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Dante entre o furor e os estudos

RESUMO

Este artigo analisa uma polêmica do Humanismo italiano envolvendo Dante Alighieri (1265-1321). Naquele período, intelectuais como Cristóforo Landino (1424-1498) e Marsílio Ficino (1433-1499) interpretavam a escrita de Dante pelo prisma platônico do Fedro, isto é, como alguém a quem foram concedidos a graça de contemplar o divino e o poder de retratá-lo. Décadas antes, no entanto, Coluccio Salutati (1331-1406) e Leonardo Bruni (1370-1444) já haviam atribuído a Dante o mérito de ter se debruçado sobre os estudos formais e, com isso, ter sido capaz de desenvolver artifícios expressivos à sua poesia por conta própria. Para a análise das diferentes leituras, serão observados trechos em que Dante dá indícios de seu percurso e amadurecimento intelectual, assim como aqueles em que é possível observar a atuação do poeta na difusão do conhecimento formal em consonância com seus valores éticos.

PALAVRAS-CHAVE:
Dante Alighieri; Humanismo; Neoplatonismo

ABSTRACT

This article analyzes a polemic of Italian Humanism around Dante Alighieri (1265-1321). In that period, intellectuals such as Cristoforo Landino (1424-1498) and Marsilio Ficino (1433-1499) interpreted Dante’s writing through the platonic prism of the Phaedrus, that is, as someone who was granted the grace to contemplate the divine and the power to describe it. Decades earlier, however, Coluccio Salutati (1331-1406) and Leonardo Bruni (1370-1444) had already attributed to Dante the merit of focusing on formal studies and, with that, being able to develop expressive artifices to his poetry on its own. For the analysis of the different readings, excerpts in which Dante gives evidence of his path and intellectual maturity will be observed, as well as those in which it is possible to observe the poet’s role in the dissemination of formal knowledge in line with his ethical values.

KEYWORDS:
Dante Alighieri; Humanism; Neoplatonism

1 Landino versus Bruni

Em 1481, o filósofo humanista Cristóforo Landino dedica dois capítulos da introdução de seu comentário à Comédia a um dos temas que irá agitar as discussões intelectuais daquele momento histórico, quando o pensamento grego, e sobretudo Platão, voltava com força renovada à Europa ocidental1 1 Nos séculos anteriores, textos gregos já eram traduzidos ao latim por figuras de relevo como Robert Grosseteste, Willem van Moerbeke ou Leonzio Pilato; mas o renascimento das letras gregas no Ocidente é atribuído o período de Emmanuel Crisoloras em Florença (1397-1400). O bizantino havia levado àquela cidade parte de sua biblioteca como material para o ensino de grego na Universidade (Studio) de Florença, a convite do chanceler e filólogo Coluccio Salutati. Será, de modo mais geral, uma série de fatos a determinar o século XV como um período intenso de trânsito de pessoas, códices e livros que levavam à Europa as letras gregas sob um olhar filológico, entre esses: o projeto tradutório do Papa Nicolau V, o projeto bibliotecário do Cardeal Bessarion, a biblioteca do colecionador Niccolò Niccoli passada ao banqueiro e mecenas Cósimo de’ Medici (o Velho), a queda de Constantinopla, além da atuação tipográfica de Aldo Manuzio (cf. Speranzi, 2011). . Em seu Proêmio, Landino observa o “furor divino”, fenômeno ocorrido quando a mente de um poeta é raptada pelas musas ao Empíreo, morada dos bem-aventurados e da divindade cristã. Durante essa possessão, ao poeta era revelada parte da natureza superior, aquela verdade que se fazia necessária à força imaginativa como um modelo de coisas a serem cantadas pelo vate. Landino, com isso, afirma ser em vão a tentativa daqueles que buscam se tornar poeta sem tal êxtase, pois a arte de forjar a palavra poética em benefício de suas verdadeiras propriedades expressivas estava fora dos limites humanos, e sim no domínio do divino:

O nosso ânimo, portanto, se empenha em imitar [a imagem que lhe foi revelada]. E tal imitação é de dois tipos: há quem se deleite da harmonia da voz com instrumentos musicais, como os músicos levianos do vulgo, e há quem possua um julgamento mais aprofundado, que com versos mensurados exprimem os íntimos sentidos de sua mente; são apenas estes que, estimulados pelo espírito divino, podem escrever versos profundos e cheios de doutrina. Isto é o que Platão chama de poesia, a qual deleita os ouvidos não apenas com a suavidade da voz, como aquela música comum, mas também exprime altos e secretos sentidos divinos, e de celeste ambrosia alimenta a mente. Esse divino furor, como falamos tratando da arte poética, dizem proceder das Musas (Landino, 1481LANDINO, Cristóforo. Comento di Christophoro Landino fiorentino sopra la Comedia di Danthe poeta excellentissimo. Florença: Nicholo di Lorenzo della Magna, 1481. Disponível em: https://dante.dartmouth.edu/. Acesso em: 22 jun. 2023.
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, c.9v-10r; grifo nosso)2 2 Tradução nossa. No original, em italiano: “Ingegnasi adunque l’animo nostro d’imitare questa; ma tale imitazione è di due spetie. Imperochè altri sono che si dilectano del concento della voce et degli strumenti musici, et questi sono vulgari et leggieri musici; altri e quali sono di più grave giudicio, con misurati versi exprimano gl’intimi sensi della mente loro; et questi sono quegli che concitati da divino spirito possono gravissimi et sententiosissimi versi scrivere. Et questa da Platone è decta poesia, la quale non solamente con la suavità della voce dilecta gl’orecchi, chome quella vulgare musica, ma chome dixi alti et arcani et divini sensi discrive, et di celeste ambrosia pasce la mente. Et questo divino furore, chome trattando dell’arte poetica dicemmo, vogliono che proceda dalle Muse”. Uma síntese das mesmas ideias já havia aparecido na Prolusione dantesca (c. 1474), aula inaugural de Landino sobre a Comédia no Studio de Florença (cf. Landino, 2016). .

