ódio contra Alcibíades por aplaudir um coro e se recusar a ouvir o outro em tudo. Porém, Táureas não era ninguém melhor para isso. Em parte por medo, em parte por subserviência, os juízes pronunciaram Alcibíades como vencedor, tratando-o como mais importante que o juramento deles. E parece-me natural que os juízes devessem, portanto, atender favores a Alcibíades, quando eles poderiam ver que Táureas, que tinha gasto tão vasta quantia, estava sendo submetido a insultos, enquanto seu rival, que mostrou tal desprezo pela lei, era todo-poderoso. A culpa recai sobre os senhores. Os senhores se recusam a punir a insolência (...). (ANDOCIDES, IV, 20-21).14 14 Tradução minha da versão em inglês de K. J. Maidment da biblioteca digital de documentações gregas e romanas da Antiguidade: Perseus Digital Library. A biblioteca conta com fontes em grego, latim e inglês. “Then again, remember Taureas who competed against Alcibiades as Choregus of a chorus of boys. The law allows the ejection of any member whatsoever of a competing chorus who is not of Athenian birth, and it is forbidden to resist any attempt at such ejection. Yet in your presence, in the presence of the other Greeks who were looking on, and before all the magistrates in Athens, Alcibiades drove off Taureas with his fists. The spectators showed their sympathy with Taureas and their hatred of Alcibiades by applauding the one chorus and refusing to listen to the other at all. Yet Taureas was none the better off for that. Partly from fear, partly from subservience, the judges pronounced Alcibiades the victor, treating him as more important than their oath. And it seems to me only natural that the judges should thus seek favour with Alcibiades, when they could see that Taureas, who had spent so vast a sum, was being subjected to insults, while his rival, who showed such contempt for the law, was all-powerful. The blame lies with you. You refuse to punish insolence (...)” (ANDOCIDES, IV, 20-21).

As queixas de Andócides demonstram que, embora parta-se de uma oficialidade na própria instituição da choregía dentro das funcionalidades dos festivais teatrais em Atenas, na prática, por questões de representação de poder, aquilo que é instituído pode ser burlado por imposições de hierarquia sociopolítica. Nesse discurso, Andócides denuncia a exacerbada valorização do prestígio de determinados choregoí em detrimento das próprias leis. Em outros casos, mesmo agindo dentro da legalidade, verificam-se seus usos dentro da determinação dos interesses no jogo político.

Nesse aspecto, é necessário enfatizar o papel do Estado, sob a figura do arconte-epônimo, na seleção daqueles que atuavam com as liturgias, isto é, com os financiamentos que teriam um teor de determinação e dever a ser cumprido. Durante esse processo, devido às grandes despesas da choregía, o candidato escolhido poderia solicitar o artifício denominado antídosis15 15 Antídosis significa “troca” em grego clássico. Para o pagamento de uma liturgia, poderia ser concedida a troca de bens com um cidadão mais rico ou ele poderia arcar com os encargos financeiros. , através do qual ele demandaria outro indivíduo que considerasse mais apto para trocar de função ou, caso fosse da sua preferência, que este indivíduo poderia trocar seus bens com aquele originalmente designado ao cargo para que este direcionasse as posses ao fomento litúrgico. Para tanto, o escolhido poderia deliberar sobre sua postura, ressaltando, entre outras coisas, a sua participação exaustiva em diversas liturgias anteriores ou, até mesmo, a realização dessa troca com terceiros em outras ocasiões16 16 Segundo Aristóteles: “Então, o arconte procede às trocas de fortuna [antídosis] e encaminha as suas alegações: caso alguém declare ter desempenhado essa liturgia anteriormente, ou estar isento por ter desempenhado uma outra liturgia e não ter ainda vencido seu prazo de isenção, ou não ter ainda a idade mínima necessária (com efeito, o corego, para o coro das crianças, deve ter mais de quarenta anos).” (ARISTÓTELES, Constituição de Atenas, 56. 3). Sobre o tema, também é possível conferir: (PICKARD-CAMBRIDGE, 1953, p.87); (CSAPO; SLATER, 2001, p.140); (MOSSÉ, 2004, p.192). . Entretanto, embora fosse um procedimento-padrão a ser seguido, os representantes da choregía, frequentemente, recorriam à antídosis como estratégia para atingir inimigos políticos, tornando-se esse recurso numa oportuna ferramenta para disputa de poder.

Além disso, no teatro, as alianças políticas eram criadas e recriadas nos espetáculos. As apresentações teatrais consistiam de uma irrefutável participação ativa dos espectadores para vangloriar (ou não) as obras e os que nela estavam envolvidos, conforme seus próprios interesses e valores; isso acabava refletindo diretamente o resultado do debate nas assembleias após os festivais. Segundo Josiah Ober, nas assembleias, os jurados permitiam que fosse retratado ficcionalmente, por exemplo, aquilo que os litigantes estavam vivendo para uso direto do teatro como ferramenta nas decisões dos tribunais (OBER, 1989OBER, J. Mass and Elite in Democratic Athens: Rethoric, Ideology and the Power of the People. New Jersey/Chichester: Princeton University Press, 1989., p.153-154).

Essas estratégias de utilização do teatro simbolizavam a participação das chamadas hetaireías (as facções políticas), muito embora esses grupos não esclarecessem nem sua existência nem seus interesses abertamente. Para Ober, os oradores buscavam retratar a si mesmos como pertencentes “(...) a vários estratos de grupos de elite, mas nunca a um grupo organizado de políticos que defendia interesses especiais.” (OBER, 1989OBER, J. Mass and Elite in Democratic Athens: Rethoric, Ideology and the Power of the People. New Jersey/Chichester: Princeton University Press, 1989., p.123; tradução minha)17 17 “(...) to various elite status groups but never as belonging to an organized group of politicians that advocated special interests” (OBER, 1989, p.123). . Além de distinguir as facções em suas características de insubordinação a um determinado regime político, tal qual afirmou Loraux (2006LORAUX, N. The Divided City - On Memory and Forgetting in Ancient Athens. New York: Zone Books, 2006., p.24), as hetaireías tinham, então, ainda mais características para sustentar seu caráter confidencial. Fazia parte do jogo de convencimento no discurso dos grupos - incluindo nas produções teatrais - que eles mantivessem a realidade de seus interesses em sigilo.

2 As facções políticas no contexto histórico

No discurso Sobre os mistérios (I, 13-18), de 415 a.C., Andócides aponta a existência de certas associações de grupos políticos. A partir da exposição de uma lista de nomes, denunciava a formação de três deles, cada um com interesses políticos distintos. Andócides agia, assim, como sicofanta18 18 “Os sicofantas eram acusadores quase profissionais. A justiça ateniense, com efeito, ignorava o ministério público, que, em nome da cidade-estado, moveria processos contra os que atentassem à segurança do Estado. Sendo assim, a defesa dos interesses públicos era deixada a qualquer cidadão e todos tinham o direito de mover uma ação contra quem julgassem atentar contra os interesses da cidade. (...) em Atenas, alguns indivíduos teriam feito desse tipo de acusação uma especialidade, esperando lucrar com isso, seja ao receber parte da multa que o acusado fosse condenado a pagar, (...) seja fazendo-se comprar pelo acusado para retirar a queixa, seja ainda servindo aos interesses de um político influente ao agir por sua conta em troca de um salário. (...) Os sicofantas eram seguramente um dos pontos negros da democracia ateniense. Assim, a cidade previra disposições próprias para limitar os efeitos de uma prática ligada à própria organização judiciária. O acusador que renunciasse sem razão a sua ação, portanto, podia ser multado, assim como quem não obtivesse um quinto de votos favoráveis por ocasião de um processo” (MOSSÉ, 2004, p.256-257). , um delator dos integrantes responsáveis pela mutilação das cabeças dos Hermes (as hérmai). Trata-se de uma transgressão feita em 415 a.C., além da paródia aos Mistérios de Elêusis - rito de iniciação no culto às deusas Deméter e Perséfone nessa região da Ática. A mutilação dos Hermes teria sido resultado de uma conjuração feita pelas facções (uma sinomosía) em busca de comprovação da fidelidade de seus integrantes.

Entre esses grupos, estaria justamente o de Alcibíades (ANDOCIDES, I, 13; 17-18). Trata-se de uma associação política que se caracteriza, inicialmente, por interesses múltiplos e mesclados, visto que era formada tanto por aristocratas de famílias tradicionais quanto por metecos. Em sua origem, esse grupo visava buscar forças para alianças com a Pérsia para barganhar poder em Atenas durante os conflitos do Peloponeso contra os espartanos; tais questões definiram os posteriores movimentos de um regime oligárquico.

Em 411 a.C., a democracia foi suprimida por um golpe com o corpo de quatrocentos oligarcas. Segundo Tucídides, o próprio movimento oligárquico deste golpe teria sido promovido justamente pelas hetaireías. O historiógrafo descreve a extensão da conspiração em Atenas, na qual os membros recrutados vinham de grupos políticos (VIII, 48. 2-4). Embora o processo se iniciasse com uma trama elaborada por Alcibíades, esta se pronunciou com quatrocentos oligarcas comandando e não considerando cidadãos fora de Atenas, tais como Alcibíades, que promovia encontros com a Pérsia.

