Acessibilidade / Reportar erro

Retratos sociais e de fala como um método de estudo de russo de herança: emigrantes russos idosos em Harbin e seus descendentes

RESUMO

Este artigo tem como objetivo descrever os falantes de herança de russo em Harbin, os emigrantes idosos e seus descendentes, através do método de retratos sociais e de fala. A diáspora russa na China ocorreu no final do século XIX, quando a Ferrovia da China Oriental, um projeto conjunto russo-chinês, foi construída. Depois de 1952, começou um êxodo em massa da população russa da China: repatriação ou emigração para a Austrália, EUA e Brasil. No início do século XXI, menos de dez membros da diáspora russa permaneciam em Harbin. A natureza específica da língua russa falada por emigrantes em Harbin foi descrita através do método de retratos sociais e de fala, usado para caracterizar as identidades dos falantes de herança. Esse método pode ser usado para analisar a língua dos emigrantes em diferentes países, para revelar os processos únicos e universais em relação a ela. Além disso, o artigo descreve estratégias e táticas para coletar material linguístico de informantes idosos.

PALAVRAS-CHAVE:
Russo de herança; Emigração russa; China; Retratos sociais e de fala; Linguagem e envelhecimento

ABSTRACT

This article aims to describe the Russian heritage speakers in Harbin, elderly emigrants and their descendants, using the social and speech portraiting method. The Russian diaspora in China arose in the late 19th century when the Chinese-Eastern railway was built – a joint Russian-Chinese project. After 1952, a mass exodus of the Russian population from China began: repatriation or emigration to Australia, the USA and Brazil. In the early 21st century, less than ten members of the Russian diaspora remained in Harbin. The specific nature of the Russian emigrant language in Harbin was described through the social and speech portraiting of the heritage speakers’ identities. This method may be used to analyze the language of emigrants in different countries, to reveal the unique and universal processes in it. Additionally, the article describes strategies and tactics for gathering language material from elderly informants.

KEYWORDS:
Heritage Russian; Russian emigration; China; Social and speech portraiting; Language and aging

Introdução

As áreas de emigração russa no século XX incluíam países da Europa, Ásia, América do Norte e do Sul e Austrália. A maior onda de emigração da Rússia ocorreu após a revolução: todos os continentes receberam tanto fluxos migratórios diretamente da Rússia logo após a revolução de outubro, quanto outros movimentos migratórios várias décadas depois, em meados do século XX.

Apesar de todos os fluxos migratórios que saíram da Rússia após a revolução terem a mesma causa, as populações de emigrantes russos em diferentes lugares têm sua própria história e sua própria natureza específica, decorrente da composição social dos emigrantes, das condições do país que os recebe e outros fatores sociais, o que também se reflete nas competências linguísticas dos emigrantes e no grau de preservação da sua língua nativa, o russo.

As diásporas russas no Ocidente (em relação à Rússia) têm sido objeto do maior número de estudos linguísticos: na França, Itália, Alemanha, Finlândia, Suécia, Suíça, Áustria, Reino Unido, Bulgária, EUA e Canadá (GOLUBEVA-MONATKINA, 2001GOLUBEVA-MONATKINA, N. I. Emigrantskaia russkaia rech'. Russkiy iazyk zarubezh'ia [Emigrant Russian Speech. Russian Speech Abroad]. Moscow: Editorial URSS, 2001. pp.8-68.; GRANOVSKAYA, 1995GRANOVSKAYA, L. M. Russkii iazyk v «rasseianii». Ocherki po iazyku russkoii emigracii pervoi volny [The Russian Language in “Dispersal”. Essays on the Language of the Russian Emigration of the First Wave]. Moscow: IRAYZ, 1995.; ZEMSKAYA; GLOVINSKAIA; BOBRIK, 2001ZEMSKAYA, Ye. A.; GLOVINSKAIA, M. Ja.; BOBRIK, M. A. [eds.] Iazyk russkogo zarubezh'ia: Obshchie processy i rechevye portrety [The Language of the Russian Diaspora: General Processes and Speech Portraits]. Vienna: Wiener Slawistischer Almanach, 2001.). A natureza específica da emigração russa no Ocidente consistia em geralmente envolver as pessoas com um alto grau de formação, membros da aristocracia e da intelligentsia e também oficiais. Todos esses grupos falavam línguas europeias e, portanto, eram capazes de se adaptar mais rapidamente em um país onde se fala uma língua estrangeira.

Houve também outra direção da emigração russa após a revolução, para o Oriente: para os países asiáticos, principalmente a China. Harbin é considerada o centro da diáspora oriental russa. A cidade foi fundada durante a construção da Ferrovia Oriental Chinesa (CER, Chinese Eastern Railway), em 1898, muito antes da revolução de 1917 na Rússia. A ferrovia foi construída com base em um acordo secreto feito entre a Rússia e a China sobre a sua construção, que definia o período de serviço de 80 anos, durante o qual a ferrovia ficaria sob a jurisdição dos dois países – Rússia e China (ABLOVA, 2004ABLOVA, N. Ye. KVZhD i rossiiskaia emigracia v Kitae: Mezhdunarodnye i politicheskie aspekty istorii (pervaja polovina XX veka) [The CER and Russian Emigration in China: International and Political Aspects of History (first half of the 20th century)]. Moscow: ND ID Russkaya panorama, 2004.). A ferrovia foi construída de acordo com projetos e sob a supervisão de engenheiros russos. Ao mesmo tempo, a cidade de Harbin também foi sendo construída. A administração ferroviária estava ali localizada e, ao longo da linha férrea, foram construídas vilas para a população russa que prestava serviços à ferrovia. Assim, quando começou a emigração da Rússia para o Nordeste da China após a revolução russa, lá já havia uma grande colônia russa de mais de 50.000 pessoas (ABLOVA, 2004ABLOVA, N. Ye. KVZhD i rossiiskaia emigracia v Kitae: Mezhdunarodnye i politicheskie aspekty istorii (pervaja polovina XX veka) [The CER and Russian Emigration in China: International and Political Aspects of History (first half of the 20th century)]. Moscow: ND ID Russkaya panorama, 2004.; LAZAREVA; SERGEEV, 2001LAZAREVA, S. I.; SERGEEV, O. I. Migracionniy potencial russkih emigrantov v Kitae (20-30-e gg. XX v.). [The Migration Potential of Russian Emigrants in China (1920s-1930s)]. In: Rossia i Kitai na dal'nevostochnyh rubezhah 2. Blagoveshchensk: AmSU, 2001. pp.161-164.; ABLAZHEI, 2001ABLAZHEI, N. N. Hoziaistvenno-ekonomicheskaia deiatel'nost' rossiiskih emigrantov v Severnoi Manchzhurii [The Economic Activity of Russian Emigrants in North Manchuria]. In: Rossia i Kitai na dal'nevostochnyh rubezhah 2. Blagoveshchensk: AmSU, 2001. pp.130-136.), com infraestrutura organizada de acordo com os padrões russos, bastante desenvolvidos para a época. A língua russa era usada em muitas esferas de atividade da população russófona: produção econômica, negócios, educação, mídia – imprensa periódica e rádio, publicação de livros, vida cultural etc. (OGLEZNEVA, 2009OGLEZNEVA, E. A. Russkiy iazyk v vostochnom zarubezh'e: na materiale russkoi rechi v Harbine [The Russian Language in the Eastern Diaspora: Based on Materials of Russian Speech in Harbin]. Blagoveshchensk: AmSU, 2009.). Assim, existia um ambiente de língua russa em Harbin, que não exigia um conhecimento obrigatório da língua do novo país.

A emigração russa que foi para o Oriente após a revolução teve motivos semelhantes à emigração para o Ocidente, mas teve uma composição diferente de emigrantes: os refugiados no Oriente não incluíam apenas os grupos privilegiados da sociedade russa e intelligentsia, mas também trabalhadores, camponeses e cossacos (DUBININA; TSIPKIN, 1996DUBININA, N. P.; TSIPKIN, Yu. N. Ob osobennostiah dal'nevostochnoi vetvi rossiiskoi emigracii (na materialah Harbinskogo komiteta pomoshchi russkim bezhentsam) [On the Features of the Far Eastern Branch of Russian Emigration (Based on Materials of the Harbin Committee for the Assistance of Russian Refugees)]. Otechestvennaja istoriia, n. 1, pp.70-84, 1996.).

Uma característica especial da emigração russa pós-revolução, tanto no Ocidente quanto no Oriente, foi o sentimento de certeza do emigrante de que sua permanência no país estrangeiro seria apenas temporária. Mas as circunstâncias históricas levaram a um resultado diferente do esperado e, muitas vezes, em vez de voltar para casa, os emigrantes russos se mudavam para outros países em busca de uma vida melhor. Isso é característico tanto para a diáspora ocidental quanto para a oriental: muitos refugiados russos se mudaram da Europa para os EUA e Canadá, e de países asiáticos, principalmente China, para Austrália, Nova Zelândia, EUA, Canadá e América Latina.

