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Corpo e transgressão em Bakhtin e Bataille: um debate de excessos

RESUMO

O objetivo deste ensaio é apresentar, em termos comparativos, como o excesso políticoestético é o elemento de aproximação entre os temas do corpo e da transgressão que, dispostos sob contextos diversos, são facilmente encontrados nas obras de Mikhail Bakhtin e Georges Bataille. Assim, ainda que oriundos de campos distintos (dos estudos dialógicos da linguagem às observações da ordem de uma economia geral), ambos os autores transitam por um terreno comum às produções de sentidos que, em suma, é calcado na efemeridade, ambiguidade e ambivalência do excesso.

PALAVRAS-CHAVE:
Excesso; Carnavalização; Tabus; Sensibilia; Corporeidade

ABSTRACT

The purpose of this essay is to present, in comparative terms, how political-aesthetic excess is the common element of issues like the body and transgression arranged under different contexts in the works of Mikhail Bakhtin and Georges Bataille. Thus, despite coming from different fields (from dialogical studies of language and observations of general economy), both authors move through mutual ground to the production of meanings which is based on ephemerality, ambiguity, and ambivalence of excess.

KEYWORDS:
Excess; Carnivalization; Taboos; Sensibilia; Corporeality

Introdução

Mesmo que comunguem de interesses muito próximos, é possível afirmar que ainda hoje há uma escassez de produções acadêmicas que coloquem lado a lado, em diálogo direto, os percursos intelectuais, os textos e os conceitos de Mikhail Bakhtin (1895-1975) e Georges Bataille (1897-1962). Por outra via, obras que fogem a tal assertiva são a tese Two heterologies: Georges Bataille and Mikhail Bakhtin [Duas heterologias: Georges Bataille e Mikhail Bakhtin], de Andrei Khorev (2000)KHOREV, A. Two Heterologies: Georges Bataille e Mikhail Bakhtin, 2000. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - University of Southern California, Los Angeles, California. Disponível em: http://encurtador.com.br/uCK05. Acesso em: 23 fev. 2022.
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, e a dissertação Carnival, Sacred and Sovereign: The Intellectual Intersection of Bakhtin and Bataille [Carnaval, sagrado e soberania: a intersecção intelectual entre Bakhtin e Bataille], de Jared Lemole (2005)LEMOLE, J. E. Carnival, Sacred and Sovereign: The Intelectual Intersection of Bakhtin and Bataille, 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Florida Atlantic University, Boca Raton, Florida. Disponível em: http://fau.digital.flvc.org/islandora/object/fau%3A10115. Acesso em: 11 mar. 2022.
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. De maneira aprofundada, esses trabalhos conseguem traçar um paralelo exaustivo sobre os dois autores em terrenos conceituais compartilhados1 1 Há trabalhos acadêmicos que constroem discussões indiretas ou mesmo correlações pontuais entre os dois intelectuais como os artigos “Un monstre du rire et un rire monstrueux: directions pour une étude sur François Rabelais et Georges Bataille” [Um monstro do riso e um riso monstruoso: direções para um estudo sobre François Rabelais e Georges Bataille] de Stéphane Charitos (1988), e “The engendered blow job: Bakhtin’s comic dismemberment and the pornography of Georges Bataille’s ‘Story of the eye’ (1928)” [O boquete engendrado: o desmembramento cômico de Bakhtin e a pornografia da “História do olho” de Georges Bataille], de Roland Champagne (1990). Existe ainda a obra intitulada Reading grotesque material: Bakhtin, Bataille, and transgression in Lautréamont’s ‘Les Chants de Maldoror’ (sugerido pelo Google Acadêmico), de Andrew Kingston e Paul Éluard. Todavia, dada a inexistência de outros dados fundamentais como ano e local de publicação, esta última pesquisa não pôde ser encontrada na íntegra em nenhum banco de artigos científicos online (logo, ela é citada aqui com as devidas considerações de suspeição). . Entretanto, nenhum deles centra-se única e exclusivamente na temática do excesso em Bakhtin e Bataille como o seu foco primeiro.

Assim, como uma tentativa modesta de reavivar o debate comparativo em torno dos pensamentos bakhtinianos e bataillianos, este ensaio procura demonstrar os pontos de confluência (sem abrir mão, propriamente, das discordâncias), iniciando-se pelo tema do excesso político-estético como um assunto balizador das discussões desenvolvidas pelo pensador russo e pelo pensador francês. O excesso, vale ressaltar, parte de bases distintas para os dois intelectuais, mas, no devir de suas proposições, encontra guarida em cosmovisões muito próximas uma da outra. Como águas correntes oriundas de nascentes com certa lonjura entre si, mas que, de modo natural, desembocam em rios propínquos.

Sendo a questão do eu e do outro algo muito relevante na obra bakhtiniana, ela merece, em termos comparativos, uma correlação pontual com as questões de alteridade na visão de Bataille. Em um esforço de correlacionar pontos de contato entre as obras de Bataille e Bakhtin, a investigação trazida por Khorev (2000)KHOREV, A. Two Heterologies: Georges Bataille e Mikhail Bakhtin, 2000. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - University of Southern California, Los Angeles, California. Disponível em: http://encurtador.com.br/uCK05. Acesso em: 23 fev. 2022.
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traz à tona o entendimento do excesso como um elemento caro à produção intelectual dos autores. Especialmente a partir do surgimento do termo heterologia2 2 Para Khorev (2000, p.305): “A heterologia, tanto em Bataille quanto em Bakhtin, é posta desde o início como antissistemática, pelo menos no que diz respeito ao sistema tradicionalmente estabelecido de normas sociais, políticas, culturais e linguísticas”. Tradução nossa. No original, em inglês: “Heterology, Bataille’s as well as Bakhtin’s, is from the outset posited as anti-systematic, at least in what concerns the traditionally established system of social, political, cultural, and linguistic norms”. , nos anos 1930, como um conceito nominalmente comum às obras bakhtiniana e batailliana. Khorev (2000KHOREV, A. Two Heterologies: Georges Bataille e Mikhail Bakhtin, 2000. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - University of Southern California, Los Angeles, California. Disponível em: http://encurtador.com.br/uCK05. Acesso em: 23 fev. 2022.
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, p.1) explica que: “Ambas as heterologias, tanto a de Bataille quanto a de Bakhtin, essencialmente lidam com forças centrífugas e fenômenos desconstrutivos em relação à autoridade-centralidade literária, linguística ou estruturas sociais”3 3 Tradução nossa. No original, em inglês: “The ‘heterologies’ of both Bataille and Bakhtin essentially deal with centrifugal forces and phenomena, ‘deconstructive’ in relation to authority-centered literary, linguistic, or social structures”. . O autor afirma que: “A concepção de exterioridade de Bataille no contexto do problema do Outro é baseada na mesma premissa inicial que a de Bakhtin” (KHOREV, 2000KHOREV, A. Two Heterologies: Georges Bataille e Mikhail Bakhtin, 2000. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - University of Southern California, Los Angeles, California. Disponível em: http://encurtador.com.br/uCK05. Acesso em: 23 fev. 2022.
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, p.277)4 4 Tradução nossa. No original, em inglês: “Bataille’s conception of exteriority in the context of the problem of the Other is based on the same initial premise as Bakhtin’s”. . Assim, tal zona de possível contiguidade entre o pensamento dos dois autores se situa na reflexão sobre as relações sociais, o excesso e a alteridade, explica Khorev (2000)KHOREV, A. Two Heterologies: Georges Bataille e Mikhail Bakhtin, 2000. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - University of Southern California, Los Angeles, California. Disponível em: http://encurtador.com.br/uCK05. Acesso em: 23 fev. 2022.
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Porém, ainda que este ensaio esteja mais preocupado em encontrar as similitudes do que as diferenciações entre os dois autores, é preciso ressaltar que Khorev (2000KHOREV, A. Two Heterologies: Georges Bataille e Mikhail Bakhtin, 2000. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - University of Southern California, Los Angeles, California. Disponível em: http://encurtador.com.br/uCK05. Acesso em: 23 fev. 2022.
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, p.279) destaca que a visão de excesso para os dois autores não é sempre confluente, há dissensos observáveis. O pesquisador, ao falar da comparação entre as escolhas terminológicas do surplus bakhtiniano (em russo, izbytok [excesso]) e o excesso batailliano (em francês, excès [excesso]), também chama a atenção às questões de tradução de algumas das obras bakhtinianas diretamente do russo ao inglês, feitas por Vadim Liapunov. Além disso, sem dar maiores aprofundamentos, ele opina dizendo que o uso do termo surplus apresenta uma diferença qualitativa em comparação com o sentido da palavra excess no vocabulário batailliano (KHOREV, 2000KHOREV, A. Two Heterologies: Georges Bataille e Mikhail Bakhtin, 2000. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - University of Southern California, Los Angeles, California. Disponível em: http://encurtador.com.br/uCK05. Acesso em: 23 fev. 2022.
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, p.300). Algo que, para ele, consequentemente interfere, mesmo que ligeiramente, na forma como as produções de sentido são pensadas em ambos os autores.

Nesse sentido, a estrutura argumentativa colocada em exposição também apresenta como as questões da corporeidade são lidas pelos autores, especificamente nos pontos que tocam o corpo em excesso, o corpo em abertura constante, o corpo grotesco, o corpo em situações-limite, o corpo que se reporta à sensibilia e não tão somente à sapientia. Ao fim, como forma de condensar as discussões prévias, o tema da transgressão, como suspensão temporária das normas vigentes, é posto em cena com a intenção de refletir sobre como as ideias ou visões dos dois pensadores podem ser colocadas em um diálogo acerca da inexistência de uma ultrapassagem das interdições como superação final e completa das barreiras sistêmicas colocadas no tecido social.

1 O excesso bakhtiniano

Ao entrar no terreno das reflexões de Bakhtin sobre o excesso, antes de tudo, fazse fundamental estabelecer que as bases de orientação sobre esse pensamento encontram seu locus de enunciação nas vias do entrelaçamento do ético e do estético (principalmente por dois pontos muito complexos de sua obra: a cosmovisão carnavalesca e o excedente de visão5 5 Neste ensaio, especificamente, aborda-se o excesso pela carnavalização, contudo, recomendam-se os trabalhos de Bubnova (2000) e Machado (2010) para refletir sobre o excesso pelo excedente de visão e exotopia. “Esse excedente constante de minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro, é condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo: neste lugar, neste instante preciso, num conjunto de dadas circunstâncias - todos os outros se situam fora de mim. A exotopia concreta que beneficia só a mim, e a de todos os outros a meu respeito, sem exceção, assim como o excedente de minha visão que ela condiciona, em comparação a cada um dos outros (...)”, afirma Bakhtin (2000, p.43). ). Durante todo o percurso intelectual de Bakhtin, tal entrelaçamento é expresso como indissolúvel e presente tanto no processo de construção quanto na leitura das formas que o acabamento estético toma em um objeto empírico.