Nesse momento, houve o início de uma divisão na facção política de Alcibíades, prevista na delação de Andócides sobre os grupos de 415 a.C., o que caracteriza um esboço de separação entre a aristocracia tradicional de um lado e os “novos ricos” e “metecos” que atuavam em Atenas de outro. Os quatrocentos que promoveram o golpe preferiram continuar com os planos de aliança com Esparta, em vez de seguir os planos de Alcibíades baseados numa aliança com a Pérsia (THUCYDIDES, VIII, 71). Ao lado de Alcibíades, estariam cidadãos como Trasíbulo, que foi um dos responsáveis por seu retorno a Atenas e contra a instituição dos quatrocentos (VIII, 76).

A partir do final de 405 a.C, Esparta bloqueou o Pireu (o porto de Atenas); com isso, os cidadãos atenienses, sitiados na pólis, começaram a sofrer de fome (CHAMOUX, 2003CHAMOUX, F. A civilização grega na época arcaica e clássica. Tradução de Pedro Elói, Duarte. Lisboa: Edições 70, 2003., p.91). Assim foram legitimados os trinta tiranos em Atenas durante os anos de 404/3 a.C., um período de decisão do fim dos conflitos do Peloponeso. Nesse ínterim, apesar de Alcibíades ter-se colocado em diversos momentos a favor de negociações com a Pérsia, por questões de interesse próprio, o discurso da democracia era agora o ponto a seu favor, cujo título de aristocrata em defesa de Atenas, bem como de seus valores, passou a servir melhor dentro do contexto histórico em que pese o posicionamento contrário aos golpes oligárquicos - muito embora estes lhe parecessem convidativos se deles tivesse participado em outros momentos.

Dentro de todas essas questões, como pensar, então, a atuação política das facções no teatro ateniense desse período? Quais os sentidos da produção da comédia aristofânica de 405 AEC se dialogarmos com todo esse contexto histórico?

3 Uma análise da comédia As rãs

Para o aprofundamento investigativo da peça teatral As rãs, lança-se mão da análise de discurso como ferramenta metodológica. A construção conceitual e os procedimentos do exame discursivo de Eni Orlandi são referenciados como base da análise da obra dramática19 19 Os conceitos de Eni Orlandi, aqui trabalhados, aparecerão demarcados em itálico. , bem como as “entrelinhas” de suas mensagens, revelando as atuações dos grupos sociopolíticos envolvidos em sua produção. Como descreve Orlandi: “O imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem. Ele é eficaz. Ele não ‘brota’ do nada: assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas (...) por relações de poder” (ORLANDI, 2001ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes Editores, 2001., p.42).

Nessa obra dramática, o sujeito locutor é Aristófanes, da cidade de Atenas. Ele viveu por volta dos anos 445 e 385 a.C. Provinha de uma família de posses e, provavelmente, mantinha contato com o meio rural na ilha de Egina. Aristófanes foi considerado um dos principais representantes da chamada “Comédia Antiga”, sendo o principal comediógrafo da Antiguidade. Suas peças ainda são bastante conhecidas pelo público na atualidade. Era popular em Atenas e As rãs ganhou o festival de 405 a.C.

A textualidade da obra trabalha com o espaço de Atenas e a disputa de dois posicionamentos políticos entre os poetas Ésquilo e Eurípides. Sendo assim, somos apresentados a dois segmentos sociais diferentes: a tradicionalidade aristocrática e os valores de uma nova oligarquia. A comédia denuncia o fim do prestígio e da hegemonia atenienses ao cabo dos conflitos do Peloponeso no final do século V a.C.

Como objeto do discurso, a peça suscita uma proposta cômica, jocosa e satírica. Aristófanes apresenta o deus Dioniso, que, descontente com o mundo artístico ateniense nos anos de 405 a.C. e com a morte dos três principais tragediógrafos da cidade (Ésquilo, Sófocles e Eurípides), resolve ir até o Hades para trazer algum deles de volta à vida. Por lá, Ésquilo e Eurípides brigam entre si para ocupar o trono: um lugar ao lado de Plutão (deus dos mortos), que representaria a homenagem ao maior tragediógrafo que já havia existido. Dioniso acaba tornando-se o juiz dessa disputa e aproveita o ensejo para definir, a partir de perguntas referentes à política da cidade de Atenas naquela época, qual dos dois seria o merecedor de acompanhá-lo de volta e reviver. A contragosto de suas ideias iniciais, que pareciam apontar uma predileção por Eurípides, Dioniso decide por levar Ésquilo consigo.

Como elemento desencadeador da obra, compreende-se o decorrer dos últimos anos do século V a.C., com as transformações advindas dos conflitos do Peloponeso e da ascensão de oligarquias no poder. Tal contexto reflete as disputas de facções políticas em jogo e o debate das vantagens e desvantagens de se continuar com a guerra. Para além disso, os tragediógrafos mortos representariam em vida, para Aristófanes, a altivez e o poderio de Atenas com suas obras produzidas do início aos meados do período clássico. Como se pode perceber, o comediógrafo utiliza a obra tanto como um elemento de comunicação com o público para demonstrar sua valorização a esses poetas quanto para buscar, através deles, a resposta para as crises que assolavam a sua pólis na época.

É possível conceber o interdiscurso de Aristófanes nessa peça com alguns apontamentos de Tucídides sobre a História da guerra do Peloponeso (THUCYDIDES, VIII). Embora sejam dois gêneros diferentes (literário e histórico), a relação de interdiscurso se dá indiretamente e nos encadeamentos dedutivos do texto, conforme as análises de Eni Orlandi, que se referem às discussões políticas e históricas de Tucídides como elementos externos à obra, mas que fornecem continuidade ao texto de Aristófanes enquanto discurso. Portanto, para Orlandi, os apontamentos de Tucídides acabam dando à comédia de Aristófanes uma certa coerência, cujo sentido das palavras reside num sentido maior fixado socialmente dentro da sua época, o que fundamenta um olhar de altivez aristocrática ateniense20 20 Tucídides descreve a guerra do Peloponeso na contemporaneidade dos acontecimentos, compreendendo o sentido dos conflitos com o olhar de soldado (hoplita) ateniense sob um viés político - a maneira como enxergava o próprio sentido histórico. A grandeza descrita por ele nos episódios vem a vangloriar a perspectiva ateniense da guerra, deslegitimando, em sua retórica, narrativas anteriores como as de Homero e de Heródoto (VARGAS, 2017, p.61-89). . Isso não retira da obra As rãs a peculiaridade de suas características enquanto gênero cômico, cuja intenção básica é fazer rir; no entanto, temos uma força política discursiva no interesse de construção das mensagens a serem atingidas pelo público do teatro em 405 a.C. Para Orlandi, o interdiscurso “(...) fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna, sob a forma do pré-construído, o já dito, que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra” (ORLANDI, 2001ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes Editores, 2001., p.31).

A História da guerra do Peloponeso possui assim o fundamento das discussões políticas as quais Aristófanes levanta em As rãs. A obra historiográfica embasa o debate, sobretudo acerca do processo e das personagens históricas que Aristófanes propõe avaliar por meio das falas de Dioniso, do corifeu e do coro ao longo da peça. Como memória discursiva, a comédia traz falas do corifeu, tais como: “cidadãos honestos” (v. 719-720), “bem nascidos e prudentes” (v. 727), “insensatos, mudai de hábitos” (v. 734). Esses trechos estão rodeados de discursos solenes da tradição aristocrática, o que contribui para denunciar a crise ateniense no que concerne às lideranças políticas no momento histórico de As rãs. Os assim chamados “melhores” e “bem nascidos” eram a referência principal das documentações clássicas para se falar da aristocracia. Toda essa simbologia foi utilizada na peça de Aristófanes como fundamento do discurso.

Ainda na obra As rãs, é possível dizer que Aristófanes dialoga com as ideias sociopolíticas e culturais de Ésquilo como intertexto, sobretudo na tragédia Os persas (472 a.C.), obra que aborda a derrota do exército de Xerxes I contra os gregos na Batalha de Salamina. Ésquilo enfatiza uma imprudência dos persas, na figura de Xerxes, contra a organização e prudência gregas - sobretudo sob o domínio de Atenas. Tal exaltação também é recorrente na comédia de Aristófanes, que procura dignificar a aristocracia em detrimento dos novos líderes políticos, muitos deles representando o domínio estrangeiro sobre a política ateniense.

A partir do diálogo entre os textos de Ésquilo e Aristófanes, além da repetição discursiva deste pela perspectiva tradicional aristocrática consolidada - como em Tucídides -, é possível conceber sua paráfrase ou, como define Orlandi, sua “(...) matriz de sentido, pois não há sentido sem repetição, sem sustentação no saber discursivo” (2009, p.38). Como paráfrase, é possível identificar que Aristófanes se preocupa repetidamente no texto em exaltar a honestidade da cidadania, criticando de maneira generalizada os que se utilizaram dela para benefício próprio, trazendo a crise para Atenas.

Com a apresentação de um metateatro, Aristófanes propõe que o público pensasse na própria estrutura de uma comédia ao criticar maneiras costumeiras que os comediógrafos usavam para fazer rir. Dessa forma, ele consegue propor o diálogo de posições políticas a partir do discurso também estético de poetas trágicos dentro da trama da peça. A polissemia da obra As rãs - ou, em outras palavras, sua inovação, fundamenta-se então na construção estética cômica de uma agón poética trágica, posicionada não pelas peças da tragédia grega, mas pelo discurso dos próprios tragediógrafos como personagens dessa competição, mesmo após suas mortes.