A história da emigração russa para o Brasil é estudada por diversos pesquisadores brasileiros (BYTSENKO, 2006BYTSENKO, A. Imigração da Rússia para o Brasil no início do século XX. Visões do paraíso e do inferno. 134 p. Dissertação (Mestrado em Letras) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde-12112007-132926/pt-br.php. Acesso em: 13 ago. 2021.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
; RUSEISHVILI, 2016RUSEISHVILI, S. Ser russo em São Paulo. Os imigrantes russos e a reformulação de identidade após a Revolução Bolchevique de 1917. 383 p. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-13022017-124015/pt-br.php. Acesso em: 13 ago. 2021.
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8...
, 2018RUSEISHVILI, S. Perfil sociodemográfico e distribuição territorial dos russos em São Paulo: deslocados de guerra da Europa e refugiados da China após a Segunda Guerra Mundial. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 35, n. 2, 2018, p. 1-20. DOI https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0036. Acesso em: 15 ago. 2021.
https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0036...
; VOROBIEFF, 2006VOROBIEFF, Alexandre. Identidade e memória da comunidade russa na cidade de São Paulo. 244 p. Dissertation (Master's degree in Human Geography) - Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde18062007-141410/pt-br.php. Acesso em: 13 ago. 2021.
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8...
). Skorobogatova et al. (2021)SKOROBOGATOVA, A. S.; SMIRNOVA HENRIQUES, A.; RUSEISHVILI, S.; SEKERINA, I.; MADUREIRA, S. Verbal Working Memory Assessment in Russian-Brazilian Portuguese Bilinguals. Cadernos de Linguística, v. 2, n. 4, e572, pp.1-24, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021. V2. N4.ID572
https://doi.org/10.25189/2675-4916.2021...
estimam que, na década de 1950, o Brasil aceitou até 9.000 refugiados russos da China. Essa onda de emigração compreendeu principalmente jovens: 44% dos russos que chegaram da China tinham menos de 29 anos, com muitas famílias com mães solteiras (RUSEISHVILI, 2018RUSEISHVILI, S. Perfil sociodemográfico e distribuição territorial dos russos em São Paulo: deslocados de guerra da Europa e refugiados da China após a Segunda Guerra Mundial. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 35, n. 2, 2018, p. 1-20. DOI https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0036. Acesso em: 15 ago. 2021.
https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0036...
). No Brasil, eles se estabeleceram em grandes centros urbanos, principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro. Devido ao grande número de crianças russófonas, as autoridades católicas de rito oriental chegaram a fundar dois colégios internos russos, que foram transferidos para o bairro do Ipiranga em São Paulo na década de 1960 (HIGA, 2015HIGA, B. S. O instituto São Vladimir e a presença russa em Santos, pela voz dos imigrantes (1958 – 1968). TCC (Licenciatura em História) – Universidade Católica de Santos, Santos, 2015.; VOROBIEFF, 2006VOROBIEFF, Alexandre. Identidade e memória da comunidade russa na cidade de São Paulo. 244 p. Dissertation (Master's degree in Human Geography) - Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde18062007-141410/pt-br.php. Acesso em: 13 ago. 2021.
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8...
). As escolas foram fechadas na década de 1970, quando os filhos dos russos chineses já eram adultos, mas seu impacto na preservação da língua e da cultura russa nessa geração de emigrantes não pode ser subestimado. Skorobogatova et al. (2021)SKOROBOGATOVA, A. S.; SMIRNOVA HENRIQUES, A.; RUSEISHVILI, S.; SEKERINA, I.; MADUREIRA, S. Verbal Working Memory Assessment in Russian-Brazilian Portuguese Bilinguals. Cadernos de Linguística, v. 2, n. 4, e572, pp.1-24, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021. V2. N4.ID572
https://doi.org/10.25189/2675-4916.2021...
estimam, com base no censo do IBGE de 1950 (IBGE, 1956IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico. Série nacional, v. 1, 1956. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/67/cd_1950_v1_br.pdf. Acesso em: 15 ago. 2021.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
), que cerca de 1.500 desses imigrantes ainda poderiam estar vivos.

Em 2021, Smirnova Henriques et al. (2021SMIRNOVA HENRIQUES, A.; SKOROBOGATOVA, A. S.; RUSEISHVILI, S.; MADUREIRA, S.; SEKERINA, I. A. Challenges in Heritage Language Documentation: BraPoRus, Spoken Corpus of Heritage Russian in Brazil. In: INTERNATIONAL WORKSHOP ON DIGITAL LANGUAGE ARCHIVES, 1., 2021. Proceedings […]. Denton: University of North Texas, 2021. pp.22-24., 2022SMIRNOVA HENRIQUES, A.; SKOROBOGATOVA, A. S.; KACHKOVSKAIA, T. V.; SKRELIN, P.A.; RUSEISHVILI, S.; MADUREIRA, S.; SEKERINA, I. A. BraPoRus, Spoken Corpus of Heritage Russian in Brazil: Protocol of Data Collection. Cadernos de Linguística, v. 3, n. 1, e629, pp.1-20, 2022. DOI: 10.25189/2675-4916.2022. V3. N1.ID629
https://doi.org/10.25189/2675-4916.2022...
) começaram a coletar as gravações de russo de herança falado no Brasil por emigrantes russófonos idosos para compor o corpus BraPoRus. Eles envolveram no estudo 31 participantes com a média de idade de 77,3 anos. Um terço (13 de 31) dos participantes nasceu na China, principalmente em Harbin. Na comunicação pessoal, os autores do corpus relataram que as primeiras tentativas de analisar as características fonéticas da pronúncia no russo de herança enfrentaram um importante problema de falta de referência: pouquíssimas gravações da língua russa falada no início do século XX são acessíveis. Além disso, em Harbin, falava-se uma variedade especial de russo, e as gravações dessa variedade de fala não estão disponíveis para os pesquisadores brasileiros. O russo de herança falado no Brasil preserva algumas características do russo antigo falado há cem anos, mas também sofre interferência do português brasileiro. O presente trabalho descreve as características fonéticas do russo falado em Harbin por emigrantes antigos, e isso pode servir de referência para os estudos de russo de herança no Brasil.

Iniciamos o estudo da língua russa falada dos últimos representantes da diáspora russa em Harbin no início de 2000. Durante expedições científicas à China em 2000, 2001, 2002 e 2006, fizemos gravações em áudio da fala dos últimos emigrantes russos que ainda moravam na China. A última residente russa de Harbin, Yefrosinya Andreevna Nikiforova, faleceu em 2006, marcando o fim da emigração russa no Oriente.

O russo de herança falado pelos emigrantes que vieram da China para o Brasil pode ser considerado herdeiro direto da variedade da língua russa que era comum em Harbin na primeira metade do século XX, na China e em outras cidades e vilas chinesas ao longo da Ferrovia Oriental Chinesa. O idioma russo falado em Harbin e ao longo da CER nesse período se distinguiu por seu alto poder de comunicação, que era um fator importante na sua preservação, e também, segundo inúmeros testemunhos daquela época, por seguir o padrão de linguagem pré-revolucão (TAUT, 2001TAUT, M. P. Sberezhenniy russkiy iazyk [The Preserved Russian Language]. Russkaja Atlantida, n. 7, pp.35-38, 2001.; RAIAN, 2005RAIAN, N. V. Rossiia – Harbin – Avstraliia: sohranenie i utrata iazyka na primere russkoi diaspory, prozhivsheii XX vek vne Rossii [Russia – Harbin – Australia: Preservation and Loss of Language on the Example of the Russian Diaspora Living Outside Russia in the 20th century]. Moscow: Russkiy put, 2005.).

A variedade especial da língua russa falada pelos residentes de Harbin é amplamente mencionada em várias fontes. “A natureza histórica e sociopsicológica da sociedade de Harbin é revelada por certas características únicas da linguagem dos residentes de Harbin, o estilo e a cultura do comportamento linguístico dos moradores da cidade”1 1 No original “Istoricheskaia i social'no-psihologicheskaia harakteristika harbinskogo soobshchestva vospolniaetsja vyjavleniem nekotoryh svoeobraznyh chert jazyka harbincev, stilja i kul'tury rechevogo povedenija gorozhan”. , escreveu o ex-residente de Harbin, Levitsky (1998)LEVITSKY, V. V. Iazykovoi i iazykovedcheskiy fragment harbinistiki [The Language and Linguistic Fragment of Harbin Studies]. In: Gody. Ljudi. Sud'by. Istoriia rossiiskoi emigracii v Kitae [Years. People. Fates. The History of Russian Emigration in China]. Moscow: IRI RAN, 1998. pp.40-42..

