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O subtexto religioso em Problemas da criação de Dostoiévski: da união de toda a humanidade à polifonia

RESUMO

O livro de Mikhail Bakhtin Problemas da criação de Dostoiévski, publicado em 1929 e republicado em 1963, com alterações consideráveis, sob o título Problemas da poética de Dostoiévski, apresenta, como uma inovação artística trazida pelo clássico russo, a polifonia: termo emprestado da esfera musical. Ao lado do dialogismo e da carnavalização, é um dos conceitos mais lembrados quando se trata do legado teórico de Bakhtin. Ao transferi-lo para o campo dos estudos literários, Bakhtin lhe atribui um sentido filosófico-estético mais amplo. A descoberta bakhtiniana acerca da obra de Dostoiévski nasceu como resultado de um estudo abrangente da bibliografia sobre o escritor russo, mas também teve, entre as suas origens, o pensamento filosófico russo. No entanto, já nos anos 1920, certas referências não podiam ser feitas abertamente. O perigo de repressões era real: a participação de Bakhtin no grupo filosófico-religioso Voskressiénie motivou a sua prisão em 1928, justamente no momento em que o livro Problemas da criação de Dostoiévski estava em preparação. Partimos, portanto, do princípio de que o livro de Bakhtin possui referências explícitas, como é o caso de Viatcheslav Ivánov, Dmitri Merejkóvski, Akim Volýnski, Vassíli Rózanov, Liev Chestov, citados diretamente, e referências ocultas, como, por exemplo, Vladímir Soloviov e Nikolai Berdiáev.

PALAVRAS-CHAVE:
Problemas da criação de Dostoiévski ; Mikhail Bakhtin; Polifonia; Filosofia russa

ABSTRACT

Mikhail Bakhtin's book Problems of Dostoevsky's Creation, published in 1929 and republished in 1963 with considerable changes under the title Problems of Dostoevsky's Poetics, presents, as an artistic innovation brought by the Russian classic, polyphony – a term borrowed from the musical sphere. Alongside dialogism and carnivalization, it is one of Bakhtin's most remembered concepts, when it comes to his theoretical legacy. By transferring it to the field of literary studies, Bakhtin gives it a broader philosophical-aesthetic sense. The Bakhtinian discovery regarding Dostoevsky's work appeared as a result of a comprehensive study of the bibliography on the Russian writer, but it also had the Russian philosophical thought among its origins. However, already in the 1920s, certain references could not be made openly. The danger of repression was real: Bakhtin's participation in the philosophical-religious group Voskresenie led to his arrest in 1928, just when Problems of Dostoevsky's Creation was in preparation. Therefore, we assume that Bakhtin's book has explicit references, as is the case of Vyacheslav Ivanov, Dmitri Merezhkovsky, Akim Volynsky, Vasily Rozanov, Lev Shestov, directly cited, and hidden references, such as, for example, Vladimir Solovyov and Nikolay Berdyaev.

KEYWORDS:
Problems of Dostoevsky's Creation ; Mikhail Bakhtin; Polyphony; Russian philosophy

Introdução

O livro Problemas da criação de Dostoiévski (1929) permaneceu por muito tempo à sombra da sua segunda edição, Problemas da poética de Dostoiévski (1963), vista como uma versão atualizada e ampliada. No entanto, o estudo da primeira versão do livro, assim como a sua comparação com a segunda, fornece fontes preciosas sobre a formação do pensamento bakhtiniano nos anos 1910-1920, bem como sobre as origens do conceito de polifonia. Assim, uma das diferenças cruciais entre a primeira e a segunda edição é a transferência da ênfase da sociologia para a poética e, nesse sentido, até mesmo a mudança do título é bastante reveladora. É evidente ainda que entre as fontes de Problemas da criação de Dostoiévski, além da filosofia religiosa russa, encontra-se também a tradição filosófica e sociológica europeia e, mais precisamente, trabalhos de Kant, Nietzsche, Henri Bergson, Wilhelm Dilthey, Max Scheler, Georg Simmel, Otto Kaus (cujo livro sobre Dostoiévski, inclusive, é citado e elogiado por Bakhtin), entre outros. No entanto, neste artigo pretendo me concentrar na influência da teologia russa e, mais precisamente, daqueles filósofos que se dedicaram à obra de Dostoiévski.