Além dessa concepção cômica, Aristófanes situa um lado jocoso do próprio deus Dioniso. A representação dionisíaca em As rãs traduz, por trás do ridículo, uma perspectiva do caos que Atenas enfrentava em 405 a.C. O regresso de Dioniso do Hades, ao final da peça, reflete esse ressurgimento da ordem que não deveria ter acabado. As vestes femininas de Dioniso, vinculadas à linguagem satírica, permeiam sua caracterização cômica, sobretudo ao início da obra, favorecendo ainda mais a tentativa de busca de identidade dionisíaca em meio aos conflitos de personagem, principalmente com os diálogos travados em sua conversa conflituosa com o escravo Xântias. Ao longo da peça, Aristófanes apresenta a fala do corifeu - aquele responsável por transmitir os acontecimentos à plateia e que, na obra, apresenta o Hades e o coro que recepciona os mortos em sua entrada, feito por aqueles que se iniciaram nos mistérios de Elêusis:

CORIFEU

É justo que o divino coro aconselhe e ensine o que é útil para a cidade. Portanto, em primeiro lugar, parece-nos bem tornar os cidadãos iguais e suprimir os seus medos. E se alguém errou, enganado pelas habilidades de Frínico, eu digo que deve ser possível aos que então cometeram um deslize ficarem libertos da culpa inicial, depois de exposta a sua razão. Afirmo seguidamente que ninguém deve viver privado de direitos na cidade. (...) E deixando a cólera, ó varões prudentíssimos por natureza, tornemos voluntariamente parentes todos os homens, iguais em direitos e concidadãos, quantos combaterem no mar ao nosso lado. E se a este propósito nos enchermos de embófia e soberba, e isto com a cidade nos redemoinhos das ondas, um dia, mais tarde, não daremos de novo uma impressão de sensatez (ARISTÓFANES, Bátrachoi, v. 686-705)21 21 Todas as citações da obra As rãs foram retiradas da tradução de Américo da Costa Ramalho. .

Nessa parte, Aristófanes expõe o fundamento do coro, que é sério como o corifeu na peça: é ele quem fala o que se deve saber e fazer na cidade. Frínico, um dos líderes do movimento oligárquico de 411 a.C., é apontado como um enganador da população. No que concerne a Frínico, Tucídides o definiria como o principal opositor às ideias de Alcibíades em 415 a.C., quando este tentava retornar a Atenas após as paródias eleusinas de que foi acusado (THUCYDIDES, VIII, 48). Além dessa perspectiva sobre Frínico, Aristófanes vincula a ideia de cidadania e direitos iguais diretamente aos participantes dos conflitos do Peloponeso, conectando valores políticos à guerra (perspectiva presente no Período Clássico), atrelando essa visão política de guerra com honestidade e humildade moral:

CORIFEU

Muitas vezes nos pareceu que esta cidade se conduz com os cidadãos honestos, como a moeda antiga em relação à nova moeda. Com efeito, das antigas, que não são adulteradas, mas as mais belas de todas as moedas, e as únicas bem cunhadas e bem soantes em curso entre os gregos e os bárbaros por toda a parte, não usamos, como parece que devia ser, mas fazemos uso destas más, de cobre barato, cunhadas de ontem e anteontem, com a pior das cunhagens. Assim, aos cidadãos, que nós sabemos que são bem nascidos e prudentes, homens não só justos mas pessoas de bem, educados nos ginásios, nos coros e na música, nós afastamo-los, e fazemos uso para tudo dos de cobre, estrangeiros, ruivos, maus e de má gente, os últimos chegados, de quem a cidade anteriormente se não serviria com facilidade, por ventura, nem como vítimas expiatórias. Agora, ao menos, ó insensatos, mudai de hábitos, selecionai de novo os selecionáveis. E se fordes bem sucedidos, a glória é vossa. No caso de insucesso, se sofrerdes algum mal, dareis aos sábios a impressão de vos terdes enforcado de boa árvore (ARISTÓFANES, Bátrachoi, v. 718-737).

A partir da fala do corifeu, há uma clara defesa e posicionamento político de Aristófanes em prol dos aristocratas no poder. Trata-se de um forte indício de um grupo de aristocratas financiando a produção de As rãs:

XÂNTIAS

(...) explica-me o que é este barulho lá dentro, os gritos e os insultos!

CRIADO

É de Ésquilo e de Eurípides. (...) Uma questão, uma grande questão está em movimento entre os mortos e absolutamente uma enorme revolução! (...) Há aqui uma lei estabelecida a respeito das artes, de todas as que são grandes e nobres, de que o melhor de entre os seus colegas de arte recebe a alimentação do Pritaneu e uma cadeira de honra ao lado de Plutão (ARISTÓFANES, Bátrachoi, v. 756-764).

O criado de Plutão é o personagem que assinala o vínculo construído pelo autor da peça entre a briga de Eurípides e Ésquilo - pela honra poética ao lado do responsável pelo mundo dos mortos - e uma provável revolução, já apontando Eurípides como revolucionário, visto que o trono era de Ésquilo. É possível observar um paralelo com o processo de movimento oligárquico desde 411 a.C. Além disso, o inferno aristofânico possui características da conduta burocrática ateniense, como o estabelecimento do Pritaneu - momento em que alguns cidadãos eram alimentados e homenageados como beneméritos da cidade. Logo, a peça se desenrola para a disputa poética entre Eurípides e Ésquilo.

Aristófanes situa o posicionamento poético de Eurípides quando este critica a visão tradicional de Ésquilo em sua arte; primeiramente, ao remeter-se aos personagens homéricos e velar seus rostos, deixando-os calados até o meio da peça, além de supervalorizar o coro e empregar um texto muito erudito para o público (ARISTÓFANES, Bátrachoi, v. 908-915 / 924-927). O autor faz um reconhecimento à figura de Ésquilo, que é situado dentro da valorização da coragem, da pompa e do vínculo da cidadania com a guerra em suas obras; tais questões morais são tradicionais da Atenas Clássica.

Em contrapartida, por intermédio da fala de Ésquilo, Eurípides é retratado como um mal exemplo para a cidadania ateniense. Ele não foi uma boa referência para o imposto dos navios de guerra e para a obediência à hierarquia social (fator importantíssimo para os valores aristocráticos). Além disso, Eurípedes teria suscitado enganadores à cidade (Bátrachoi, v. 1053-1054 / 1059-1067 / 1071-1086). A partir de ambas as criticidades dos poetas, Dioniso apresenta, então, sua dúvida e seu objetivo no Hades:

DIONISO

Eu desci, em busca de um poeta. (...) Para que a cidade se salve e celebre seus coros. Por isso, aquele dos dois que aconselhar à cidade uma medida útil, esse penso levá-lo comigo. Para começar, então que opinião tem cada um de vós a respeito de Alcibíades? Porque a cidade tem um parto difícil (ARISTÓFANES, Bátrachoi, v. 1418-1423).

Com a fala de Dioniso, Aristófanes atrela, de maneira definitiva, o posicionamento poético com o posicionamento político. Essa vinculação definirá os rumos da peça. Assim, seguem as respostas dos poetas interrogados:

EURÍPIDES

Detesto o cidadão que se mostra lento em ajudar a pátria, mas muito pronto a fazer-lhe grande mal, engenhoso para si próprio, mas sem soluções para a cidade.

(...)

ÉSQUILO

Não se deve alimentar na cidade um filhote de leão. E sobretudo não alimentar um leão na cidade, porque se alguém o criar, tem que sujeitar-se às suas maneiras.

(...)

EURÍPIDES

Se dos cidadãos em que agora confiamos, passarmos a desconfiar, e daqueles que não usamos, passarmos a usar, salvar-nos-emos. Se agora, de fato, somos infelizes, com os meios atuais, como é que, fazendo o contrário, não nos salvaremos?

(...)

ÉSQUILO

Ora diz-me já, em primeiro lugar: de quais se serve a cidade? Por ventura dos bons?

DIONISO

De quem? Ela odeia de morte os bons.

ÉSQUILO

Deleita-se com os maus?

DIONISO

Não ela, certamente que não, mas é forçada a empregá-los.

ÉSQUILO

Como é que então, poderá alguém salvar uma cidade a quem não convêm nem o manto luxuoso nem a pele de bode? (...) Que eles considerem como sua a terra dos inimigos, e a sua como a dos inimigos, e como recurso a esquadra, e como dificuldade os seus recursos (ARISTÓFANES, Bátrachoi, v. 1427-1431b / 1447-1450 / 1453-1465).

Alcibíades se situa como a figura aristocrática para a qual Aristófanes aponta, inicialmente, uma dúvida. Apesar de sua origem nobre e da força de sua liderança política, ele resolveu questões por interesse próprio ao se aliar à Pérsia em períodos logo anteriores ao final dos conflitos do Peloponeso. A própria presença de um coro no Hades, formado pelos mýstai ou iniciados nos Mistérios da deusa Deméter em Elêusis (RAMALHO, 2008RAMALHO, A. da C. Introdução / Argumento I. In: ARISTÓFANES. As rãs. Tradução de Américo da Costa Ramalho. Coimbra: Edições 70, 2008, p.11-19; 25-26., p.13; 26), vem traduzir a desconfiança inicial do poeta na figura de Alcibíades - um dos participantes nas paródias sacrílegas de mutilação das cabeças de Hermes em 415 a.C. Além disso, a dúvida de Aristófanes rebate no fato de Alcibíades também ter sido um dos condenados ao exílio por não haver recolhido os corpos dos combatentes após a Batalha de Arginusa em 406 a.C.

