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As múltiplas faces do diálogo em Um certo capitão Rodrigo, de Érico Veríssimo

RESUMO

Este ensaio tem como escopo averiguar como o dialogismo se presentifica no texto literário, especificamente em excertos do capítulo Um certo capitão Rodrigo, da obra O tempo e o vento, de Érico Verissimo. Tenciona-se examinar, na materialidade do texto, que procedimentos enunciativo-discursivos foram mobilizados na encenação dialógica da verdade e do pensamento, configurados tal como uma sátira menipeia, e de que forma as categorias da percepção carnavalesca de mundo dessacralizam e submetem ao riso o discurso do poder.

PALAVRAS-CHAVE:
Um certo capitão Rodrigo; Dialogismo; Percepção carnavalesca de mundo

ABSTRACT

This essay aims to ascertain how dialogism manifests in a literary work. For that purpose, we will focus specifically on some excerpts taken from the chapter A Certain Captain Rodrigo of the novel Time and the Wind, by Érico Veríssimo. We intend to examine, in the materiality of the text, which utterative-discursive procedures were used in the dialogical staging of truth and thought present in the Menippean satire and how the authoritarian discourse is desecrated and subjected to laughter by the categories of the carnivalesque worldview.

KEYWORDS:
A Certain Captain Rodrigo; Dialogism; Carnivalesque worldview

Introdução

Viver significa orientar-se pelo diálogo. Quando termina o diálogo, tudo termina.

Mikhail Bakhtin

Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.

Italo Calvino

A obra literária é o objeto estético pleno de sentidos, pois busca ver “o homem na sociedade e o indivíduo na sua humanidade” (CHAVES, 1992CHAVES, F. L. O contador de histórias. Porto Alegre: Globo, 1972., p.21). Em seu conteúdo se descortinam representações de valores históricos e de visões de mundo que refletem e refratam a ideologia de um determinado período. Tramada sintática e semanticamente, a obra desvela ideologias, caracteriza indivíduos, atividades humanas, situações em um determinado momento cultural, histórico e social, em suma, índices reveladores de posicionamentos advindos dos sujeitos nela instaurados. Na escrita, o autor-criador avalia que palavras utilizará para expressar com maestria as suas ideias e enformá-las esteticamente. A escolha da palavra implica um processo de semiotização, já que se desdobra na incorporação, ampliação, alteração, nas réplicas e confrontações. Os diálogos encetados nas obras permitem vislumbrar o modo de superação dos impasses da existência, a luta entre pontos de vista e juízos de valor entre os interlocutores (ou da própria personagem consigo mesma). Os diálogos no romance, pois, são a representação artística das ideias e reencenam a própria essência da linguagem: o dialogismo, base teórica do discurso.

Para se compreender as perspectivas epistemológicas do dialogismo, é preciso considerar a concepção de linguagem desenvolvida por Bakhtin em conjunto com Volóchinov, com Medviédev e com outros pensadores (do que hoje se denomina Círculo de Bakhtin). Na obra Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico nas ciências da linguagem (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.) discute-se a natureza ideológica do signo linguístico, do dinamismo de suas significações, da alteridade, do signo como arena da luta de classes, das análises dos diferentes tipos de discurso, bases do dialogismo. Todo diálogo é uma arena para o confronto de valores sociais que se opõem insistentemente, são vozes ideológicas, verdades em luta. Assim, a linguagem literária traz para dentro de si os discursos sociais e culturais, organizados em diferentes épocas e espaços. Devido ao seu inacabamento, ela reflete ainda mais a evolução da própria realidade. O que singulariza o romance é o fato de ser capaz de evidenciar o lado direito e avesso do discurso, e de os diálogos representarem a superação dos impasses da existência.

Tomando-se como pressuposto o fato de que a linguagem é a matéria-prima da obra literária e de que o romance é a representação da voz na figura “dos homens que falam, discutem ideias e procuram posicionar-se no mundo” (MACHADO, 2005MACHADO, I. Gêneros discursivos. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. p.151-166., p.153), examinar-se-á aqui o modo como o discurso se presentifica nos diálogos entre as personagens Juvenal, Padre Lara e Ricardo Amaral e o capitão Rodrigo em três ocasiões do capítulo Um certo capitão Rodrigo, terceiro episódio do primeiro volume do romance O tempo e o vento, do escritor gaúcho Érico Verissimo, publicado em 1949. Pretende-se analisar: a) que estratégias enunciativo-discursivas foram mobilizadas para refletir e refratar as forças centrípetas (as que resistem ao futuro, a outra conjuntura ou modo de vida) e centrífugas (as que compelem ao movimento, que desejam a mudança) que atuam na construção da compreensão dos enunciadores sobre o mundo e sobre seu universo de valores; b) de que maneira a visão carnavalesca de mundo com o humor destronador, a provocação e o embate de ideias estão enunciadas; c) em que medida pode ser atualizado o diálogo socrático e a sátira menipeia no excerto. Assim, os conceitos de dialogismo, monologismo, forças centrípetas e centrífugas, literatura carnavalizada (entre outros), alicerçarão este trabalho, cujo fio condutor será a perspectiva dialógica da linguagem e as suas implicações.

A malha conceitual de Bakhtin é complexa e extensa, portanto, o objetivo aqui não é dar conta de todos os seus entrelaçamentos. Tentar-se-á elucidar apenas os aspectos necessários para atingir os propósitos deste artigo. Não se pretende engessar o autor ou a obra, o que lhes tiraria traços singulares, e sim mostrar as muitas possibilidades de leitura para as quais o clássico literário se abre, renovando-o e levando a termo as considerações do estudioso sobre a literatura.

1 A carnavalização: uma das faces do dialogismo

Ridendo castigat mores

A carnavalização é umas das formas de dialogismo e configura-se como estratégia de corrosão das forças centrípetas a que a sociedade é imposta, uma vez que pode relativizar o discurso dominante. No capítulo IV de Problemas da poética de Dostoiévski, Peculiaridades de gênero, de enredo e da composição das obras de Dostoiévski, e em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, Bakhtin dá atenção especial aos festejos do período Medievo e do Renascimento que ocorriam em determinados momentos do ano, associados às comemorações sagradas. O espetáculo carnavalesco representava a liberdade, o extravasamento, a inversão de papéis, um momento em que se vivia uma “vida às avessas” estabelecendo um “o livre contato familiar entre os homens” (2013, p.140; itálicos no original). Devido ao fato de ser uma festa pública e universal, os espaços das ações carnavalescas eram, em sua maioria, a praça pública e as ruas.

Na ocasião do evento, a vida desviava-se do seu curso habitual e, por essa razão, até o vocabulário mudava e instituía-se uma nova forma de comunicação baseada no gesto e na abolição das formalidades e etiquetas. A linguagem carnavalesca tinha um aspecto dubitável: humilhante e libertadora, com elogio e impropérios.

Bakhtin considera que o carnaval representa um tempo intervalar em que tudo é destruído e renovado simultaneamente, por isso delineia imagens biunívocas: nascimento e morte, bênção e maldição, alto e baixo, tolice e sabedoria. Tudo é exposto ao riso carnavalesco, “dirigido contra o supremo; para a mudança dos poderes e verdades, para a mudança da ordem universal” (2013, p.145), com diferentes entonações: a gargalhada, o satírico, o irônico, o comedido etc. Enquanto o tom sério é autoritário, conduz à intimidação e ao medo, o riso “supõe que o medo foi dominado. O riso não impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição. Jamais o poder, a violência, a autoridade empregam a linguagem do riso” (2002, p.78). O riso popular é vitorioso, não somente sobre o temor frente ao sagrado e à dominação impostos pelo tom sério, mas também sobre os poderes mundanos e divinos que tiranizam e angustiam.