Defensor de uma íntima relação entre poesia e teologia como fundamentos para a civilidade exaltada pelo Humanismo, Landino terá um papel de destaque na celebração da Comédia de Dante como símbolo, na poesia, dos valores clássicos e contemporâneos que a Florença de Lorenzo de’ Medici já vinha há algumas gerações redescobrindo como estratégia para a afirmação cultural de um pensamento artístico calcado no modelo antigo. Tal como acontecia no fomento das artes, usadas como instrumento de poder político desde o avô de Lorenzo - Cósimo, o velho -, o processo de elevação da figura de Dante como modelo civil ocorria naquele século desde Coluccio Salutati, que na esteira de Boccaccio atuou em defesa da elocução de Dante, e na esteira de Petrarca atuou em defesa dos studia humanitatis para a interpretação dos valores da antiguidade3 3 Salutati, além de valorizar Dante como fonte de doutrina sobre o livre arbítrio (com referência a Purg. XVI 70-2), exalta a eloquência do poeta no seu De fato et fortuna (I 3 e III 11-12; 1985, p. 17-9 e p. 185-206) e em uma epístola a seu discípulo Poggio Bracciolini (Epistolario, vol. IV, p. 161 apud Gilson, 2019, p. 97). Outras figuras de relevo na construção dessa imagem heroica de Dante são, ainda na primeira metade do ‘400: Francesco Filelfo, professor do Studio e leitor público da Comédia nos anos 30; Matteo Palmieri, autor de uma Vita civile (Ed. 1982) no mesmo período; assim como Leonardo Bruni. .

É possível, no entanto, constatar pelo trecho citado de Landino que a teoria trazida ali não era nova. A ele fora apresentada sobretudo pelo encanto de seu contemporâneo Marsílio Ficino com a leitura do Fedro, diálogo em que Platão (245a; 1996PLATÃO. Fedro. Trad. Linda U. Candia. Notas de Franco Trabattoni. Milão: Mondadori, 1996., p. 70) detalha as origens da alma humana4 4 Nesse momento, a alma contemplava em Deus, como num espelho, a sapiência, a justiça, a harmonia e a beleza da natureza divina (cf. Landino, 1481, op. cit). Como observa Gilson (2019, p. 184), a leitura de Dante e Virgílio associados a Platão já está presente desde os primeiros comentadores de Dante, mas a ênfase de Ficino é “fora do comum”. e o contato que a mente do poeta poderia reestabelecer com o mundo das ideias perfeitas, do não-lugar e do não-tempo.5 5 Landino cita como fontes “Pitágoras, Empédocles, Heráclito e, finalmente, o divino Platão”, os mesmos já referidos por Marsílio Ficino em sua carta a Pellegrino Agli (Figline, 1 de dezembro de 1457; Ficino, 2016, p. 297). No Preâmbulo dantesco (op. cit.), a outra fonte referida por Landino são as Tuscolanas (I 26, 64; 1996, p. 64-67), do “platônico Túlio”. Mas as menções ao “furor divino” aparecem também em outros escritos de Cícero, como Pro Archia (VIII, 18; 1993, p. 14-17), De divinatione (I 37, 80; 1999, p. 66-67) e De oratore (II 46, 194; 1994, p. 436-437). Alguns exemplos desses poetas “raptados” pelas Musas teriam sido Hesíodo, Homero e o rei Davi, entre outros. E, como não poderia deixar de ser, ao trazer essa teoria na introdução à Comédia, Landino não se abstém de listar Dante entre esses.

Até aquele momento, menções à Comédia não costumavam ser precedidas pelo adjetivo “divina” que logo depois se consagrou no título6 6 A primeira menção a uma “divina Comédia” é de Giovanni Boccaccio (Vida de Dante §185; 2021, p. 82), e o título do poema será assim registrado a partir da edição de Ludovico Dolce (cf. Alighieri, 1555). Vale lembrar o uso comum do adjetivo, já aplicado outras vezes por Boccaccio ao “divino poeta Homero” (Vida de Dante §96; 2021, p. 57) e às “divinas obras de Virgílio” (Vida de Dante §192; 2021, p. 84); e por Petrarca que, por outro lado, o restringe à Eneida de Virgílio (Seniles IV v 12; 2019, p. 315). , e nem a figura do poeta era normalmente vista como profética, pois o passo em direção à sacralização de obra e autor se dá justamente no círculo neoplatônico de Florença que aqui observamos. Exemplo disso é o que Ficino diz, em apêndice à mesma introdução de Landino: Dante é, “após dois séculos, ressuscitado e restituído à sua pátria, já gloriosamente coroado (...). E volta realmente com semblante divino”7 7 Tradução nossa. No original, em latim: “Florentia iam diu mesta, sed tandem leta, Danthi suo Aligherio post duo ferme secula iam redivivo, et in patriam restituto, ac denique coronato, congratulatur (...) Conversus est tibi mortalis prior ille vultus in immortalem atque divinum”. Dante havia sido exilado de Florença em 1302, cidade natal para onde jamais voltaria. Tal condenação deriva de sua oposição à política da cúria romana, representada em Florença pelos Guelfos Negros. . Dá-se, com isso, não apenas a consolidação do poeta como ideal de intelectual por suas qualidades estético-artísticas, mas por serem reconhecidos nele os fins práticos da filosofia moral em prol da política e da civilidade, em que uma ideologia linguística em favor do idioma volgare volta a se propor com força na Florença dos Medici8 8 O volgare seria a língua “natural”, em oposição ao “nobre e artificial” latim. O processo consciente de elevação de um “vulgar” italiano para a escrita erudita é explicitado por Dante no Convívio e no De vulgari eloquentia, mas havia perdido força nas gerações seguintes também por conta da pouca circulação desses tratados. Uma retomada de tal propósito se dá em 1441, com a realização do Certame coronario, um concurso de poesia em língua volgare idealizado por Leon Battista Alberti e patrocinado por Piero de’ Medici, pai de Lorenzo, o Magnífico. .

Devido a esse impulso cultural num momento de amplo apoio às artes, o livro com os comentários de Landino irá se tornar um dos incunábulos italianos mais famosos de seu tempo, com vasta circulação.9 9 Com ampla tiragem e com mais de 160 exemplares remanescentes ainda hoje, a obra foi financiada por Bernardo degli Alberti, sobrinho de Leon Battista Alberti (Tropea, 2021, p. 142-143). Pode-se conjecturar que tenha sido por consequência dos escritos de Landino a junção fatídica do adjetivo “divina” ao título Comédia, uma vez que a primeira edição do poema em que é lido dessa forma será impressa poucas décadas depois, em 1555.