Compreender a carnavalização como um fenômeno estético e político é partir da conceituação de que ela se caracteriza por uma grande cosmovisão universalmente popular (BAKHTIN, 2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7. ed. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec, 2010.) permeada por uma ambiguidade6 6 Por ambiguidade entende-se um: “Termo que traduz a ocorrência de mais do que um sentido em palavras, frases, proposições ou textos (...). A ambiguidade na linguagem está associada aos fenómenos da conotação e da polissemia (...)” (CEIA, 2009, para.1-2). Mesmo que a ambiguidade se relacione com a ambivalência, é necessário que não se confundam os termos como sinônimos. latente, como se poderá perceber pelas visões (ora consonantes, ora dissonantes) dos autores de tradição bakhtiniana aqui mencionados. Nesse sentido, dentro dos processos de carnavalização, as questões de cunho moralizante têm sua importância rebaixada e a leveza, o cômico e o grotesco são tidos como algo apreciável, não são condenadas, mas, ao contrário, são elevadas ao patamar da naturalização da vida. Logo, na percepção carnavalesca do mundo, as hierarquias são desajustadas, os orifícios e as protuberâncias ou os dejetos e as secreções humanas alçam o posto jamais imaginado para o campo das criações literárias: o riso toma o lugar da seriedade e a autoridade é ridicularizada. Assim, neste espaço, pretende-se pôr em diálogo, sob um olhar crítico, as tensões envolvendo a percepção carnavalesca do mundo e suas conexões com o excesso (por meio do riso carnavalizado, do realismo grotesco, do corpo em excesso, das relações metafóricas de renascimento e morte e, finalmente, do caráter transgressivo, mas temporário, que obrigam as normas, a hegemonia e a ordem social a se submeterem ao signo do questionamento).

De acordo com Renfrew (2017)RENFREW, A. Mikhail Bakhtin. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2017., a obra bakhtiniana que trata de Rabelais foi publicada pela primeira vez em russo no ano de 1965, mas começou a ser escrita ainda no final dos anos de 1930 e continuou por toda a década seguinte. É válido sinalizar que a obra faz parte de um quadro emergente “(...) da virada linguística que impulsiona uma mudança fundamental no pensamento de Bakhtin no final dos anos de 1920; e assim, como o cronotopo, o carnaval não deriva nem depende de uma teoria da linguagem” (RENFREW, 2017RENFREW, A. Mikhail Bakhtin. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2017.. p.164). “Assim, podemos falar dos ‘escritos sobre o carnaval’ como um grupo ou período distinto na obra de Bakhtin, com sua própria motivação e coerência interna”, afirmam Morson e Emerson (2008MORSON, G. S., EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2008., p.451). A organização das ideias do pensador russo, feita por Morson e Emerson (2008MORSON, G. S., EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2008., p.82), mostra que até mesmo o discurso de Bakhtin ganha um tom hiperbólico em um processo de reflexo e refração metalinguística sobre o tema do excesso presente tanto na carnavalização quanto em seu estilo de escrita sobre o assunto.

Por isso, é na sátira menipeia que Bakhtin (1997)BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 2. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. localiza as formas mais explícitas do desenvolvimento ético e ideológico dos processos de carnavalização. “A natureza carnavalesca da menipéia se manifesta de maneira ainda mais precisa; suas camadas externas e o seu núcleo profundo são impregnados de carnavalização. Algumas menipeias representam diretamente os festejos de tipo carnavalesco (...)”, afirma Bakhtin (1997BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 2. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997., p.133). Ou como pontua Medeiros (2008MEDEIROS, A. Sátira menipéia e dialogismo circunscrito sob a volubilidade de Brás Cubas. XVI Semana de Humanidades, Natal, 2008. Anais... Disponível em: http://encurtador.com.br/lBMOP. Acesso em: 11 mar. 2022.
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, p.3-4): “Resumindo algumas das informações de Bakhtin sobre a menipeia, pode-se concluir que este gênero possui uma mistura de elementos que são, aparentemente, heterogêneos, tais como: elementos do conto fantástico, do diálogo filosófico, da aventura, do naturalismo de submundo e da utopia, entre outros”. O excesso na sátira se manifesta, de acordo com o autor, a partir de um “(...) intuito satírico que, de uma maneira geral, procura na existência o cunho exagerado e ultrajante daquilo que é transcendente ao homem [humanidade] em sua vida (...)” (BAKHTIN, 2000BAKHTIN, M. O autor e o herói. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3. ed. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.23-220., p.197). Logo, pensar os processos de carnavalização, como Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7. ed. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec, 2010. explica, necessariamente traz à memória o ataque combativo e transgressor da sátira menipeia, a indesejabilidade das normas, das convenções, das hierarquias, do ascetismo cristão e das supressões do riso e do corpo. Enfim, uma postura questionadora do social que, com equilíbrio, não perde de vista também as produções de sentido provenientes da atividade estética envolta nesses questionamentos. Pois, como lembra Lachmann (1988LACHMANN, R. Bakhtin and Carnival: Culture as Counter-Culture. Cultural Critique, n. 11, Winter, 1988-1989. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/1354246. Acesso em: 11 mar. 2022.
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, p.121): “(...) Bakhtin rejeita a redução das funções do carnaval como apenas um elemento puramente de crítica social”7 7 Tradução nossa. No original, em inglês: “(...) Bakhtin rejects a reduction of carnival functions to a purely socially critical element”. .

Com a afirmação de que “O carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso”, Bakhtin (2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7. ed. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec, 2010., p.7) abre a discussão para pensar as relações entre excesso e o riso carnavalizado. Segundo Lachmann (1988LACHMANN, R. Bakhtin and Carnival: Culture as Counter-Culture. Cultural Critique, n. 11, Winter, 1988-1989. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/1354246. Acesso em: 11 mar. 2022.
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, p.136), o reino do riso no carnaval é também o reino do excesso, isto é:

A linguagem do carnaval (um sistema composto de signos que, quando selecionados de acordo com regras particulares e combinados em sequências, produzem significado cultural) tem à sua disposição um certo número de paradigmas determinados pelo princípio do riso. Esses paradigmas são: alegria relativa, instabilidade, abertura e infinitude, a metamorfose, ambivalência8 8 Por ambivalência entende-se um: “Conceito que remete para os termos ou enunciados que tenham sentidos opostos, sendo ambos válidos. Trata-se de uma forma particular de ambiguidade. (...) Está ligado na origem às atitudes e comportamentos humanos. Ocorre na atribuição de sentimentos opostos ao mesmo indivíduo. Casos comuns são os da ambivalência da aceitação e da rejeição, do amor e do ódio pela mesma pessoa” (CEIA, 2009, para.1). Mesmo que a ambivalência se relacione com a ambiguidade, é necessário que não se confundam os termos como sinônimos. , o excêntrico, materialidade e corporalidade, excesso, troca de posições de valor (cima/baixo, senhor/escravo) e sensação de universalidade do ser. Esses paradigmas determinam as qualidades semânticas e a forma adquirida por todos os fatos da cultura do riso: mesmo aqueles elementos que adentram a cultura do riso, vindo de outros domínios, estão subordinados a ela9 9 Tradução nossa. No original, em inglês: “The language of the carnival (a system composed of signs which, when selected according to particular rules and combined in sequences, produce cultural meaning) has at its disposal a certain number of paradigms determined by the principle of laughter. These paradigms are: gay relativity, instability, openness and infiniteness, the metamorphotic, ambivalence, the eccentric, materiality and corporeality, excess, the exchange of value positions (up/down, master/slave), and the sensation of the universality of being. These paradigms determine both the semantic qualities and the form acquired by all facts of the culture of laughter: even those elements which intrude into the culture of laughter from other realms are subordinated to them”. .

O riso carnavalizado é excessivo, então, porque consegue romper as barreiras impostas pela hierarquia a ser seguida. O riso carnavalizado é ambivalente, como afirma Renfrew (2017RENFREW, A. Mikhail Bakhtin. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2017., p.171), justamente porque ele consegue comungar os “avessos” que quebram, mesmo que temporariamente, as ordens pré-estabelecidas ao propor, por exemplo, o espetáculo das “coroações e descoroações cômicas (o rei/louco do carnaval)” (RENFREW, 2017RENFREW, A. Mikhail Bakhtin. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2017., p.169). Dessa forma, excesso e riso são fomentadores da experiência que permite aos corpos o ato transgressivo, que desvela aos corpos a oportunidade de se colocarem como um todo coletivo que enfrenta, de modo desnaturalizado, as normas tidas como basilares ao tecido social e à manutenção do status quo.

Em suma, colocar o riso carnavalizado em contato com o excesso, sob o ponto de partida de que ele é uma força geradora (e extremamente habilidosa) capaz de colocar em tensão elementos múltiplos e contraditórios (SHIELDS, 2007SHIELDS, C. M. Bakhtin. New York: Peter Lang, 2007., p.121), faz com que se torne visível que essa correlação intenta não apenas demonstrar o poder libertador que excesso e riso têm em comum. Mas, mais além disso, torna perceptível a força (re)criadora e (re)generadora do riso carnavalizado como possibilidade de repensar o mundo, como forma de questionar limites (milimetricamente colocados sob o véu da naturalização) e de compreender como é possível enfrentá-los.

2 O excesso batailliano

A visão de excesso em Bataille é, de longe, a que mais trilha por caminhos que não tradicional, necessária e exclusivamente pertencem às Humanidades. Isso se dá porque as múltiplas frentes de atuação do autor se estendem da literatura e da arte ao campo econômico, por exemplo, sendo este último o locus escolhido como o nascedouro da sua concepção de excesso. Para tanto, Bataille postula uma tese muito avessa a todas as outras até então discutidas na economia. O autor, contrariando as leituras clássicas que definiam as lógicas de oferta e demanda econômicas como tendo na acumulação o seu cerne de debate, apresenta o excesso a partir de uma noção de dispêndio. As discussões aparecem pela primeira vez nos anos de 1930, a partir do artigo “A noção de dispêndio” (publicado na revista francesa La Critique Sociale, em 1933), e são retomadas em profundidade e maturidade anos depois com a obra A parte maldita: um ensaio sobre a economia geral (1949). Bataille, assim, entende o excesso a partir do que ele chama de gasto, despesa ou dispêndio necessário à manutenção da vida dos sujeitos no tecido social, dos sistemas e fluxos econômicos e, extensivamente, até mesmo ao ambiente das ciências naturais. Criticando a insuficiência do princípio de utilidade clássica, o autor francês anuncia o “princípio da perda” como uma alternativa para pensar a atividade humana além da redutibilidade dos processos de reprodução e conservação (BATAILLE, 2016BATAILLE, G. A noção de dispêndio. In: BATAILLE, G. A parte maldita. 2. ed. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. p.17-33., p.21).

Trazendo exemplos desses dispêndios, tidos como improdutivos, o autor demonstra, através de uma detalhada explicação, como universos e práticas tão distintas possuem uma íntima ligação pelo que ele chama de atividades que têm em si mesmo seu fim. Bataille (2016BATAILLE, G. A noção de dispêndio. In: BATAILLE, G. A parte maldita. 2. ed. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. p.17-33., p.22-24), ao falar das joias, do jogo, dos cultos, do sacrifício, do sexo além de seus fins reprodutivos, do fenômeno antropológico do potlatch10 10 Potlatch é um ritual das tribos indígenas do Norte da América (como os Haida, os Tlingit, os Salish e os Kwakiutl) e da Melanésia (Oceania). A cerimônia diz respeito a um festejo religioso concretizado pela renúncia a todos os bens materiais acumulados pelo homenageado, que devem ser entregues a parentes e amigos. Em muitos casos, os bens são simplesmente destruídos após a cerimônia e, assim, o excesso como dispêndio se mostra o exemplo por excelência discutido por Bataille (2016). e das artes, aponta o excesso como o dispêndio, o gasto, a perda localizada em um nível de condensador elementar. Em outras palavras, “(...) para Bataille não há dispêndio sem excesso, assim como todo excesso implica alguma forma de gasto” (BORGES, 2012BORGES, L. A. C. O louvor do excesso: experiência, soberania e linguagem em Bataille, 2012. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-19092012-091345/pt-br.php. Acesso em: 23 fev. 2022.
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, p.31).