Quando Problemas da criação de Dostoiévski foi publicado, Bakhtin encontrava-se preso pela participação no círculo filosófico-religioso Voskressiénie (Ressureição, 1917-1928), cujos membros foram acusados de atividade antirrevolucionária, fato que evidencia ainda mais que certas referências não podiam ser feitas de forma aberta. O próprio líder do círculo, Aleksandr Meier, era um dos interlocutores de Bakhtin. Junto com Nikolai Berdiáev, Dmitri Merejkóvski e Vassili Rózanov, Meier participava das discussões da Sociedade Filosófica-Religiosa de São Petersburgo, que depois continuaram no âmbito do círculo Voskressiénie. Em uma das palestras, cujo resumo foi recuperado por Iúri Medviédev, Meier, ao buscar aproximações entre a religião e o socialismo, defende o ideal da “criatividade coletiva” (MEDVIÉDEV, 1999MEDVIÉDEV, I. Voskresiénie. Sobre a história do círculo religioso de A. A. Meier. (Voskresiénie. K istórii religuiózno-filosófskogo krujká A. A. Meiera). In: Dialogue. Carnival. Chronotope, 1999, n. 4. Disponível em: http://nevmenandr.net/dkx/?y=1999&n=4&abs=MEDVED Acesso em 22 abr. 2020.
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), que dialoga com a visão filosófico-estética de Bakhtin.

De acordo com os editores russos, Bakhtin trabalhou no livro sobre Dostoiévski ao longo dos anos 1920. Inclusive, em agosto de 1922, na revista Jizn Iskússtva foi publicada uma pequena nota em que o livro foi anunciado como já pronto junto com o tratado Estética da criação verbal (BOTCHAROV et al, 2000, p.431BOTCHAROV, S.; MIÉLIKHOVA, V.; MÁKHLIN, B. Comentários. Problemas da criação de Dostoiévski [Komentárii. Probliémy tvórtchestva Dostoiévskogo]. In: BAKHTIN, M. Obra em sete volumes. Moscou: Rússkie slovarí, 2000. pp.428-543.), “informação que, provavelmente, foi trazida à redação por P. N. Medviédev e que podia ter sido exagerada” (BOTCHAROV et al, 2000, p.432BOTCHAROV, S.; MIÉLIKHOVA, V.; MÁKHLIN, B. Comentários. Problemas da criação de Dostoiévski [Komentárii. Probliémy tvórtchestva Dostoiévskogo]. In: BAKHTIN, M. Obra em sete volumes. Moscou: Rússkie slovarí, 2000. pp.428-543.)1 1 Em russo: “сведение, которое, вероятно, доставил в журнал П. Н. Медведев, могло быть преувеличено”. . Como mostram as anotações de Pumpiánski e Mírkina (BOTCHAROV et al, 2000, p.431-434BOTCHAROV, S.; MIÉLIKHOVA, V.; MÁKHLIN, B. Comentários. Problemas da criação de Dostoiévski [Komentárii. Probliémy tvórtchestva Dostoiévskogo]. In: BAKHTIN, M. Obra em sete volumes. Moscou: Rússkie slovarí, 2000. pp.428-543.), nos anos que precederam a publicação do livro sobre Dostoiévski, Bakhtin proferiu diversas palestras sobre filosofia, religião e literatura russa. Dessa forma, a sua atenção estava voltada tanto à esfera filosófico-religiosa, quanto literária, o que não é surpreendente, pois de certa forma a filosofia russa nasce da literatura. De fato, no século XIX as principais questões filosóficas eram levantadas justamente pela literatura. Da mesma forma, a filosofia e os estudos literários na obra de Bakhtin estão interligados (BONIÉTSKAIA, 2002, p.3BONIÉTSKAIA, N. Bakhtin nos anos 1920. (Bakhtin v 20-ie gódy). In: O caminho russo. Pro et contra. (Rússki put: pro et contra), 2002. Disponível em: http://russianway.rhga.ru/upload/main/07_Bonezkaya.pdf Acesso em 22 abr. 2020.
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), uma vez que questões filosóficas são solucionadas no material literário: o mundo artístico serve como um modelo da vida real (BONIÉTSKAIA, 2002, p.24BONIÉTSKAIA, N. Bakhtin nos anos 1920. (Bakhtin v 20-ie gódy). In: O caminho russo. Pro et contra. (Rússki put: pro et contra), 2002. Disponível em: http://russianway.rhga.ru/upload/main/07_Bonezkaya.pdf Acesso em 22 abr. 2020.
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).