No início daquele mesmo século, já havia quem conhecesse a teoria platônica sobre o furor das musas e fosse contrário à sua atribuição a Dante: Leonardo Bruni, o responsável pela primeira tradução do Fedro para o latim.10 10 A tradução parcial é publicada em 1424. Bruni (Ep. VI 1; 2007, vol. 2 p. 36-40) fala também sobre o furor poético em carta a Giovanni Marrasio (7 de outubro de 1429). Tendo sido um dos mais proeminentes alunos de Coluccio Salutati e do bizantino Emmanuel Crisoloras em Florença, Bruni havia participado da vanguarda daquele renascimento das letras gregas na Europa ocidental, chegando ao cargo de chanceler da República florentina (de 1427 até sua morte, em 1444). Como importante intelectual e político vindo de Arezzo, um modo que encontrou para exaltar a cultura da terra que lhe tinha confiado o principal cargo administrativo municipal foi escrever sobre o ilustre florentino. Assim nasce a Vida de Dante (1436), uma sofisticada biografia usada para promoção e celebração da cidade de Florença, obra em que o poeta encarna a figura de cidadão ideal11 11 Numa reflexão biográfica e historiográfica no proêmio da obra, Bruni diz se tratar de um escrito complementar ao de Boccaccio (cf. nota 6), que a seu ver havia retratado a vida do poeta ao estilo de suas composições literárias, como o Filocolo, o Filostrato ou a Fiammetta. No texto de Bruni, a biografia de Dante vem seguida daquela de Petrarca, cujo objetivo patriótico se mostra no fim do mesmo proêmio: “julgo que a notícia e a fama desses poetas concernem imensamente à glória da nossa cidade”. Dante, contudo, já vinha sendo valorizado em diversas passagens da História florentina de Bruni (1424), após um olhar negativo sobre a escolástica dantesca nos seus Dialogi ad Petrum Paulum Histrum (1405-1406, Ed. 1994). Relevante também é a atuação do chanceler Bruni na tentativa, sem sucesso, de recuperar os restos mortais de Dante, quando os solicita em carta oficial de 1º de fevereiro de 1430 ao senhor de Ravenna, Obizzo da Polenta (Gilson, 2019, p. 121-161). . Nessa, o método de escrita de Dante é contraposto àquele que poderia ser recebido gratuitamente e à sua revelia:

O seu principal estudo foi a poesia, não estéril, pobre ou fantástica, mas fecundada, enriquecida e estabelecida por ciência verdadeira e por muitíssimas disciplinas. (...) Uma espécie, então, de poetas é formada por abstração interna e agitação da mente [como São Francisco, Orfeu e Hesíodo]; a outra espécie é formada por ciência, por estudo, por disciplina, arte e prudência. Dante foi dessa segunda espécie, pois, pelo estudo de filosofia, teologia, astrologia, aritmética e geometria, por lições de histórias, pelo revólver de muitos e diversos livros, em vigília e suor nos estudos, adquiriu o conhecimento que devia ornar e explicar com os seus versos (Bruni, 2022BRUNI, Leonardo. Vida de Dante (c. 1436). In: AUBERT, Eduardo H. (org.). Vidas de Dante: Escritos biográficos latinos e vernáculos dos séculos XIV e XV. 2ª ed. revista e ampliada. Cotia: Ateliê, 2022., p. 302-303).

Preocupado em associar Dante a um programa ético e político de proto-humanismo civil, Bruni interpreta sua escrita como resultado de um esforço individual baseado em textos que o antecederam, isto é, como fruto de um fazer poético-filosófico construído a partir das autoridades teóricas, a ser destacada como obra de um homem sábio e letrado e não de um eleito pelos céus. Como se vê, o chanceler tradutor conhecia de perto a teoria platônica, mas entendia que uma concepção atribuível a intelectos menos refinados não coubesse a alguém de cultura tão vasta como Dante.

2 A discussão em Dante

Será que essa discussão tem lugar dentro da obra de Dante? Na tentativa de entender como isso se reflete em seus escritos, observemos inicialmente alguns dos primeiros cantos do Inferno, nos quais será dito, e insistentemente repetido, algo sobre a sua relação com mentes humanas que o antecederam, mentes que haviam composto obras que foram suas fontes diretas em muitos casos.

Sabemos que a aventura do poeta-viajante na Comédia começa com o protagonista numa situação complicada, no meio de uma “selva escura” da qual vai tentar se liberar por um caminho que se revela um beco sem saída, com três animais que o impedem de seguir adiante. Quando tudo parece perdido, eis que lhe aparece uma sombra, a alma do antigo poeta latino Virgílio, que se apresenta e o convida a conhecer o mundo dos mortos. Nesse encontro inesperado, Virgílio é quem Dante reconhece abertamente como o autor mais influente na sua formação como poeta:

“Então és tu, Virgílio, aquela fonte que expande no falar tão largo flume?”, lhe respondi com vergonhosa fronte. “Ó dos outros poetas honra e lume, valham‑me o longo estudo e o grande amor que me levou a ler o teu volume. Tu és meu mestre, és o meu autor, tu és o único de quem colhi o belo estilo que me trouxe honor (Alighieri, Inferno I 79-87; 2021aALIGHIERI, Dante. Inferno. Trad., apres. e org. de Emanuel França de Brito, Maurício Santana Dias e Pedro Falleiros Heise. São Paulo: Companhia das Letras, 2021a., p. 49; grifo nosso).

A relação que vai se estabelecer entre os dois é bastante íntima, como entre pai e filho ou mestre e aluno, termos usados no poema para marcar esse vínculo ao longo da viagem. Contudo, para o que estamos aqui observando, será interessante notar que Dante não se exime de atribuir a Virgílio o crédito no processo intelectual e criativo que já o tinha consagrado como um poeta relevante naquela Florença dos séculos XIII e XIV. O “belo estilo” trágico e ilustre de Virgílio havia ensinado a Dante a capacidade de exprimir as mais profundas realidades humanas, o que lhe trouxera a honra de se distinguir por seus dotes intelectuais, artísticos e morais. Pela insistência do poeta no conceito de honra, observemos como esse termo irá se repetir nos trechos destacados a seguir.

Um pouco adiante, ainda no Inferno, com Dante e Virgílio tendo atravessado o Aqueronte, o leitor irá descobrir que há outros poetas de grande importância num espaço bem ali perto, no limbo. Ou seja, antes que eles entrem em contato com aqueles condenados que pagam pelos pecados cometidos no mundo dos vivos, saberemos de um lugar especial em que antigos espíritos não-batizados se reúnem protegidos por sete muros, dentro daquele que seria chamado mais adiante de “nobre castelo”. Chegando nesse lugar, o poeta-viajante percebe algo de diferente: uma luz que emana do meio das trevas, uma luz vinda de uma “honrada gente”.

De chão ainda havia um bom volume, não tanto que eu não discernisse em parte a honrada gente que ali se reúne (Alighieri, Inferno IV 70-72; 2021aALIGHIERI, Dante. Inferno. Trad., apres. e org. de Emanuel França de Brito, Maurício Santana Dias e Pedro Falleiros Heise. São Paulo: Companhia das Letras, 2021a., p. 87; grifo nosso).