Desse modo, em As rãs, Eurípides é fundamentado como contra Alcibíades, ao passo que Ésquilo, apesar das desvantagens, é situado como a favor dele na arena política. Apesar do questionamento, Aristófanes procura, a partir das perguntas de Dioniso, fundamentar um olhar alternativo para a figura de Alcibíades. Seu intento com a mensagem da peça fica esclarecido quando Dioniso se decide por Ésquilo para retornar à vida:

PLUTÃO

(Voltando com Dioniso e Ésquilo) Boa viagem, pois, ó Ésquilo, vai e salva a nossa cidade com bons conselhos e educa os ignorantes, porque eles são muitos. E leva isto a Cleofonte (Dá-lhe uma espada) e isto aos provedores das finanças (Dá-lhe cordas). (...) E dize-lhes que venham depressa aqui ter comigo e que não se demorem. E se eles não vierem depressa, eu, por Apolo, marco-os com ferro em brasa e, presos pelos pés, enviá-los-ei na companhia de Adimanto, filho de Leucólofas, e despachá-los-ei em breve para debaixo da terra.

(...)

CORIFEU

(...) E que Cleofonte e qualquer outro destes que o queira, vá combater nos campos de sua pátria (ARISTÓFANES, Bátrachoi, v. 1500-1513).

A fala de Plutão ilustra o retorno de Dioniso junto a Ésquilo ao mundo dos vivos. Aristófanes o aponta, assim, como aconselhador e responsável a dar encargos tanto para os políticos considerados inimigos da paz com Esparta (como Cleofonte) quanto para aqueles considerados futuros traidores da esquadra de Atenas. Enfatiza novamente o valor que se dá ao pagamento das liturgias por parte dos provedores e situa essa falta como imperdoável. A união dos antigos aliados de Atenas na liderança da cidade-estado parece ser o foco da mensagem de Aristófanes nesta peça, sobretudo quando está em pauta a crise decorrente dos conflitos do Peloponeso e dos perigos do domínio persa.

A resposta de Ésquilo à duvida de Dioniso na peça é, desse modo, decisiva para compreender que a figura de Alcibíades, embora questionada, está posicionada favoravelmente na perspectiva de Aristófanes dentro da ebulição de movimentos políticos de finais do século V a.C. em Atenas. Embora tenha tentado barganhar uma inicial aliança com os persas em 415 a.C., Alcibíades promoveu mudanças de direção no posicionamento político, sobretudo pelas crises apresentadas ao longo das batalhas enfrentadas; sendo assim, na disputa pelo poder, a mensagem apresentada em As rãs permite avaliar que esse personagem histórico se situou com grupos políticos adeptos de uma tradicionalidade aristocrática ateniense em 405 a.C.

De maneira geral, Aristófanes explora as disputas entre os poetas não apenas em seus posicionamentos estéticos, mas também políticos - as hetaireías dos tragediógrafos, pois, segundo Eric Csapo: “(...) o poder e a repercussão desse debate, pelo menos para a plateia ateniense, foram bem além de valores meramente dramáticos. Ésquilo e Eurípides representavam posições, e não poetas” (CSAPO, 2008CSAPO, E. Calípides limpando o assoalho: os limites do realismo no estilo clássico de atuação e interpretação. In: EASTERLING, P. e HALL, E. (orgs.). Atores gregos e romanos. Tradução de Raul Fiker e Paulo Fernando Tadeu Ferreira. São Paulo: Odysseus Editora, 2008. p.145-169., p.150). Ainda segundo Csapo, sobre o papel dos poetas dentro da comédia: “Ésquilo representava a tradição e os valores de um passado heroico. Eurípides representava a modernidade dos valores (...)” (2008, p.151). De acordo com Foivos Karachalios: “(...) muitos estudiosos têm argumentado que ele [Eurípides] é apresentado como relacionado com os novos políticos mencionados na parábase de As rãs22 22 Parábase é o momento da comédia em que o coro se afasta da ação dramática para se dirigir ao público, com o intuito de abordar temas da realidade política e social. (KARACHALIOS, 2010KARACHALIOS, F. S. Epideixis Versus Elenchus: The Epirrhematic Agon and the Politics of Aristophane’s The Frogs. Princeton / Stanford Working Paper in Classics, Stanford University, n.1, p.1-15, fev. 2010. Disponível em: https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.431.8080&rep=rep1&type=pdf. Acesso em: 25 mai. 2016.
https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/do...
, p.10; tradução minha)23 23 “(...) many scholars have argued that he [Eurípides] is presented as related to the new politicians mentioned in the parabasis of the The The Frogs” (KARACHALIOS, 2010, p.10). Entre os estudiosos apontados por Karachalios, temos HUBBARD (1991, p.209-210); PADILLA (1992, p.378) e SLATER, (2002, p.193). .

Para compreender a posição de Ésquilo e Eurípides na obra aristofânica, é preciso analisá-los como elementos próprios de representação discursiva utilizados pelo comediógrafo. Em meio a um momento histórico de golpes oligárquicos, os “valores de um passado glorioso”, suscitados pelas falas de Ésquilo e depois confirmadas pelas falas de Dioniso e Plutão, devem ser fundamentados e impostos pelo locutor ao ouvinte, sem nenhuma perspectiva de reversibilidade na dinâmica de interlocução entre os tragediógrafos. A figura de Ésquilo traduz, portanto, a condução de um discurso autoritário. Na peça, a ideia de uma perspectiva de valores modernos e de novos políticos nas falas de Eurípides traduzem, ao contrário, um discurso polêmico - lançando mão do viés analítico de Eni Orlandi -, uma vez que traduz valores estranhos a Atenas. Segundo Orlandi:

Discurso polêmico: é aquele em que a reversibilidade se dá sob certas condições e em que o objeto do discurso está presente, mas sob perspectivas particularizantes dadas pelos participantes que procuram lhe dar uma direção, sendo que a polissemia é controlada. O exagero é a injúria.

Discurso autoritário: é aquele em que a reversibilidade tende a zero, estando o objeto do discurso oculto pelo dizer, havendo um agente exclusivo do discurso e a polissemia contida. O exagero é a ordem no sentido militar, isto é, o assujeitamento ao comando (ORLANDI, 1987ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. Campinas, SP: Pontes, 1987., p.154).

Se o objeto discursivo for identificado como os interesses políticos em jogo pelos agentes sociais em Atenas de fins do século V a.C., Eurípides o situa nas entrelinhas e na particularidade de sua fala, legitimando valores novos e diferentes dos tradicionais. No entanto, a pompa do discurso de Ésquilo parece ocultar os interesses políticos aristocráticos, pois eles se apresentam com roupagem apenas democrática, embora sejam impositivos na peça de Aristófanes. Na opção pelo discurso autoritário, representado pela escolha de Ésquilo como o melhor poeta no Hades, ao final da obra, sendo aquele que merecia voltar à vida, o comediógrafo acaba por se posicionar politicamente por uma perspectiva aristocrática quando aponta Dioniso, que questiona os poetas sobre o que eles consideravam a respeito do também aristocrático Alcibíades na política de Atenas. Segundo Keith Sidwell:

(...) As rãs, que reivindicaram uma postura democrática de Aristófanes - especialmente diante da tirania [a propósito do golpe de 411 a.C.] - dificilmente poderiam ter recebido uma repercussão antes do restabelecimento da democracia após a derrota dos trinta em 403 [a.C.]. Foi nessa época, e não antes, que os dêmoi teriam sido capazes de recordar que o serviço particular de Aristófanes em As rãs tinha sido, com sua inimitável sátira irônica e metacômica, atacar a ideia de que os não democratas mereciam ser reafirmados e as demonstrações de que suas atuais políticas funcionariam, se perseguidas com mais diligência e com liderança militar correta. (...) Sommerstein24 24 (SOMMERSTEIN, 1996, p.291-292). [um estudioso das comédias de Aristófanes] conclui: “A mensagem de Ésquilo é... a) que a estratégia ateniense atual é essencialmente correta, b) que deve, no entanto, ser prosseguida com mais simplicidade, e, acima de tudo, c) que o caminho para salvar Atenas é combatendo, não falando”. “(...)essa era (...) a estratégia defendida por Péricles nos primeiros anos da guerra” (THUCYDIDES, I, 141-143). “(...) Não são apenas plausíveis os dois conselhos dados por Ésquilo como estratégia política, mas também são plausíveis como conselhos de Aristófanes. Não é, então, absurdo ler essa cena final como simultaneamente sugerindo que a verdadeira posição política de Ésquilo, quando retornar dos mortos, será ficar lado a lado com seu ex-choregós, Péricles. Vale a pena refletir também que Xenofonte não teria sido a única pessoa a saber que o conselho de Alcibíades poderia ter salvado os atenienses em Egospótamos no verão de 405 [a.C.] (...), de modo que a visão de Péricles, articulada por Ésquilo, poderia ter resistido à derrota (...). E se Sommerstein está correto (...) ao atribuir as linhas [versos] 1445-7 a Eurípides, o objetivo (...) só pode ter sido enfatizar a perda do acordo trágico com a parábase e sua agenda antidemocrática (SIDWELL, 2009SIDWELL, K. Aristophanes the Democrat - The Politics of Satirical Comedy during the Peloponnesian War. Cambridge University Press, 2009., p.43; tradução minha)25 25 “(...) The Frogs which vindicated Aristophanes’ democratic stance - especially in the face of tyranny - could hardly have been given a reperformance before the re-establishment of the democracy after the defeat of the Thirty in 403. It was at that time, and not before, that the demos would have been able to recall that Aristophanes’ particular service in the The The Frogs had been to attack with his inimitable ironic and metacomic satire the whole idea that non-democrats deserved to be re-enfranchised and to reassure the demos that their present policies would work, if pursued with more diligence and the right military leadership. (...) Sommerstein has argued, to concentration of Athenian resources on the fleet, and mounting of attacks on enemy territory while regarding enemy control of Attica as understood and not challenging it. Since this pretty much represented current demos policy, Sommerstein concludes, ‘Aeschylus’ message is . . . (a) that the current Athenian strategy is essentially right, (b) that it must, however, be pursued with more singlemindedness, and, above all, (c) that the way to save Athens is by fighting, not by talking.’ (...) this is (...) the strategy advocated by Pericles in the early years of the war (Thuc. 1.141- 3). (...) Not only are both pieces of advice given by Aeschylus plausible as strategic policy, but they are also plausible as Aristophanic advice. It is not, then, absurd to read this final scene as simultaneously suggesting that Aeschylus’ true political position when he returns from the dead will be to stand side by side with his former choregos, Pericles. It is worth reflecting too that Xenophon will not have been the only person to have known that Alcibiades’ advice might have saved the Athenians from disaster at Aegospotamoi in the summer of 405 (...), so that the Periclean view articulated by Aeschylus might have stood the test of that defeat (...). If Sommerstein is correct (...) in assigning lines 1445-7 to Euripides, the purpose (...) can only have been to emphasise the losing tragedian’s agreement with the parabasis and its anti-democratic agenda” (SIDWELL, 2009, p.43).

Em sua obra Helênicas, Xenofonte aponta que Alcibíades teria aconselhado os combatentes de Atenas nesta última batalha dos conflitos do Peloponeso (Batalha de Egospótamos). Se os inimigos estavam em um porto, que os atenienses ancorassem no porto de Sesto - antiga cidade grega situada na margem do trecho estreito do Helesponto, na península da Trácia - para conseguirem o porto e a cidade, uma vez que assim conseguiriam tudo o que fosse necessário para lutar quando quisessem (XENOPHON, II. 1. 25-26XENOPHON. Hellenica. With an English translation by Carleton L. Brownson. Cambridge / London: Harvard University Press / William Heinemann Ltd, 1918. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0206. Acesso em: 03 de mar. 2016.
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text...
). A perspectiva de Sidwell, a propósito de Xenofonte, é que Alcibíades representaria justamente a função de salvador de Atenas com seu aconselhamento, que poderia ter feito a diferença nessa batalha enfrentada.

Aristófanes chega a apontar uma interessante fala de Eurípides: “Se dos cidadãos em que agora confiamos, passarmos a desconfiar, e daqueles que não usamos, passarmos a usar, salvar-nos-emos” (ARISTÓFANES, Bátrachoi, v. 1445-1447). Para Sidwell, essa fala representa o auge da obra, simbolizando aquilo que Dioniso procuraria como “acordo trágico” e, com isso, escolher o melhor poeta trágico que amparasse Atenas. Ao seguir a própria determinação da parábase pelo coro e corifeu, Dioniso não decidiria, então, pela figura de Eurípides. Os cidadãos em que este buscaria agora nova confiança evidenciariam, na peça, uma perspectiva antidemocrática, uma vez que Eurípides estaria a favor de novos políticos que se posicionaram em concordância com os golpes oligárquicos.

As palavras de Sidwell ilustram a construção desse autor na relação política entre Ésquilo e seu antigo e mais tradicional choregós Péricles, traduzindo a perspectiva do “passado glorioso” de Atenas com referências aos grandes nomes políticos que dele fizeram parte. Nesses termos, a partir da análise de discurso da obra, é possível suscitar a vinculação entre Ésquilo e Péricles tal qual o próprio poeta Aristófanes com seu provável choregós, Alcibíades, na obra As rãs e/ou com os integrantes de sua facção política no ano de 405 a.C. Em outras palavras, para Aristófanes, Alcibíades representava uma esperança para o alcance daquilo que Atenas simbolizava em seu passado quanto ao seu poderio antes da crise com o final dos conflitos do Peloponeso. A “postura democrática” de Aristófanes, apontada por Sidwell - postura essa aclamada com o posterior retorno democrático em 403 pelos dêmoi26 26 Dêmoi, plural de dêmos, são as subdivisões da Ática, que circundavam a região de Atenas. - foi, então, o resultado da ligação de interesses políticos daqueles que financiaram As rãs naquele momento histórico de sua produção: 405 a.C.

A partir de 411 a.C., Trasíbulo logrou o retorno de Alcibíades a Atenas (THUCYDIDES, VIII, 76). A proximidade com o general o levou a vitórias em posteriores campanhas militares atenienses. Com seu regresso à cidade-estado em meio à dissolução dos quatrocentos, Alcibíades defendia agora em seu discurso a ideia de demokratía27 27 Demokratía poderia simplesmente ser traduzida como “democracia” e ser pensada tradicionalmente como o sistema coletivo democrático em que dêmos significa “povo” e krátos, “poder”. No entanto, segundo Josiah Ober (2007, p.1-7), ao refletir sobre a realidade ateniense, a noção de krátos não aponta uma perspectiva de domínio coletivo enquanto controle efetivo do poder político, uma vez que esse termo simbolizaria a participação na política. Por isso, krátos é diferente de arché, por exemplo, pois esta última sim se relacionaria com a liderança e poder políticos - ideia pela qual Alcibíades buscava na prática. Se a sociedade, de maneira geral, não estava, então, efetivamente no controle do poder político, senão grupos de elite, isso descaracteriza a visão de democracia homogênea, tradicional e sem conflitos que, tradicionalmente, vincula-se aos estudos sobre Atenas. Controle político é diferente de participação na política e, ao desconstruir uma perspectiva ideal do grego antigo, é possível percebê-lo como agente histórico que disputa espaços sociais. - diferentemente de sua perspectiva inicial de tomada oligarca de Atenas, quando estava exilado e buscando alianças com a Pérsia. Com isso, Alcibíades mantinha a busca por disputa de poder e interesses mesmo sendo acusado em 406 a.C. pela negligência com os corpos dos combatentes mortos na Batalha da Arginusa (ARISTÓTELES, 34, 1-3).

A possibilidade de disputar pela facção popular, desde a dissolução dos quatrocentos (THUCYDIDES, VIII, 89), no momento em que os discursos passaram a ser de defesa de uma “coesão social” em nome do fortalecimento dos moldes sociopolíticos tradicionais atenienses, permitiu a Alcibíades - agora também em alianças com políticos como Trasíbulo - construir novas redes de facções e lugares políticos que suscitassem os mesmos interesses: apoiadores, inclusive, dentro das camadas mais baixas entre os cidadãos atenienses para criar bases de legitimidade.

Uma obra como As rãs estaria no momento histórico da busca de criação dessa legitimidade por parte da hetaireía pela qual Alcibíades se constituiu. Políticos como ele, em aliança com Trasíbulo, estariam interessados justamente na fundamentação de uma peça teatral como essa, em que era possível resgatar a confiança dos cidadãos não apenas de Atenas, mas de toda Ática, além daqueles com os quais a cidade-estado mantinha relações, sobretudo políticas. Dessa maneira, As rãs retratam a tentativa de sustentação e busca de retorno à ordem em meio à crise advinda com o final dos conflitos do Peloponeso. Essas questões permitem, por isso, ampliar as discussões de análise das peças teatrais para além da relevância do autor na criação da obra, suscitando a participação de todo um grupo interessado na mensagem artística a ser levada em forma de espetáculo a partir de seu financiamento e, posteriormente, do debate acerca das consequências sociopolíticas das apresentações teatrais nas assembleias e dos litígios entre oradores e demais cidadãos.

Considerações finais

De maneira geral, esta pesquisa dialoga com a perspectiva teórica do historiador Roger Chartier, ao suscitar a relação intrínseca entre discursos e práticas sociais em sua obra de maneira geral (CHARTIER, 2002CHARTIER, R. À beira da falésia - A História entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.). Essa aproximação auxilia um olhar sobre os textos, no qual podemos apreciar um conjunto de interesses sociopolíticos de determinados grupos da sociedade ateniense, os quais, a partir das práticas sociais nas assembleias e na produção dos festivais teatrais, traduziam seus pontos de vista em discursos artísticos. A arte assim pensada manifesta posicionamentos de ordem cultural e política. Nesse ponto, Eni Orlandi também dialoga com Chartier quando, ao construir a análise de discurso, procura examinar o “lugar de posição” dos autores dos textos (ORLANDI, 2001ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes Editores, 2001., p.49): um lugar que se conjuga com outras falas de autoridade de um determinado momento histórico, falas estas que auxiliam na legitimação de ideologias e de pensamentos sociais.