Essa discussão do excesso se localiza em uma área que o autor tratou de nomear como economia geral (SHAVIRO, 1990SHAVIRO, S. Passion and Excess: Blanchot, Bataille and Literary Theory. Tallahassee: The Florida State University Press, 1990., p.35). Em uma tentativa de sintetizar as ambições argumentativas dessa área, é viável compreendê-la como uma reviravolta no pensamento econômico que, estendido posteriormente ao campo filosófico batailliano, definiu muito bem como o excesso estava presente em todas as esferas (humana, animal, natural, social) como categoria necessária aos processos de sobrevivência e manutenção da vida pelo dispêndio dessa parte maldita, posto que é improdutiva.

Assim, o espaço da economia geral batailliana, para Hegarty (2000)HEGARTY, P. Georges Bataille: Core Cultural Theorist. London: Sage Publications, 2000., é a perfeita definição de um “reino do excesso”. “Esse reino de excesso é a economia geral, mas a economia geral também é o processo pelo qual o reino homogêneo interage com fenômenos excessivos”11 11 Tradução nossa. No original, em inglês: “This realm of excess is the general economy, but the general economy is also the process whereby the homogeneous realm interacts with excessive phenomena”. , afirma o autor (HEGARTY, 2000HEGARTY, P. Georges Bataille: Core Cultural Theorist. London: Sage Publications, 2000., p.33). Logo: “A economia geral redefine o econômico de tal forma que nem tudo está abaixo do ‘econômico’, mas tudo faz parte de uma economia entre tantas outras - essa é a economia geral”12 12 Tradução nossa. No original, em inglês: “The general economy redefines the economic such that not everything is under 'the economic', but everything is part of one economy among many - this many is the general economy”. , sentencia Hegarty (2000HEGARTY, P. Georges Bataille: Core Cultural Theorist. London: Sage Publications, 2000., p.33). É necessário destacar que, ao localizar o excesso na centralidade dessa economia geral, o que Bataille está expondo, sem sombra de dúvidas, é que o excesso não é um elemento da esfera da individualidade, “(...) mas é algo que permeia todos os sistemas: do individual ao mundo e, daí, ao cosmo”13 13 Tradução nossa. No original, em inglês: “Here is an excess that is not simply individual but traverses every system from the individual to the world and to the cosmos”. (NOYS, 2000NOYS, B. Georges Bataille: A Critical Introduction. London: Pluto Press, 2000., p.13).

Desse modo, é possível perceber como o peculiar trajeto acadêmico e literário de Bataille, notadamente pela ousadia de propor reflexões sui generis, como as noções de gasto, excesso e dispêndio no campo da economia geral, revela um autor muito à frente de seu tempo. Já Ffrench (2016FFRENCH, P. Bataille’s Literary Writings. In: HEWSON, M.; COELLEN, M. Georges Bataille: Key Concepts. London and New York: Routledge, 2016. p.189-200., p.189), com um olhar voltado especificamente para a produção literária do autor, vai além e ressalta que:

Georges Bataille é o autor de algum dos mais distintivamente transgressivos e singulares escritos literários do século XX. (...) Os textos ficcionais de Bataille performam o excesso, tanto no sentido dos seus temas e eventos quanto das suas formas e formatos. Frequentemente incompletos, pontuados por silêncio, fraturados e fragmentados, os textos revelam os limites da linguagem por meio de uma grande ausência de fechamento e conclusão (...)14 14 Tradução nossa. No original, em inglês: “Georges Bataille is the author of some of the most distinctly transgressive and singular fictional writings of the 20th century (...). Bataille's fictional texts perform excess, both in tenns of their themes and events, and in their form and shape. Often incomplete, punctuated by silence, fractured and fragmented, they reveal in this very lack of closure and completion the limits of language (...)”. .

É relevante assinalar, ainda sobre sua trajetória intelectual, como o excesso não esteve restrito às suas reflexões econômicas ou apartado de seu processo de criação artística, pois, como afirma Díaz de La Serna (1997DÍAZ DE LA SERNA, I. Del desorden de Dios: ensayos sobre Georges Bataille. Ciudad de México: Taurus, 1997., p.140): “É inegável que Bataille quis instalar seu pensamento na vertigem da desordem, do excesso”15 15 Tradução nossa. No original, em espanhol: “Es innegable que Bataille quiso instalar su pensamiento en el vértigo del desorden, del exceso”. .

3 Corpo em excesso: da ótica carnavalizada às vivências da sensibilia

O tema do corpo na cosmovisão carnavalesca não é uma questão pontual ou meramente ilustrativa. Ao contrário, o corpo nos escritos bakhtinianos sobre a obra de Rabelais é uma figura central de discussão (tão potente que Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7. ed. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec, 2010. dedica, pelo menos, nominalmente dois capítulos de sua obra - os de números 5 e 6 - para se debruçar sobre o assunto). Desse modo, é mais do que válido explicitar aqui alguns pontos de interesse para compreender a centralidade corporal na percepção carnavalesca do mundo.

O primeiro deles diz respeito ao tema do baixo material e sua conexão com o baixo corporal (BAKHTIN, 2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7. ed. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec, 2010., p.325), isto é, pela ótica da carnavalização que destrona as hierarquias por meio “de golpes e injúrias” que trazem o rebaixamento topográfico, concreto e perceptível como o locus principal do baixo material e corporal. E, igualmente importante, também pela ótica do realismo grotesco que reinterpreta as coisas sagradas e elevadas a partir do plano material e corporal.

É Rabelais o maior exemplo de quem consegue fundir em sua literatura as imagens e textos mais exemplares de como o corpo se coaduna com o baixo material. Por isso, como afirma Renfrew (2017RENFREW, A. Mikhail Bakhtin. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2017., p.176-177), Bakhtin apresenta por meio da obra rabelaisiana um corpo simbólico e, ao mesmo tempo, vivo, excessivo e pulsante. Um corpo que se mostra como “essencial tanto para o carnaval propriamente (como espetáculo ritual [participativo] da Idade Média) quanto para o carnaval simbólico, para as imagens que migram para a literatura e a cultura posteriores” (RENFREW, 2017RENFREW, A. Mikhail Bakhtin. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2017., p.176-177). A partir daí é possível notar, antes de tudo, que o excesso se mostra como uma maneira muito potente de moldar o corpo carnavalizado, de forma tão especial que demarca um antes e depois nos escritos bakhtinianos de então. Em outros termos: “Exagero e ênfase excessiva são índices de valor, quanto maior a escala de ingestão do corpo e da copulação, maior o seu valor” (RENFREW, 2017RENFREW, A. Mikhail Bakhtin. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2017., p.177).

Um dos traços mais notórios do realismo grotesco como parte dessa cosmovisão carnavalesca em Bakhtin é, assim, o rebaixamento, ou seja, quando algo/alguém é trazido para o plano material e corporal (terra e corpo na sua indissolúvel unidade). Para o autor, o rebaixamento não é de ordem moral abstrata ou tem uma significação muito relativa. Não, para Bakhtin a relação entre o baixo material e corporal se dá por uma via que percebe a “orientação para baixo” como algo próprio de toda a alegria que recobre a visão popular, carnavalizada e grotesca (BAKHTIN, 2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7. ed. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec, 2010., p.325). É no “estrato corporal mais baixo” que o autor vai concentrar seu discurso ao colocar em cena o ventre, o intestino, o ânus, os excrementos, os órgãos reprodutivos e outros orifícios que muitos escritos pudicos sequer mencionariam por tais assuntos estarem ligados à uma pretensa ótica “inferior” do corpo, ou seja: “A ‘força regeneradora positiva’ do estrato corporal mais inferior, embora componente da simbólica do carnaval em termos gerais, também é lugar de significação direta (...)” (RENFREW, 2017RENFREW, A. Mikhail Bakhtin. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2017., p.178).

Outro ponto relevante desse corpo em excesso, na ótica carnavalizada, é justamente aquilo que excede as normas ou limites impostos a ele. É “um corpo exuberante e ambivalente, comprazendo-se no excesso que ele [Bakhtin] elogia em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento” (MORSON; EMERSON, 2008, p.458). O corpo em excesso é também o corpo da abertura, um corpo inacabado, um corpo incompleto, um corpo fendido. Um corpo aberto, inclusive, no sentido coletivo dos corpos em excesso que se põem à vista na ritualística carnavalesca. Ou como aponta Lachmann (1989LACHMANN, R. Bakhtin and Carnival: Culture as Counter-Culture. Cultural Critique, n. 11, Winter, 1988-1989. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/1354246. Acesso em: 11 mar. 2022.
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, p.124): os “dramas do corpo” (isto é, “o drama do nascimento, coito, morte, crescimento, alimentação, bebida e evacuação”) são não entendidos a partir do “corpo individual privado, mas ao do coletivo maior do povo”16 16 Tradução nossa. No original, em inglês: “(...) the ‘drama of the body’ is played out, the drama of birth, coitus, death, growing, eating, drinking, and evacuation. This corporeal drama applies not to the private, individual body, but rather to the larger collective one of the folk”. . Como muito bem lembram Morson e Emerson (2008MORSON, G. S., EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2008., p.467), junto à não-conclusibilidade do corpo grotesco, outros valores celebrados por Bakhtin são justamente “(...) a interdependência dos corpos e a bagunça da vida”.

Nesse sentido, a incompletude do corpo, aliada ao baixo corporal, faz com que, agora, o foco recaia não nas “fronteiras do corpo”, mas sim nos seus orifícios, “que são importantes precisamente porque violam a fronteira entre o eu individual e o mundo. (...) No carnaval, um corpo individual só é importante como parte do corpo das pessoas (...)” (MORSON; EMERSON, 2008, p.240; grifo no original). Assim, consequentemente às ideias apresentadas acima, é relevante observar como o corpo se torna o “palco da excentricidade” na percepção do mundo carnavalizado e grotesco, como assinala Lachmann (1989LACHMANN, R. Bakhtin and Carnival: Culture as Counter-Culture. Cultural Critique, n. 11, Winter, 1988-1989. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/1354246. Acesso em: 11 mar. 2022.
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, p.146):

É o corpo que transgride seus próprios limites, que reproduz seu próprio exagero: o corpo grotesco. Bakhtin reconstrói a imagem do corpo grotesco contido no texto de Rabelais e o desloca cada vez mais para o ponto focal de seu interesse. Ao fazê-lo, sua principal preocupação é o retorno do corpo no Renascimento, pelo qual a reavaliação do papel desempenhado pelo corpo no cosmos é decisiva17 17 Tradução nossa. No original, em inglês: “It is the body that transgresses its own boundaries, that plays up its own exaggeration: the grotesque body. Bakhtin reconstructs the image of the grotesque body contained in Rabelais's text and increasingly shifts it into the focal point of his interest. In doing so, his prime concern is the return of the body in the Renaissance, whereby the revaluation of the role played by the body in the cosmos is decisive”. .