Todos os elementos dos textos sagrados se tornam alvo do riso, constituindo um destronamento do que é elevado, dogmático e sério. A extravagância, uma categoria da cosmovisão carnavalesca, configura uma espécie de comunhão ilusória de liberdade, fartura e dissolução de todas as hierarquias: tudo o que é alto é rebaixado. Destaca-se que a ideia de rebaixamento não está vinculada ao negativo, mas ao conceito de se trazer do alto para o baixo no que diz respeito à topografia. Desse modo, ao alto se relaciona tudo o que é abstrato, as normas pré-estabelecidas, as leis; e ao baixo se relaciona tudo o que é concreto, as transgressões, o riso.

Por unir gestos e ações, imagens e palavras numa relação especial com a realidade, firma-se uma forma de linguagem que, eventualmente, é transposta para a literatura como uma nova maneira de se compreender o mundo, em gêneros que se opõem aos considerados sérios. É no campo dos sério-cômicos o ponto de partida para o desenvolvimento das variedades da linha carnavalesca, entre elas, a sátira menipeia e o diálogo socrático. Segundo Bakhtin, a provocação e o embate de ideias têm raízes nos diálogos de Sócrates, desenvolvidos no período helênico por Platão e outros filósofos. A essência do gênero é “a concepção socrática da natureza dialógica da verdade e do pensamento humano” (2013, p.125), opondo-se ao monologismo oficial, imposto pelo discurso da tradição. O diálogo socrático é responsável pelo partejar das ideias que nasce pela provocação, pelo questionamento e, por sua vez, à reflexão. O filósofo é o facilitador, aquele que encaminha o outro à verdade e ao desassujeitamento.

A maiêutica desenvolve-se por meio da anácrise, provocação da palavra pela própria palavra, e da síncrese, confrontação de dois pontos de vista diferentes. Ambos convertem o pensamento em diálogo e, uma vez exteriorizados, transformam-se em réplicas. Como são descendentes dos gêneros sérios, permanece o forte elemento retórico, mas pintado com as tintas da cosmovisão carnavalesca, que retiram de seus matizes “a seriedade retórica unilateral, a racionalidade, e univocalidade e o dogmatismo” (2013, p.122). Quando alicerçadas em gêneros carnavalizados, os recursos de síncrese e anácrise perdem seu caráter retórico-abstrato, porque no carnaval não há ambiente para discussão de questões filosóficas ou abstratas. Destarte, a sátira menipeia, segundo Bakhtin, não pode ser considerada “como produto genuíno de decomposição do diálogo socrático (...), pois as raízes dela remontam diretamente ao folclore carnavalesco” (2013, p.128; itálicos no original). As sátiras dão um tom mais risível e mais leve ao gênero-mãe.

Após examinar as sátiras menipeias, Bakhtin elenca algumas particularidades na forma em que se desenvolveram na Antiguidade. Destacam-se as que orientarão este estudo:

  • novo tratamento dado à realidade: os heróis são destituídos da lenda e inseridos em um ambiente familiar;

  • presença do elemento cômico: por meio da sátira se coloca em foco determinada figura, determinada situação, ridicularizando-a;

  • emprego da livre fantasia: os heróis vão ao céu, ao inferno, a caminhos desconhecidos e são colocados em situações extraordinárias, recurso para experimentação da verdade, dando destaque para as ideias e os temas;

  • apresentação do homem na sua essência e na sua totalidade, liberto das convenções sociais;

  • estrutura triplanar: deslocamento da Terra para o Olimpo e deste para o inferno; no limite ou entrada do céu e/ou do inferno;

  • violação das normas e do estabelecido: cenas de escândalos, de comportamentos excêntricos, de declarações inoportunas. Incluem-se as violações do discurso e a mistura de estilos;

  • enfoque à atualidade: discussão aberta com diferentes posicionamentos.

Assim dizendo, os sério-cômicos possuem fortes ligações com o carnaval, cujas essências contestatória, subversiva e risível, articulam-se no intuito de mobilizarem as forças centrípetas e centrífugas presentes na vida.

2 O dialogismo na obra literária: um encontro inequívoco

A obra e o mundo nela representado penetram no mundo real enriquecendo-o,

e o mundo real penetra na obra e no mundo representado.

Mikhail Bakhtin

Tomando como base o esboço dos conceitos de dialogismo advindos da teoria de fundo filosófico proposta pelo Círculo de Bakhtin expostos até aqui, examinar-se-ão quais os mecanismos enunciativo-discursivos implicados na estruturação do texto verissiano. Optou-se por fragmentos até o subcapítulo de número dezessete, já que podem ser fecundos para a análise.

Algumas passagens foram selecionadas, entre elas: a entrada do Capitão Rodrigo na vila de Santa Fé, uma conversa entre Rodrigo e Juvenal Terra em uma venda, um diálogo entre Rodrigo e Ricardo Amaral, em que o primeiro pede permissão para ficar, e uma conversa entre Capitão Rodrigo e Padre Lara, o pároco local. Neste último, Padre Lara tenta convencer Rodrigo de que deve deixar a vila, uma vez que o Coronel Ricardo Amaral, o oligarca da região, não queria a permanência do Capitão em Santa Fé. Rodrigo, de personalidade forte, diz que não acatará a ordem, pois tenciona casar-se com Bibiana Terra, fato que aumenta a tensão, porque a moça era a pretendida do filho do coronel, Bento Amaral. Essa conversa evolui para um viés religioso, já que Rodrigo compara Ricardo Amaral a um Deus/deus1 1 No texto a palavra está em maiúscula, acentuando a onipotência da personagem coronel. . Cabe salientar que, a fim de manter a temporalidade e a lógica narrativa, a investigação se dará na disposição do capítulo: a chegada do capitão, o encontro com Juvenal, o diálogo com Padre Lara, a conversa com o coronel.

Em sua sintaxe narrativa/textual é possível observar o espelho da realidade: em um evento único e irrepetível, o autor-criador instaura cinco sujeitos em um tempo - 1828, pós Revolução Farroupilha - e em um espaço - Santa Fé, ainda com o status de povoado, insinuando o provincianismo dos habitantes. Havia, até aquele momento, poucos moradores, subordinados ao clã de Ricardo Amaral. Percebem-se o caráter discricionário, opressivo e dominante desse coronel, cujo título outorgado - característico do período regencial - dava-lhe poderes de recrutamento em benefício do governo e de elites. Não havia qualquer resistência organizada ou mesmo uma oposição aberta aos Amarais. Tais figurativizações referendam os pressupostos de Voloshínov (2017) que tangem aos aspectos de sempre haver um líder opressor e uma massa excluída e subserviente ao poder econômico e ao prestígio político, e de que sempre haverá um discurso marcado pela luta de poderes. O polo aglutinador dessa contestação virá a ser Capitão Rodrigo, defensor ferrenho de ideais liberais e crítico ácido da ordem vigente, como será examinado adiante.