Sendo assim, Chartier nos convida a superar a oposição clássica entre “subjetividade individual” e “determinações coletivas” (CHARTIER, 2002CHARTIER, R. À beira da falésia - A História entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002., p.7), uma vez que é pela articulação entre as propriedades sociais objetivas e a sua interiorização que se conjugam os pensamentos e ações. Para o teatro ateniense, essa conjunção constitui, por um lado, as análises dos ideais individuais de um comediógrafo da Antiguidade, que pensa sua sociedade atrelada estrategicamente a um posicionamento cultural e político específicos. Por outro lado, reflete determinações da prática social coletiva de grupos políticos, agindo amplamente dentro das produções teatrais e financiando os coros e os espetáculos - os cidadãos interessados em realizar pagamentos (misthós) para as cidades-estado com o intento de conseguir status nos festivais e vitórias decisivas nas assembleias públicas. O teatro assim pensado torna-se um espaço necessário de atuação desses líderes dentro de suas estratégias políticas, sendo, portanto, uma importante instituição na Antiguidade grega.

  • 2
    O termo bátrachoi, que significa “rãs” em grego clássico, fundamenta-se de uma imitação do som que fazem esses animais. Na obra de Aristófanes, o título da comédia vem a fazer uma sátira ao som que produzem os próprios gregos ao falar. Para o comediógrafo, esse som seria como aquele feito pelas rãs.
  • 3
    O termo hetaireía deriva de hetairiké - “camaradagem guerreira”. Durante o período arcaico, esse tipo de amizade passará do âmbito guerreiro para o político, assumindo assim as ideias de solidariedade e de ações combinadas com o intuito de defender posições particulares de poder. Uma hetaireía pode passar de um simples grupo político a uma synomosía, ou seja, a um grupo de descontentes que confabula contra o regime vigente em sua pólis” (LIMA, 2001LIMA, A. C. C. Cultura popular em Corinto: Kômoi nos VII-VI Séculos a.C. 2001. 208 f. Tese (Doutorado em História) - Programa de PósGraduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001., p.22-23).
  • 4
    As liturgias teatrais eram designadas como choregía.
  • 5
    Entre esses estudos, podemos destacar: Mito e tragédia na Grécia Antiga (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1977VERNANT, J.-P.; VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977.); Cidadão na Grécia Antiga (MOSSÉ, 1993MOSSÉ, C. O cidadão na Grécia antiga. Tradução de Rosa Carreira. Lisboa: Edições 70, 1993.); A tragédia grega (ROMILLY, 1998ROMILLY, J. de. A tragédia grega. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.).
  • 6
    Anualmente, a cidade-estado designava cidadãos para exercerem cargos públicos de financiamento das principais atividades através do pagamento das liturgíai, ou seja, do provento de liturgias: seja para o teatro - o sistema da choregía, do qual advém o termo “coro”, parte fundamental do teatro grego e, por isso o contribuidor se torna um choregos, ou choregoi, no plural -, seja para a guerra - a trierarchía, do qual advém o termo “trirremes”, as embarcações utilizadas pelos gregos da Antiguidade - ou para os esportes e a competição de atletas - a gymnasiarchía, conceito pelo qual é possível identificar o termo “ginásio”, por exemplo.
  • 7
    Essa inscrição epigráfica, também denominada de Fasti, era assim chamada por traduzir a lista cronológica dos registros, tanto dos participantes externos (os arconte-epônimos responsáveis pela organização geral do festival de cada época) quanto dos participantes internos das produções vitoriosas de cada ano no festival da Grande Dionísia. Ela consistia em onze itens assim dispostos para cada período, desde a primeira metade do século V: “(Item 1) o nome do arconte-epônimo; (Item 2) o nome da tribo que levou o prêmio dos garotos do ditirambo; (Item 3) o nome do choregós vitorioso dos garotos do ditirambo; (Item 4) o nome da tribo que levou o prêmio dos homens do ditirambo; (Item 5) o nome do choregós vitorioso dos homens do ditirambo; (Item 6) o notável komoidón (dos poetas cômicos); (Item 7) o nome do choregós cômico vitorioso; (Item 8) o nome do didáskalos (poeta) [que também poderia ser o diretor] cômico vitorioso; (Item 9) o notável tragoidón (dos poetas trágicos); (Item 10) o nome do choregós trágico vitorioso; e (Item 11) o nome do didáskalos (poeta) [que também poderia ser o diretor] trágico vitorioso.” (MILLIS; OLSON, 2012MILLIS, B. W.; OLSON, S. D. Inscriptional Records for the Dramatic Festivals in Athens - IG II2 2318-2325 and Related Texts. Leiden/Boston: Brill, 2012., p.6); tradução minha). No inglês: “(Item 1) the eponymous archon’s name; (Item 2) the name of the tribe that took the prize in the boys’ dithyramb; (Item 3) the name of the victorious chorêgos in the boys’ dithyramb; (Item 4) the name of the tribe that took the prize in the men’s dithyramb; (Item 5) the name of the victorious chorêgos in the men’s dithyramb; (Item 6) the notice ΚΩΜΩΙ∆ΩΝ (“of the comic poets”); (Item 7) the name of the victorious comic chorêgos; (Item 8) the name of the victorious comic didaskalos (poet); (Item 9) the notice ΤΡΑΓΩΙ∆ΩΝ (“of the tragic poets”); (Item 10) the name of the victorious tragic chorêgos; and (Item 11) the name of the victorious tragic didaskalos (poet)” (MILLIS; OLSON, 2012MILLIS, B. W.; OLSON, S. D. Inscriptional Records for the Dramatic Festivals in Athens - IG II2 2318-2325 and Related Texts. Leiden/Boston: Brill, 2012., p.6).
  • 8
    Tradução minha. No inglês: “community's sense of obligation or gratitude towards individual contributors” (MAKRES, 2014MAKRES, A. Dionysiac Festivals in Athens and the Financing of Comic Performances. In: FONTAINE, M.; SCAFURO, A. C. (Orgs.). The Oxford Handbook of Greek and Roman Comedy. New York: Oxford University Press, 2014. p.70-94., p.72).
  • 9
    Na realidade, o termo didáskalos significa “mestre”, “aquele que transmite conhecimento”. Pode ser designado para professores ou, no caso do teatro, para os poetas, que transmitiam conhecimento com suas obras, ou diretores teatrais, que eram os responsáveis por conduzir os demais envolvidos na produção de um espetáculo.
  • 10
    Apesar de Peter Wilson afirmar que cabia aos choregoí apenas a viabilização de um “assistente de direção” (hypodidáskalos) (WILSON, 2000WILSON, P. The Athenian Institution of the Khoregia - the Chorus, the City and the Stage. Australia: Cambridge University Press, 2000., p.83), é possível constatar a possibilidade de contratação de diretores a partir de um discurso de Demóstenes, intitulado Contra Mídias, no qual aponta-se a presença de um indivíduo chamado Sânio, que teria sido contratado como didáskalos por um “poderoso” choregós, denominado Teozótides (DEMOSTHENES, XXI, 58-59).
  • 11
    Tanto philotimía quanto philonikía têm o radical philo, que significa “amor por algo” ou “desejar muito”. Philotimía seria o amor pela honra (sendo honra timé em grego clássico) e philonikía, o amor em concorrer e conseguir a vitória (sendo vitória níke).
  • 12
    Agónes, plural do termo agón, significa “disputas, conflitos, competições”.
  • 13
    Andócides era logógrafo, não um orador profissional. “(...) participou durante os conflitos do Peloponeso da mutilação das hérmai [as colunas que continham cabeças de pedra do deus Hermes e eram espalhadas pelas regiões da Ática] na véspera da partida da expedição ateniense contra Sicília em 415 a. C. Embora ele salvasse sua vida tornando-se informante, foi condenado à perda parcial dos direitos civis e forçado a deixar Atenas. (...) se envolveu em atividades comerciais e retornou a Atenas no âmbito da anistia geral que se seguiu à restauração da democracia (403 a.C.), chegando até a preencher alguns importantes cargos. Em 391 a. C., ele foi um dos embaixadores enviados para Esparta para discutir termos de paz, mas as negociações falharam. Oligárquico em suas simpatias, ele ofendeu seu próprio grupo e gerou desconfiança entre os democratas” (WEISS, 2012WEISS, S. The Ten Attic Orators. Barnes & Noble, 2012. Disponível em: http://ww25.rhetinfo.com/uploads/7/0/4/3/7043482/ten_attic_orators.pdf?subid1=20220906-0806-174b-8f6a-1e011298a289. Acesso em: 23 set. 2015.
    http://ww25.rhetinfo.com/uploads/7/0/4/3...
    , p.5; tradução minha). No inglês: “(...) he participated during the Peloponnesian conflicts in the mutilation of the hérmai on the eve of the departure of the Athenian expedition against Sicily in 415 BC. Although he saved his life by becoming an informant, he was sentenced to partial loss of civil rights and forced to leave Athens. (...) he became involved in commercial activities and returned to Athens under the general amnesty that followed the restoration of democracy (403 BC), even filling some important posts. In 391 BC, he was one of the ambassadors sent to Sparta to discuss peace terms, but the negotiations failed. Oligarchic in his sympathies, he offended his own group and generated distrust among Democrats” (WEISS, 2012WEISS, S. The Ten Attic Orators. Barnes & Noble, 2012. Disponível em: http://ww25.rhetinfo.com/uploads/7/0/4/3/7043482/ten_attic_orators.pdf?subid1=20220906-0806-174b-8f6a-1e011298a289. Acesso em: 23 set. 2015.
    http://ww25.rhetinfo.com/uploads/7/0/4/3...
    , p.5).
  • 14