Por essa via entre o corpo em excesso e o corpo transgressor, é possível perceber como Bakhtin dialoga diretamente com os escritos de Bataille acerca do corpo, do excesso e da transgressão. Quem aponta essa correlação é Lemole (2005)LEMOLE, J. E. Carnival, Sacred and Sovereign: The Intelectual Intersection of Bakhtin and Bataille, 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Florida Atlantic University, Boca Raton, Florida. Disponível em: http://fau.digital.flvc.org/islandora/object/fau%3A10115. Acesso em: 11 mar. 2022.
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ao dizer que, tanto em um autor quanto no outro, o corpo se torna preocupação de destaque porque ele enfatiza a impossibilidade de perfeição e completude. “Diferentemente de uma estátua clássica desprovida de mortalidade e vulnerabilidade, o corpo do carnaval está aberto”18 18 Tradução nossa. No original, em inglês: “Unlike a classical statue devoid of indications of mortality and vulnerability, the carnival body is ‘open’”. (LEMOLE, 2005LEMOLE, J. E. Carnival, Sacred and Sovereign: The Intelectual Intersection of Bakhtin and Bataille, 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Florida Atlantic University, Boca Raton, Florida. Disponível em: http://fau.digital.flvc.org/islandora/object/fau%3A10115. Acesso em: 11 mar. 2022.
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, p.3). Em outra tentativa de comparação terminológica, Lemole (2005LEMOLE, J. E. Carnival, Sacred and Sovereign: The Intelectual Intersection of Bakhtin and Bataille, 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Florida Atlantic University, Boca Raton, Florida. Disponível em: http://fau.digital.flvc.org/islandora/object/fau%3A10115. Acesso em: 11 mar. 2022.
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, p.iii) aponta para as poucas correlações no meio acadêmico entre os pensamentos de Bakhtin e Bataille a despeito de os autores comungarem de interesses como morte, excesso, transgressão e discurso. Dessa maneira, o pesquisador sinaliza que:

O terreno intelectual comum compartilhado por Mikhail Bakhtin e Georges Bataille sofre rotineiramente de escassez de consideração. (...) Tanto Bakhtin quanto Bataille herdaram, da nostalgia wagneriananietzschiana, o interesse pelo ritual comunal efusivo, colapsando as fronteiras entre os corpos e a fronteira entre a vida e a morte (...) (LEMOLE, 2005LEMOLE, J. E. Carnival, Sacred and Sovereign: The Intelectual Intersection of Bakhtin and Bataille, 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Florida Atlantic University, Boca Raton, Florida. Disponível em: http://fau.digital.flvc.org/islandora/object/fau%3A10115. Acesso em: 11 mar. 2022.
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, p.iii)19 19 Tradução nossa. No original, em inglês: “The common intellectual ground shared by Mikhail Bakhtin and Georges Bataille routinely suffers from a dearth of consideration. (...) Both Bakhtin and Bataille inherited the Wagnerian Nietzsche's nostalgia for effusive communal ritual, collapsing the boundaries between bodies and the boundary between life and death”. .

Logo, como se nota, o corpo em excesso é um elemento comumente abordado nas visões bakhtiniana e batailliana, seja pela via de um olhar carnavalizado, seja pelas vias da vivência de experiências-limites. A incompletude e o inacabamento do corpo em excesso interligam os caminhos percorridos por ambos os autores como centralidade discursiva sobre as relações da humanidade com seu meio. “Assim, os corpos em Bakhtin e Bataille são ‘abertos’, principalmente de maneiras cômicas e inglórias, e a morte é o cinismo do festival”20 20 Tradução nossa. No original, em inglês: “Thus bodies in Bakhtin and Bataille are ‘open,’ mainly in comic and inglorious ways, and death is the cynosure of festival”. , afirma Lemole (2015LEMOLE, J. E. Carnival, Sacred and Sovereign: The Intelectual Intersection of Bakhtin and Bataille, 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Florida Atlantic University, Boca Raton, Florida. Disponível em: http://fau.digital.flvc.org/islandora/object/fau%3A10115. Acesso em: 11 mar. 2022.
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, p.iii). É algo que pode se pensar também a partir do que Borges (2012BORGES, L. A. C. O louvor do excesso: experiência, soberania e linguagem em Bataille, 2012. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-19092012-091345/pt-br.php. Acesso em: 23 fev. 2022.
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, p.86) ressalta ao falar de termos bataillianos como déchirure [rasgo ou dilaceramento] e blessure [ferida] em um contexto de comunicação dos corpos em excesso, em uma experiência de consumação, gozo e erotismo. Logo, a experiência erótica em Bataille no caminho dos corpos abertos se dá pela figura do erotismo (sem fins reprodutivos, logo, soberano, potencialmente orgiástico e voltado para a consumação e a ideia de dispêndio em si mesmo) como a “(...) fusão dos corpos visando à superação da angústia e da falta, próprias de um ser que vive sobre o princípio de insuficiência” (BORGES, 2012BORGES, L. A. C. O louvor do excesso: experiência, soberania e linguagem em Bataille, 2012. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-19092012-091345/pt-br.php. Acesso em: 23 fev. 2022.
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, p.87).

Acerca da experiência do corpo em excesso na ótica carnavalizada, para Bakhtin, muitas vezes, ela se apresenta como algo que ultrapassa normas, inclusive, da compreensão racionalizante sobre os motivos que levam o corpo a exceder-se: é um corpo que Bakhtin idealiza como “´(...) o corpo medieval, ruidoso, escarrador ao qual não se confere nenhuma tarefa histórica especial, nenhum ‘momentum histórico’ em direção a uma forma mais harmoniosa e articulada”, afirmam Morson e Emerson (2008MORSON, G. S., EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2008., p.458). A partir desse viés, é possível problematizar como o corpo em Bataille também vivencia essa experiência de excesso sem, no entanto, ser necessário uma reflexão ultrassofisticada em termos intelectualizantes para se compreender o que ocorre no corpo a partir disso. Algo que Borges chama de “vontade de excesso do corpo”: “Na experiência, portanto, o corpo mergulha na ignorância para se afirmar como sensibilia [em contraposição à sapientia]. Condição de soberania, a ignorância é atributo necessário do corpo em excesso” (BORGES, 2012BORGES, L. A. C. O louvor do excesso: experiência, soberania e linguagem em Bataille, 2012. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-19092012-091345/pt-br.php. Acesso em: 23 fev. 2022.
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, p.82).

A abertura dos corpos em Bataille, igualmente, reverbera o entendimento de Bakhtin sobre como o eu-interno se relaciona com o mundo-externo a partir da experiência “(...) que, no limite, abole a fronteira entre o interior e o exterior, afirmando o corpo como vontade de excesso na continuidade” (BORGES, 2012BORGES, L. A. C. O louvor do excesso: experiência, soberania e linguagem em Bataille, 2012. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-19092012-091345/pt-br.php. Acesso em: 23 fev. 2022.
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, p.88). Ou seja, a abertura e as experiências vivenciadas pelo corpo são lidas em Bataille, de acordo Borges (2012BORGES, L. A. C. O louvor do excesso: experiência, soberania e linguagem em Bataille, 2012. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-19092012-091345/pt-br.php. Acesso em: 23 fev. 2022.
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, p.88), pela manifestação da “vontade de excesso” e da comunicação da “insuficiência do ser (desejo, angústia, falta, ferida)” em variadas formas de vivência.

Uma multiplicidade de possibilidades visível naquilo que Shaviro (1990)SHAVIRO, S. Passion and Excess: Blanchot, Bataille and Literary Theory. Tallahassee: The Florida State University Press, 1990. apresenta, na deliberada intenção de colocar Bataille e Blanchot em conjunção, ao falar da ideia de “experiência” e “impossibilidade” como pontos de conjunção entre a visão dos dois autores, tidos como teóricos do excesso (especialmente do corpo que experiencia as situações-limite). Segundo ele: “A impossibilidade é até mesmo a experiência em seu ponto mais vital, em seu ponto mais extremo”21 21 Tradução nossa. No original, em inglês: “Impossibility is even experience at its most vital, at its most extreme point”. (SHAVIRO, 1990SHAVIRO, S. Passion and Excess: Blanchot, Bataille and Literary Theory. Tallahassee: The Florida State University Press, 1990., p.28). Além disso, essa quase impossibilidade de significar a experiência a partir do corpo - em uma verdadeira indizibilidade ou intradutibilidade dos sentidos - aproxima-se também do que Marion (2002MARION, J. L. In Excess: Studies of Saturated Phenomena. New York: Fordham University Press, 2002., p.xxi) classifica como o excesso do qual o fenômeno saturado (saturated phenomena) é constituído. Mesmo que muitos cuidados devam ser tomados em conta nessa tentativa de correlação, especialmente porque Marion atua por uma perspectiva fenomenológica muito específica e aplicações hermenêuticas igualmente singulares no campo teológico, ainda assim, é possível traçar um paralelo entre a ideia de experiência do corpo (sensibilia) em excesso, como trazem Bakhtin e Bataille, com eventos que ultrapassam a compreensão ou processamento de ideias lógicoracionalizantes (sapientia).

Um fenômeno saturado é aquele que não pode ser totalmente contido em conceitos que podem ser apreendidos pelo nosso entendimento. (...) sempre sobra um excesso, que está além da conceituação. (...) Embora essa ideia de uma não restrição tenha consequências óbvias no domínio teológico, ela se aplica igualmente além disso, abrindo a possibilidade de que todos os fenômenos possam se dar de uma maneira que exceda nossa capacidade de compreendê-los e conceituá-los22 22 Tradução nossa. No original, em inglês: “A saturated phenomenon is one that cannot be wholly contained within concepts that can be grasped by our understanding. (...) there is always an excess left over, which is beyond conceptualization. (...) Although this idea of unrestrictedness has obvious consequences in the theological domain, it applies equally beyond this, opening the possibility that all phenomena might give themselves in a way that exceeds our capacity to grasp them and conceptualize them”. (MACKINLAY, 2010MACKINLAY, S. Interpreting Excess: Jean-Luc Marion, Saturated Phenomena, and Hermeneutics. New York: Fordham University Press, 2010., p.1-2).