Vozes ecoadas e veladas em Problemas da criação de Dostoiévski

O livro sobre Dostoiévski, concebido no contexto dos estudos filosófico-literários e linguísticos de Bakhtin, possui uma “genealogia profunda e, em muitos casos, oculta” (BOTCHAROV et al, 2000, p.434BOTCHAROV, S.; MIÉLIKHOVA, V.; MÁKHLIN, B. Comentários. Problemas da criação de Dostoiévski [Komentárii. Probliémy tvórtchestva Dostoiévskogo]. In: BAKHTIN, M. Obra em sete volumes. Moscou: Rússkie slovarí, 2000. pp.428-543.)2 2 Em russo: “имеет глубокую и во многом скрытую генеалогию”. , representada em parte pelo diálogo com teólogos e críticos literários russos que escreveram sobre Dostoiévski. O período em que o livro foi concebido foi marcado por uma intensificação dos debates acerca da obra de Dostoiévski, o que se deu, entre outros motivos, na ocasião do centenário do escritor, comemorado em 1921 (BOTCHAROV et al, 2000, p.434BOTCHAROV, S.; MIÉLIKHOVA, V.; MÁKHLIN, B. Comentários. Problemas da criação de Dostoiévski [Komentárii. Probliémy tvórtchestva Dostoiévskogo]. In: BAKHTIN, M. Obra em sete volumes. Moscou: Rússkie slovarí, 2000. pp.428-543.). Evidentemente, isso não significa que as discussões começaram somente nesse período: o seu início é simultâneo à criação de Dostoiévski e, desde o começo, elas visavam a sua relação com a esfera da religião, tema sugerido pelo próprio conteúdo da obra do escritor.

Vladímir Solovióv, um dos maiores teólogos russos, teve influência direta tanto sobre o Dostoiévski tardio, quanto sobre toda a filosofia russa posterior. Em Três discursos em memória de Dostoiévski, Solovióv reestabelece a relação entre a arte e a religião ao afirmar que “artistas e poetas devem de novo se tornar sacerdotes e profetas, mas agora num outro sentido, ainda mais importante e supremo: não apenas a ideia religiosa irá dominá-los, mas eles próprios dominarão a ideia religiosa e guiarão as personificações terrenas dela” (SOLOVIÓV, 2013, p.515SOLOVIÓV, V. Três discursos em memória de Dostoiévski (1881-83). Tradução de Denise Sales. In: GOMIDE, B. B. [org.] Antologia do pensamento crítico russo (1802-1901). São Paulo: Editora 34, 2013. pp.509-548.). Dostoiévski, segundo Solovióv, seria justamente um teurgo-profeta, cuja obra glorifica a fraternidade universal:

[...] ele compreendeu, antes de tudo, que pessoas isoladas, ainda que fossem as melhores pessoas, não tinham o direito de coagir a sociedade em nome de uma superioridade pessoal; compreendeu também que a verdade social não se inventa em inteligências isoladas, mas está enraizada no sentimento do povo; e, finalmente, compreendeu que essa verdade tem um sentido religioso e está relacionada, obrigatoriamente, com a fé em Cristo, com o ideal de Cristo (SOLOVIÓV, 2013, p.520SOLOVIÓV, V. Três discursos em memória de Dostoiévski (1881-83). Tradução de Denise Sales. In: GOMIDE, B. B. [org.] Antologia do pensamento crítico russo (1802-1901). São Paulo: Editora 34, 2013. pp.509-548.).