    Tradução minha da versão em inglês de K. J. Maidment da biblioteca digital de documentações gregas e romanas da Antiguidade: Perseus Digital Library. A biblioteca conta com fontes em grego, latim e inglês. “Then again, remember Taureas who competed against Alcibiades as Choregus of a chorus of boys. The law allows the ejection of any member whatsoever of a competing chorus who is not of Athenian birth, and it is forbidden to resist any attempt at such ejection. Yet in your presence, in the presence of the other Greeks who were looking on, and before all the magistrates in Athens, Alcibiades drove off Taureas with his fists. The spectators showed their sympathy with Taureas and their hatred of Alcibiades by applauding the one chorus and refusing to listen to the other at all. Yet Taureas was none the better off for that. Partly from fear, partly from subservience, the judges pronounced Alcibiades the victor, treating him as more important than their oath. And it seems to me only natural that the judges should thus seek favour with Alcibiades, when they could see that Taureas, who had spent so vast a sum, was being subjected to insults, while his rival, who showed such contempt for the law, was all-powerful. The blame lies with you. You refuse to punish insolence (...)” (ANDOCIDES, IV, 20-21).
  • 15
    Antídosis significa “troca” em grego clássico. Para o pagamento de uma liturgia, poderia ser concedida a troca de bens com um cidadão mais rico ou ele poderia arcar com os encargos financeiros.
  • 16
    Segundo Aristóteles: “Então, o arconte procede às trocas de fortuna [antídosis] e encaminha as suas alegações: caso alguém declare ter desempenhado essa liturgia anteriormente, ou estar isento por ter desempenhado uma outra liturgia e não ter ainda vencido seu prazo de isenção, ou não ter ainda a idade mínima necessária (com efeito, o corego, para o coro das crianças, deve ter mais de quarenta anos).” (ARISTÓTELES, Constituição de Atenas, 56. 3). Sobre o tema, também é possível conferir: (PICKARD-CAMBRIDGE, 1953PICKARD-CAMBRIDGE, A. The Dramatic Festivals of Athens. London: Oxford University Press, 1953., p.87); (CSAPO; SLATER, 2001CSAPO, E.; SLATER, W. J. The Context of Ancient Drama. Michigan: The University of Michigan Press, 2001., p.140); (MOSSÉ, 2004MOSSÉ, C. Dicionário da civilização grega. Tradução de Carlos Ramalhete e André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004., p.192).
  • 17
    “(...) to various elite status groups but never as belonging to an organized group of politicians that advocated special interests” (OBER, 1989OBER, J. Mass and Elite in Democratic Athens: Rethoric, Ideology and the Power of the People. New Jersey/Chichester: Princeton University Press, 1989., p.123).
  • 18
    “Os sicofantas eram acusadores quase profissionais. A justiça ateniense, com efeito, ignorava o ministério público, que, em nome da cidade-estado, moveria processos contra os que atentassem à segurança do Estado. Sendo assim, a defesa dos interesses públicos era deixada a qualquer cidadão e todos tinham o direito de mover uma ação contra quem julgassem atentar contra os interesses da cidade. (...) em Atenas, alguns indivíduos teriam feito desse tipo de acusação uma especialidade, esperando lucrar com isso, seja ao receber parte da multa que o acusado fosse condenado a pagar, (...) seja fazendo-se comprar pelo acusado para retirar a queixa, seja ainda servindo aos interesses de um político influente ao agir por sua conta em troca de um salário. (...) Os sicofantas eram seguramente um dos pontos negros da democracia ateniense. Assim, a cidade previra disposições próprias para limitar os efeitos de uma prática ligada à própria organização judiciária. O acusador que renunciasse sem razão a sua ação, portanto, podia ser multado, assim como quem não obtivesse um quinto de votos favoráveis por ocasião de um processo” (MOSSÉ, 2004MOSSÉ, C. Dicionário da civilização grega. Tradução de Carlos Ramalhete e André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004., p.256-257).
  • 19
    Os conceitos de Eni Orlandi, aqui trabalhados, aparecerão demarcados em itálico.
  • 20
    Tucídides descreve a guerra do Peloponeso na contemporaneidade dos acontecimentos, compreendendo o sentido dos conflitos com o olhar de soldado (hoplita) ateniense sob um viés político - a maneira como enxergava o próprio sentido histórico. A grandeza descrita por ele nos episódios vem a vangloriar a perspectiva ateniense da guerra, deslegitimando, em sua retórica, narrativas anteriores como as de Homero e de Heródoto (VARGAS, 2017VARGAS, A. Z. Uma ambiguidade retórica tucididiana. In: SILVA. G. J. da; SILVA, M. A. de O. (Orgs.). A ideia de história na antiguidade clássica. São Paulo: Alameda, 2017. p.61-89., p.61-89).
  • 21
    Todas as citações da obra As rãs foram retiradas da tradução de Américo da Costa Ramalho.
  • 22
    Parábase é o momento da comédia em que o coro se afasta da ação dramática para se dirigir ao público, com o intuito de abordar temas da realidade política e social.
  • 23
    “(...) many scholars have argued that he [Eurípides] is presented as related to the new politicians mentioned in the parabasis of the The The Frogs” (KARACHALIOS, 2010KARACHALIOS, F. S. Epideixis Versus Elenchus: The Epirrhematic Agon and the Politics of Aristophane’s The Frogs. Princeton / Stanford Working Paper in Classics, Stanford University, n.1, p.1-15, fev. 2010. Disponível em: https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.431.8080&rep=rep1&type=pdf. Acesso em: 25 mai. 2016.
    https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/do...
    , p.10). Entre os estudiosos apontados por Karachalios, temos HUBBARD (1991HUBBARD, T. K. The Mask of Comedy: Aristophanes and the Intertextual Parabasis. Cornell University Press: Ithaca and London, 1991., p.209-210); PADILLA (1992PADILLA, M. The Heraclean Dionysus: Theatrical and Social Renewal in Aristophanes’ The Frogs. Arethusa. n. 25, 1992, p.359-384., p.378) e SLATER, (2002SLATER, N. W. Spectator Politics - Metatheatre and Performance in Aristophanes. University of Pennsylvania Press: Philadelphia, 2002., p.193).
  • 24
    (SOMMERSTEIN, 1996SOMMERSTEIN, H. A. The Comedies of Aristophanes - The Frogs. Warminster: Aris & Phillips, 1996., p.291-292).
  • 25
    “(...) The Frogs which vindicated Aristophanes’ democratic stance - especially in the face of tyranny - could hardly have been given a reperformance before the re-establishment of the democracy after the defeat of the Thirty in 403. It was at that time, and not before, that the demos would have been able to recall that Aristophanes’ particular service in the The The Frogs had been to attack with his inimitable ironic and metacomic satire the whole idea that non-democrats deserved to be re-enfranchised and to reassure the demos that their present policies would work, if pursued with more diligence and the right military leadership. (...) Sommerstein has argued, to concentration of Athenian resources on the fleet, and mounting of attacks on enemy territory while regarding enemy control of Attica as understood and not challenging it. Since this pretty much represented current demos policy, Sommerstein concludes, ‘Aeschylus’ message is . . . (a) that the current Athenian strategy is essentially right, (b) that it must, however, be pursued with more singlemindedness, and, above all, (c) that the way to save Athens is by fighting, not by talking.’ (...) this is (...) the strategy advocated by Pericles in the early years of the war (Thuc. 1.141- 3). (...) Not only are both pieces of advice given by Aeschylus plausible as strategic policy, but they are also plausible as Aristophanic advice. It is not, then, absurd to read this final scene as simultaneously suggesting that Aeschylus’ true political position when he returns from the dead will be to stand side by side with his former choregos, Pericles. It is worth reflecting too that Xenophon will not have been the only person to have known that Alcibiades’ advice might have saved the Athenians from disaster at Aegospotamoi in the summer of 405 (...), so that the Periclean view articulated by Aeschylus might have stood the test of that defeat (...). If Sommerstein is correct (...) in assigning lines 1445-7 to Euripides, the purpose (...) can only have been to emphasise the losing tragedian’s agreement with the parabasis and its anti-democratic agenda” (SIDWELL, 2009SIDWELL, K. Aristophanes the Democrat - The Politics of Satirical Comedy during the Peloponnesian War. Cambridge University Press, 2009., p.43).
  • 26
    Dêmoi, plural de dêmos, são as subdivisões da Ática, que circundavam a região de Atenas.
  • 27
    Demokratía poderia simplesmente ser traduzida como “democracia” e ser pensada tradicionalmente como o sistema coletivo democrático em que dêmos significa “povo” e krátos, “poder”. No entanto, segundo Josiah Ober (2007OBER, J. The Original Meaning of “Democracy”. Capacity to Do Things, not Majority Rules. Princeton / Stanford Working Papers in Classics. Stanford University, September, p.1-7, 2007., p.1-7), ao refletir sobre a realidade ateniense, a noção de krátos não aponta uma perspectiva de domínio coletivo enquanto controle efetivo do poder político, uma vez que esse termo simbolizaria a participação na política. Por isso, krátos é diferente de arché, por exemplo, pois esta última sim se relacionaria com a liderança e poder políticos - ideia pela qual Alcibíades buscava na prática. Se a sociedade, de maneira geral, não estava, então, efetivamente no controle do poder político, senão grupos de elite, isso descaracteriza a visão de democracia homogênea, tradicional e sem conflitos que, tradicionalmente, vincula-se aos estudos sobre Atenas. Controle político é diferente de participação na política e, ao desconstruir uma perspectiva ideal do grego antigo, é possível percebê-lo como agente histórico que disputa espaços sociais.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido pela Bakhtinina. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
  • Parecer I