Outra via possível de se entender o corpo é o que Zavala (1996ZAVALA, I. M. Escuchar a Bajtín. Barcelona: Montesinos, 1996., p.230) põe em pauta quando fala do caráter contestatório da corporeidade no tecido social. De acordo com a autora, sob a rubrica da carnavalização, o corpo político e coletivo é aquele que consegue reunir em si as maiores possiblidades de transgressão de determinado contexto ou situação. “O corpo é a zona de ambivalências, a morada do subterrâneo imaginário [social] para reinventá-lo”23 23 Tradução nossa. No original, em espanhol: “Lo ‘imaginario social’ supone - de acuerdo a mis propias propuestas - un concepto operativo que intenta captar el valor cognitivo de las construcciones imaginarias, su materialidad como acto socialmente simbólico y su función ideológica”. , afirma Zavala (1996ZAVALA, I. M. Escuchar a Bajtín. Barcelona: Montesinos, 1996., p.239). E por imaginário social, especificamente na leitura que propõe a autora em relação ao corpo político, entende-se como ele pode ser um conceito operativo capaz de “(...) captar o valor cognitivo das construções imaginárias, a sua materialidade como ato socialmente simbólico e a sua função ideológica”24 24 Tradução nossa. No original, em espanhol: “Y el cuerpo es la zona de ambivalencias, la morada del subterráneo imaginario para reinventarlo”. (ZAVALA, 1996ZAVALA, I. M. Escuchar a Bajtín. Barcelona: Montesinos, 1996., p.91). Além disso, pensar o corpo, agora, nos dizeres bataillianos, é também caminhar por imaginários e materialidades que, segundo Piel (2016PIEL, J. Apresentação: Bataille e o mundo. In: BATAILLE, Georges. A parte maldita. 2. ed. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p.7-15., p.12), têm sempre a noção de excesso como a base das construções de uma filosofia do homem (humanidade), filosofia da economia e filosofia da história atravessadas pela contestação dos sistemas e normas vigentes impostas no social.

Por fim, discutir o corpo em excesso sob a perspectiva da cosmovisão carnavalesca é pensar sobre como a corporeidade transborda-se em significação direta, nas palavras de Renfrew (2017RENFREW, A. Mikhail Bakhtin. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2017., p.178). Dito de outro modo, o autor está a falar de como o corpo torna-se um elemento que, simultaneamente, vivencia o realismo grotesco por meio do rebaixamento, decadência e degradação, sem deixar de lado a experiência do riso carnavalizador e libertador, a experiência que não se oprime pela moral e bons costumes. Nos dizeres de Bataille (2016BATAILLE, G. A noção de dispêndio. In: BATAILLE, G. A parte maldita. 2. ed. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. p.17-33., 2017BATAILLE, G. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.), trata-se de um corpo que vivencia o sexo orgiástico, a experiência que fala e, mesmo, sente as abjetas coisas que expele nos processos escatológicos. Um corpo que se afeta pelo excesso e contagia outros corpos também de maneira excessiva. Enfim, um corpo em excesso, nos entendimentos bakhtinianos e bataillianos, que transgride as normas e barreiras que lhe foram impostas, um corpo em excesso que não se deixa facilmente cercear estética e politicamente por direcionamentos hierárquicos, censórios, disciplinadores e autoritários.

4 A transgressão como suspensão temporária das normas

O tema da transgressão na cosmovisão carnavalesca é muito ligado à ambiguidade e à ambivalência, principalmente, a partir do sentido da transgressão como potencial força transformadora efêmera ou mesmo como ruptura, paradoxalmente, extrema e pontual das hierarquias. Essa concepção qualificadora da carnavalização, como aponta Barreira (2016, p.12), “tem o poder de regenerar desfigurações sociais pelo questionamento dos códigos sociais, ajudando a mobilizar a imaginação como uma forma de práticas políticas, religiosas e culturais”. Logo, pensar a transgressão é refletir sobre como, muitas vezes, o verbo “transgredir” se veste de outras terminologias com efeitos paralelos (mas não sinonímicos) como “profanizar”, “subverter” e “burlar”, isto é, terminologias atravessadas por procedimentos político-culturais provenientes do processo carnavalizador (BARREIRA, 2016, p.14).

As ideias bakhtinianas sobre transgressão, festividades, criticismo e relações sociais (acima de tudo, pela presença desestabilizadora do riso nesse processo transgressivo) são precedidas por reflexões trazidas por autores como Jacob Burckhardt, Georg Misch, Vladimir Propp e Ernst Cassirer, como comentam Brandist (2012BRANDIST, C. A grande narrativa de Bakhtin: o significado do Renascimento. In: BRANDIST, C. Repensando o Círculo de Bakhtin: novas perspectivas na história intelectual. Trad. Helenice Gouvea e Rosemary H. Schettini. São Paulo: Contexto, 2012. p.13-34., p.17-26) e Ponzio (2008PONZIO, A. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Trad. Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008., p.170). Especialmente por meio de Cassirer, afirma Brandist (2012BRANDIST, C. A grande narrativa de Bakhtin: o significado do Renascimento. In: BRANDIST, C. Repensando o Círculo de Bakhtin: novas perspectivas na história intelectual. Trad. Helenice Gouvea e Rosemary H. Schettini. São Paulo: Contexto, 2012. p.13-34., p.25), o pensamento de Bakhtin foi moldado para pensar como o autor alemão discutia a emergência da consciência crítica conectada ao humor para, posteriormente, colocar em pauta o riso como um protótipo politizado da Ideologiekritik [crítica da ideologia]. Olhando ainda mais para as raízes do passado, tanto Brandist (2012BRANDIST, C. A grande narrativa de Bakhtin: o significado do Renascimento. In: BRANDIST, C. Repensando o Círculo de Bakhtin: novas perspectivas na história intelectual. Trad. Helenice Gouvea e Rosemary H. Schettini. São Paulo: Contexto, 2012. p.13-34., p.24) como Stam (1989STAM, R. Subversive Pleasures: Bakhtin, Cultural Criticism, and Film. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1989., p.87) percebem o discurso nietzschiano como um possível propulsor das ideias bakhtinianas e, de certa forma, até mesmo do pensamento soviético acadêmico como um todo, acerca das relações entre carnaval e subversão transgressora. Apontando a necessidade de contemporizar essa correlação ao perceber as similaridades e diferenças consideráveis sobre o pensamento bakhtiniano e nietzschiano, ainda assim, Stam (1989STAM, R. Subversive Pleasures: Bakhtin, Cultural Criticism, and Film. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1989., p.87-88) afirma que:

As formulações de Bakhtin sobre o “carnaval”, de maneira quase inevitável, trazem à mente as formulações similares propostas por Nietzsche concernentes ao “Dionisíaco”. Como um polímata poliglota muito bem instruído, Bakhtin era conhecedor dos escritos filosóficos e chegou mesmo a fazer referências dispersas sobre Nietzsche em seus próprios trabalhos. (...) Ambos os pensadores, Nietzsche e Bakhtin, reconhecem que o carnaval era uma verdadeira prática cultural e não uma mera entidade textual25 25 Tradução nossa. No original, em inglês: “Bakhtin’s formulation about “carnival” almost inevitably brings to mind similar formulations by Nietzche concerning the “Dyonisian”. As a well-educated multilingual polymath, Bakhtin was familiar with philosophical writing, and indeed makes scattered references to Nietzche in his writings. (...) Both Nietzche and Bakhtin recognized that carnival was a real cultural practice and not merely a textual entity”. .

Outro ponto essencial para se entender a transgressão nesse contexto é a ideia de temporalidade passageira do efeito transgressor sobre a ordem social. É dizer que a tese principal da transgressão na visão carnavalizada em Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7. ed. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec, 2010. é que ela é uma suspensão temporária das normas, nunca uma quebra definitiva destas. A importância de se entender essa proposição reside justamente na concepção de que as amarras impostas pela estrutura social não são construídas ou destruídas de um dia para outro, ou seja, compreender a complexidade dessas estruturas faz com que se entenda, por exemplo, como a superfície de uma eventual transgressão, às vezes, pode simplesmente traduzir-se como cooptação, reapropriação ou mesmo domesticação de uma força transformadora por parte do Estado ou de outros agentes disciplinadores e reguladores do tecido social.

Logo, a afirmação de Mancuso (2005MANCUSO, H. La palabra viva: teoría verbal y discursiva de Michail M. Bachtin. Buenos Aires: Paidós, 2005., p.94) é cirúrgica ao apontar que: “O carnaval não é necessariamente um signo ideológico per se, mas, ao contrário, é um signo do reflexo”26 26 Tradução nossa. No original, em espanhol: “El carnaval no es necesariamente un signo ideológico per se, sino que, por el contrario, es un signo (del) reflejo”. . Dissecando essa fala, é possível atentar para pelo menos três fundamentos da visão transgressora do carnaval como uma ação de efeito temporário e constantemente em disputa, a saber: (1) O carnaval seria “um signo ideológico se fosse lido como um signo refratário; um signo no qual o que apareceria como enunciação não fosse a integração das classes ou inversão das classes, que é quase o mesmo -, mas, sim, a refração das classes”; (2) “Isto é, onde não se aplaca a luta de classes, mas onde ela está se manifestando: um carnaval em que se matasse de verdade seria uma revolução. Precisamente, o carnaval ficcionaliza a revolução; por ele, quando existe o carnaval, não existe a revolução”; e (3) por isso: “A conclusão é que a revolução se torna o carnaval na realidade; ou ao contrário, o carnaval é uma revolução frustrada ou o modo mais eficiente para se evitar uma revolução” (MANCUSO, 2005MANCUSO, H. La palabra viva: teoría verbal y discursiva de Michail M. Bachtin. Buenos Aires: Paidós, 2005., p.94, grifo no original)27 27 Tradução nossa. No original, em espanhol: “Sería un signo ideológico si fuese leído como un signo refractario; un signo en el cual lo que apareciera como enunciación no fuera la integración de las clases o la inversión de las clases - que sería casi lo mismo -, sino la refracción de las clases”; “Esto es, donde no se esté aplacando la lucha de clases sino donde se la esté manifestando: un carnaval en que se matase de verdad sería una revolución. Precisamente, el carnaval ficcionaliza la revolución; por ello, cuando existe el carnaval no existe la revolución”; “La conclusión es que la revolución es el carnaval hecho realidad; o al revés, el carnaval es una revolución frustrada o el modo más eficiente para evitar una revolución”. .

Esta conexão entre a transgressão ser, simultânea e ambiguamente, temporária no seu reposicionamento de um mundo ao avesso (PONZIO, p.2008, 172) e ferramenta particular de controle daquilo que causa medo e é visto como perigoso (HEGARTY, 2000HEGARTY, P. Georges Bataille: Core Cultural Theorist. London: Sage Publications, 2000., p.109) dá espaço à fala de Barreira (2016, p.16), quando sua reflexão põe sob o signo da dúvida as seguintes questões: “Seria, porém, essa inversão tão-só uma válvula de escape para aplacar a revolta popular diante das tensões sociais? Seria o carnaval apenas um momento de ilusão (...)?”. Sabendo que não há uma resposta do tipo “sim” ou “não”, dada a complexidade do tema, o que o autor afirma é que o caráter ambíguo da transgressão carnavalizada deve, no fim das contas, atender aos dois estratos possíveis de significação. Em outros termos, a transgressão tem a ver com as possíveis manobras de domesticação, consentimento e controle da estrutura social por parte das forças hegemônicas disfarçadas em um regime transgressivo (e ilusório, segundo ele) presentes na festa da rua e na alegria coletiva; mas também se apresenta como a subversão efêmera dessas mesmas manobras de cooptação a partir de uma leitura que percebe a carnavalização enquanto conceito estético e político-cultural (BARREIRA, 2016, p.18).