2. 1 As estratégias discursivas

No início do texto, Rodrigo Cambará entra na vila de Santa Fé, “vindo ninguém sabia de onde” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.209), o que alude à circulação de discursos oriundos de ambientes e valores distintos, proposta pelo Círculo. A patente “capitão” leva a inferir um indivíduo que, provavelmente, esteve em combate e que sobrevivera a muitos perigos. Ademais, a figura do guerreiro alvitra o modelo virtuoso, aventureiro e aguerrido de um herói épico. O narrador cinge a personagem de uma aura enigmática observada na irresolução da sua origem: “Devia andar lá pelo meio da casa dos trinta” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.209). O tempo é um pretérito afastado do momento da enunciação “Um dia chegou a cavalo” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.209) e torna-se presente e concreto: “tarde de outubro de 1828” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.209). O cronos é figurativizado “em uma tarde em que o sol brilhava”, encaminhando a narrativa a um estado euforizante. Na descrição da personagem, é possível projetar, a partir das vestimentas, a imagem contraditória que suscitará entre os habitantes: veste um dólmã militar e, concomitantemente, bombachas; carrega consigo uma espada e um violão. Tais características remetem ao ethos gauchesco de bravura, selvageria e ao espírito voluntarioso da personagem “a bela cabeça de macho altivamente erguida” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.209; itálicos nossos). Concomitantemente, revela um caráter amigável e gregário que é deslindado ao longo do capítulo: “[...] entrou arrastando as esporas [...] e foi logo gritando, assim com ar de velho conhecido” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.209; itálicos nossos); “[...] Rodrigo estendeu-lhe a mão, dizendo: - Aperte os ossos” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.209; itálicos nossos); - Quase que nos estranhamos, hein, amigo Juvenal?” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.212; itálicos nossos).

No plano do conteúdo, o narrador deixa claro que Rodrigo fomentará esses sentimentos antitéticos, quando descreve “o olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.209; itálicos nossos). Para revestir de mais mistério a personagem, o narrador vincula o olhar do herói ao de um gavião, intersecção esta que sugere um homem arguto, vigoroso e ávido por liberdade, bem como sedutor. Esses recursos estilístico-discursivos constroem a imagem inacabada de Rodrigo. A personagem é um caminhante, um estrangeiro no local, que adentra a pacata vila e apeia do seu cavalo, especificamente, em frente à venda do Nicolau. O herói, pois, sai de um espaço indiferenciado, a estrada, e entra em um espaço diferenciado: “em frente ao cinamomo” e “venda do Nicolau” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.209).

Neste ambiente, principia, em tom jovial, um diálogo: “Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha nos grandes dou de talho” [...]. (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.209). Juvenal Terra, um dos frequentadores da venda, interpreta a entoação de Rodrigo como provocação e confronta o herói, reafirmando o estereótipo do gaúcho valente, que não admite desaforo. Ao dar a voz a enunciadores inscritos no discurso, o narrador cria um efeito de sentido de verdade, assim, o enunciatário tem a ilusão de ouvir o outro, reproduzindo uma conversa dentro daquele contexto cultural:

[...] Mas dum canto da sala ergueu-se um moço moreno, que puxou a faca, olhou para Rodrigo e exclamou: - Pois dê! (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p. 210).

Os outros homens afastaram-se como para deixar a arena livre.

[...] por aqui hai também muito homem macho.

[...] - Quer dizer que há valentões por cá. E decerto eles vão se estranhar comigo (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.210).

Embora apresentado pelo narrador com um ar ousado e desafiador, Rodrigo, naquela situação, mostra-se sensato, esclarecendo que era destemido e que sabia brigar, se quisesse: “[...] Estou cansado de pelear. Não quero puxar arma pelo menos por um mês. Voltou-se para o homem moreno e, num tom sério e conciliador, disse: - Guarde a arma, amigo (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.210). Na réplica, o suposto oponente baixa a guarda e aceita conversar sobre amenidades. Visto que é um simulacro do real, nos diálogos encetados, é possível notar a posição axiológica de Juvenal diante do outro, em uma atitude avaliativa:

Agora Juvenal alisava a palha com a lâmina da faca, pachorrento. Seus olhos continuavam ainda postos no estranho, avaliando-o . Achava engraçada aquela combinação de bombacha e casaco de soldado. Implicava um pouco com o lenço vermelho. Aquele violão a tiracolo também lhe inspirava desconfiança. Nunca tivera simpatia por homem que vive gauderiando (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.212; itálicos nossos).

Juvenal bateu o isqueiro, acendeu o cigarro, tirou duas tragadas e ficou a observar o forasteiro. Já começava a achar que ele tinha uma cara simpática. Só o jeito de olhar é que não era lá muito agradável: havia naqueles olhos muito atrevimento, muita prosápia e assim um ar de superioridade (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.213; itálicos nossos).

Na conversa, toma-se conhecimento de que o herói, divergindo do modelo épico, é humanizado e imperfeito, pois apresenta ser um gaudério, um sujeito descompromissado com a vida, vadio. Adiante na narrativa, fica-se sabendo que gosta de jogos, mulheres e bebidas. É possível também conhecer um pouco da nebulosa biografia da personagem: viera de muitas guerras, era andarilho, nunca criara raízes em nenhum lugar, mas havia gostado de Santa Fé e poderia mudar aquela condição, permanecendo na vila para sempre. Como não há a gênese de Rodrigo, não se sabe sobre as influências do meio em que viveu, que educação obteve. Assim, cada atitude da personagem está no presente: “Gosto de gente que vai direito ao assunto” [...]. “Cambará macho não morre na cama” [...]. “Se me dão ordens, brigo” [...] estou velho demais pra mudar” [...] (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.241-245; itálicos nossos). Juvenal replica, dizendo que aquele lugar não era para gente como Rodrigo, pois o avaliara com um sujeito ousado: “- E o resto da vida pode ser trinta anos, três meses ou três dias [...]. Porque vosmecê tem um jeito atrevido.” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.211). Da possibilidade de não permanência na vila origina o conflito e vicejam os diálogos posteriores.

Por ser um povoado, a notícia da vinda de um forasteiro chega rapidamente aos ouvidos do Coronel Ricardo Amaral, que imediatamente envia um subalterno com a missão de livrar-se do indesejável, evidenciando sua supremacia social, política e econômica. Até mesmo o baixo clero - composto por padres de pequenas paróquias, dependentes de poderosos para a própria subsistência - submete-se aos mandos e aos desmandos desse oligarca. Essa condição inferior é particularmente exemplificada quando o coronel dá ao padre Lara a incumbência de ir até o Capitão e dizer-lhe que não apenas não era bem-vindo a Santa fé, como deveria deixar o povoado o quanto antes. Esta ordem projeta a imagem autoritária de Ricardo Amaral sobre os habitantes de Santa Fé. Nesse sentido, o Coronel leva o vigário a fazer, ou seja, representa a ação do homem sobre o homem: “O padre trabalhava para o mandachuva da terra. Naturalmente fora o velho Amaral quem mandara construir a igreja, quem comprara as imagens, quem dava ao vigário casa para morar” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.241). Diante da venda, padre Lara pede ao capitão que vá até o lugar em que o pároco se encontrava a fim de conversarem.

- Boa noite, capitão! - disse o padre, sorrindo.

- Boa noite! - respondeu Rodrigo, parando de tocar.

- Vosmecê pode me dar uma palavrinha?

- Pois não.

Rodrigo pôs o violão em cima do balcão e ergueu-se.

- Aqui fora, se não é incômodo.

Saíram ambos para a praça (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.238).