Pouco antes de chegarem efetivamente nesse “nobre castelo”, descrito alguns versos adiante, Dante pergunta a seu guia - de um modo também bastante simbólico para o que estamos observando aqui - quem são essas almas que se destacam das outras ali presentes pelo traço característico da honra.

“Ó tu que muito honras ciência e arte, quem são esses que ostentam honra tanta, que do modo dos outros os reparte?”. E me falou: “A honradez que encanta e deles soa lá onde tens vida, graça no céu conquista que os levanta”. Nisto uma voz se fez por mim ouvida: “Todos honrai o altíssimo poeta cuja sombra retorna da saída”. Depois que a voz parou e se pôs quieta, vi quatro grandes sombras vindo a nós: nem tristes nem felizes, de alma reta (Alighieri, Inferno IV 73-84; 2021aALIGHIERI, Dante. Inferno. Trad., apres. e org. de Emanuel França de Brito, Maurício Santana Dias e Pedro Falleiros Heise. São Paulo: Companhia das Letras, 2021a., p. 87; grifos nossos).

Virgílio, então, responde que são aqueles cuja fama ainda ressoa no mundo dos vivos, uma fama que deriva das obras poéticas que sobrevivem após suas mortes. Esses espíritos conquistaram uma posição especial na justiça divina e, portanto, ficaram destacados das outras almas do inferno; são dignos, assim, de uma “honradez que encanta” o nosso mundo e faz com que a memória intelectual dos vivos intervenha na justiça divina em benefício deles lá embaixo, no mundo subterrâneo.

Eis que, então, uma voz desconhecida proclama uma ordem para as outras almas ali presentes: “Todos honrai o altíssimo poeta”. É um dos companheiros de “suspensão” de Virgílio que celebra a volta do poeta latino com sua nova dupla. Em seguida, outras quatro sombras muito serenas se aproximam e rodeiam os dois poetas recém-chegados. Virgílio os apresenta a seu discípulo Dante:

“(...) é Homero, poeta soberano; o outro é Horácio sátiro que vem; Ovídio é o terço, e o último, Lucano. E como a cada um e a mim convém o que entoou a voz lá solitária, me fazem honra, e nisso fazem bem”. Assim vi se juntar beleza vária da escola do senhor de vasto canto que sobre os outros voa como águia. Depois de conversarem, entretanto, voltaram-se pra mim em cumprimento, e meu mestre sorriu lá de seu canto; e honra maior fizeram‑ me no evento, tanto que àquele grupo eu fiz jus e sexto fui de muito entendimento (Alighieri, Inferno IV 88-102; 2021aALIGHIERI, Dante. Inferno. Trad., apres. e org. de Emanuel França de Brito, Maurício Santana Dias e Pedro Falleiros Heise. São Paulo: Companhia das Letras, 2021a., p. 89; grifos nossos).

Todos se reconhecem no nome “poeta”, assim como passam a reconhecer Dante como um dos seus e, por isso, não podem deixar de honrá-lo de forma recíproca. Assim, Dante os vê a todos ao redor de seu principal mestre Virgílio, que em sua superioridade poética sobrevoa o grupo de literatos como “águia”. Nesse momento, após uma rápida conversa entre eles, Dante se sente mais uma vez honrado e, de forma ainda mais incisiva, entra definitivamente a fazer parte do grupo como o “sexto (...) de muito entendimento”.

O episódio cheio de honrarias se encerra com o filósofo Aristóteles, personagem de destaque no pensamento dantesco e centro da consideração dos outros habitantes daquele lugar especial no limbo, dando ao episódio nada menos de que oito ocorrências da palavra “honra” (e suas derivadas), além daquela quando do encontro de Dante e Virgílio:

Erguendo meu olhar sempre em vigília, o mestre dos mais sábios eu vi lá em meio a filosófica família. Todos o miram, honra se lhe dá: ali vi Sócrates e vi Platão, o par que mais chegado a ele está; (Alighieri, Inferno IV 130-135; 2021aALIGHIERI, Dante. Inferno. Trad., apres. e org. de Emanuel França de Brito, Maurício Santana Dias e Pedro Falleiros Heise. São Paulo: Companhia das Letras, 2021a., p. 91; grifo nosso).

Como se constata pela reincidência do termo e suas variantes, essa deferência que Dante presta aos espíritos que se distinguiram por sua grandeza se reflete na ação que os mesmos lhe retribuem, reconhecendo no florentino um dos seus pares. É necessário, contudo, observar que a superioridade hierárquica se apresenta em ao menos dois momentos do episódio, com Virgílio (“que sobre os outros voa como águia”) e com Aristóteles (“o mestre dos mais sábios”), o que indica que a honra que permanece não é igual para todos. Aqui caberia, então, perguntar àqueles, como Landino, que defendiam a divindade da obra de Dante: se esses mesmos poetas, que ora emanam luz na escuridão infernal, foram contemplados pelo “divino furor”, por que a distinção entre eles?

Há sinais de que a leitura de Bruni pode estar mais próxima a como Dante se concebia como estudioso em outros lugares de sua obra; como no Convívio, o tratado anterior à Comédia em que o saber filosófico é apresentado como um nutrimento destinado aos laicos. Entre as menções autobiográficas feitas pelo poeta naquele tratado, há uma em que Dante lembra do problema de visão ocorrido na época em que escrevera uma das canções lá comentadas (entre 1294 e 1298). Naquele momento, o excesso de leitura havia provocado algo parecido com o que hoje se chama popularmente de vista embaçada ou cansada, dando a entender que o caminho intelectual percorrido por ele havia sido feito com os olhos do corpo, e não com aqueles de uma alma raptada:

E é por isso que muitos, quando querem ler, afastam os textos dos olhos, para que a imagem lhes chegue com menos esforço e mais nitidez, tornando-se a letra mais distinta à visão. Por esse motivo, a estrela pode também parecer turvada. Eu mesmo tive a experiência disso no mesmo ano em que nasceu essa canção, pois, por ter fatigado demais a visão pela grande dedicação em ler, debilitei tanto os espíritos visuais que as estrelas me pareciam todas sombreadas por certo clarão (Alighieri, Convívio III ix 14-15; 2019ALIGHIERI, Dante. Convívio. Trad., introd. e notas de Emanuel França de Brito. São Paulo: Penguin-Companhia, 2019., p. 220; grifo nosso).