Finalmente, este ensaio reafirma o caráter de comunicabilidade (complexa, ambígua e dialógica) da palavra carnavalesca disposta na praça pública, tal qual Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 7. ed. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec, 2010. descreve o termo plochtchádnoie slovo [palavra da praça pública]. Dessa forma, o entendimento trazido aqui não se coaduna, de forma alguma, com a posição tomada por Morson e Emerson (2008MORSON, G. S., EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2008., p.465) quando estes atestam apenas o caráter de mediação da palavra carnavalesca, já que, segundo os autores, ela não teria capacidade de comunicação de fato. Em oposição a isso, a comunicabilidade da palavra da praça pública é demonstrada pela capacidade combinatória de ambivalências que transitam entre a pretensão da subversão da ordem social (a partir das “festas não oficiais”, como as encontradas no período medievo, por exemplo) e a cooptação do teor transgressivo (pelas “festas oficiais” que, gradativamente, perdem sua força desreguladora das normas e são assimiladas por arranjos hegemônicos de forças e agentes controladores das conjunturas sociopolíticas e ideológicas, por exemplo, a partir do período renascentista), como sinaliza Ponzio (2008PONZIO, A. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Trad. Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008., p.177-181). Logo, ao contrário de Morson e Emerson (2008)MORSON, G. S., EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2008., este trabalho solidifica seu argumento naquilo que Ponzio (2008)PONZIO, A. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Trad. Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008. destaca sobre a localização da riqueza discursiva das formas de comunicação estar presente justamente no “duplo tom” da linguagem produzida na praça pública. Assim, afirma o autor: “A figura do duplo tom, que une elogios e insultos, diz Bakhtin, coroa e destrona ao mesmo tempo” (PONZIO, 2008PONZIO, A. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Trad. Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008., p.181). E, por extensão, a transgressão temporária da norma mantém sua ambiguidade, sem, contudo, perder a relevância na conformação do pensamento carnavalizado.

Com igual importância, as compreensões de excesso e de transgressão são outra maneira de Bataille se voltar para os fenômenos excessivos e os ligar a assuntos tão complexos como a inevitabilidade da morte, a soberania, a religião, as relações de trabalho28 28 Destaca-se, como aponta Castro (2016, p.114), que: “Os excessos e os extremos sempre exerceram fascínio, mas foram controlados através da criação dos interditos. Foi a criação dos interditos que possibilitou ao ser humano construir uma civilização organizada sob o signo do trabalho coletivo. Para Bataille, todos os interditos estão relacionados à reprodução e à morte (...)”. , a política e o autoritarismo nazi-fascista, a experiência, o sacrifício, o erotismo e os prazeres do corpo. Colocando o interdito como aquilo que é criado para ser desafiado, ultrapassado e transgredido, o autor pontua que: “Há na natureza e subsiste no homem [humanidade] um movimento que sempre excede os limites” (BATAILLE, 2017BATAILLE, G. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p.63; grifo no original). Dessa forma, pensar a transgressão na visão do autor, de maneira indiscutível, suscita uma reflexão sobre as relações entre o excesso e a violência como um dos meios de ação dessa transgressão (BATAILLE, 2017BATAILLE, G. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p.64). Todavia, vale ressaltar que: “A transgressão do proibido não é uma violência animal. É uma violência, sim, mas exercida por um ser suscetível de razão (...)”29 29 Tradução nossa. No original, em espanhol: “La transgresión de lo prohibido no es la violencia animal. Es violencia, sí, pero ejercida por un ser susceptible de razón (...)”. (BATAILLE, 1970-1987 apudDÍAZ DE LA SERNA, 1997DÍAZ DE LA SERNA, I. Del desorden de Dios: ensayos sobre Georges Bataille. Ciudad de México: Taurus, 1997., p.79). Uma ressalva possível sobre o assunto está no que Noys (2000)NOYS, B. Georges Bataille: A Critical Introduction. London: Pluto Press, 2000. chama de leitura cuidadosa e crítica do tema da violência em Bataille como forma de não se associar de forma falsa e fácil as reflexões bataillianas à cultura da violência ou levianamente afirmar que o autor a celebra. “Ao contrário, ao romper com os tabus (violentamente impostos) por meio de uma violência [transgressora], Bataille não está objetivando o aumento da violência, mas ele busca examinar como esses rigorosos tabus geram sua própria violência”30 30 Tradução nossa. No original, em inglês: “However, in breaking the (violently imposed) taboos on violence Bataille is not aiming to increase violence but to examine how these strict taboos generate their own violence”. (NOYS, 2000NOYS, B. Georges Bataille: A Critical Introduction. London: Pluto Press, 2000., p.134).

Nesse sentido, as observações trazidas por Hegarty (2000HEGARTY, P. Georges Bataille: Core Cultural Theorist. London: Sage Publications, 2000., p.109) e Noys (2000NOYS, B. Georges Bataille: A Critical Introduction. London: Pluto Press, 2000., p.84-87) operam, em nível de laconicidade, demonstrando como o pensamento batailliano percebe a transgressão a partir de pelo menos seis grandes vias, ou seja: (1) a transgressão é lida, endogenamente, a partir dos tabus31 31 Porém: “Mesmo que transgressão e tabu correspondam intimamente à continuidade e à descontinuidade, eles não são fáceis de serem observados enquanto instância separadas e Bataille, por sua vez, é mais sensível à ideia de uma necessária coexistência e mútua dependência da transgressão e do tabu” (NOYS, 2000, p.84). Tradução nossa. No original, em inglês: “While transgression and taboo closely correspond to continuity and discontinuity they are not as easy to regard as separate states, and Bataille is more sensitive to the necessary coexistence and mutual dependency of transgression and taboo”. (da morte, do erotismo, do sacrifício, por exemplo), que são questionados/questionáveis (do contrário, se não houvesse tabu, não haveria razão para se ter transgressão); (2) a transgressão é um movimento que sempre excede os limites e os tabus se traduzem como essas limitações impostas, logo, a leitura de um duplo movimento entre transgressão e tabu se voltam para as lógicas de continuidade e descontinuidade simultâneas; (3) assim, se a vida existe a partir do tumulto provocado entre as impossibilidades limitadoras do tabu e as possibilidades de ultrapassagem desses limites pela transgressão, vale lembrar que a pura transgressão ou o puro tabu significariam o fim da vida; (4) a transgressão é intencional; (5) a transgressão não pertence ao reino da individualidade tão somente, pois: “Mesmo que seja o indivíduo agindo sozinho, a transgressão (...) só pode ocorrer com a perda do eu no outro” (HEGARTY, 2000HEGARTY, P. Georges Bataille: Core Cultural Theorist. London: Sage Publications, 2000., p.109)32 32 Tradução nossa. No original, em inglês: “Even if it is the individual acting alone, transgression (...) can only occur with the loss of the self in the Other”. ; e (6) a transgressão, como fenômeno social, pode se dar a ver por duas subdivisões: a transgressão organizada e a transgressão sem limites33 33 Contudo, em comparação à pura transgressão pura e ao puro tabu, mesmo a transgressão sem limites possui, de certo modo, seus “limites”. “Como vimos, os mesmos argumentos se aplicam à transgressão organizada e a sem limites: a transgressão organizada nunca é tão organizada que não possa sair de seus limites e a transgressão sem limites nunca é tão ilimitada que possa passar sem organização” (NOYS, 2000, p.87). [Tradução nossa. No original, em inglês: “As we have seen, the same arguments apply to organised and unlimited transgression: organised transgression is never so organised that it cannot break out of its limits and unlimited transgression is never so unlimited that it can do without organisation”. : (a) a primeira é exemplificada por festivais, cerimônias e sacrifícios como formas transgressoras fundamentalmente estáveis e que, por sua frequência e regularidade, não afetam a intangível estabilidade da proibição/do interdito, já que elas são esperadas que ocorram; por sua vez, (b) a segunda é exemplificada por meio das transgressões que saem dos trilhos e ameaçam as ordens do tecido social como momentos de revolta (antes desses mesmos momentos serem cooptados por uma força disciplinadora e, aí, se tornarem estáveis). Em outros termos, a afirmação de Laborie (2007LABORIE, J. C. O excesso: Introdução geral à Revista Tempo Brasileiro. Revista Tempo Brasileiro, n. 169, abr./jun. 2007. p.7-9., p.8) parece sumarizar a discussão anterior ao mostrar como a eterna potência transgressora do excesso é, por extensão, perenemente frágil: “O excesso é sempre ameaçado de novas petrificações, quando ele perde contato com seu significado e se torna uma linguagem codificada, uma norma”.

Outro ponto de conjunção entre as obras de Bakhtin e Bataille é trazido por Lemole (2005LEMOLE, J. E. Carnival, Sacred and Sovereign: The Intelectual Intersection of Bakhtin and Bataille, 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Florida Atlantic University, Boca Raton, Florida. Disponível em: http://fau.digital.flvc.org/islandora/object/fau%3A10115. Acesso em: 11 mar. 2022.
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, p.7) ao afirmar que: “Como o carnaval, com ênfase na morte, revela a continuidade da vida, Bataille caracteriza o evento como ‘sagrado’ por sua capacidade de unificar uma comunidade”34 34 Tradução nossa. No original, em inglês: “Because carnival, with its emphasis on death, reveals the continuity of life, Bataille characterizes the event as ‘sacred’ for its ability to unify a community”. . Assim, continua ele: “(...) como o carnaval privilegia o desperdício em vez da utilidade, a heterogeneidade em vez da homogeneidade, Bataille considera o carnaval uma expressão de soberania [dos corpos]”35 35 Tradução nossa. No original, em inglês: “And because carnival privileges waste rather than utility, heterogeneity rather than homogeneity, Bataille considers carnival an expression of sovereignty”. (LEMOLE, 2005LEMOLE, J. E. Carnival, Sacred and Sovereign: The Intelectual Intersection of Bakhtin and Bataille, 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Florida Atlantic University, Boca Raton, Florida. Disponível em: http://fau.digital.flvc.org/islandora/object/fau%3A10115. Acesso em: 11 mar. 2022.
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, p.7). Logo, a importância da morte na produção acadêmica e literária de Bataille se mostra também por aquilo que Díaz de La Serna (1997)DÍAZ DE LA SERNA, I. Del desorden de Dios: ensayos sobre Georges Bataille. Ciudad de México: Taurus, 1997. destaca como a morte enquanto “elemento resolutivo” dos relatos bataillianos. Segundo o autor, nas obras de Bataille, a morte se “(...) constitui como a instância decisiva que revela o caráter liberador do excesso orgiástico. (...) A morte já não desemboca no erotismo. Pelo contrário, são o erotismo e a obscenidade o caminho que prepara a morte”36 36 Tradução nossa. No original, em espanhol: “La muerte desempeña a las claras el papel de elemento resolutivo de todos los relatos de Bataille. (...) Constituye la instancia decisiva que revela el carácter liberador del exceso orgiástico. (...) La muerte ya no desemboca en el erotismo. Por el contrario, son el erotismo y la obscenidad el camino que prepara la muerte”. (DÍAZ DE LA SERNA, 1997DÍAZ DE LA SERNA, I. Del desorden de Dios: ensayos sobre Georges Bataille. Ciudad de México: Taurus, 1997., p.135).