O vigário solicita a Rodrigo que conversem em um lugar aberto e relativamente neutro, na praça, em frente à figueira. A venda do Nicolau e a praça configuram-se uma arena, devido à luta entre vozes que permeiam e permearão os diálogos travados naqueles espaços. Observa-se, ainda, a passagem de tempo, pois a conversa entre Rodrigo e Padre Lara ocorre dias após a chegada do capitão, e à noite. Nos diálogos, o presente é a referência, já que os enunciadores estão conversando no momento da ação representada (agora). São instaurados explicitamente dois sujeitos e um terceiro indiretamente, o coronel. Nota-se a inserção de princípios do cotidiano no tempo da enunciação, pois no universo das personagens, a submissão representa um valor consolidado e reconhecido como um “assim mesmo”. O pároco tenta manipular Rodrigo por meio da intimidação, quando fala em nome do “senhor de Santa Fé”. A imagem do padre inspira confiança, pois ele postula o discurso da Igreja. Observa-se que a autoridade do Coronel é tida como divina, autorizada por Deus, e o vigário está na qualidade de homem de Deus, confirmando o fato:

- Tem de se submeter às autoridades.

- E quem é a autoridade aqui?

- O coronel Ricardo Amaral Neto (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.241).

- Encilhe o seu cavalo e vá embora amanhã (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.242).

- É quem manda nesse povoado. É ele quem resolve todas as questões: uma espécie de juiz de paz (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.244).

O vigário entrou numa história muito longa sobre a família Amaral, sua tradição, seus hábitos, suas manias e seu prestígio junto ao governo da Província (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.244).

- Pelo que vejo esse Amaral é um deus. (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.244).

A fala do outro se consolida por meio do discurso direto e apresenta a memória discursiva de uma dada formação social e as múltiplas perspectivas sobre a realidade. Os paradigmas ficar/sair proporcionam o ensejo de se esquadrinhar as condutas estabelecidas pelos enunciadores. Para o Padre, para o Coronel, a liberdade é desconfortável e tensa, já que é sinônimo de desobediência, confusão, desordem. A quem é submetido, a dominação é eufórica, serena e confortável. A não sujeição a essa estrutura é vista como atrevimento, desrespeito ao instituído. Para validar a sua versão, os primeiros tentam euforizar os seus comportamentos - universalizando-os por meio da primeira pessoa do plural - e disforizar o de Rodrigo. Observa-se, também, que para impor esse discurso autoritário, excludente, a linguagem do padre assume um tom conselheiro, mas desqualifica o lugar de origem do interpelado (“campo sem dono”). Depois modaliza o discurso, invertendo os polos do conflito (Santa Fé X Rodrigo). Nesta nova relação entre sujeito e espaço é este que é mostrado como sendo inadequado ao primeiro. Nota-se que o discurso oscila entre o ato de disforizar e de euforizar ora o espaço, ora o sujeito. É nesta última direção que se posicionam as duas últimas citações.

- Se vosmecê chega a um povoado como o nosso, não pode proceder como se estivesse ainda num campo sem dono nem lei [...] VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.241; itálicos nossos).

- Porque Santa Fé não é lugar para um homem de seu temperamento (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.242).

[...] vosmecê é um homem que veio de muitas guerras, gosta de jogo, mulheres e bebida [...] (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.242).

- E não é desdouro para ninguém obedecer a essa autoridade, quando as ordens que nos dão são justas, decentes e para o bem geral (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.244; itálicos nossos).

Conforme o narrador deixou explícito ao descrever o herói no início do capítulo, Rodrigo Cambará é um sujeito passional e intenso nas suas ações, sua concepção filosófica reside no desafio à autoridade e no não assujeitamento. Neste sentido, a aceitação do status quo é disfórica e tensa, ao passo que a recusa é eufórica. A dominação para Rodrigo é disfórica e a liberdade é eufórica.

- Nunca me ofendo quando me pedem. Fico esquentado quando querem me mandar. Se me pedem com bons modos, faço. Se me dão ordens, brigo (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.240).

- Vosmecê tem sangue quente, capitão (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.243).

- O que pretendo fazer já disse a meio mundo. Vou ficar (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.244).

- Então o homem não quer saber de mim... (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.244).

- [...] Quero ficar aqui... Talvez compre umas terrinhas e comece a criar o meu gadinho. Talvez até me case... (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.254).

Constatam-se nos diálogos a manifestação do lado direito e avesso do discurso, das ideologias, dos valores sociais, das verdades em luta, cada um dos enunciadores cria um ponto de vista orientado pelo seu próprio. É possível constatar a luta entre essas forças, estruturadas sob as seguintes tensões: permanência versus partida, obediência versus desafio; liberdade versus dominação. No confronto de distintos valores, presentifica-se o dialogismo, construído por intermédio dos gêneros sério-cômicos da literatura carnavalizada, entre eles os expedientes retóricos da sátira menipeia. Para arquitetar o diálogo, o pároco serve-se da retórica da exclusão, ora explicitando que Rodrigo não é bem-vindo, ora enfatizando que Santa Fé não é bom lugar para ele. O capitão, então, para desconstruir o discurso oficial, serve-se do riso e do tom jocoso, recursos expressivos da carnavalização que, por sua vez, é um traço constitutivo da menipeia, como se verá no próximo segmento.

2.2 Revisitando a carnavalização de Bakhtin na literatura verissiana

A carnavalização faz-se presente não apenas no extrato que se examina, mas também em muitos outros momentos da narrativa. No trecho ambientado na noite do feriado de Finados, padre Lara convida Capitão Rodrigo Cambará para uma conversa, no coração do povoado. Ao redor da praça, situam-se a pequena igreja, a casa de Bibiana, o casarão do Coronel e uma grande figueira. A praça pública corresponde explicitamente à ambiência carnavalesca, lugar de livre familiaridade entre os homens, criando a oportunidade da quebra de hierarquias. Uma vez que o espaço é determinante de comportamentos, a maneira como se enuncia naquele espaço é carnavalizada. Nesse lugar propício ao rompimento do instituído, a linguagem se liberta de etiquetas e dá vazão ao vocabulário obsceno. O sacerdote opera como representante topográfico do que é elevado, daquilo que é social e espiritualmente sério: o bem, o bom, o correto, o divino; Rodrigo, por sua vez, será o representante topográfico do baixo material, daquilo que é cômico: a irreverência, a vulgaridade, a luxúria, o prazer. O dia de Finados remete à sobriedade, ao recolhimento, ao luto; no entanto, acompanhado de seu violão, o herói entoava modinhas. Insere-se, nesse contraponto, a bivocalidade da literatura carnavalizada.

O religioso principia a conversa apreciando o tempo: “Linda noite! - exclamou o padre” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.239). O sacerdote cria uma imagem agradável de si, a começar pelo tom da voz, em uma atitude passiva e benevolente com seu enunciatário: “O padre aveludou a voz - Está bem. Está bem. Não vamos brigar” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.243). Rodrigo, por sua vez, avalia seu interlocutor:

Rodrigo olhou de soslaio para o outro [...] havia, entretanto, uma qualidade tão aliciante em sua voz [do vigário] grave e lenta que era impossível uma pessoa não simpatizar com ele, contanto que não olhasse para o seu rosto feio e enrugado [...] Mas ali à luz da lua a face do vigário como que adoçava, perdia a fealdade e tudo que ele tinha de melhor se revelava na maciez envolvente de sua voz (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.239; itálicos nossos).