O ideal da fraternidade universal que Soloviov vislumbra na obra de Dostoiévski ascende ao conceito de sobórnost, que pode ser traduzido como espírito conciliar3 3 O conceito sobórnost, compreendido como união espiritual das pessoas tanto na igreja quanto fora dela, foi formulado por filósofo-eslavófilo Aleksei Khomiakov (1804-1860). . Solovióv vê a missão do povo russo, assim como da literatura russa, na expansão dessa união à toda humanidade: um ideal que ele define como vsetcheloviétchestvo (união de todas as pessoas). Como podemos ver, as reflexões de Solovióv permanecem no campo ético-religioso, sem serem aplicadas à estrutura das obras literárias.

A visão idealizadora de Solovióv foi imediatamente questionada por Nikolai Mikhailóvski que condenou Dostoiévski como “um talento cruel”. De acordo com Mikhalóvski, o escritor encontrava certo prazer em mergulhar o leitor no mar de incongruências e sofrimentos (MIKHAILÓVSKI, 2013, p.427MIKHAILÓVSKI, N. Um talento cruel. Tradução de Sonia Branco. In: GOMIDE, B. B. [org.] Antologia do pensamento crítico russo (1802-1901). São Paulo: Editora 34, 2013. pp.427-508.). A leitura de Dostoiévski como um “talento cruel” gerou muitas polêmicas, mas também encontrou apoiadores, como, por exemplo, o filósofo Liev Chestov, de acordo com o qual a grande descoberta de Dostoiévski (seguido por Nietzsche) teria sido a coragem de reconhecer e mostrar, ainda que por meio das suas personagens, o subsolo profundamente sombrio e egoísta da psique humana (CHESTOV, 1911CHESTOV, L. Dostoiévski e Nietzsche. Filosofia da tragédia. [Dostoiévski i Nietzsche. Filosófia traguédii]. In: CHESTOV, L. Obra reunida. (Sobránie sotchiniénii), v. 3. São Petersburgo: Chipóvnik, 1911.). Bakhtin também atenta para a definição polêmica de Mikhailóvski:

O epíteto “talento cruel”, dado a Dostoiévski por Mikhailóvski, tem um fundamento, apesar de não ser tão simples quanto Mikhailóvski considerava. Uma espécie de tortura moral - à qual Dostoiévski submete seus personagens com o propósito de conseguir delas a palavra da autoconsciência e, por meio desta, atingir seus limites últimos - permite dissolver tudo o que é material e objetivo, tudo o que é estável e imutável, tudo o que é mais exterior e neutro na representação do homem no medium puro de sua autoconsciência e autoenunciado (BAKHTIN, 2000, p.50BAKHTIN, M. Problemas da criação de Dostoiévski. [Probliémy tvórtchestva Dostoiévskogo]. In: BAKHTIN, M. Obra em 7 volumes, v. 2, Moscou: Rússkie slovarí, Moscou: 2000. pp.6-175.).4 4 Em russo: “Эпитет «жестокий талант», данный Достоевскому Михайловским, имеет под собою почву, хотя и не такую простую, какою она представлялась Михайловскому. Своего рода моральные пытки, которым подвергает своих героев Достоевский, чтобы добиться от них слова самосознания, доходящего до своих последних пределов, позволяют растворить все вещное и объектное, все твердое и неизменное, все внешнее и нейтральное в изображении человека в чистом medium’e его самосознания и самовысказывания”.

Assim, o epíteto “talento cruel” é transferido do campo ético para o estético: Bakhtin vê nessa “crueldade” um procedimento artístico utilizado por Dostoiévski para colocar em primeiro plano a autoconsciência das suas personagens.