Esse modo de ver os fios dialógicos conectores do carnaval e da transgressão proporcionam a oportunidade de relembrar como as ideias de Bataille sobre a divisão de uma transgressão organizada versus uma transgressão sem limites se encaixam muito bem na tese central do pensamento bakhtiniano sobre o assunto. Bataille (2017BATAILLE, G. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p.59) fala dessa subversão efêmera e, com muita perspicácia, Díaz de La Serna a sintetiza na seguinte afirmação: “(...) a transgressão não se constitui como um simples regresso à ordem natural. Ela deixa suspensa momentaneamente a vigência da proibição, mas não a suprime de todo”37 37 Tradução nossa. No original, em espanhol: “(...) la transgresión no constituye um simple regreso al orden natural. Ella deja suspendida momentáneamente la vigencia de la prohibición, pero no la suprime”. (DÍAZ DE LA SERNA, 1997DÍAZ DE LA SERNA, I. Del desorden de Dios: ensayos sobre Georges Bataille. Ciudad de México: Taurus, 1997., p.79-80; grifo no original). Assim, tanto Bakhtin quanto Bataille, a partir de caminhos distintos que levam ao mesmo fim, resistem à ideia de uma transgressão que suspenderia por completo e em definitivo os tabus, os interditos, as normas, as proibições e, assim, um “estado idílico”38 38 Tradução nossa. No original, em inglês: “Bataille resists the idea that transgression could lead to the complete lifting of all taboos on sexuality and the return to some idyllic state of nature”. da natureza se estabeleceria (NOYS, 2000NOYS, B. Georges Bataille: A Critical Introduction. London: Pluto Press, 2000., p.84). No fim das contas, como relembra Bataille (2017BATAILLE, G. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p.91): “A transgressão excede, sem o destruir, um mundo profano de que é o complemento”.

Considerações finais

Como demonstrado no pareamento do debate intelectual, muitos são os pontos de contato entre o pensamento bakhtiniano e batailliano. Tal qual já destacam Khorev (2000)KHOREV, A. Two Heterologies: Georges Bataille e Mikhail Bakhtin, 2000. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - University of Southern California, Los Angeles, California. Disponível em: http://encurtador.com.br/uCK05. Acesso em: 23 fev. 2022.
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e Lemole (2005)LEMOLE, J. E. Carnival, Sacred and Sovereign: The Intelectual Intersection of Bakhtin and Bataille, 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Florida Atlantic University, Boca Raton, Florida. Disponível em: http://fau.digital.flvc.org/islandora/object/fau%3A10115. Acesso em: 11 mar. 2022.
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, a despeito de divergências pontuais, o excesso para o autor russo e o autor francês se mostra como um elemento de importância ímpar na constituição de suas ideias. Se por um lado há uma discussão mais bem evidenciada do excesso a partir da cosmovisão grotesca e do riso carnavalesco em Bakhtin; vê-se que o excesso em Bataille funciona como uma espécie de elemento magnético que atrai para si, de modo disperso, mas também estrutural, reflexões não só sobre o dispêndio na economia geral, como também o excesso pelas vias da corporeidade.

É, aliás, centrado na sensibilia do corpo que as visões bakhtiniana e batailliana se reúnem de modo mais vívido. Em ambos os autores, a não-conclusibilidade, a incompletude, o indizível, o limiar entre o interno e o externo, o corpo coletivo, a materialidade da abertura dos corpos pelos orifícios, déchirure e blessure, baixo material, escatologia, gozo, vida orgiástica e a visão de corpos avessos ao ascetismo cristão, mas propensos à experiência de situações-limite, são elementos que dialogam em estreita contiguidade.

Acerca da transgressão, vê-se uma leitura do tema como um conceito que transita pela obra dos autores por meio de concepções colaterais sobre os processos de desentronização e descoroação, questionamento coletivo das hierarquias, discussão da centralidade de uma ordem disciplinadora e, finalmente, a perspectiva de que existem possibilidades de cooptação, reapropriação ou mesmo domesticação que rondam tais forças disruptivas. Porém, é no entendimento de que ocorre uma quebra ou suspensão temporária das normas, ao contrário de uma ruptura pura e definitiva, que a transgressão ganha corpo no arcabouço teórico dos autores. Assim, a ideia de que uma transgressão sem limites seria potente o suficiente para desestabilizar o véu da naturalidade que cobre a normatividade no mundo é uma ideia falha: ao fim e ao cabo, também essa transgressão possui suas zonas limítrofes.

Por isso, afirma-se que o excesso político-estético é ambíguo e ambivalente para Bakhtin e Bataille, isto é, pode ser potencialmente transgressor e socialmente transformador ou pode servir potencialmente apenas à manutenção do status quo social a partir do qual ele se origina (de forma nítida ou não). Essa característica de plurissignificação de sentidos (ora em um nível de pouca precisão sobre seus significados em uma miríade de sentidos, ora em dualidade precisa entre uma escolha de sentidos restrita a um binômio) destaca como o caráter de pervasividade do excesso é forte o suficiente para não ser enquadrado, novamente, em uma via meramente quantitativa, referencial.

Em uma tentativa de perscrutar a base que assenta a ambiguidade e ambivalência, vê-se que a localização espaço-temporal do caráter ambíguo e ambivalente ecoados nos pensamentos bakhtiniano e batailliano encontram na efemeridade dos sentidos o ponto de partida para as facetas possíveis do excesso. Logo, pode-se postular que o excesso é tolerado (naturalizado) socialmente ou não a depender não apenas do nível de penetração, cooptação e ressignificação das normas (de gênero, classe, raça, inovação, adaptação tecnológica etc.) do sistema que o conforma ou onde ele pretende se inserir, mas, principalmente, do efeito temporário de entendimento que essas normas todas possuem no momento de leitura de um objeto, sujeito ou fenômeno. Dito em termos mais claros, a efemeridade possibilita que o que é excessivo em um determinado tempo-espaço não o seja mais no correr da temporalidade que o envolve. Tal qual as sociedades mudam (progredindo ou regredindo, a depender do ponto de vista de onde se observa), assim também o excesso (dotado de uma ambivalência e ambiguidade natas) tem na inconstância temporal a impossibilidade de um sentido perpétuo, fechado, não-dialógico ou de interpretação perene e inconteste. A efemeridade dos sentidos conforma o excesso como um elemento plural e aberto às novas significações que o espaço-tempo, potencialmente, configurará como a base de sua leitura.

Por fim, como possibilidade de continuidade de futuras pesquisas, outro tema que intimamente conecta os quadros teóricos de Bakhtin e Bataille diz respeito à morte (LEMOLE, 2005LEMOLE, J. E. Carnival, Sacred and Sovereign: The Intelectual Intersection of Bakhtin and Bataille, 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Florida Atlantic University, Boca Raton, Florida. Disponível em: http://fau.digital.flvc.org/islandora/object/fau%3A10115. Acesso em: 11 mar. 2022.
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). Em uma tentativa de aproximar o pensamento dos autores sobre o assunto, Khorev (2000KHOREV, A. Two Heterologies: Georges Bataille e Mikhail Bakhtin, 2000. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - University of Southern California, Los Angeles, California. Disponível em: http://encurtador.com.br/uCK05. Acesso em: 23 fev. 2022.
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, p.4) comenta que os intelectuais estabelecem em suas obras novos parâmetros de “modos filosóficos” extremamente relevantes acerca da relação entre morte, corpo e discurso. Assim, possivelmente, esteja na morte outro dos pontos de comparação mais exitosos a demonstrar um frutífero diálogo entre as matrizes do excesso nas visões bakhtiniana e batailliana.