Os últimos membros da emigração russa em Harbin falavam uma variedade de russo especial, seguindo padrões de linguagem antigos adquiridos em suas famílias e nas instituições educacionais russas locais. Em 2000, eles já eram pessoas de idade avançada (nascidos em 1910, 1912, 1923, 1931, sendo o informante mais jovem nascido em 1935), tinham vivido vidas difíceis e moravam sozinhos, por isso as entrevistas com eles exigiam tato, envolvimento humano e interesse genuíno na vida deles. No momento dessas entrevistas, eles não estavam mais vivendo na antiga Harbin russa patriarcal, como era na primeira metade do século XX, mas em uma grande e moderna cidade chinesa, o que Harbin se tornou no final do século XX. No entanto, a maioria deles não falava chinês e, quando perguntamos o porquê, eles responderam: “Para quê? Harbin era uma cidade russa” (N. A. Davidenko, nascido em 1910).

O objetivo deste artigo é descrever os falantes de russo de herança em Harbin usando o método de retratos sociais e de fala. Este método pode ser usado para analisar a língua dos emigrantes em diferentes países, para revelar os processos únicos e universais em relação a ela. Além disso, o artigo descreve estratégias e táticas para coletar material linguístico de informantes idosos.

1 Embasamento teórico: retratos sociais e de fala como um método de estudo

Uma das possíveis direções para estudar a fala dos emigrantes é:

uma descrição monográfica da fala de indivíduos caracterizada por uma atenção especial às suas características em todos os níveis da linguagem, às especificidades do comportamento linguístico, levando em consideração qualidades pessoais e profissionais, etapas da biografia, condições de aprendizado do russo etc. Como resultado desse estudo, recebemos um retrato de fala de uma determinada pessoa, que reflete tanto as características gerais inerentes a membros de vários grupos e subgrupos de emigrantes que compartilham vários atributos, quanto as características individuais inerentes a eles como pessoa (ZEMSKAYA; GLOVINSKAIA; BOBRIK, 2001ZEMSKAYA, Ye. A.; GLOVINSKAIA, M. Ja.; BOBRIK, M. A. [eds.] Iazyk russkogo zarubezh'ia: Obshchie processy i rechevye portrety [The Language of the Russian Diaspora: General Processes and Speech Portraits]. Vienna: Wiener Slawistischer Almanach, 2001.)2 2 No original: “monograficheskoe opisanie rechi otdel'nyh lic, harakterizuemoe pristal'nym vnimaniem k ee osobennostiam na vseh urovniah jazyka, k specifike rechevogo povedeniia, uchityvaiushhee lichnye i professional'nye svoistva, osobennosti biografii, usloviia osvoeniia russkogo iazyka i t. p. V rezul'tate takogo izucheniia my poluchaem rechevoii portret opredelennogo cheloveka, otrazhaiushhiii kak ego obshchie cherty, prisushchie emu kak predstaviteliu raznyh mnozhestv i podmnozhestv emigrantov, raspredelennyh po tem ili inym priznakam, tak i ego individual'nye cherty, prisushhie emu kak lichnosti”. .

Na fala em russo dos últimos representantes da diáspora russa em Harbin, características gerais e específicas podem ser definidas. As características específicas estão relacionadas tanto aos fatores linguísticos quanto extralinguísticos: pertencimento a uma determinada geração de emigração, origem, educação, profissão, gênero, situação familiar, temperamento etc.

Poderíamos prever que as condições de vida em uma cidade da China multiétnica e poliglota como era na primeira metade do século XX, com a crescente dominância da população chinesa e da língua chinesa em todas as esferas da vida na segunda metade do século XX, teria inevitavelmente levado os emigrantes a aprender a língua local, dando origem ao bilinguismo. No entanto, a situação linguística real que se formou em Harbin mostra uma grande diversidade de línguas utilizadas na comunicação.

As identidades linguísticas em nosso estudo são descritas por meio de retratos sociais e de fala que evidenciam a identidade linguística combinada com suas características sociais e linguísticas, em relações de condicionamento mútuo. Cada um dos últimos membros da diáspora russa em Harbin é um objeto interessante para o estudo através de retratos sociais e de fala, pois demonstra um tipo de adaptação linguística de uma população específica com suas próprias variáveis sociolinguísticas, na inusitada situação linguística da diáspora oriental russa em Harbin.

O interesse pela língua da diáspora russa que surgiu nas últimas décadas revelou para os pesquisadores, em primeiro lugar, uma das formas especiais de existência da língua russa – a língua russa de herança da diáspora – e, em segundo lugar, muitas identidades linguísticas interessantes – portadoras dessa forma de existência da língua russa (GOLUBEVA-MONATKINA, 2001GOLUBEVA-MONATKINA, N. I. Emigrantskaia russkaia rech'. Russkiy iazyk zarubezh'ia [Emigrant Russian Speech. Russian Speech Abroad]. Moscow: Editorial URSS, 2001. pp.8-68.; ZEMSKAYA, 2000ZEMSKAYA, E. A. Rechevoi portret emigrantki pervoi volny (k voprosu ob ob’asnitel'noi sile teorii estestvennoi morfologii) [A Speech Portrait of an Emigrant Woman of the First Wave (On the Issue of the Explanatory Power of the theory of natural Morphology)]. Russkii iazyk segodnia, n. 1, pp.100-121, 2000.; ZEMSKAYA; GLOVINSKAIA; BOBRIK, 2001ZEMSKAYA, Ye. A.; GLOVINSKAIA, M. Ja.; BOBRIK, M. A. [eds.] Iazyk russkogo zarubezh'ia: Obshchie processy i rechevye portrety [The Language of the Russian Diaspora: General Processes and Speech Portraits]. Vienna: Wiener Slawistischer Almanach, 2001.; KRASILNIKOVA, 2001KRASILNIKOVA, E. V. Nikita Alekseevich Struve. In: KRASILNIKOVA, E. V. (ed.) Russkiy iazyk zarubezh'ia. Moscow: Editorial URSS, 2001. pp.311–342.; GRANOVSKAYA, 2001). A descrição de uma identidade linguística – tanto tipificada quanto individual – requer, quando possível, um conhecimento exaustivo da habilidade linguística do falante, realizada em textos escritos e/ou verbais produzidos por ele.

A tradição de estudos através de retratos de fala originou-se na escola sociolinguística de Moscou. Ela foi fundada por M. V. Panov, que, em sua monografia, cujo título se traduz para português como A história da pronúncia literária russa dos séculos XVIII-XX [Istoriia russkogo literaturnogo proiznosheniia ХVIII-ХХ vv] (2002), apresentou a evolução da norma ortoépica russa não apenas no aspecto histórico, mas também no aspecto personológico, criando uma série de retratos fonéticos, ilustrando um certo período da história do sistema de pronúncia da língua russa. Um dos objetivos do livro era determinar “até que ponto as mudanças de pronúncia são causadas por impactos externos (sociais) na língua e até que ponto pelas leis internas da língua” (PANOV, 2002PANOV, M. V. Istoriia russkogo literaturnogo proiznosheniia ХVIII-ХХ vv. [A History of Russian literary pronunciation in the 18th-20th centuries]. Moscow: Editorial URSS, 2002.)3 3 No original: “v kakoi stepeni proiznositel'nye izmeneniia obuslovleny vneshnimi (social'nymi) vozdeiistvijami na iazyk i v kakoii – vnutrennimi zakonami iazyka”. . Assim, os retratos fonéticos de Panov são acompanhados de informações biográficas e de caráter histórico e cultural, ajudando a explicar um certo tipo de pronúncia. As características da linguagem na interpretação pessoal tornam-se tangíveis e convincentes.