Em seguida, como forma de manipulação na tentativa de convencer o outro a mudar o seu quadro de valores, o padre faz uma pergunta sobre um presente (tu) e um ausente (ele). A interrogação, pela sua condição gramatical enunciativa, antecipa a réplica do seu interlocutor. Para garantir a incontestabilidade do discurso e inspirar confiança, o padre captura uma passagem da Bíblia para iniciar o debate: “Vosmecê se lembra daquela história das Sagradas Escrituras sobre a figueira que não dava frutos?” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.239). O herói responde que não tinha conhecimento sobre assuntos religiosos: “- Não entendo muito desses negócios de religião, padre” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.239). Fundado na chancela da autoridade do texto bíblico, o vigário faz remissão à metáfora da figueira que não dá frutos, para aludir à ideia de que aqueles homens que não praticam boas ações serão amaldiçoados e punidos, como ocorreu com a árvore tomada como referência na argumentação. Esta imagem apresenta-se como preâmbulo para o embate que vai se desencadear entre ele e Rodrigo Cambará e, ao mesmo tempo, tentativa de intimidar este último antes que a réplica dele sobrevenha.

Em oposição a Sócrates, que conduzia o outro ao desassujeitamento, o padre tenta fazer com que Rodrigo aceite o monologismo oficial, imposto pela tradição. Com efeito, o sacerdote usa de circunlóquios erigindo imagens de disciplina e obediência para levar o herói a aderir ao discurso monológico. Como estratégia enunciativa, elucida o cenário cultural por meio de argumentos aceitos pela tradição para comprovar o fato de que em todas as instâncias sociais há uma hierarquia a ser respeitada:

- Como militar vosmecê sabe que num batalhão tem de haver disciplina, o soldado tem de obedecer ao seu superior.

- Assim como cada casa tem um chefe, cada cidade também tem uma autoridade.

- Desde que o mundo é mundo sempre houve os que mandam e os que obedecem, um servo e um senhor. O mais moço obedece ao mais velho...

- O filho obedece ao pai, a mulher obedece ao marido. Se as coisas não fossem assim o mundo seria uma desordem... (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.240).

Na tentativa de irrefutabilidade, como estratagema para que reconheça a própria ignorância, o padre leva Rodrigo a considerar que a vida dele gira somente em torno daquela província e por isso não tem um conhecimento mais amplo. Deste modo, pela lógica da reprodução do sistema, o interlocutor espera que Rodrigo chegue à conclusão de que é desinformado e continuará insipiente caso não se submeta à autoridade local.

- Capitão! Vosmecê precisa ler História Universal. Precisa ler sobre os outros continentes, principalmente sobre a Europa. Não pense que o mundo é só a província de São Pedro. [...]

- O mundo é muito vasto. A autoridade suprema dum país é o rei. Ele tem todo o poder temporal. Mas o poder espiritual quem tem é o papa, representante de Deus na terra. (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.241).

Ao longo dos excertos, as vozes alternam-se na confrontação: ora é o padre quem estrutura argumentos alicerçados na tradição e faz perguntas, provocando Rodrigo à reflexão mediante a anácrise; ora é Rodrigo, consolidando a síncrese, nos diferentes enfoques sobre o mesmo objeto. Em réplicas lacônicas e em tom mordaz, o herói coloca a realidade à prova e sob uma nova perspectiva:

- Há homens como a figueira das Escrituras. Não têm nada pra dar [...].

- É. Hai ... (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.239; itálicos nossos).

- Para lhe ser bem sincero, capitão, o que eu queria era fazer que vosmecê parasse de cantar e tocar violão.

- É pecado cantar e tocar violão? [...]

- Vosmecê é um soldado, não é?

- E vosmecê é um padre... [...]

- Desde que o mundo é mundo sempre houve os que mandam e os que obedecem [...]

- Isso depende... (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.240; itálicos nossos).

- [...] O filho obedece ao pai, a mulher obedece ao marido. Se as coisas não fossem assim o mundo seria uma desordem...

- Mas quem foi que lhe disse que o mundo não é uma desordem?

- Não pense que o mundo é só a província de São Pedro.

- Pra mim tem sido... (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.241; itálicos nossos).

- [...] Mas sei que vosmecê é um homem que veio de muitas guerras, gosta de jogo, de mulheres e de bebida.

- E quem não gosta? (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.242; itálicos nossos).

Ao pôr em xeque as considerações do padre em uma nova proposta filosófica e religiosa, observam-se forças biunívocas dirigidas “para a mudança dos poderes e verdades, para a mudança da ordem universal” (BAKHTIN, 2013BAKHTIN, M. Peculiaridades do gênero, do enredo e da composição das obras de Dostoiéviski. In: BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. p.115-206., p.145), expedientes da carnavalização, na variante da sátira menipeia. A carnavalização, portanto, é ideológica e dialógica e esses traços constitutivos são figurativizados nos planos do conteúdo e da expressão: o padre é frágil, tem asma, é mais velho, sem beleza, veste-se de preto. Rodrigo é vigoroso, saudável, jovem, atraente e usa roupas chamativas. O caráter dos enunciadores também se constitui em oposição: um é dissoluto, passional e errante; o outro é distinto, equilibrado e pacato; um busca valores carnais, outro busca valores espirituais; um valida as forças centrífugas, outro defende as forças centrípetas, ou seja, a manutenção do status quo. É a partir do reconhecimento dessas ambivalências que se estrutura o papel destronante do riso, recurso estético que possibilita o enfrentamento do saber oficial ou hegemônico, iluminando a ideia de que o homem é um ser imperfeito.

- Vosmecê não é religioso?

- Não. Religião nunca me fez falta.

- Há pessoas que só se lembram da Virgem quando troveja.

- Quando troveja me lembro do meu poncho.

- Há homens que passam a vida fazendo pouco da Igreja, mas na hora da morte mandam chamar um padre pra se confessar.

Rodrigo soltou uma risada.

- Chamar padre na hora da morte? Acho que nem que eu queira vou ter tempo pra isso [...].

- Vosmecê já pensou no que lhe pode acontecer depois da morte?

- Não.

- Não tem medo de ir para o inferno?

Rodrigo cruzou as pernas, atirou o busto para trás e recostou-se contra a porta da capela.

- Padre, ouvi dizer que no céu não tem jogo nem bebida nem carreiras nem baile nem mulher. Se é assim, prefiro ir pro inferno. Além disso as tais pessoas que todo mundo diz que vão pro céu por serem direitas e sem pecado são a gente mais aborrecida que tenho encontrado em toda a minha vida. Tenho conhecido muito patife simpático, muito pecador bom companheiro. Se eles vão para o inferno é para lá mesmo que eu quero ir.

- Vosmecê brinca com coisas sérias. Mas acredita que há um céu e que há um inferno, não acredita?

- Pra lhe falar com franqueza, nunca penso nessas coisas [...].

- Mas vosmecê nunca pensa em Deus?

- Uma vez que outra.

- Não reconhece que Ele fez o mundo e todas as pessoas que há no mundo?

- Se Deus fez o mundo e as pessoas, Ele já nos largou, arrependido [...]. (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.245; itálicos nossos).

Nota-se que o discurso do padre mobiliza na sua arquitetônica o sagrado opondo-se ao profano, o elevado ao baixo, o sábio ao tolo, o céu ao inferno, na intenção de trazer para o plano humano e concreto o que é divino e abstrato. Diante dessa contraposição de valores, entretanto, o herói mostra-se liberto das convenções, viola o estabelecido com a sua crítica contundente. O destronamento de normas, convenções, como se configura nesses excertos do romance de Verissimo, filia-se ao estatuto da sátira menipeia. Esta é a representação da não obediência a qualquer hierarquia ou autoridade, rebaixando os poderosos pela presença da obscenidade, do mundano, dos prazeres, elementos que igualam os sujeitos. O tom jocoso do herói não só degrada o sublime ou o que é autoritário e grave, como também engrandece o vulgar, reiterado por um vocabulário mundano: “[...] no céu não tem jogo nem bebida, nem carreiras, nem baile nem mulher [...] tenho conhecido muito patife simpático [...] (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.245).