  • 1
    Há trabalhos acadêmicos que constroem discussões indiretas ou mesmo correlações pontuais entre os dois intelectuais como os artigos “Un monstre du rire et un rire monstrueux: directions pour une étude sur François Rabelais et Georges Bataille” [Um monstro do riso e um riso monstruoso: direções para um estudo sobre François Rabelais e Georges Bataille] de Stéphane Charitos (1988)CHARITOS, S. A. Um monstre du rire et un rire monstrueux: directions pour une étude sur François Rabelais et Georges Bataille. Romance Notes, v. 28, n. 3, p.217-225, 1988. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/43800895. Acesso em: 11 mar. 2022.
    http://www.jstor.org/stable/43800895...
    , e “The engendered blow job: Bakhtin’s comic dismemberment and the pornography of Georges Bataille’s ‘Story of the eye’ (1928)” [O boquete engendrado: o desmembramento cômico de Bakhtin e a pornografia da “História do olho” de Georges Bataille], de Roland Champagne (1990)CHAMPAGNE, R. The Engendered Blow Job: Bakhtin’s Comic Dismemberment and the Pornography of Georges Bataille’s “Story of the eye” (1928). Humour: International Journal of Humor Research, v. 3, n. 2, p.177-191, 1990. Disponível em: https://doi.org/10.1515/humr.1990.3.2.177. Acesso em: 11 mar. 2022.
    https://doi.org/10.1515/humr.1990.3.2.17...
    . Existe ainda a obra intitulada Reading grotesque material: Bakhtin, Bataille, and transgression in Lautréamont’s ‘Les Chants de Maldoror’ (sugerido pelo Google Acadêmico), de Andrew Kingston e Paul Éluard. Todavia, dada a inexistência de outros dados fundamentais como ano e local de publicação, esta última pesquisa não pôde ser encontrada na íntegra em nenhum banco de artigos científicos online (logo, ela é citada aqui com as devidas considerações de suspeição).
  • 2
    Para Khorev (2000KHOREV, A. Two Heterologies: Georges Bataille e Mikhail Bakhtin, 2000. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - University of Southern California, Los Angeles, California. Disponível em: http://encurtador.com.br/uCK05. Acesso em: 23 fev. 2022.
    http://encurtador.com.br/uCK05...
    , p.305): “A heterologia, tanto em Bataille quanto em Bakhtin, é posta desde o início como antissistemática, pelo menos no que diz respeito ao sistema tradicionalmente estabelecido de normas sociais, políticas, culturais e linguísticas”. Tradução nossa. No original, em inglês: “Heterology, Bataille’s as well as Bakhtin’s, is from the outset posited as anti-systematic, at least in what concerns the traditionally established system of social, political, cultural, and linguistic norms”.
  • 3
    Tradução nossa. No original, em inglês: “The ‘heterologies’ of both Bataille and Bakhtin essentially deal with centrifugal forces and phenomena, ‘deconstructive’ in relation to authority-centered literary, linguistic, or social structures”.
  • 4
    Tradução nossa. No original, em inglês: “Bataille’s conception of exteriority in the context of the problem of the Other is based on the same initial premise as Bakhtin’s”.
  • 5
    Neste ensaio, especificamente, aborda-se o excesso pela carnavalização, contudo, recomendam-se os trabalhos de Bubnova (2000)BUBNOVA, T. Prólogo. In: BAJTÍN, M. M. Yo también soy - Fragmentos sobre el otro. Ciudad de México: Taurus, 2000. p.11-26. e Machado (2010)MACHADO, I. A questão espaço-temporal em Bakhtin: cronotopia e exotopia. In: PAULA, L.; STAFUZZA, G. (orgs.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010. p.203-234. para refletir sobre o excesso pelo excedente de visão e exotopia. “Esse excedente constante de minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro, é condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo: neste lugar, neste instante preciso, num conjunto de dadas circunstâncias - todos os outros se situam fora de mim. A exotopia concreta que beneficia só a mim, e a de todos os outros a meu respeito, sem exceção, assim como o excedente de minha visão que ela condiciona, em comparação a cada um dos outros (...)”, afirma Bakhtin (2000BAKHTIN, M. O autor e o herói. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3. ed. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.23-220., p.43).
  • 6
    Por ambiguidade entende-se um: “Termo que traduz a ocorrência de mais do que um sentido em palavras, frases, proposições ou textos (...). A ambiguidade na linguagem está associada aos fenómenos da conotação e da polissemia (...)” (CEIA, 2009CEIA, C. E-Dicionário de termos literários. Universidade Nova de Lisboa, 2009. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/. Acesso em: 23 fev. 2022.
    https://edtl.fcsh.unl.pt/...
    , para.1-2). Mesmo que a ambiguidade se relacione com a ambivalência, é necessário que não se confundam os termos como sinônimos.
  • 7
    Tradução nossa. No original, em inglês: “(...) Bakhtin rejects a reduction of carnival functions to a purely socially critical element”.
  • 8
    Por ambivalência entende-se um: “Conceito que remete para os termos ou enunciados que tenham sentidos opostos, sendo ambos válidos. Trata-se de uma forma particular de ambiguidade. (...) Está ligado na origem às atitudes e comportamentos humanos. Ocorre na atribuição de sentimentos opostos ao mesmo indivíduo. Casos comuns são os da ambivalência da aceitação e da rejeição, do amor e do ódio pela mesma pessoa” (CEIA, 2009CEIA, C. E-Dicionário de termos literários. Universidade Nova de Lisboa, 2009. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/. Acesso em: 23 fev. 2022.
    https://edtl.fcsh.unl.pt/...
    , para.1). Mesmo que a ambivalência se relacione com a ambiguidade, é necessário que não se confundam os termos como sinônimos.
  • 9
    Tradução nossa. No original, em inglês: “The language of the carnival (a system composed of signs which, when selected according to particular rules and combined in sequences, produce cultural meaning) has at its disposal a certain number of paradigms determined by the principle of laughter. These paradigms are: gay relativity, instability, openness and infiniteness, the metamorphotic, ambivalence, the eccentric, materiality and corporeality, excess, the exchange of value positions (up/down, master/slave), and the sensation of the universality of being. These paradigms determine both the semantic qualities and the form acquired by all facts of the culture of laughter: even those elements which intrude into the culture of laughter from other realms are subordinated to them”.
  • 10
    Potlatch é um ritual das tribos indígenas do Norte da América (como os Haida, os Tlingit, os Salish e os Kwakiutl) e da Melanésia (Oceania). A cerimônia diz respeito a um festejo religioso concretizado pela renúncia a todos os bens materiais acumulados pelo homenageado, que devem ser entregues a parentes e amigos. Em muitos casos, os bens são simplesmente destruídos após a cerimônia e, assim, o excesso como dispêndio se mostra o exemplo por excelência discutido por Bataille (2016)BATAILLE, G. A noção de dispêndio. In: BATAILLE, G. A parte maldita. 2. ed. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. p.17-33..
  • 11
    Tradução nossa. No original, em inglês: “This realm of excess is the general economy, but the general economy is also the process whereby the homogeneous realm interacts with excessive phenomena”.
  • 12
    Tradução nossa. No original, em inglês: “The general economy redefines the economic such that not everything is under 'the economic', but everything is part of one economy among many - this many is the general economy”.
  • 13
    Tradução nossa. No original, em inglês: “Here is an excess that is not simply individual but traverses every system from the individual to the world and to the cosmos”.
  • 14
    Tradução nossa. No original, em inglês: “Georges Bataille is the author of some of the most distinctly transgressive and singular fictional writings of the 20th century (...). Bataille's fictional texts perform excess, both in tenns of their themes and events, and in their form and shape. Often incomplete, punctuated by silence, fractured and fragmented, they reveal in this very lack of closure and completion the limits of language (...)”.
  • 15
    Tradução nossa. No original, em espanhol: “Es innegable que Bataille quiso instalar su pensamiento en el vértigo del desorden, del exceso”.
  • 16
    Tradução nossa. No original, em inglês: “(...) the ‘drama of the body’ is played out, the drama of birth, coitus, death, growing, eating, drinking, and evacuation. This corporeal drama applies not to the private, individual body, but rather to the larger collective one of the folk”.
  • 17
    Tradução nossa. No original, em inglês: “It is the body that transgresses its own boundaries, that plays up its own exaggeration: the grotesque body. Bakhtin reconstructs the image of the grotesque body contained in Rabelais's text and increasingly shifts it into the focal point of his interest. In doing so, his prime concern is the return of the body in the Renaissance, whereby the revaluation of the role played by the body in the cosmos is decisive”.
  • 18
    Tradução nossa. No original, em inglês: “Unlike a classical statue devoid of indications of mortality and vulnerability, the carnival body is ‘open’”.
  • 19
    Tradução nossa. No original, em inglês: “The common intellectual ground shared by Mikhail Bakhtin and Georges Bataille routinely suffers from a dearth of consideration. (...) Both Bakhtin and Bataille inherited the Wagnerian Nietzsche's nostalgia for effusive communal ritual, collapsing the boundaries between bodies and the boundary between life and death”.
  • 20
    Tradução nossa. No original, em inglês: “Thus bodies in Bakhtin and Bataille are ‘open,’ mainly in comic and inglorious ways, and death is the cynosure of festival”.
  • 21
    Tradução nossa. No original, em inglês: “Impossibility is even experience at its most vital, at its most extreme point”.
  • 22
    Tradução nossa. No original, em inglês: “A saturated phenomenon is one that cannot be wholly contained within concepts that can be grasped by our understanding. (...) there is always an excess left over, which is beyond conceptualization. (...) Although this idea of unrestrictedness has obvious consequences in the theological domain, it applies equally beyond this, opening the possibility that all phenomena might give themselves in a way that exceeds our capacity to grasp them and conceptualize them”.
  • 23
    Tradução nossa. No original, em espanhol: “Lo ‘imaginario social’ supone - de acuerdo a mis propias propuestas - un concepto operativo que intenta captar el valor cognitivo de las construcciones imaginarias, su materialidad como acto socialmente simbólico y su función ideológica”.
  • 24
    Tradução nossa. No original, em espanhol: “Y el cuerpo es la zona de ambivalencias, la morada del subterráneo imaginario para reinventarlo”.
  • 25
    Tradução nossa. No original, em inglês: “Bakhtin’s formulation about “carnival” almost inevitably brings to mind similar formulations by Nietzche concerning the “Dyonisian”. As a well-educated multilingual polymath, Bakhtin was familiar with philosophical writing, and indeed makes scattered references to Nietzche in his writings. (...) Both Nietzche and Bakhtin recognized that carnival was a real cultural practice and not merely a textual entity”.
  • 26
    Tradução nossa. No original, em espanhol: “El carnaval no es necesariamente un signo ideológico per se, sino que, por el contrario, es un signo (del) reflejo”.
  • 27
    Tradução nossa. No original, em espanhol: “Sería un signo ideológico si fuese leído como un signo refractario; un signo en el cual lo que apareciera como enunciación no fuera la integración de las clases o la inversión de las clases - que sería casi lo mismo -, sino la refracción de las clases”; “Esto es, donde no se esté aplacando la lucha de clases sino donde se la esté manifestando: un carnaval en que se matase de verdad sería una revolución. Precisamente, el carnaval ficcionaliza la revolución; por ello, cuando existe el carnaval no existe la revolución”; “La conclusión es que la revolución es el carnaval hecho realidad; o al revés, el carnaval es una revolución frustrada o el modo más eficiente para evitar una revolución”.
  • 28
    Destaca-se, como aponta Castro (2016CASTRO, S. Ecos dos festejos báquicos no carnaval brasileiro moderno. In: SILVEIRA, R. A. T. (org.). O carnaval e a filosofia. Porto Alegre: Editora Fi, 2016. p.108-124., p.114), que: “Os excessos e os extremos sempre exerceram fascínio, mas foram controlados através da criação dos interditos. Foi a criação dos interditos que possibilitou ao ser humano construir uma civilização organizada sob o signo do trabalho coletivo. Para Bataille, todos os interditos estão relacionados à reprodução e à morte (...)”.
  • 29
    Tradução nossa. No original, em espanhol: “La transgresión de lo prohibido no es la violencia animal. Es violencia, sí, pero ejercida por un ser susceptible de razón (...)”.
  • 30
    Tradução nossa. No original, em inglês: “However, in breaking the (violently imposed) taboos on violence Bataille is not aiming to increase violence but to examine how these strict taboos generate their own violence”.
  • 31
    Porém: “Mesmo que transgressão e tabu correspondam intimamente à continuidade e à descontinuidade, eles não são fáceis de serem observados enquanto instância separadas e Bataille, por sua vez, é mais sensível à ideia de uma necessária coexistência e mútua dependência da transgressão e do tabu” (NOYS, 2000NOYS, B. Georges Bataille: A Critical Introduction. London: Pluto Press, 2000., p.84). Tradução nossa. No original, em inglês: “While transgression and taboo closely correspond to continuity and discontinuity they are not as easy to regard as separate states, and Bataille is more sensitive to the necessary coexistence and mutual dependency of transgression and taboo”.
  • 32
    Tradução nossa. No original, em inglês: “Even if it is the individual acting alone, transgression (...) can only occur with the loss of the self in the Other”.
  • 33
    Contudo, em comparação à pura transgressão pura e ao puro tabu, mesmo a transgressão sem limites possui, de certo modo, seus “limites”. “Como vimos, os mesmos argumentos se aplicam à transgressão organizada e a sem limites: a transgressão organizada nunca é tão organizada que não possa sair de seus limites e a transgressão sem limites nunca é tão ilimitada que possa passar sem organização” (NOYS, 2000NOYS, B. Georges Bataille: A Critical Introduction. London: Pluto Press, 2000., p.87). [Tradução nossa. No original, em inglês: “As we have seen, the same arguments apply to organised and unlimited transgression: organised transgression is never so organised that it cannot break out of its limits and unlimited transgression is never so unlimited that it can do without organisation”.
  • 34
    Tradução nossa. No original, em inglês: “Because carnival, with its emphasis on death, reveals the continuity of life, Bataille characterizes the event as ‘sacred’ for its ability to unify a community”.
  • 35
    Tradução nossa. No original, em inglês: “And because carnival privileges waste rather than utility, heterogeneity rather than homogeneity, Bataille considers carnival an expression of sovereignty”.
  • 36
    Tradução nossa. No original, em espanhol: “La muerte desempeña a las claras el papel de elemento resolutivo de todos los relatos de Bataille. (...) Constituye la instancia decisiva que revela el carácter liberador del exceso orgiástico. (...) La muerte ya no desemboca en el erotismo. Por el contrario, son el erotismo y la obscenidad el camino que prepara la muerte”.
  • 37
    Tradução nossa. No original, em espanhol: “(...) la transgresión no constituye um simple regreso al orden natural. Ella deja suspendida momentáneamente la vigencia de la prohibición, pero no la suprime”.
  • 38
    Tradução nossa. No original, em inglês: “Bataille resists the idea that transgression could lead to the complete lifting of all taboos on sexuality and the return to some idyllic state of nature”.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido pela Bakhtinina. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.

Disponibilidade de dados de pesquisa e outros materiais

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito. Os conteúdos já estão disponíveis em https://repositorio.usp.br/item/003021294 na tese do autor.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2022
  • Aceito
    05 Set 2022
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