Além de indicar sua conduta exaustiva sobre os livros, Dante nos dá outros indícios de que a razão humana não pode suplantar a matéria corporal, como no momento em que trata, ainda no Convívio, dos motores celestes e dos planetas concêntricos à Terra. Nesse momento, o poeta nos fala da impossibilidade de demonstrar empiricamente tal conceito por estarmos separados do plano metafísico:

Mas, ainda assim, devemos igualmente admirar a excelência das Inteligências - que supera os olhos da mente humana, como diz o Filósofo no segundo livro da Metafísica - e afirmar a sua existência. Porque, mesmo não tendo nenhuma percepção delas (a partir da qual se dá o nosso conhecimento), uma luz da sua mais viva essência resplandece no nosso intelecto, pela qual vemos as razões acima mencionadas e muitas outras; assim como quem tem os olhos fechados afirma que o ambiente está iluminado, pelo pouco do esplendor ou dos raios que passam às pupilas pelas pálpebras. De forma semelhante, os nossos olhos intelectuais permanecem fechados enquanto a alma é atada e encarcerada pelos órgãos do nosso corpo (Alighieri, Convívio II iv 16-17; 2019ALIGHIERI, Dante. Convívio. Trad., introd. e notas de Emanuel França de Brito. São Paulo: Penguin-Companhia, 2019., p. 151; grifos nossos)12 12 E cf. Aristóteles, Metafísica II 1 (993b 1-11; 2008, p. 705). .

Embora esses dois últimos trechos possam ser colocados cronologicamente antes da viagem narrada na Comédia, isto é, antes do imaginado “rapto” de Dante ao Empíreo, observemos um passo da Monarquia, livro provavelmente contemporâneo à última parte do poema13 13 Pela estreita relação entre passos da Monarquia (I xii 6) e do Paraíso (V 19 ss.), a datação daquela obra ainda é discutida (Chiesa; Tabarroni. Introduzione, in Alighieri, 2013, pp. lx-lxiii). , em que são explicadas as maneiras como um homem pode alcançar a felicidade nesta vida terrena. Ao tratar da dupla beatitude humana, o poeta afirma que “a felicidade nesta vida consiste no exercício da própria virtude ativa; (...) essa é alcançada graças aos ensinamentos da filosofia, desde que sejam seguidos de acordo com as virtudes morais e intelectuais” (Alighieri, Monarquia III xv 7-9; 2013ALIGHIERI, Dante. Monarchia. Ed. P. Chiesa e A. Tabarroni. Rome: Salerno, 2013., p. 50-51; grifos nossos)14 14 Tradução nossa. No original, em latim: “beatitudinem scilicet huius vite, que in operatione proprie virtutis consistit (...) per phylosophica documenta venimus, dummodo illa sequamur secundum virtutes morales et intellectuales operando”. . Assim, Dante indica que o alcance de nossa plena natureza terrena - já apresentada por ele em outro momento e sempre seguindo a autoridade de Aristóteles -15 15 “Assim como diz o Filósofo no início da Primeira Filosofia, todos os homens por natureza desejam saber” (Alighieri, Convívio I i 1; 2019, p. 107). é possível apenas pela prática intelectual dos estudos teóricos. Nesse sentido, a compreensão do texto escrito deve servir como guia em direção à sabedoria dos antigos filósofos e das escrituras sagradas com objetivos éticos, de modo que nosso comportamento seja constantemente revisto em prol da harmonia social, numa leitura que Imbach (2003IMBACH, Ruedi. Dante, la filosofia e i laici. Trad. M. Ferrarini. Gênova: Marietti, 2003., p. 151-166) chama de dimensão política do intelecto humano em Dante.

Disso não pode haver dúvidas quando aceitamos o teor da epístola do poeta a seu benfeitor no exílio, Cangrande della Scala, em que lhe são oferecidos os cantos do Paraíso sob as seguintes palavras: “O gênero de filosofia no qual aqui se procede no todo e nas partes é a atividade moral, isto é, a ética; pois, tanto a obra como um todo como suas partes foram concebidas não para a especulação, mas para a ação” (Alighieri, Epístola XIII 40; 2016ALIGHIERI, Dante. Epistole, Egloge, Questio de aqua et terra. Ed. M. Baglio, L. Azzetta, M. Petoletti e M. Rinaldi. Roma: Salerno, 2016., p. 370-1; grifos nossos)16 16 Tradução nossa. No original, em latim: “Genus vero phylosophie sub quo hic in toto et parte proceditur, est morale negotium, sive ethica; quia non ad speculandum, sed ad opus inventum est totum et pars”. .

No trecho da Monarquia citado, a beatitude eterna (concedida como graça aos eleitos) é contraposta a outra beatitude completamente racional e independente, para a qual basta apenas o arbítrio humano. E como já observado aqui e em outros lugares17 17 Cf. Alighieri, 2019, Introdução. , o empenho de Dante na difusão do conhecimento na língua florentina que ele pretendia illustre está intimamente conectado a um fim prático, de forma a orientar os leitores daquela língua “natural” numa nova e elegante forma de comunicação escrita a ser acessível também a quem não tinha entrada nos textos filosóficos em latim. Para tanto, seria preciso que um potencial leitor escolhesse ler.

Conclusão

Observando de modo mais amplo a contraposição entre as duas posturas indicadas no começo deste artigo (Landino versus Bruni), seria até possível dizer que as modalidades de composição poética baseadas na conquista esforçada pela leitura de um estudioso ou na concessão gratuita não eram necessariamente opostas para Landino na sua introdução à Comédia. O “furor divino”, para ele, concederia ao autor a capacidade de expressar, embelezadas pelo verso, todas as disciplinas desenvolvidas pela humanidade ao longo dos milênios. Seria essa, então, uma contradição em Landino? Pois, sem as ciências do homem, como expressar algo que pudesse ser compreensível ao homem? A tarefa, nesse sentido, caberia não só aos poetas, mas aos filósofos.

Não à toa, como se viu, encontramos nos episódios do Inferno citados poetas junto a filósofos. Nesse trecho, tal como no do Fedro retomado por Landino e Ficino, a figura do poeta agraciado com a sabedoria passa a se confundir com a do filósofo, os únicos capazes de contemplar a nua Verdade na qual se apoia a Sabedoria18 18 Essa é a alegoria ilustrada no afresco de Luca Giordano no Palazzo Medici-Riccardi, atual sala de leitura da Biblioteca Riccardiana, em Florença. Na pintura, um jovem contempla a Sabedoria apoiada nas nuvens da Verdade. Mas tal contemplação não se dá de forma direta, e sim através de um espelho segurado pelo Estudo (ou Prudência) e apenas para o estudioso em quem as cordas da ignorância já estão desamarradas. A Teologia estende a mão e a Filosofia concede uma asa a esse jovem, enquanto outra asa é trazida do alto por um menino. Do lado, dois outros meninos destilam ervas e flores para que a mente, colhendo a essência da criação, compreenda o invisível. Abaixo, em meio a uma paisagem árida que remete à dificuldade do caminho que leva ao conhecimento, há um alusivo verso de Petrarca: Movem nosso intelecto da terra ao céu (“Levan di terra a ciel nostro intelletto”; Canzoniere, 10). Cf. Giordano, 1685. .