O fragmento é marcado pela veridicção. O que se constrói como verdadeiro, para o religioso, é que se deve ter fé em Deus, pois as pessoas sempre recorrem a Ele em momentos derradeiros. O padre interpela Rodrigo e, por meio da argumentação, tenta persuadi-lo de que existem Deus, Céu, Inferno, em um deslocamento da terra ao divino. Para ser mais convincente, o sacerdote estabelece uma oposição entre um eu que crê e uns outros que não creem ou que creem quando se encontram em situação desesperadora. Neste embate, ele estabelece um jogo com os tempos presente e futuro (grifados no excerto), para sobremodalizar2 2 A sobremodalização é um tipo complexo de enunciado porque une o cognitivo e o afetivo, ou seja, une o conhecimento para causar competência (poder-fazer-saber). O padre tenciona levar Rodrigo ao conhecimento pela exposição de várias realidades, para que ele passe a nelas crer. sua crença e persuadir o interlocutor de sua verdade.

No entanto, para Rodrigo, esses valores postulados pela Igreja não são agregáveis, considera-os sandice, desafia a autoridade divina e tenta reverter o jogo da manipulação, refutando os valores dessa instituição, com declarações inoportunas. O riso destruidor é fomentado quando o religioso espera uma resposta condizente com o escopo da pergunta, porém o herói desconstrói o tom sério, invertendo os polos, provocando o choque, o inesperado: “Vosmecê brinca com coisas sérias (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.245; itálicos nossos). Ao disforizar os valores que o religioso lhe propõe, Rodrigo propicia que se tenha uma catarse cômica3 3 O termo “catarse”, cunhado por Aristóteles, aparece na Poética (1449 b 27) quando o Estagirita comenta que ela tem a função de purificar os sentimentos de piedade e terror suscitados na tragédia. Nesta linha de pensamento, muitos estudiosos - Richard Janko (1984), Kenneth Reckford (1987), Ivo Bender (1996), dentre outros, - debruçaram-se sobre o estudo da catarse aristotélica e entenderam que esse conceito poderia ser estendido à comédia, desde que os pilares (piedade e terror) que dão origem à purgação das emoções do espectador na tragédia fossem substituídos por outros para a aplicação na comédia. Nas trilhas dos estudos de Richard Janko (1984) sobre este gênero, Ivo Bender (1996) defende a presença da catarse cômica. Para este dramaturgo e pesquisador, o espectador da comédia também expia suas paixões “pelo alívio de tensões previamente suscitadas que, esvaziando-se, dão lugar ao riso” (BENDER, 1996, p.52). , que visa a explicitar a hipocrisia da sociedade e avaliá-la com distância crítica, validando o parecer de Bakhtin de que é “preciso destruir e reconstruir todo este falso quadro do mundo, romper todas as falsas ligações hierárquicas entre as coisas e as ideias” (2014, p.284). Em uma nova forma de experimentação da verdade, para Rodrigo, o inferno é apresentado como um lugar agradável, com pessoas divertidas e interessantes; o Céu, por sua vez, é entediante, ocupado por sujeitos enfadonhos.

Em outra passagem surge novo traço da sátira menipeia, quando a narrativa é conduzida para o domínio da sexualidade, em descidas carnavalescas associadas à terra e ao corpo. A relação entre o alto e o baixo, em seu aspecto corporal topográfico, é estabelecida pela cabeça (olhos, boca) e pelos órgãos genitais, respectivamente. Segundo Bakhtin, a boca é a porta de entrada para os infernos corporais, é por onde se ingerem alimentos, sendo fonte de luxúria e perdição: “na topografia grotesca, a boca corresponde às entranhas, ao 'útero'; ao lado da imagem erótica do 'buraco', a entrada dos Infernos é representada como a boca aberta de Satã ('a goela do inferno')" (2002, p.288). No texto, é possível reparar que dois dos sete pecados capitais se alternam e se confundem - a gula e a luxúria. A cada momento em que Rodrigo deseja Bibiana, ele sente fome, em uma combinação topográfica do alto e do baixo, na representação de tudo que está associado à vida como a cópula e a alimentação:

Ficaram de novo em silêncio. Rodrigo via em pensamentos a imagem de Bibiana: a boca carnuda, os olhos oblíquos. Parecia uma fruta; dava na gente vontade de mordiscar aquela boca, aquelas faces, aqueles peitos. Naquele momento seu desejo por Bibiana se confundia com uma sensação de fome e Rodrigo começou a pensar alternadamente na rapariga e num churrasco (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.241; itálicos nossos).

Rodrigo pensou no corpo de Bibiana. Nu em cima duma cama, os peitos de coalhada, as pernas roliças, os beiços vermelhos (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.246; itálicos nossos).

Mas antes do mundo acabar - pensava Rodrigo - tenho de dormir com Bibiana Terra. E de novo sentiu fome. (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.246; itálicos nossos).

Rodrigo observa a casa de Bibiana e o olhar dele vai do mais próximo ao mais longínquo: [...] “refletia Rodrigo, olhando de viés para a casa de Bibiana. [...] Rodrigo olhava para a casa de Pedro. Viu quando fecharam a janela". (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.241-242; itálicos nossos). A conversa entedia, vai se tornando cada vez mais blasé, como se o que o padre lhe dissesse não merecesse muita atenção; logo, a enunciação varia entre o tom entediado das palavras ao entusiasmado dos devaneios:

O padre Lara falava, falava... Num dado momento puxou pela manga da túnica do capitão e perguntou:

- É ou não é? É ou não é?

- Deve ser, padre, deve ser [...] (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.242).

Conforme o padre fala, Rodrigo tenta prognosticar o tom da apreciação, em um diálogo interior: “Aonde quererá ele chegar? - refletia Rodrigo [...]” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.241). Concomitante à verborragia do padre, Rodrigo deseja Bibiana, fundindo, na incongruência, o sagrado e o profano. Se até então Rodrigo parecia ser um libertino, o narrador descortina que ele o é, concretizando a imagem de um sátiro que fará de tudo para seduzir a moça, até mesmo casar, o que aprisionaria seu espírito aventureiro: “Sempre achara que casamento também era um desastre, uma prisão, uma espécie de morte” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.242). Percebe-se, ainda, que o desempenho sexual está associado à valentia: “Nunca nenhum Cambará macho conseguiu passar dos cinquenta anos” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.245). Por meio do discurso indireto livre, o herói não repudia os pensamentos lascivos com Bibiana e incomoda-se com o discurso do padre, dando em um novo tratamento à realidade:

Não podia perder uma noite como aquela na companhia de um padre [...] O padre recomeçou o sermão, mas Rodrigo não lhe prestava muita atenção [...] (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.242).

O vigário entrou numa história muito longa sobre a família Amaral [...]. Imaginou Bibiana a despir-se, a tirar o corpinho, a saia... Aquele pedaço de tornozelo que ele vislumbrara quando a menina subira para a carroça, à frente do cemitério, agora se ampliava: era uma perna bem torneada, um joelho roliço, uma coxa... Em breve, excitado, Rodrigo tinha nos braços Bibiana toda nua, com os seios a balouçar, brancos e trêmulos como coalhada nova recém-saída da tigela. E em pensamento ele a deitou na cama e os dois estavam enroscados aos beijos quando o padre Lara lhe apertou o braço [...] (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.243).