A estratégia de uso dos retratos de fala é descrita por Kitaigorodskaya e Rozanova em 1995KITAIGORODSKAYA, M. V.; ROZANOVA, N. N. Russkiy rechevoi portret: fonohrestomatiia [The Russian Speech Portrait: A Phonic Anthology]. Moscow: Nauka, 1995.. Ela aborda os traços característicos da identidade linguística e a individualidade única da fala. Kitaigorodskaya e Rozanova (1995, p.3-4)KITAIGORODSKAYA, M. V.; ROZANOVA, N. N. Russkiy rechevoi portret: fonohrestomatiia [The Russian Speech Portrait: A Phonic Anthology]. Moscow: Nauka, 1995. afirmam que “geralmente o pesquisador possui uma quantidade limitada de notas e observações sobre a atividade de fala do falante em diferentes ambientes comunicativos, o que impossibilita a apresentação da pessoa através de uma identidade linguística completa”4 4 No original: “obychno v rasporiazhenii issledovateleii imeetsia ogranichennyii ob’em zapiseii i nabliudeniii nad rechevoii dejatel'nost'iu govoriashchego v raznyh kommunikativnyh sferah, chto ne daet vozmozhnosti predstavit' ego kak iazykovuju lichnost' vo vsem mnogoobrazii”. . No entanto, os textos de fala verbal disponíveis têm, na opinião dos autores, “informações diagnósticas suficientes para criar retratos de fala”5 5 No original: “diagnostiruiushcheii informacieii, dostatochnoii dlia sozdaniia rechevyh portretov”. . No uso de retratos de fala ou sociolinguísticos, é importante “registrar os trechos de fala marcantes, de importância diagnóstica”6 6 No original: “fiksirovat' iarkie diagnostiruiushhie rechevye piatna”. , como escreve Nikolaeva (1991, p.71)NIKOLAEVA, T. M. “Sociolingvisticheskiy portret” i metody ego opisaniia. [“The Sociolinguistic Portrait” and the Methods of Its Description]. In: Russkiy iazyk i sovremennost'. Problemy i perspektivy razvitiia rusistiki 2. Moscow: 1991. pp.69-74., observando que “muitos paradigmas linguísticos, da fonética à formação de palavras, estão bastante de acordo com os parâmetros normativos gerais e, portanto, não são de interesse”7 7 No original: “mnogie iazykovye paradigmy, nachinaia ot foneticheskih, konchaia slovoobrazovatel'nymi, okazyvaiutsia vpolne sootvetstvuiushchimi obshchenormativnym parametram i potomu interesa ne predstavliaiut”. .

Embora os retratos de fala reflitam características individuais da fala de um falante específico, eles refletem também a existência linguística do grupo social ao qual o falante pertence e, nesse sentido, qualquer retrato de fala é um fenômeno típico.

Criar retratos de fala levando em conta características em todos os níveis de linguagem, todas as características de comportamento de fala e também informações pessoais, profissionais e biográficas, segundo Zemskaya (2001)ZEMSKAYA, Ye. A.; GLOVINSKAIA, M. Ja.; BOBRIK, M. A. [eds.] Iazyk russkogo zarubezh'ia: Obshchie processy i rechevye portrety [The Language of the Russian Diaspora: General Processes and Speech Portraits]. Vienna: Wiener Slawistischer Almanach, 2001., é uma das possíveis direções para o estudo da língua russa falada pela diáspora. Em sua monografia, cujo título se traduz para português como A língua russa na diáspora oriental (com base na fala em russo em Harbin [Iazyk russkogo zarubezh'ia: Obshchie processy i rechevye portrety] (2001), Zemskaya apresenta os retratos de fala de 25 representantes da emigração russa no Ocidente, um número significativo, considerando que se trata de emigrantes de diferentes gerações da primeira onda de emigração. Nos retratos de fala de russos que emigraram para o exterior e de seus descendentes, é dada atenção às características específicas de sua fala em comparação com a língua russa padrão: trata-se de características fonéticas, morfológicas, de formação de palavras, características sintáticas e lexicais. Os retratos da fala permitem revelar as características típicas da fala dos emigrantes da primeira onda e seus descendentes, ilustrando, por um lado, tendências de desenvolvimento da língua russa, que se intensificam na língua durante a emigração e, por outro lado, tirar conclusões sobre o significativo grau de preservação da língua russa na emigração, causado por fatores de natureza extralinguística.

A diáspora russa no Oriente e a língua russa falada por esses emigrantes têm características semelhantes às da emigração no Ocidente, mas também algumas diferenças significativas. Uma das maneiras de descobrir o que é comum e o que é específico na língua russa falada pela emigração no Oriente e Ocidente é fazer os retratos de fala de representantes da emigração russa no Oriente.

Os primeiros “esboços de retratos” de fala de representantes da emigração russa no Oriente foram descritos em obras de Oglezneva (2001OGLEZNEVA, E. A. Zhanr vospominaniia v rechi predstaviteleii harbinskoii diaspory: motivy i nastroeniia [Genre of Recounting Memories in the Speech of Representatives of the Harbin Diaspora: Motives and Moods]. In: Rossia i Kitai na dal'nevostochnyh rubezhah 2. Blagoveshchensk: AmSU, 2001. pp.196-201., 2005OGLEZNEVA, E. A. Rechevoi portret emigranta (na materiale rechi predstavitel'nicy russkoi diaspory v Harbine V. P. Han). [The Speech Portrait of an Emigrant (Based on the Speech of a Russian Diaspora Representative in Harbin V. P. Han]. In: Slovo: Fol'klorno-dialektologicheskiy al'manah 3. Formy sushchestvovaniia sovremennogo russkogo iazyka. Blagoveshchensk: AmSU, 2005. pp. 101-108.) e Starygina (2001)STARYGINA, G. M. Lingvo-istoricheskie portrety harbintsev (na materiale rechi russkih emigrantov) [Social and Speech Portraiting of the Harbin’s Residentes (Based on the Russian Emigrants’ Speech)]. In: Istoricheskiy opyt osvoeniia Dal'nego Vostoka 4. Etnicheskie kontakty. Blagoveshchensk: AmSU, 2001. pp.263-269.. A língua russa característica dos antigos moradores de Harbin também foi discutida em jornais, revistas e programas de televisão russos. No entanto, uma descrição sistemática completa de fala de representantes individuais da emigração russa no Oriente, que pode ser chamada de retratos de fala, foi apresentada na monografia cujo título se traduz para português como A língua russa na diáspora oriental (com base no material da fala em russa em Harbin) [Russkiy iazyk v vostochnom zarubezh'e: na materiale russkoi rechi v Harbine] somente em 2009, por Oglezneva. A “galeria de retratos” de fala criada no nosso trabalho é uma tentativa de exame tipológico completo de fala produzida pelos últimos representantes da diáspora russa em Harbin.

2 Métodos

2.1 Material

Fizemos uma tentativa de produzir os retratos de fala dos últimos representantes da diáspora oriental russa: os residentes de Harbin Mikhail Mikhailovich Myatov, nascido em 1912; Yefrosinya Andreevna Nikiforova, nascida em 1910; Nina Afanasievna Davidenko, nascida em 1910; Margarita Ivanovna Antonova, nascida em 1926; Vladimir Alexeevich Zinchenko, nascido em 1935; Paraskeva Valetinovna Svininnikova, nascida em 1931; e ex-residentes de Harbin, hoje cidadãos da Austrália, Nikolai Nikolaevich Zaika, nascido em 1938, e Viktoria Stanislavovna Statsenko, nascida em 1943. Os encontros com eles aconteceram na Igreja da Intercessão da Mãe de Deus, a última igreja ortodoxa em Harbin em funcionamento, e também em ambiente doméstico.

Todos os últimos representantes da pequena diáspora russa em Harbin eram cidadãos da Rússia (tinham passaportes emitidos pelo consulado soviético em Harbin depois de 1945), mas nunca foram para Rússia ou deixaram o país na infância. Cinco dos seis representantes haviam preservado o russo sem muita interferência. O fato mais inesperado foi que quatro dos seis russos não sabiam chinês, a língua de seu país de residência e da cidade de Harbin.

Entre os nossos informantes, estavam representantes de diferentes gerações de emigrantes: a primeira geração veio da Rússia para Harbin ainda na infância (M. M. Myatov, Ye. A. Nikiforova e P. V. Svininnikova); a segunda geração nasceu em Harbin de pais que vieram da Rússia (N. A. Davidenko e V. A. Zinchenko). Também entrevistamos representantes da terceira geração de emigrantes russos de Harbin, que nasceram e viveram lá, mas depois migraram para a Austrália – a sua competência linguística também foi objeto do estudo (V. S. Statsenko, N. N. Zaika).

As informações sobre representantes de diferentes gerações da diáspora russa no Oriente, reveladas no decorrer da elaboração dos retratos sociais e de fala, permitiram apresentar a língua russa falada pela diáspora no Oriente ao longo de todo o período de sua existência como um processo dinâmico.

O foco de nossa atenção estava principalmente nos últimos representantes da diáspora russa em Harbin: aqueles que não deixaram a China e permaneceram em Harbin até o fim de suas vidas. Décadas de vida em um ambiente estrangeiro naturalmente levam à necessidade de falar a língua do país de residência e a um declínio na capacidade de falar a língua nativa na ausência de um ambiente linguístico permanente. Um resultado diferente desse esperado nos obriga a buscar as razões especiais de preservação da língua nativa em condições desfavoráveis. Os últimos representantes da diáspora russa em Harbin representam identidades linguísticas únicas que demonstram a preservação a longo prazo da língua nativa em um ambiente de língua estrangeira.