Numa busca intelectual que desse conta dessa sobreposição de sentidos, a etimologia dos termos “poeta” e “poesia” esteve no centro de um longo debate que, pelo menos desde Petrarca e Boccaccio19 19 Do grego poiētḗs (potência formadora), derivado do verbo poiéō (faço, produzo); cf. Petrarca, Fam. X, 4 (2016, p. 289-291) e Boccaccio, Vida de Dante §128-155 (2021, p. 65-73). Tal como Bruni, Petrarca também havia relatado em carta a Boccaccio certa admiração por Dante, que no momento do exílio político havia deixado tudo de lado para se dedicar somente aos estudos, “desejoso apenas de glória”. Essa admiração, no entanto, não chegaria a ponto de reconhecer o poeta florentino como par dos filósofos ou poetas antigos, principalmente porque Dante havia se destacado apenas naquela matéria “inferior” que era a poesia em língua volgare, à qual Petrarca teria se dedicado de modo secundário e somente na juventude; cf. Petrarca, Fam. XXI, 15. (2009, p. 3069-3087). , recuperava a noção grega dos poetas como os primeiros teólogos, capazes de produzir conhecimento a partir do contato de suas mentes com os planos superiores. Marsílio Ficino (2016FICINO, Marsílio. Lettera a Pellegrino Agli (1457). In: VV. AA. Umanisti italiani. Turim: Einaudi, 2016. p. 296-304., p. 298) em menção direta ao Fedro refere que “só a mente do filósofo possui [as] asas” para ser conduzida às alturas, para além do corpo.20 20 E cf. Platão, Fedro 249c (1996, p. 81). Nesse diálogo, Platão parece afirmar que o logos do homem não é capaz de dizer tudo, e que a filosofia seria alimentada por uma projeção para além do discurso racional. Assim, as figuras do filósofo e do poeta não se mostram mais tão dissociadas ou distantes, mas, ao contrário, tendem a se aproximar até coincidirem21 21 Trabattoni (cf. Platão, 1996, p. 70, nota 45) atenta para o fato de que a ideia de poesia como inspiração divina, muito presente no pensamento antigo grego, aparece em diversas obras de juventude de Platão (Apologia de Sócrates, Íon, Menon). Contudo, ele diz, naquelas a identidade de poesia e inspiração divina serve para separar a poesia - atitude feliz, mas incontrolável - da razão (logos), à qual compete determinar os princípios da vida moral. , sem aquela oposição crucial que veremos na crítica da mimesis na República (595a ss.; 2017, p. 449 ss.)22 22 Segundo Ferrari (2022, p. 130), a exclusão de Homero, Hesíodo e dos tragediógrafos da cidade em vias de construção não pode comportar a supressão de toda forma de poesia. Platão é profundamente consciente da extraordinária atração que a poesia exercita, de seu fascínio e da capacidade que ela possui em envolver as almas dos destinatários. .

Mais pragmático, Bruni (2022BRUNI, Leonardo. Vida de Dante (c. 1436). In: AUBERT, Eduardo H. (org.). Vidas de Dante: Escritos biográficos latinos e vernáculos dos séculos XIV e XV. 2ª ed. revista e ampliada. Cotia: Ateliê, 2022., p. 304) também havia se expressado sobre a origem da palavra “poeta” em sua Vida de Dante: “é um nome grego e quer dizer ‘fazedor’; (...) é, então, aquele que faz alguma obra, isto é, autor e compositor daquilo que outros leem”. E, como se vê a partir de algumas passagens de sua obra teórica e poética, Dante não se exime do empenho intelectual para a construção do pensamento teórico que irá se refletir com força no poema da Comédia. Talvez por isso sua figura tenha um valor inestimável para a Florença do século XV, em que um “verdadeiro amante da sabedoria - verdadeiro humanista - será quem consegue unir, sem confusão e com um ‘vínculo maravilhoso’, res e nomina, a fim de mostrar a inseparabilidade entre linguagem e realidade” (Ebgi, 2016EBGI, Raphael. Filologia e filosofia. In: VV. AA. Umanisti italiani. Turim: Einaudi, 2016. p. 147-155., p. 147)23 23 Tradução nossa. No original, em italiano: “Vero amante della sapienza - vero umanista - sarà dunque chi riesce a legare senza confusione, e in “meraviglioso nesso”, res e nomina, al fine di mostrare l’inseparabilità di linguaggio e realtà”. . Ainda assim, a racionalidade humana no seu pleno exercício não pôde ser vista como “divina” por alguns daqueles que mais cultuaram o poeta naquele período, como Landino e Ficino.

Privilegiando os princípios éticos que devem guiar a expressão linguística, Dante é enfático quando concebe sua obra como apoio aos que procuram se instruir e melhorar a experiência coletiva neste mundo físico. É o que lemos também no episódio do Purgatório em que Beatriz lhe revela o motivo da sua presença no além,

Por isso, em prol do mundo que mal vive no carro tem teus olhos, e o que vês - tendo voltado tu pra lá - escreve (Alighieri, Purgatório XXXII 103-105; 2021bALIGHIERI, Dante. Commedia. Ed. crítica de Giorgio Inglese. 3 vols. Florença: Le Lettere, 2021b., vol. 2, p. 277; grifo nossos)24 24 Tradução nossa. No original, em italiano: “Però, in prò del mondo che mal vive, / al carro tieni or li occhi, e quel che vedi, / ritornato di là, fa che tu scrive”. .

informação que será reiterada duas vezes no Paraíso: nas palavras de seu ancestral Cacciaguida,

Portanto, faz que sem qualquer mentira a visão tua fique manifesta; e deixa quem tem sarna que se fira (Alighieri, Paraíso XVII 127-129; 2021bALIGHIERI, Dante. Commedia. Ed. crítica de Giorgio Inglese. 3 vols. Florença: Le Lettere, 2021b., vol. 3, p. 145; grifo nosso)25 25 Tradução nossa. No original, em italiano: “Ma nondimen, rimossa ogni menzogna, / tutta tua visïon fa manifesta, / e lascia pur grattar dov’è la rogna”. .

e naquelas de São Pedro,

e tu, filho, que por mortal volume pra baixo voltarás, abre tua boca, e em tudo o que esclareço joga lume (Alighieri, Paraíso XXVII 64-66; 2021bALIGHIERI, Dante. Commedia. Ed. crítica de Giorgio Inglese. 3 vols. Florença: Le Lettere, 2021b., vol. 3, p. 223; grifos nossos)26 26 Tradução nossa. No original, em italiano: “e tu, figliuol, che per lo mortal pondo / ancor giù tornerai, apri la bocca / e non asconder quel ch’io non ascondo”.