Uma vez que dois discursos se afrontam, estão presentes a claridade e obscuridade discursivas, um em contraface do outro. No meio do conjunto de signos que sugerem vida, introduz-se a morte. Percebe-se nas recorrências lexicais uma reiteração do conteúdo semântico relacionado ao negro, ao obscuro, ao noturno, ao envelhecimento, à morte, ao macilento, no discurso de Rodrigo:

O padre Lara caminhava devagar. Tinha uma cabeça enorme, desproporcional ao corpo raquítico [...]. Só agora percebia que o velho tinha uma respiração de asmático (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.238-239; itálicos nossos).

Para ele padre era preto e agourento como urubu. Onde havia padre havia desastre ou morte: enterro, extrema-unção ou casamento [...] (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.242; itálicos nossos).

Pegue uma florzinha e veja que maravilha, que delicadeza, que... - O padre calou-se, ofegante. - Já pensou nessa coisa milagrosa que é nascer, crescer, viver...

- E envelhecer, e morrer, e apodrecer... - completou Rodrigo, pensando em que Bibiana um dia havia também de ficar velha (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255.; p.246-247; itálicos nossos).

Com valores tão distintos, ambas as personagens convergem no fato de serem simples e sinceras em seus apontamentos. Como a enunciação do padre se organiza fundamentada no saber da tradição, ele não obtém êxito na manipulação, em virtude de o discurso de Rodrigo reafirmar o seu modo de ver o mundo contrariando a expectativa de convencimento do clérigo. No desfecho desse diálogo polifônico, ambos permanecem com seus posicionamentos inabalados:

- Que é que vou fazer? Nasci assim e estou velho demais pra mudar.

[...] - Está bem. Está bem. Não vamos brigar. Vosmecê não precisa mudar. Continue como está, se isso lhe agrada [...]” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.243).

O pároco acaba por afeiçoar-se a Rodrigo pelo fato de ele ser franco, honesto e leal aos seus princípios - ainda que não aceitos pela sociedade -, o que desperta no pároco o amor, a amizade, a estima: “O padre ia retrucar, mas calou-se. Houve um curto silêncio e por fim o vigário confessou: - Quer que eu lhe diga uma coisa? Gosto de vosmecê. Pode ficar certo disso. Gosto [...]” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.248). No entanto, solicita-lhe que vá falar com o coronel e, como era de interesse de ambos, o herói aceita o desafio de enfrentar o “Senhor de Santa Fé”: “A fera deve estar dormindo - pensou. E sentiu desejos de enfrentá-la” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.244).

O alegre princípio regenerador e o tempo intervalar do carnaval são rompidos quando, no dia seguinte à palestra com o vigário, Rodrigo se vê diante do governo oligárquico da região. O ambiente livre e festivo da praça pública dá lugar ao interior austero e solene do casarão, especificamente na sala de estar de Ricardo Amaral.

Ao lado oposto da praça, ergue-se, único e majestoso, o casarão dos Amarais. O vocábulo, no grau aumentativo, remete a tamanho e a poder. Construído com pedras, dá ideia de fortaleza medieval, de indestrutibilidade. As demais habitações que o rodeiam são cobertas de palha, tematizando a vulnerabilidade e a subserviência daqueles habitantes diante do senhor de Santa Fé: “O luar caía manso sobre os telhados e cobertas de palha, sobre os pomares, as hortas e os campos em derredor. Rodrigo fitou o casarão de pedra dos Amarais, lá do outro lado da praça” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.244). Os aposentos do casarão, com mobílias austeras e escuras, concretizam a dominação e a resistência à mudança. Os objetos dispostos na sala do coronel sustentam o discurso autoritário fundado na lógica maniqueísta daquela sociedade:

No dia seguinte, logo após a sesta, por obra e graça do padre Lara, Rodrigo se viu frente a frente com o senhor de Santa Fé. Era numa das salas do casarão de pedra, onde os poucos móveis que havia eram escuros e rústicos. A um canto da peça Rodrigo viu três espadas e uma espingarda encostadas na parede. O coronel Ricardo estava sentado atrás duma mesa de pau preto. Não se ergueu quando o padre fez as apresentações. Não estendeu a mão para o visitante, nem o convidou a sentar-se [...] (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.248-249; itálicos nossos).

Naquele ambiente hostil e intimidador, um arrosta o outro, tentando apreender um sujeito construído pelo discurso bivocal da aparência versus essência. Constata-se, no fragmento abaixo, o componente axiológico que, segundo Bakhtin, é intrínseco a todo discurso.

Rodrigo, de pé a uns quatro passos da mesa, olhou bem nos olhos o dono da casa e seu instinto lhe gritou que tinha macho pela frente [...]

[...] Estava [o coronel] em mangas de camisa, trazia à cinta uma faca de prata e, sob a mesa, Rodrigo podia ver-lhe as botas de couro negro e cano alto (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.248-249).

Conheço um homem até pela maneira como ele anda vestido. Esse seu lenço vermelho é um sinal de fanfarronice [...]

Nunca me engano com homem nem com cavalo. Vosmecê tem um jeito de olhar e de falar com as pessoas que faz o sangue da gente ferver (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.251-252).

Temos poucos divertimentos e um homem habituado a pândegas, fandangos, carreiras, jogatina e mulheres não pode aguentar esta vida. Santa Fé é terra de gente trabalhadeira (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.254).

No excerto, ao expressar o seu desagrado com o comportamento e a vestimenta do forasteiro, o sujeito Coronel espera que Rodrigo saia da vila e, ao admitir que a insubordinação jamais ocorreria, passa do estado de insatisfação à hostilidade. Ricardo julga-o desleal, desobediente e registra um relacionamento de malquerença, provocado pela honra ofendida. O Coronel quer vingança e usa de sua posição para ameaçar o forasteiro, validando o sujeito soberbo, autoritário e inflexível. Sua fala pausada e suas ações manifestam um tom severo e imperativo, a fim de intimidar e atemorizar o adversário:

Ricardo hesitou por um instante, acariciou nervosamente o cabo da faca [...]

- Eu podia mandar lê prender [...] (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.251).

- Neste potreiro de Santa Fé, moço, só há cavalo manso. Chegam xucros mas eu domo eles e boto-les a minha marca (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.252).

- O Zé tomou a mulher dum dos meus agregados... - Outra pausa. Os olhos de Ricardo Amaral Neto brilharam por um instante. - O marido meteu-lhe chumbo no corpo. O corpo do Zé Oliveira ficou que nem peneira... (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.255).

No início do encontro, Rodrigo tenta causar boa impressão, para que o Coronel acredite nas boas intenções dele.

Estava resolvido a não deixar-se convencer nem enfurecer. Se despertasse a ira do senhor de Santa Fé, estaria perdido. A vida para ele no povoado seria insuportável e o melhor que tinha a fazer era encilhar o cavalo, montar e ir cantar noutra freguesia. Mas se ele fosse embora, adeus Bibiana (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.252).

Rodrigo sabia ser simpático, quando queria. Tratou de falar com calma e brandura, e no seu tom de voz havia agora não a humildade dum pobre que curva a cabeça ante um potentado, mas sim o respeito carinhoso dum filho que se dirige ao pai (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.254).

Figurativizado em suas vestimentas e em suas atitudes, Rodrigo é paradoxal: ao mesmo tempo que investe contra o discurso autoritário e centrípeto do patriarcalismo, seu interesse é subjugar Bibiana; ao mesmo tempo em que se sustenta por um código de honra, evidencia uma relativa horizontalidade moral. No discurso de Rodrigo, presentificam-se as forças centrípetas que compelem ao movimento de tolerância, de não confrontação e as forças centrífugas que resistem ao novo, inerentes à literatura carnavalizada.