2.2 Protocolo de coleta de dados

O material do estudo foi coletado no formato de entrevistas. As entrevistas com os últimos representantes da diáspora russa em Harbin foram realizadas na forma de uma discussão livre sobre vários tópicos, mas o tema principal foi a vida em Harbin russa em diferentes períodos de sua história. Foram elaborados questionários sobre os temas “Harbin” e “linguagem”. Durante a entrevista, a sequência de perguntas do questionário podia variar dependendo do andamento da conversa. Essa foi uma decisão deliberada dos entrevistadores, a fim de tornar a conversa com os informantes a mais natural possível. O questionário “Harbin” continha perguntas sobre a história de Harbin, sobre a vida dos russos lá, a família, como seus pais (ou avós) vieram para a China, sobre a organização da vida da comunidade russa lá, educação, trabalho, a vida cultural de Harbin etc. Esta era uma “camada” de questões, que ocultava outro conjunto de questões sobre a função da língua russa em Harbin, revelando seu status e as competências linguísticas dos residentes de Harbin, falantes nativos de russo. As respostas às questões sobre a linguagem apresentavam maior interesse para o pesquisador linguista, mas na própria conversa elas foram retratadas como se fossem questões de importância secundária.

O objetivo foi registrar a quantidade máxima de material de fala de nossos informantes, o que, além de registrar sua experiência de vida única, possibilitou posteriormente uma análise linguística completa e, em particular, a elaboração de retratos sociais e de fala das identidades linguísticas estudadas.

O principal na discussão com os antigos residentes russos de Harbin era ouvir com atenção, sem pressa, com pausas quando os informantes pensavam no que haviam dito ou relembravam detalhes do passado. A percepção emocional das histórias de nossos informantes também foi importante, assim como a demonstração de simpatia pelas experiências da vida deles como émigré. Consequentemente, entre os entrevistadores e os informantes foram estabelecidas relações calorosas e de confiança, o que garantiu a possibilidade de novos encontros e novas entrevistas. Os tempos difíceis que essas pessoas viveram (não podiam voltar para casa porque a União Soviética os declarou inimigos do povo – “bandidos brancos”; a ocupação japonesa de Harbin em 1933-1945; a revolução cultural na China em 1967) as tornaram cautelosas e desconfiadas em relação às outras pessoas, então a confiança que surgiu entre nós foi uma condição importante para o sucesso em entrevistar os últimos emigrantes russos remanescentes em Harbin e coletar o material linguístico e histórico único.

2.3 Procedimento de gravação

As gravações foram feitas na Igreja Ortodoxa da Intercessão da Mãe de Deus em Harbin ou em uma sala silenciosa com um gravador cassete padrão Panasonic RQ 10 e posteriormente digitalizadas para uma futura análise e salvas como arquivos mp3. A duração total das gravações foi superior a 45 horas de fala.

As gravações da fala dos últimos representantes da diáspora russa em Harbin foram transcritas por membros dos nossos seminários científicos ofertados aos estudantes que estudavam a língua russa da diáspora oriental em 2005-2007 na Universidade Estadual de Amur (Blagoveshchensk, Rússia). Foram preenchidos 41 cadernos (mais de 800 páginas de texto transcrito e impresso). As gravações originais estão mantidas no laboratório de linguística regional da Universidade Estadual de Amur.

2.4 Análise fonética

A análise da fala dos últimos representantes da diáspora russa no Oriente consistiu nas seguintes etapas: 1) escutas múltiplas das amostras de fala e sua análise perceptual; 2) detecção de realizações de fala em russo dos informantes nos níveis fonético, gramatical (morfológico e sintático) e lexical; 3) sistematização dos dados em tabelas generalizadas; 4) análise comparativa dos dados; 5) estabelecimento de traços gerais e específicos na fala dos informantes.

As amostras de fala de diferentes falantes tinham duração e conteúdo variáveis, o que dificultava a análise de certas posições e, portanto, algumas características de pronúncia de alguns falantes permanecem obscuras.

Na etapa final, de interpretação do material linguístico, o principal foi estabelecer se as diversas realizações linguísticas na fala de nossos informantes correspondiam (ou não) à língua literária russa padrão.

3 Resultados

O fator determinante para caracterizar uma identidade linguística é a atitude em relação à pronúncia padrão. Ao interpretar as características de pronúncia na fala dos residentes russos de Harbin, foram levadas em consideração duas variantes do padrão de pronúncia característicos do início do século XX: os padrões de Moscou e Petersburgo (PANOV, 2002PANOV, M. V. Istoriia russkogo literaturnogo proiznosheniia ХVIII-ХХ vv. [A History of Russian literary pronunciation in the 18th-20th centuries]. Moscow: Editorial URSS, 2002.), e também o padrão de pronúncia contemporâneo, refletido nos dicionários mais recentes, a fim de determinar a direção do desenvolvimento do padrão de pronúncia em russo em Harbin em comparação com seu desenvolvimento nos centros do país.

No decorrer da elaboração de retratos sociais e de fala, primeiro estabelecemos as características sociais dos informantes, o que foi necessário em vários casos para detectar as variantes de pronúncia presentes em suas falas; e, em segundo lugar, as características especiais da pronúncia em russo do informante com base em 15 parâmetros de pronúncia em comparação com o padrão de pronúncia literária russa contemporânea.

Na descrição da fala de nossos informantes, analisamos sua pronúncia de vogais e consoantes, combinações individuais de sons e formas gramaticais. A seleção de parâmetros de pronúncia para a elaboração dos retratos de fala foi baseada nas características da pronúncia padrão da língua literária russa do início do século XX, que variavam dependendo do uso pelos falantes do padrão de pronúncia de Moscou ou Petersburgo.

Os padrões de pronúncia de Moscou e Petersburgo da língua literária russa se formaram historicamente. Conforme Verbitskaya (1976)VERBITSKAYA, L. A. Russkaia orfojepiia (k probleme eksperimental'nofoneticheskogo issledovania osobennostei sovremennoii proiznositel'noii normy) [Russian Orthoepy (On the Problem of Experimental-Phonetic Research of Features of the Modern Pronunciation Standard)]. Leningrad: LSU publishers, 1976., “durante dois séculos existiram duas variantes igualmente reconhecidas do padrão de pronúncia: o padrão de Moscou e de Petersburgo”, que se distinguiam por uma série de características de pronúncia de vogais, consoantes e formas gramaticais. A principal causa para as diferenças entre a pronúncia de Moscou e Petersburgo foi a diversidade fonética dos dialetos que cercam Moscou e São Petersburgo (AVANESOV, 2005AVANESOV, R. I. Russkoe literaturnoe proiznoshenie [Russian Literary Pronunciation]. Moscow: KomKniga, 2005.; SHCHERBA, 2004SHCHERBA, L. V. Kratkiy ocherk russkogo proiznosheniia. Iazykovaia sistema i rechevaia deiatel'nost' [A Brief Sketch of Russian Pronunciation. The Language System and Speech Activity]. Moscow: Editorial URSS, 2004. pp.171-175.; VERBITSKAYA, 2001VERBITSKAYA, L. A. Davaite govorit' pravil'no [Let’s Talk Correctly]. Moscow: Vysshaya shkola, 2001.). Além disso, a pronúncia de Petersburgo tinha tendência a ser livresca, de se aproximar à “literalidade”, influenciada pelo padrão escrito (AVANESOV, 2005AVANESOV, R. I. Russkoe literaturnoe proiznoshenie [Russian Literary Pronunciation]. Moscow: KomKniga, 2005.).

Após estudar a fala de todos os nossos informantes através do método de elaboração de retratos sociais e de fala, para a maioria das variantes percebidas em sua fala, estabelecemos aquelas que continham a variante específica de pronúncia de Harbin.

As seguintes características de pronúncia foram incluídas:

1) Pronúncia de “ye”, ou [e i], na primeira sílaba pré-tônica após consoantes brandas:

[л` еи]нтяев, [н` еи]вестка, [н` е ]лепо, ма[т` е ]рьялов, [с`еи]рьёзный, [т` еи]бе, у[м` еи]реть

[l`ei ]nt`yajev, [n`ei ]v`estka, [n`ei ]l`epo, ma[t`ei]r`jalov, [s`ei] r `joznyj, [t`ei]b`е, u[m`ei]r `et`

(corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo);

2) A pronúncia de vogais média-baixas ou médias na primeira sílaba pré-tônica após uma consoante dura em [аъ]:

гов[аъ]рила, з[аъ]был, х[аъ ]тел, п[аъ ]клон, п[аъ ]ртрет

gov[аъ]r`ila, z[аъ]byl, h[аъ ]t`еl, p[аъ ]klon, p[аъ ]rtr`еt

(corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo);

3) A pronúncia de [а] na terminação de verbos de segundo grupo na 3ª pessoa no plural quando pós-tônica:

хо[д`ат], лю[б`ат], ку[р`ат], стро[jат]ся, сер[д`ат]ся, прихо[д`ат]

hо[d`аt], l`u[b`аt], ku[r`аt], stro[jаt]s`a, s`еr[d`аt]s`a, pr`iho[d`аt]

(corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo);

4) A pronúncia de щcomo [ш`ч`]:

учили[ш`ш`]е, воб[ш`ш`]ем, е[ш`ш`]ё, и[ш`ш`]ешь

uchil`i[sh`sh`]е, vоb[sh`sh`]еm, е[sh`sh`]o, i[sh`sh`]еsh

(não corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo);

5) A pronúncia de consoantes duras labiais no final de palavras ou na posição anterior a [j]:

восе[м], се[м], се[мjа]

vos`е[m], s`е[m], s`е[мjа]

(corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo);

6) A perda de pronúncia branda de consoantes nos casos de assimilação:

е[ст`]ественный, боле[з`н`]и, пе[н`c`]ия, слабо[c`т`], ко[нф`е]тки, ве[з`д`]е, е[с`т`], ра[зн`]ица, [с`н`]ять, [дв`]ерь, [вм`еc`т`]е, [з`д`]есь, обла[с`т`], е[з`д`]или, жи[з`н`]

е[st`]estv`enyj, bol`е[z`n`]i, p`е[n`s`]ija, slabo[s`t`], kо[nf`е]tk`i, v`е[z`d`]е, е[s`т`], rа[zn`]itsа, [s`n`]at`, [dv`]еr`, [vm`es`t`]е, [z`d`]еs`, оbla[s`t`], е[z`d`]il`i, zhi[z`n`]

(não corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo para uma parte dos casos);

7) A pronúncia de consoantes velares nas terminações de adjetivos longos do gênero masculino no caso nominativo:

малень[к`иj], одино[к`иj], старчес[к`иj], славнень[к`иj], корот[к`иj]

mal`en`[k`ij], od`ino[k`ij], starches[k`ij], slavn`en`[k`ij], korot[k`ij]

(corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo);

8) A pronúncia de consoantes brandas nos pós-fixos reflexivos e cь:

старал[с`]а, помещали[с`], остало[с`а], бросило[c`], взял[с`а], согласила[с`], дел[са], встретили[c], влюбил[с`а], докатило[с`], встречала[с`], учил[с`а], родил[с`а], остала [с`], родила [с`]

staral[s`]а, pom`eshchal`i[s`], оstalo[s`а], bros`ilo[s`], vz`al[s`а], soglas`ila[с`], d`el[sа], vstr`et`il`i [s], vl`ub`il`[s`а], dokat`ilo[s`], vstr`echаlа[s`], uchil[s`а], rod`il[s`а], ostala[s`], rod`ila[s`]

(corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo para a maioria dos casos);

9) A perda de assimilação nas formas reflexivas de verbos:

говори[тс`а], плачу[тса], разрешае[тса], называю[тса], остане[тса], показа[ца], хоче [тса], вери[ца], заступи[тса], хоче [тса]

govori`[ts`а], plachu[tsа], razreshaje[tsа], nazyvaju[tsа], ostan`e[tsа], pokaza[ца], hoche [tsа], v`er`i[ца], zastup`i[tsa], hoche [тса]

(corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo);

10) A pronúncia de зжna raiz das palavras como [жж]:

прие[ж`ж`]ать, по [зж]е, прие[зж`]ает, прие[жж]ающие, вые[ж`ж`]ают, прие[жж]ал , по [жж]е, уе[жж]ать, прие[зж]ие, пое[зж]ай

prij[zh`zh`]аt`, pо [zzh]е, pr`ije[zzh`]аjеt, pr`ije[zhzh]ajush`sh`ije, vyje[zh`zh`]аjut, pr`ije[zhzh]аl , pо[zhzh]е, ujе[zhzh]аt`, prije[zzh]ijе, poie[zzh]аj

(corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo para a maioria dos casos);

11) A pronúncia de palavras кто, что, никто omo [кто], [что], ни[кто]:

[кто], ни[кто], [что] [што], [ч`о], ни[что]

[ktо], n`i[ktо], [chtо] [shtо], [chо], n`i[chtо]

(corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo para a maioria dos casos);

12) A pronúncia da combinação чнna junção da raiz e sufixo como [чн]:

коне[шн]о и коне[чн]о, моло[чн]ая, яи[шн]ица, части[чн]ые, прили[чн]ая, то[чн]о, уда[чн]о

kоn`е[shn]о и kоn`е[chn]о, molo[chn]aja, jai[shn`]itsa, chast`i[chn]уje, prili[chn]aya, to[chn]о, uda[chn]о

(corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo para a maioria dos casos);

13) A pronúncia da palavra дождьcomo [dosht`], e da palavra дождяcomo [dazhd`a]:

до[жд`a]

dо[zhd`а]

(corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo);

14) A pronúncia de [кк] na palavra легкоe suas derivadas:

ле[хк]о, ле[к]че, ле[хч]е

l`е[hk]о, l`е[k]chе, l`е[hch]е

(não corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo);

15) A pronúncia de [с] duro na palavra отсюда:

от[с`у]да, от[cу]да

оt[s`u]dа, оt[su]dа

(corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo para a maioria dos casos).

Essas variantes de pronúncia encontradas na fala dos emigrantes russos em Harbin são características do padrão de pronúncia que se formou no ambiente falante de língua russa de Harbin na primeira metade do século XX. A maioria das variantes de pronúncia (12 de 15) correspondem ao padrão de pronúncia de Petersburgo (1, 2, 3, 5, 7, 9 e 13) ou correspondem ao padrão de pronúncia de Petersburgo na maioria dos casos (8, 10, 11, 12 e 15); uma das 15 variantes não corresponde ao padrão de pronúncia de Petersburgo em vários casos (6), e duas das 15 variantes não correspondem ao padrão de pronúncia de Petersburgo (4 e 14).

4 Discussão

Muitos relatos de memórias e também publicações na imprensa periódica pósemigrante afirmaram que, em Harbin, os emigrantes russos falavam “a língua de Petersburgo”:

(…) eram pessoas que não apenas preservaram a herança cultural russa, mas também a cultura cotidiana que existia antes da revolução, e também preservaram a língua russa falada como era antes da revolução, em toda a sua pureza e charme, e foram capazes de passar isso para seus filhos, e até mesmo para seus netos. Eles conheciam a língua russa literária, e muitos deles tinham a pronúncia de Petersburgo. A maioria eram representantes da cultura de fala elitista e literária (RAIAN, 2005RAIAN, N. V. Rossiia – Harbin – Avstraliia: sohranenie i utrata iazyka na primere russkoi diaspory, prozhivsheii XX vek vne Rossii [Russia – Harbin – Australia: Preservation and Loss of Language on the Example of the Russian Diaspora Living Outside Russia in the 20th century]. Moscow: Russkiy put, 2005.)8 8 No original: “eto ljudi, kotorye sohranili ne tol'ko kul'turnoe russkoe nasledstvo, no i dorevoliucionnuiu bytovuju kul'turu, oni takzhe sohranili dorevoliucionnyii russkiii iazyk vo vseii ego chistote i prelesti i sumeli peredat' ego svoim detiam i dazhe vnukam. Oni znali literaturnyii russkiii iazyk, i u mnogih iz nih bylo peterburgskoe proiznoshenie. Bol'shinstvo byli predstaviteliami elitarnogo i literaturnogo tipov rechevoii kul'tury”. .

Outros pesquisadores também escreveram sobre isso (DZEMESHKEVICH, 1998DZEMESHKEVICH, L. Harbintsy [Harbin Residents]. Omsk: Poligraficheskii centr OAT, 1998.; TAUT, 2001TAUT, M. P. Sberezhenniy russkiy iazyk [The Preserved Russian Language]. Russkaja Atlantida, n. 7, pp.35-38, 2001.). No entanto, essas declarações careciam de justificação científica. Uma análise minuciosa da fala dos últimos emigrantes russos em Harbin através do método de retratos sociais e de fala, combinada com informações sobre a história da pronúncia literária russa e seu desenvolvimento evolutivo, fornece uma explicação científica desse fenômeno: o surgimento e a existência do padrão de pronúncia de Petersburgo na China, na cidade de emigrantes Harbin, geograficamente distante de Petersburgo.

A diáspora oriental, incluindo a diáspora em Harbin, foi geralmente reconhecida pela “cultura da pronúncia”, até os russos deixarem a China; a preservação da língua e da pronúncia foi observada mais tarde na fala dos últimos representantes da diáspora russa em Harbin, e na fala em russo de ex-residentes russos de Harbin que emigraram posteriormente para outros países: Austrália, EUA e Brasil. O modelo de pronúncia e o padrão para imitação em Harbin era a fala das pessoas com alto grau de formação que vieram construir o CER na China. Havia muitas pessoas de Petersburgo entre os residentes de Harbin da primeira onda de emigração que vieram para construir a ferrovia: engenheiros, médicos e professores que receberam uma excelente formação na Rússia e criaram um ambiente cultural em Harbin que serviu de modelo em muitos aspectos, incluindo o modelo de fala sofisticada e literária para o resto da população russa em Harbin, bastante heterogênea. A segunda onda de emigração da Rússia, após a revolução, também acrescentou um grande número de pessoas com alto grau de formação à população russa de Harbin, principalmente por conta da elite das grandes cidades provinciais da Sibéria e do Extremo Oriente. Ao longo de toda a existência de Harbin russa, esse padrão foi mantido nas escolas de ensino médio e depois nas instituições de ensino superior russas.