E mesmo que todo o poema da Comédia se funde na alegoria da revelação beatífica, sobre o qual a “visão” enquanto gênero poético se constrói, o “rapto” das musas toma forma no início do poema com o corpo de um homem que aceita um convite e caminha com as próprias pernas para sair da “selva escura”, em direção ao conhecimento do mundo. Mas, para isso, esse mesmo homem - enquanto personagem histórico que se constrói personagem literário de sua própria obra - precisou antes ter passado pelo mundo do conhecimento.

REFERÊNCIAS

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    » https://www.palazzomediciriccardi.it/mediateca/laeintelletto-contempla-la-verita-allegoria-della-divina-sapienza/ e http://www.riccardiana.firenze.sbn.it/index.php/it/la-biblioteca/cenni-storici/2-non-categorizzato/49-affresco-della-sala-di-lettura
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  • SALUTATI, Coluccio. De fato et fortuna. Ed. Concetta Bianca. Florença: Olschki, 1985.
  • TROPEA, Francesca. Il Dante del Landino. In: ALBANESE, Gabriella et al. Dante e il suo tempo nelle biblioteche fiorentine. Florença: Mandragora, 2021.
  • Declaração de disponibilidade de conteúdo

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  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
  • 1
    Nos séculos anteriores, textos gregos já eram traduzidos ao latim por figuras de relevo como Robert Grosseteste, Willem van Moerbeke ou Leonzio Pilato; mas o renascimento das letras gregas no Ocidente é atribuído o período de Emmanuel Crisoloras em Florença (1397-1400). O bizantino havia levado àquela cidade parte de sua biblioteca como material para o ensino de grego na Universidade (Studio) de Florença, a convite do chanceler e filólogo Coluccio Salutati. Será, de modo mais geral, uma série de fatos a determinar o século XV como um período intenso de trânsito de pessoas, códices e livros que levavam à Europa as letras gregas sob um olhar filológico, entre esses: o projeto tradutório do Papa Nicolau V, o projeto bibliotecário do Cardeal Bessarion, a biblioteca do colecionador Niccolò Niccoli passada ao banqueiro e mecenas Cósimo de’ Medici (o Velho), a queda de Constantinopla, além da atuação tipográfica de Aldo Manuzio (cf. Speranzi, 2011).
  • 2
    Tradução nossa. No original, em italiano: “Ingegnasi adunque l’animo nostro d’imitare questa; ma tale imitazione è di due spetie. Imperochè altri sono che si dilectano del concento della voce et degli strumenti musici, et questi sono vulgari et leggieri musici; altri e quali sono di più grave giudicio, con misurati versi exprimano gl’intimi sensi della mente loro; et questi sono quegli che concitati da divino spirito possono gravissimi et sententiosissimi versi scrivere. Et questa da Platone è decta poesia, la quale non solamente con la suavità della voce dilecta gl’orecchi, chome quella vulgare musica, ma chome dixi alti et arcani et divini sensi discrive, et di celeste ambrosia pasce la mente. Et questo divino furore, chome trattando dell’arte poetica dicemmo, vogliono che proceda dalle Muse”. Uma síntese das mesmas ideias já havia aparecido na Prolusione dantesca (c. 1474), aula inaugural de Landino sobre a Comédia no Studio de Florença (cf. Landino, 2016).
  • 3
    Salutati, além de valorizar Dante como fonte de doutrina sobre o livre arbítrio (com referência a Purg. XVI 70-2), exalta a eloquência do poeta no seu De fato et fortuna (I 3 e III 11-12; 1985, p. 17-9 e p. 185-206) e em uma epístola a seu discípulo Poggio Bracciolini (Epistolario, vol. IV, p. 161 apud Gilson, 2019, p. 97). Outras figuras de relevo na construção dessa imagem heroica de Dante são, ainda na primeira metade do ‘400: Francesco Filelfo, professor do Studio e leitor público da Comédia nos anos 30; Matteo Palmieri, autor de uma Vita civile (Ed. 1982) no mesmo período; assim como Leonardo Bruni.
  • 4
    Nesse momento, a alma contemplava em Deus, como num espelho, a sapiência, a justiça, a harmonia e a beleza da natureza divina (cf. Landino, 1481, op. cit). Como observa Gilson (2019, p. 184), a leitura de Dante e Virgílio associados a Platão já está presente desde os primeiros comentadores de Dante, mas a ênfase de Ficino é “fora do comum”.
  • 5
    Landino cita como fontes “Pitágoras, Empédocles, Heráclito e, finalmente, o divino Platão”, os mesmos já referidos por Marsílio Ficino em sua carta a Pellegrino Agli (Figline, 1 de dezembro de 1457; Ficino, 2016, p. 297). No Preâmbulo dantesco (op. cit.), a outra fonte referida por Landino são as Tuscolanas (I 26, 64; 1996, p. 64-67), do “platônico Túlio”. Mas as menções ao “furor divino” aparecem também em outros escritos de Cícero, como Pro Archia (VIII, 18; 1993, p. 14-17), De divinatione (I 37, 80; 1999, p. 66-67) e De oratore (II 46, 194; 1994, p. 436-437).
  • 6
    A primeira menção a uma “divina Comédia” é de Giovanni Boccaccio (Vida de Dante §185; 2021, p. 82), e o título do poema será assim registrado a partir da edição de Ludovico Dolce (cf. Alighieri, 1555). Vale lembrar o uso comum do adjetivo, já aplicado outras vezes por Boccaccio ao “divino poeta Homero” (Vida de Dante §96; 2021, p. 57) e às “divinas obras de Virgílio” (Vida de Dante §192; 2021, p. 84); e por Petrarca que, por outro lado, o restringe à Eneida de Virgílio (Seniles IV v 12; 2019, p. 315).
  • 7
    Tradução nossa. No original, em latim: “Florentia iam diu mesta, sed tandem leta, Danthi suo Aligherio post duo ferme secula iam redivivo, et in patriam restituto, ac denique coronato, congratulatur (...) Conversus est tibi mortalis prior ille vultus in immortalem atque divinum”. Dante havia sido exilado de Florença em 1302, cidade natal para onde jamais voltaria. Tal condenação deriva de sua oposição à política da cúria romana, representada em Florença pelos Guelfos Negros.
  • 8
    O volgare seria a língua “natural”, em oposição ao “nobre e artificial” latim. O processo consciente de elevação de um “vulgar” italiano para a escrita erudita é explicitado por Dante no Convívio e no De vulgari eloquentia, mas havia perdido força nas gerações seguintes também por conta da pouca circulação desses tratados. Uma retomada de tal propósito se dá em 1441, com a realização do Certame coronario, um concurso de poesia em língua volgare idealizado por Leon Battista Alberti e patrocinado por Piero de’ Medici, pai de Lorenzo, o Magnífico.