Por meio da arquitetônica do discurso engendra-se um realismo: toda narrativa tem uma dimensão polêmica, as personagens medem forças: a conjunção para um, implica em disjunção para outro, os valores dos sujeitos se encontram e interferem um no outro. O sujeito Coronel é o corretivo material, axiológico às pretensões do sujeito Rodrigo.

O herói é excessivo, forte nas falas e nos gestos os quais exteriorizam a coragem e audácia: “Se não fosse o respeito que devo a um homem da sua idade, eu fazia vosmecê engolir o que acaba de dizer” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.250). Reconhece que sua tentativa de manipulação é inútil e que seus princípios de liberdade e justiça são anulados pelo coronel. “[...] Por um breve instante os dois homens se mediram com os olhos, num silêncio feroz. Nenhum piscou. Nenhum falou por vários segundos. Rodrigo então compreendeu que não havia mais remédio para aquela situação [...]” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.255).

Rodrigo parece ser obstinado e, ao longo do texto, o narrador deslinda que ele é. A personagem quer ter domínio sobre a individualidade ou sobre a própria liberdade e não baseia suas ações por leis impostas. Com efeito, desconstrói as verdades do coronel e impõe a sua: quer ficar e fica: “[...] dirigiu-se para a venda do Nicolau [...] a ruminar com gozo suas últimas palavras. Mas fico. Mas fico. Mas fico. [...] E ficou mesmo. Nada lhe aconteceu” (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.255-256).

O herói está em conformidade com os valores que estabelece para si: recusa-se a aderir ao maniqueísmo, à tirania dos caudilhos. Rodrigo assume sua unicidade, responde por ela, não se deixa assujeitar, conquistando o respeito dos demais habitantes [...] “aos poucos, conquistou toda a população de Santa Fé” [...] (VERISSIMO, 2004VERISSIMO, E. O continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. v. 1, p.209-255., p.256). A atitude da personagem reitera o que presumiram Bakhtin e o Círculo de que sempre haverá uma reação ao caráter centrípeto da semiose humana exercido pelo jogo dos poderes sociais.

Conclusão

O encontro fortuito entre língua e literatura é um dos caminhos para se conhecer o sujeito e a sua condição na sociedade. O romance configura valores histórico-ideológicos por meio de seu autor-criador, de seu leitor e de seu conteúdo. É na materialidade do signo que o criador desnuda as relações sociais e é também por meio delas que se manifestam as ideologias. Em sua sintaxe narrativa/textual o criador instaura sujeitos e discursos em dado tempo/espaço que remetem a eventos sociais, fazendo transitar discursos advindos de diferentes lugares.

Na materialidade linguística do texto literário, é possível descortinar o modo que o discurso humano se organiza na sua relação com a realidade, com a ideologia, com os diferentes momentos da vida. O autor-criador ausculta os ecos das vozes-ideias de um passado distante, e transporta-as à materialidade do texto.

Érico Verissimo figurativiza a sociedade patriarcal-materialista daquela distante sociedade de Santa Fé, tematizando as relações sociais. Nas vozes do Padre Lara, Capitão Rodrigo e Coronel Ricardo Amaral observam-se três concepções de mundo: a de subserviência de um religioso que se alia ao dono da vila, a de independência de pensamento de um sujeito que não se dobra diante dessa perspectiva e a de despotismo manifesto por um homem que determina quem fica e quem sai do povoado.

Os discursos das personagens dialogam e polemizam uns com os outros, sendo transformados e/ou, até mesmo, subvertidos, opondo-se ao monologismo oficial, imposto pelo discurso da tradição. Há, pois, uma multiplicidade de consciências que se defrontam e se entrechocam, que manifestam diferentes pontos de vista, nos quais estão implícitas uma visão inacabada de mundo.

Nos diálogos encetados nos excertos analisados, a realidade foi posta à prova e sob uma nova perspectiva, por intermédio dos gêneros sério-cômicos, objetivando a revisão das concepções impostas, desmascarando sua falsidade à luz de uma nova visão de mundo. Esse embate foi permeado por uma tensão entre a tradição, o mundo idealizado e o novo, o mundo presente. A praça pública assume diferentes verdades, procedendo ao destronamento do elevado para o baixo, ao rompimento das hierarquias. No processo de carnavalização literária, além da linguagem familiar, há aspectos referentes ao riso, à eliminação hierárquica entre os homens, à ridicularização do tom sério, concretizando o fato de que a palavra nunca é a última; ela será apreciada de uma maneira nova em um novo contexto.

O que singulariza o romance é o fato de ser possível estudar as personagens em um outro tempo, com outro viés, devido ao inacabamento da obra e das personagens retratadas. Conforme entendimento de Bakhtin, mesmo que haja um longo tempo após a produção, as obras literárias podem ser constantemente atualizadas, cumprindo a função redentora da literatura: “No processo de sua vida post mortem, as obras se enriquecem com novos significados, novos sentidos, é como se essas obras superassem o que foram na época da sua criação” (2011, p.363). Com efeito, a obra verissiana restabelece-se como um clássico, pois “nunca terminou de dizer o que tinha de dizer” (CALVINO, 2009CALVINO, I. Por que ler os clássicos. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009., p.11).

  • 1
    No texto a palavra está em maiúscula, acentuando a onipotência da personagem coronel.
  • 2
    A sobremodalização é um tipo complexo de enunciado porque une o cognitivo e o afetivo, ou seja, une o conhecimento para causar competência (poder-fazer-saber). O padre tenciona levar Rodrigo ao conhecimento pela exposição de várias realidades, para que ele passe a nelas crer.
  • 3
    O termo “catarse”, cunhado por Aristóteles, aparece na Poética (1449 b 27) quando o Estagirita comenta que ela tem a função de purificar os sentimentos de piedade e terror suscitados na tragédia. Nesta linha de pensamento, muitos estudiosos - Richard Janko (1984)JANKO, R. Aristotle on Comedy: Towards a Reconstruction of Poetics II. London: Duckworth. 1984., Kenneth Reckford (1987)RECKFORD, K. J. Aristophanes’ Old-and-new Comedy. Chapel Hill; London: The University of North Carolina Press, 1987. v. 1., Ivo Bender (1996)BENDER, I. Comédia e riso: uma poética do teatro cômico. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS/EDPUC, 1996., dentre outros, - debruçaram-se sobre o estudo da catarse aristotélica e entenderam que esse conceito poderia ser estendido à comédia, desde que os pilares (piedade e terror) que dão origem à purgação das emoções do espectador na tragédia fossem substituídos por outros para a aplicação na comédia. Nas trilhas dos estudos de Richard Janko (1984)JANKO, R. Aristotle on Comedy: Towards a Reconstruction of Poetics II. London: Duckworth. 1984. sobre este gênero, Ivo Bender (1996)BENDER, I. Comédia e riso: uma poética do teatro cômico. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS/EDPUC, 1996. defende a presença da catarse cômica. Para este dramaturgo e pesquisador, o espectador da comédia também expia suas paixões “pelo alívio de tensões previamente suscitadas que, esvaziando-se, dão lugar ao riso” (BENDER, 1996BENDER, I. Comédia e riso: uma poética do teatro cômico. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS/EDPUC, 1996., p.52).

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2019
  • Aceito
    25 Maio 2020
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