Dessa maneira, podemos dizer que o padrão de pronúncia de Petersburgo em Harbin apareceu junto com seus portadores originários de Petersburgo, e depois foi difundido como o padrão e mantido deliberadamente. No entanto, essa manutenção deliberada do padrão, embora possa ser muito eficaz, principalmente se ocorrer à distância do centro quando os falantes nativos entendem a necessidade de autopreservação étnica, ainda requer um suporte por fatores de natureza objetiva.

A pronúncia de Petersburgo é geralmente definida como literária, pedantemente livresca: “a pronúncia livresca de Petersburgo reduz a divisão entre o russo escrito e falado” (PANOV, 2002PANOV, M. V. Istoriia russkogo literaturnogo proiznosheniia ХVIII-ХХ vv. [A History of Russian literary pronunciation in the 18th-20th centuries]. Moscow: Editorial URSS, 2002.)9 9 No original: “knizhnoe proiznoshenie Peterburga umen'shaet propast' mezhdu russkim pis'mom i proiznosheniem”. .

A população russa de Harbin tinha uma composição social heterogênea: além de representantes de grupos privilegiados, pessoas com alto grau de formação e intelligentsia, havia pessoas de diferentes grupos sociais, representando várias regiões do país. A variante de pronúncia que se aproximava da literária foi mantida na sociedade de Harbin, pois somente essa variante poderia unir todos os falantes de russo que vinham para Harbin e tinham peculiaridades regionais e sociais na sua fala. O padrão ortoépico na Rússia também foi mudando gradualmente em direção à pronúncia literária, o que se refletiu na rejeição das variantes de pronúncia de Moscou em favor das de Petersburgo.

Levando em conta tudo isso, podemos concluir que o padrão de pronúncia em Harbin tinha suas próprias características especiais, e isso foi demostrado pela distribuição de possíveis variantes de pronúncia. As variantes que dominaram coincidiram com as variantes de Petersburgo e com aquelas que posteriormente passaram a caracterizar o padrão de pronúncia comum do russo – o padrão moderno. Uma característica comum dessas variantes era que elas estavam mais próximas à pronúncia literária. Esta variedade de russo de Harbin se difundiu posteriormente em comunidades de emigrantes em outros países, como Austrália, Brasil, EUA e Canadá, onde continuou sua existência entre outras línguas com maior capacidade demográfica e comunicativa.

Conclusão

O presente trabalho utilizou a elaboração de retratos sociais e de fala como método de estudo da língua russa falada por emigrantes, o que possibilitou revelar os traços comuns característicos da fala em russo em Harbin e estabelecer as características de pronúncia dessa fala no século XX. Essa variedade de fala posteriormente foi difundida em outros países, junto com os emigrantes que deixaram Harbin. Os resultados obtidos através de análise de retratos de fala dos últimos representantes da diáspora russa em Harbin mostraram que o desenvolvimento do padrão de pronúncia em russo na diáspora oriental, na China, caminhou na mesma direção do desenvolvimento da norma de pronúncia na própria Rússia – aproximando-se da pronúncia literária.

Agradecimentos

A autora agradece à Dra. Anna Smirnova Henriques, pós-doutoranda em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC-SP (São Paulo, Brasil), pelas discussões úteis e pela ajuda na edição do manuscrito.

  • Traduzido por Anna Smirnova Henriques - https://orcid.org/0000-0003-3011-372X; annsmile141@gmail.com
  • 1
    No original “Istoricheskaia i social'no-psihologicheskaia harakteristika harbinskogo soobshchestva vospolniaetsja vyjavleniem nekotoryh svoeobraznyh chert jazyka harbincev, stilja i kul'tury rechevogo povedenija gorozhan”.
  • 2
    No original: “monograficheskoe opisanie rechi otdel'nyh lic, harakterizuemoe pristal'nym vnimaniem k ee osobennostiam na vseh urovniah jazyka, k specifike rechevogo povedeniia, uchityvaiushhee lichnye i professional'nye svoistva, osobennosti biografii, usloviia osvoeniia russkogo iazyka i t. p. V rezul'tate takogo izucheniia my poluchaem rechevoii portret opredelennogo cheloveka, otrazhaiushhiii kak ego obshchie cherty, prisushchie emu kak predstaviteliu raznyh mnozhestv i podmnozhestv emigrantov, raspredelennyh po tem ili inym priznakam, tak i ego individual'nye cherty, prisushhie emu kak lichnosti”.
  • 3
    No original: “v kakoi stepeni proiznositel'nye izmeneniia obuslovleny vneshnimi (social'nymi) vozdeiistvijami na iazyk i v kakoii – vnutrennimi zakonami iazyka”.
  • 4
    No original: “obychno v rasporiazhenii issledovateleii imeetsia ogranichennyii ob’em zapiseii i nabliudeniii nad rechevoii dejatel'nost'iu govoriashchego v raznyh kommunikativnyh sferah, chto ne daet vozmozhnosti predstavit' ego kak iazykovuju lichnost' vo vsem mnogoobrazii”.
  • 5
    No original: “diagnostiruiushcheii informacieii, dostatochnoii dlia sozdaniia rechevyh portretov”.
  • 6
    No original: “fiksirovat' iarkie diagnostiruiushhie rechevye piatna”.
  • 7
    No original: “mnogie iazykovye paradigmy, nachinaia ot foneticheskih, konchaia slovoobrazovatel'nymi, okazyvaiutsia vpolne sootvetstvuiushchimi obshchenormativnym parametram i potomu interesa ne predstavliaiut”.
  • 8
    No original: “eto ljudi, kotorye sohranili ne tol'ko kul'turnoe russkoe nasledstvo, no i dorevoliucionnuiu bytovuju kul'turu, oni takzhe sohranili dorevoliucionnyii russkiii iazyk vo vseii ego chistote i prelesti i sumeli peredat' ego svoim detiam i dazhe vnukam. Oni znali literaturnyii russkiii iazyk, i u mnogih iz nih bylo peterburgskoe proiznoshenie. Bol'shinstvo byli predstaviteliami elitarnogo i literaturnogo tipov rechevoii kul'tury”.
  • 9
    No original: “knizhnoe proiznoshenie Peterburga umen'shaet propast' mezhdu russkim pis'mom i proiznosheniem”.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtinina. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, este periódico publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.