  • 9
    Com ampla tiragem e com mais de 160 exemplares remanescentes ainda hoje, a obra foi financiada por Bernardo degli Alberti, sobrinho de Leon Battista Alberti (Tropea, 2021, p. 142-143).
  • 10
    A tradução parcial é publicada em 1424. Bruni (Ep. VI 1; 2007, vol. 2 p. 36-40) fala também sobre o furor poético em carta a Giovanni Marrasio (7 de outubro de 1429).
  • 11
    Numa reflexão biográfica e historiográfica no proêmio da obra, Bruni diz se tratar de um escrito complementar ao de Boccaccio (cf. nota 6), que a seu ver havia retratado a vida do poeta ao estilo de suas composições literárias, como o Filocolo, o Filostrato ou a Fiammetta. No texto de Bruni, a biografia de Dante vem seguida daquela de Petrarca, cujo objetivo patriótico se mostra no fim do mesmo proêmio: “julgo que a notícia e a fama desses poetas concernem imensamente à glória da nossa cidade”. Dante, contudo, já vinha sendo valorizado em diversas passagens da História florentina de Bruni (1424), após um olhar negativo sobre a escolástica dantesca nos seus Dialogi ad Petrum Paulum Histrum (1405-1406, Ed. 1994). Relevante também é a atuação do chanceler Bruni na tentativa, sem sucesso, de recuperar os restos mortais de Dante, quando os solicita em carta oficial de 1º de fevereiro de 1430 ao senhor de Ravenna, Obizzo da Polenta (Gilson, 2019, p. 121-161).
  • 12
    E cf. Aristóteles, Metafísica II 1 (993b 1-11; 2008, p. 705).
  • 13
    Pela estreita relação entre passos da Monarquia (I xii 6) e do Paraíso (V 19 ss.), a datação daquela obra ainda é discutida (Chiesa; Tabarroni. Introduzione, in Alighieri, 2013, pp. lx-lxiii).
  • 14
    Tradução nossa. No original, em latim: “beatitudinem scilicet huius vite, que in operatione proprie virtutis consistit (...) per phylosophica documenta venimus, dummodo illa sequamur secundum virtutes morales et intellectuales operando”.
  • 15
    “Assim como diz o Filósofo no início da Primeira Filosofia, todos os homens por natureza desejam saber” (Alighieri, Convívio I i 1; 2019, p. 107).
  • 16
    Tradução nossa. No original, em latim: “Genus vero phylosophie sub quo hic in toto et parte proceditur, est morale negotium, sive ethica; quia non ad speculandum, sed ad opus inventum est totum et pars”.
  • 17
    Cf. Alighieri, 2019, Introdução.
  • 18
    Essa é a alegoria ilustrada no afresco de Luca Giordano no Palazzo Medici-Riccardi, atual sala de leitura da Biblioteca Riccardiana, em Florença. Na pintura, um jovem contempla a Sabedoria apoiada nas nuvens da Verdade. Mas tal contemplação não se dá de forma direta, e sim através de um espelho segurado pelo Estudo (ou Prudência) e apenas para o estudioso em quem as cordas da ignorância já estão desamarradas. A Teologia estende a mão e a Filosofia concede uma asa a esse jovem, enquanto outra asa é trazida do alto por um menino. Do lado, dois outros meninos destilam ervas e flores para que a mente, colhendo a essência da criação, compreenda o invisível. Abaixo, em meio a uma paisagem árida que remete à dificuldade do caminho que leva ao conhecimento, há um alusivo verso de Petrarca: Movem nosso intelecto da terra ao céu (“Levan di terra a ciel nostro intelletto”; Canzoniere, 10). Cf. Giordano, 1685.
  • 19
    Do grego poiētḗs (potência formadora), derivado do verbo poiéō (faço, produzo); cf. Petrarca, Fam. X, 4 (2016, p. 289-291) e Boccaccio, Vida de Dante §128-155 (2021, p. 65-73). Tal como Bruni, Petrarca também havia relatado em carta a Boccaccio certa admiração por Dante, que no momento do exílio político havia deixado tudo de lado para se dedicar somente aos estudos, “desejoso apenas de glória”. Essa admiração, no entanto, não chegaria a ponto de reconhecer o poeta florentino como par dos filósofos ou poetas antigos, principalmente porque Dante havia se destacado apenas naquela matéria “inferior” que era a poesia em língua volgare, à qual Petrarca teria se dedicado de modo secundário e somente na juventude; cf. Petrarca, Fam. XXI, 15. (2009, p. 3069-3087).
  • 20
    E cf. Platão, Fedro 249c (1996, p. 81).
  • 21
    Trabattoni (cf. Platão, 1996, p. 70, nota 45) atenta para o fato de que a ideia de poesia como inspiração divina, muito presente no pensamento antigo grego, aparece em diversas obras de juventude de Platão (Apologia de Sócrates, Íon, Menon). Contudo, ele diz, naquelas a identidade de poesia e inspiração divina serve para separar a poesia - atitude feliz, mas incontrolável - da razão (logos), à qual compete determinar os princípios da vida moral.
  • 22
    Segundo Ferrari (2022, p. 130), a exclusão de Homero, Hesíodo e dos tragediógrafos da cidade em vias de construção não pode comportar a supressão de toda forma de poesia. Platão é profundamente consciente da extraordinária atração que a poesia exercita, de seu fascínio e da capacidade que ela possui em envolver as almas dos destinatários.
  • 23
    Tradução nossa. No original, em italiano: “Vero amante della sapienza - vero umanista - sarà dunque chi riesce a legare senza confusione, e in “meraviglioso nesso”, res e nomina, al fine di mostrare l’inseparabilità di linguaggio e realtà”.
  • 24
    Tradução nossa. No original, em italiano: “Però, in prò del mondo che mal vive, / al carro tieni or li occhi, e quel che vedi, / ritornato di là, fa che tu scrive”.
  • 25
    Tradução nossa. No original, em italiano: “Ma nondimen, rimossa ogni menzogna, / tutta tua visïon fa manifesta, / e lascia pur grattar dov’è la rogna”.
  • 26
    Tradução nossa. No original, em italiano: “e tu, figliuol, che per lo mortal pondo / ancor giù tornerai, apri la bocca / e non asconder quel ch’io non ascondo”.

Disponibilidade de dados

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    26 Set 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
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