    O artigo “O teatro ateniense como cenário para as facções políticas: o sistema da choregia e a comédia As Rãs de Aristófanes (Bátrachoi - 405 AEC)”, submetido a avaliação para a revista Bakhtiniana, apresenta uma discussão centrada no produtivo relacionamento entre a obra de Aristófanes e seu contexto histórico, marcado por disputas políticas que vão alterar profunda e decisivamente a sociedade grega.
    O trabalho se adequa ao tema proposto. Entretanto, é importante perceber que, embora se justifique no campo da análise linguístico-discursiva a partir de dois parágrafos argumentativos em torno da teoria de Orlandi e Chartier, o texto quase não empreende uma análise de fato linguística, a não ser numa acepção muito ampla do termo.
    O objetivo do trabalho é satisfatoriamente cumprido, se esse for o entendimento da relevância e o posicionamento político da comédia “As rãs” no seu contexto de representação. Entretanto, no resumo, o autor afirma que seu objetivo é “fundamentar uma avaliação sobre o final do século V em Atenas pelas lentes do teatro grego”. Se este for de fato o objetivo, falta um olhar mais dilatado sobre o teatro grego, que abarque pelo menos as tragédias dos três grandes tragediógrafos. Mas o texto está bem ajustado em torno de um objetivo “menor”, no sentido de mais recortado, o que, portanto, demanda o ajuste do resumo à realidade do texto.
    O autor se relaciona bem com a bibliografia levantada, ponderando e questionando um pensamento cristalizado por estudiosos de uma geração anterior, sem, no entanto, partir deles e de seus pontos fortes. Realiza, portanto, a atualização do conhecimento científico, que é, ao fim, o objetivo de toda pesquisa.
    Contudo, a percepção quase intuitiva dos estudos da linguagem demonstrada no artigo faz com que sua contribuição para os estudos discursivos não seja tão contundente como poderia. Afirmo isso porque é possível perceber, nas entrelinhas das análises, uma possibilidade de aprofundamento que não chega de fato a se concretizar. É, portanto, um bom trabalho do campo dos estudos clássicos, mas que não atinge notas de primazia nos estudos da linguagem.
    Minha insistência quanto a isso se deve, principalmente, ao escopo da revista - mais do que à coerência interna do texto. Por se propor a publicar numa “revista de estudos do discurso”, algumas alterações e acréscimos urgem ser feitos no texto, para que ele atinja o leitor presumido dessa publicação. De maneira geral, o que precisa ser revisada é a interlocução com o leitor - no texto, presume-se um leitor mais especializado na área de estudos clássicos, detentor de um outro conjunto de conhecimentos que não transita com tanta facilidade fora da área.
    Entre as possibilidades de alterações para contemplar esse leitor, sugiro o acréscimo de um parágrafo (ou um quadro) mais esquemático acerca da diacronia dos acontecimentos que serão objeto de análise no texto: representação da peça, golpe oligárquico, bloqueio espartano, morte dos poetas etc. Todas estas informações estão espalhadas ao longo do texto, mas um leitor menos familiarizado com este período histórico grego terá dificuldade em acompanhar o raciocínio do autor, que demanda uma relação temporal entre os acontecimentos/discursos analisados.
    Também para adequação ao ambiente em que pretende publicar, os conceitos gregos precisam ser explicados - se não no corpo do texto, para não perder o fluxo do pensamento, ao menos em notas de rodapé. Por exemplo, não é explicado ao leitor o adequado uso semântico do termo “choregia”, que faz parte do título do artigo. Atenção, pois não estou falando de uma explicação epistemológica para um grupo de leitores superespecializados, mas para beletristas em geral, interessados nos estudos clássicos, mas não pertencentes a eles.
    Sob a mesma perspectiva, sugiro também a substituição no título do termo “sistema da choregia” por alternativa que se comunique melhor com o leitor da Bakhtiniana em geral. Algo como “disputa de poder na comédia...” ou alguma expressão que de fato comunique. E claro, a supressão do nome latino da peça, desnecessário no ambiente dessa revista e supérfluo para a análise empreendida no artigo. Quanto a isso, pode-se argumentar que há termos super específicos nos títulos de determinados artigos, ao que eu respondo que alguns desses termos são específicos dos estudos da linguagem (e por isso aceitáveis), mas que também há alguns que podem ter “passado”, e por isso acabam prejudicando a recepção do artigo e do número da revista (o que não queremos para o seu artigo, que é bom!).
    A revisão que deve ser feita para contemplar o leitor presumido do periódico científico, entretanto, não se limita às três propostas de alteração/acréscimo apresentadas acima. É necessária uma leitura “pensando fora da sua caixinha de pesquisa” para ajustar seu discurso. Ao final, esse é um excelente exercício técnico-retórico, que superespecialistas acabam tendo que fazer quase que toda vez que vão falar em público.
    Fiz alguns apontamentos no arquivo, que envio em anexo a esta avaliação, mas que tampouco esses sumarizam as alterações que devem ser realizadas no caminho de clareza e adequação da linguagem.
    Por fim, acredito que este trabalho seja uma importante contribuição para os estudos clássicos e que seu ponto de contato com os estudos da linguagem, embora pudesse ser mais aprofundado, dá dicas aos pesquisadores da área sobre questões relevantes do estudo da Antiguidade pelo viés discursivo. APROVADO COM RESTRIÇÕES
    Carlos Gontijo Rosa - Pós-doutorando - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC-SP, São Paulo, São Paulo, Brasil; https://orcid.org/0000-0001-6648-902X; carlosgontijo@gmail.com
  • Parecer III

    Em relação ao conteúdo, acredito que o texto ganhou muito em fluidez e acessibilidade a partir dos ajustes promovidos pela autora. Ela levou em consideração a minha maior preocupação, que era a interlocução com o leitor presumido da revista.
    Há, entretanto, uma questão que poderia ser chamada estilística, se não interviesse no entendimento do texto, que são as estruturas gramaticais utilizadas. Falo principal, mas não exclusivamente, do uso de vírgulas e regências. Infelizmente não pude fazer apontamentos mais precisos no texto por uma enfermidade que me acomete nas últimas duas semanas, mas o texto precisa passar por uma revisão. O uso de vírgulas precisa de uma atenção redobrada, especialmente em orações adjetivas. O que mais percebo é uma subutilização do recurso, com falta de vírgulas onde deveriam estar, mas também por vezes a vírgula substitui o que deveria ser ponto ou ponto-e-vírgula. No caso da regência, o uso da crase precisa ser revisto em diversas situações, mas as questões não se resumem à crase: o uso de preposições, em alguns casos, também se mostra inadequado.
    Nesse sentido, acredito que o texto ainda precise passar por uma revisão da autora antes de ser publicado, pois tais intercorrências geram ambiguidades que não são facilmente reversíveis por um revisor da revista. Minha sugestão, aliás, seria que a autora pedisse que outra pessoa lesse seu texto, pois por vezes estamos tão acostumados ao que escrevemos que não enxergamos mais essas questões.
    Também o uso do nome grego da peça não me parece adequado para o corpo do texto ou para as referências de citações diretas. Sugiro a troca de todas as ocorrências pelo nome em português da peça, “As rãs”. Lembrando, claro, que as normas da revista pedem que apenas a primeira letra do título e os substantivos próprios sejam grafados em maiúsculas.
    Há também a utilização, seja em indicações de nota de rodapé, seja no próprio corpo do texto, dos tradutores de determinados textos - não apenas de textos gregos e latinos, mas também de textos modernos. Não vejo a relevância da presença de tais informações, que rigorosamente não alteram o sentido do que está sendo argumentado. Basta que a indicação dos tradutores esteja nas Referências.
    Por fim, além da revisão gramatical, a autora deve atentar para as normas de formatação da revista, as quais não são rigorosamente seguidas pelo texto, seja nas referências a citações diretas, uso de pontuação em relação tanto a aspas quanto a essas referências, seja nos espaçamentos antes e depois de citações ou subtítulos.
    Como se pode perceber, todas as minhas indicações agora são apenas estruturais, pois acredito que, salvo as pontuais ambiguidades promovidas pelo uso da pontuação, o conteúdo e a sua exposição estejam adequados ao escopo da revista e, portanto, à sua publicação. APROVADO
    Carlos Gontijo Rosa - Pós-doutorando - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC-SP, São Paulo, São Paulo, Brasil; https://orcid.org/0000-0001-6648-902X; carlosgontijo@gmail.com
  • Disponibilidade de dados de pesquisa e outros materiais
    Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2022
  • Aceito
    08 Set 2022
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