REFERÊNCIAS

  • ABLAZHEI, N. N. Hoziaistvenno-ekonomicheskaia deiatel'nost' rossiiskih emigrantov v Severnoi Manchzhurii [The Economic Activity of Russian Emigrants in North Manchuria]. In: Rossia i Kitai na dal'nevostochnyh rubezhah 2. Blagoveshchensk: AmSU, 2001. pp.130-136.
  • ABLOVA, N. Ye. KVZhD i rossiiskaia emigracia v Kitae: Mezhdunarodnye i politicheskie aspekty istorii (pervaja polovina XX veka) [The CER and Russian Emigration in China: International and Political Aspects of History (first half of the 20th century)]. Moscow: ND ID Russkaya panorama, 2004.
  • AVANESOV, R. I. Russkoe literaturnoe proiznoshenie [Russian Literary Pronunciation]. Moscow: KomKniga, 2005.
  • BYTSENKO, A. Imigração da Rússia para o Brasil no início do século XX. Visões do paraíso e do inferno. 134 p. Dissertação (Mestrado em Letras) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde-12112007-132926/pt-br.php Acesso em: 13 ago. 2021.
    » https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde-12112007-132926/pt-br.php
  • DUBININA, N. P.; TSIPKIN, Yu. N. Ob osobennostiah dal'nevostochnoi vetvi rossiiskoi emigracii (na materialah Harbinskogo komiteta pomoshchi russkim bezhentsam) [On the Features of the Far Eastern Branch of Russian Emigration (Based on Materials of the Harbin Committee for the Assistance of Russian Refugees)]. Otechestvennaja istoriia, n. 1, pp.70-84, 1996.
  • DZEMESHKEVICH, L. Harbintsy [Harbin Residents]. Omsk: Poligraficheskii centr OAT, 1998.
  • GOLUBEVA-MONATKINA, N. I. Emigrantskaia russkaia rech'. Russkiy iazyk zarubezh'ia [Emigrant Russian Speech. Russian Speech Abroad]. Moscow: Editorial URSS, 2001. pp.8-68.
  • GRANOVSKAYA, L. M. Russkii iazyk v «rasseianii». Ocherki po iazyku russkoii emigracii pervoi volny [The Russian Language in “Dispersal”. Essays on the Language of the Russian Emigration of the First Wave]. Moscow: IRAYZ, 1995.
  • GRANOVSKAYA, L. M. Sergei Mikhailovich Volkonsky (1860-1937). In: Russkiy iazyk zarubezh'ia. Moscow: Editorial URSS, 2009.
  • HIGA, B. S. O instituto São Vladimir e a presença russa em Santos, pela voz dos imigrantes (1958 – 1968). TCC (Licenciatura em História) – Universidade Católica de Santos, Santos, 2015.
  • IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico. Série nacional, v. 1, 1956. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/67/cd_1950_v1_br.pdf Acesso em: 15 ago. 2021.
    » https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/67/cd_1950_v1_br.pdf
  • KITAIGORODSKAYA, M. V.; ROZANOVA, N. N. Russkiy rechevoi portret: fonohrestomatiia [The Russian Speech Portrait: A Phonic Anthology]. Moscow: Nauka, 1995.
  • KRASILNIKOVA, E. V. Nikita Alekseevich Struve. In: KRASILNIKOVA, E. V. (ed.) Russkiy iazyk zarubezh'ia. Moscow: Editorial URSS, 2001. pp.311–342.
  • LAZAREVA, S. I.; SERGEEV, O. I. Migracionniy potencial russkih emigrantov v Kitae (20-30-e gg. XX v.). [The Migration Potential of Russian Emigrants in China (1920s-1930s)]. In: Rossia i Kitai na dal'nevostochnyh rubezhah 2. Blagoveshchensk: AmSU, 2001. pp.161-164.
  • LEVITSKY, V. V. Iazykovoi i iazykovedcheskiy fragment harbinistiki [The Language and Linguistic Fragment of Harbin Studies]. In: Gody. Ljudi. Sud'by. Istoriia rossiiskoi emigracii v Kitae [Years. People. Fates. The History of Russian Emigration in China]. Moscow: IRI RAN, 1998. pp.40-42.
  • NIKOLAEVA, T. M. “Sociolingvisticheskiy portret” i metody ego opisaniia. [“The Sociolinguistic Portrait” and the Methods of Its Description]. In: Russkiy iazyk i sovremennost'. Problemy i perspektivy razvitiia rusistiki 2. Moscow: 1991. pp.69-74.
  • OGLEZNEVA, E. A. Zhanr vospominaniia v rechi predstaviteleii harbinskoii diaspory: motivy i nastroeniia [Genre of Recounting Memories in the Speech of Representatives of the Harbin Diaspora: Motives and Moods]. In: Rossia i Kitai na dal'nevostochnyh rubezhah 2. Blagoveshchensk: AmSU, 2001. pp.196-201.
  • OGLEZNEVA, E. A. Rechevoi portret emigranta (na materiale rechi predstavitel'nicy russkoi diaspory v Harbine V. P. Han). [The Speech Portrait of an Emigrant (Based on the Speech of a Russian Diaspora Representative in Harbin V. P. Han]. In: Slovo: Fol'klorno-dialektologicheskiy al'manah 3. Formy sushchestvovaniia sovremennogo russkogo iazyka. Blagoveshchensk: AmSU, 2005. pp. 101-108.
  • OGLEZNEVA, E. A. Russkiy iazyk v vostochnom zarubezh'e: na materiale russkoi rechi v Harbine [The Russian Language in the Eastern Diaspora: Based on Materials of Russian Speech in Harbin]. Blagoveshchensk: AmSU, 2009.
  • PANOV, M. V. Istoriia russkogo literaturnogo proiznosheniia ХVIII-ХХ vv. [A History of Russian literary pronunciation in the 18th-20th centuries]. Moscow: Editorial URSS, 2002.
  • RAIAN, N. V. Rossiia – Harbin – Avstraliia: sohranenie i utrata iazyka na primere russkoi diaspory, prozhivsheii XX vek vne Rossii [Russia – Harbin – Australia: Preservation and Loss of Language on the Example of the Russian Diaspora Living Outside Russia in the 20th century]. Moscow: Russkiy put, 2005.
  • RUSEISHVILI, S. Ser russo em São Paulo. Os imigrantes russos e a reformulação de identidade após a Revolução Bolchevique de 1917. 383 p. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-13022017-124015/pt-br.php Acesso em: 13 ago. 2021.
    » https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-13022017-124015/pt-br.php
  • RUSEISHVILI, S. Perfil sociodemográfico e distribuição territorial dos russos em São Paulo: deslocados de guerra da Europa e refugiados da China após a Segunda Guerra Mundial. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 35, n. 2, 2018, p. 1-20. DOI https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0036 Acesso em: 15 ago. 2021.
    » https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0036
  • SKOROBOGATOVA, A. S.; SMIRNOVA HENRIQUES, A.; RUSEISHVILI, S.; SEKERINA, I.; MADUREIRA, S. Verbal Working Memory Assessment in Russian-Brazilian Portuguese Bilinguals. Cadernos de Linguística, v. 2, n. 4, e572, pp.1-24, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021. V2. N4.ID572
    » https://doi.org/10.25189/2675-4916.2021
  • SMIRNOVA HENRIQUES, A.; SKOROBOGATOVA, A. S.; RUSEISHVILI, S.; MADUREIRA, S.; SEKERINA, I. A. Challenges in Heritage Language Documentation: BraPoRus, Spoken Corpus of Heritage Russian in Brazil. In: INTERNATIONAL WORKSHOP ON DIGITAL LANGUAGE ARCHIVES, 1., 2021. Proceedings […]. Denton: University of North Texas, 2021. pp.22-24.
  • SMIRNOVA HENRIQUES, A.; SKOROBOGATOVA, A. S.; KACHKOVSKAIA, T. V.; SKRELIN, P.A.; RUSEISHVILI, S.; MADUREIRA, S.; SEKERINA, I. A. BraPoRus, Spoken Corpus of Heritage Russian in Brazil: Protocol of Data Collection. Cadernos de Linguística, v. 3, n. 1, e629, pp.1-20, 2022. DOI: 10.25189/2675-4916.2022. V3. N1.ID629
    » https://doi.org/10.25189/2675-4916.2022
  • SHCHERBA, L. V. Kratkiy ocherk russkogo proiznosheniia. Iazykovaia sistema i rechevaia deiatel'nost' [A Brief Sketch of Russian Pronunciation. The Language System and Speech Activity]. Moscow: Editorial URSS, 2004. pp.171-175.
  • STARYGINA, G. M. Lingvo-istoricheskie portrety harbintsev (na materiale rechi russkih emigrantov) [Social and Speech Portraiting of the Harbin’s Residentes (Based on the Russian Emigrants’ Speech)]. In: Istoricheskiy opyt osvoeniia Dal'nego Vostoka 4. Etnicheskie kontakty. Blagoveshchensk: AmSU, 2001. pp.263-269.
  • TAUT, M. P. Sberezhenniy russkiy iazyk [The Preserved Russian Language]. Russkaja Atlantida, n. 7, pp.35-38, 2001.
  • VERBITSKAYA, L. A. Russkaia orfojepiia (k probleme eksperimental'nofoneticheskogo issledovania osobennostei sovremennoii proiznositel'noii normy) [Russian Orthoepy (On the Problem of Experimental-Phonetic Research of Features of the Modern Pronunciation Standard)]. Leningrad: LSU publishers, 1976.
  • VERBITSKAYA, L. A. Davaite govorit' pravil'no [Let’s Talk Correctly]. Moscow: Vysshaya shkola, 2001.
  • VOROBIEFF, Alexandre. Identidade e memória da comunidade russa na cidade de São Paulo. 244 p. Dissertation (Master's degree in Human Geography) - Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde18062007-141410/pt-br.php Acesso em: 13 ago. 2021.
    » https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde18062007-141410/pt-br.php
  • ZEMSKAYA, E. A. Rechevoi portret emigrantki pervoi volny (k voprosu ob ob’asnitel'noi sile teorii estestvennoi morfologii) [A Speech Portrait of an Emigrant Woman of the First Wave (On the Issue of the Explanatory Power of the theory of natural Morphology)]. Russkii iazyk segodnia, n. 1, pp.100-121, 2000.
  • ZEMSKAYA, Ye. A.; GLOVINSKAIA, M. Ja.; BOBRIK, M. A. [eds.] Iazyk russkogo zarubezh'ia: Obshchie processy i rechevye portrety [The Language of the Russian Diaspora: General Processes and Speech Portraits]. Vienna: Wiener Slawistischer Almanach, 2001.

Declaração de disponibilidade de conteúdo

Os conteúdos subjacentes ao texto de pesquisa ficarão disponíveis no momento de publicação do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2022
  • Aceito
    07 Out 2022
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com