Entre os trabalhos sobre Dostoiévski escritos por Vassíli Rózanov, também mencionado por Bakhtin de passagem, o mais conhecido é a Lenda sobre o grande inquisidor de F. M. Dostoiévski, de 1891, em que ele define Dostoiévski como o “mais profundo analítico da alma humana”5 5 Em russo: “Признают Достоевского глубочайшим аналитиком человеческой души”. e evidencia o caráter inacabado e inconcluso das suas personagens (RÓZANOV, 2014, p.41RÓZANOV, V. A lenda sobre o Grande Inquisidor de F. M. Dostoiévski [Legiénda o Velíkom Inkvizítore F. M. Dostoiévskogo]. In: RÓZANOV, V. Obra completa em 35 volumes. São Petersburbo: Rostok, 2014, v. 1. pp.15-162.): ideia que se tornou uma das dominantes na interpretação de Bakhtin. Além disso, Rózanov atenta para a primazia da individualidade humana na obra de Dostoiévski que, segundo ele, possui raízes religiosas, pois o indivíduo é valorizado como uma imagem de Deus (RÓZANOV, 2014, p.43RÓZANOV, V. A lenda sobre o Grande Inquisidor de F. M. Dostoiévski [Legiénda o Velíkom Inkvizítore F. M. Dostoiévskogo]. In: RÓZANOV, V. Obra completa em 35 volumes. São Petersburbo: Rostok, 2014, v. 1. pp.15-162.).

No limiar dos séculos foi escrito o livro de outro influente pensador e um dos fundadores do simbolismo russo, Dmítri Merejkóvski: Liev Tolstói e Dostoiévski (1898-1902). O próprio título do livro, em que os dois clássicos aparecem lado ao lado, sugere um tema que se tornou recorrente na bibliografia crítica dedicada à obra de Dostoiévski: a sua comparação com Tolstói e, ao mesmo tempo, a inserção de ambos os escritores na tradição filosófico-religiosa russa. Dostoiévski é lido por Merejkóvski sob o prisma de Nietzsche – admirado e criticado ao mesmo tempo pelo autor – e essa comparação também se tornará um dos lugares comuns da bibliografia sobre o escritor. Assim, ele constata uma surpreendente “coincidência de um europeu, o mais novo e mais extremo dos extremos, e de um russo, o mais russo dos russos” (MEREJKÓVSKI, 2000, p.10MEREJKÓVSKI, D. Liev Tolstói e Dostoiévski. Moscou: Naúka, 2000.)6 6 Em russo: “И чудесным, почти невероятным было для нас это совпадение самого нового, крайнего из крайних европейцев и самого русского из русских”. e conclui, ao lançar mão das expressões do próprio Dostoiévski, que a sua filosofia buscou o Deus-homem (Bogotcheloviek), enquanto a do pensador ocidental idealizou o Homem-deus (Tcheloviekobog) (MEREJKÓVSKI, 2000, p.11MEREJKÓVSKI, D. Liev Tolstói e Dostoiévski. Moscou: Naúka, 2000.). Em uma tentativa de resolver a crise da fé que marcou a obra de Tolstói, Dostoiévski e Nietzsche, Merejkóvski busca conjugar o paganismo e o cristianismo, a carne e o espírito, o Velho e o Novo Testamento. Segundo ele, na literatura russa essa cisão encontrou sua expressão na obra de Tolstói, pagão, sacerdote da carne, e Dostoiévski, cristão, sacerdote do espírito (MEREJKÓVSKI, 2000, p.148-149MEREJKÓVSKI, D. Liev Tolstói e Dostoiévski. Moscou: Naúka, 2000.). Tanto para literatura russa, quanto para religião, uma ressureição seria possível se os princípios opostos fossem combinados, entrelaçados:

De fato, a humanidade europeia moderna terá que fazer uma escolha inevitável entre um dos três caminhos: primeiro seria a recuperação completa da doença que as pessoas teriam que chamar de “Deus” [...]; o segundo caminho é a morte em decorrência dessa mesma doença em um declínio, uma degeneração, uma decadência final, na loucura de Nietzsche e Kiríllov, profetas do Homem-deus que supostamente teria destruído o Deus-homem e, por fim, o terceiro caminho: a religião da última grande união, do grande Símbolo, a religião do Segundo Advento que já não seria oculto, como o primeiro, mas aberto, no estilo e na glória, a religião do Fim (MEREJKÓVSKI, 2000, p.181MEREJKÓVSKI, D. Liev Tolstói e Dostoiévski. Moscou: Naúka, 2000.)7 7 Em russo: “В самом деле, современному европейскому человечеству предстоит неминуемый выбор одного из трех путей: первый - окончательное выздоровление от болезни, которую людям пришлось бы назвать ‘Богом’ [...]; второй путь - гибель от этой же болезни в окончательном упадке, вырождении,’декадентстве’, в безумии Ницше и Кирилова, проповедников Человекобога, который будто бы уничтожил Богочеловека; и, наконец, третий путь - религия последнего великого соединения, великого Символа, религия Второго, уже не тайного, скрытого, как первое, а явного Пришествия в стиле и славе - религия Конца”. .

Como lembramos, Bakhtin inclui Merejkóvski entre os pensadores que monologizaram a obra de Dostoiévski. De fato, ao destacar como ápices da literatura europeia Anna Kariênina e Os irmãos Karamázov (2000, p.187-188), Merejkóvski observa a presença, em ambas (sic!) as obras, do fenômeno da consciência bifurcada8 8 Em russo: “раздвоенное сознание”. (p.373 e as seguintes) das personagens, da sua dialética, ou seja, não faz uma distinção entre o estilo dos romances de Tolstói e Dostoiévski. Além disso, a sua aspiração de resolver questões da religião no material literário recebeu críticas dos interlocutores contemporâneos, por exemplo, de Liev Chestov (1911)CHESTOV, L. Dostoiévski e Nietzsche. Filosofia da tragédia. [Dostoiévski i Nietzsche. Filosófia traguédii]. In: CHESTOV, L. Obra reunida. (Sobránie sotchiniénii), v. 3. São Petersburgo: Chipóvnik, 1911..

Outro interlocutor “monologizante” de Bakhtin, Akim Volýnski, assim como Merejkóvki, afirma que a obra de Dostoiévski, ao contrário de Tolstói, envereda o leitor nas profundezas caóticas e contraditórias da alma humana (2011, p.45). Tolstói também é associado por ele ao Velho Testamento e é criticado por mostrar o Cristo imóvel, como um ponto de partida para conclusões moralizantes; enquanto em Dostoiévski o Cristo é um “símbolo das eternas chamas da alma e das suas paixões” (MEREJKÓVSKI, 2000, p.46MEREJKÓVSKI, D. Liev Tolstói e Dostoiévski. Moscou: Naúka, 2000.)9 9 Em russo: “символом вечного горения души, символом духовных страстей”. .

Volýnski é um leitor apaixonado de Dostoiévski: ele esmiúça cada um dos protagonistas dos seus romances mais conhecidos e essa atenção ao indivíduo é uma das suas observações mais importantes:

Além disso, em Dostoiévski nenhuma figura humana nos parece miúda, com um conteúdo interior limitado ou um caráter estabelecido e fechado. Cada ser humano é retratado por ele como uma enormidade geológica, com inevitáveis nevoeiros psicológicos e torvelinhos das paixões enlouquecidas (VOLÝNSKI, 2011, p.45VOLÝNSKI, A. Dostoiévski. São Petersburgo: Leonardo Publishers, 2011.)10 10 Em russo: “При этом ни одна человеческая фигура не кажется вам у Достоевского мелкою, с ограниченным внутренним содержанием, с неподвижно установившимся замкнутым характером. Каждый человек является в его изображении какою-то геологическою громадою, с неизбежными психологическими туманами и вихрями безумных страстей”. .

Como drama central da obra dostoievskiana ele destaca a luta torturante dos princípios do bem e do mal, dos traços teofílicos e teofóbicos na alma humana, como uma experiência artística em que a psique de um ser humano vivo é levada ao extremo (VOLÝNSKI, 2011, p.48-49VOLÝNSKI, A. Dostoiévski. São Petersburgo: Leonardo Publishers, 2011.). Essa cisão, segundo Volýnski, ocorre como resultado da perda da fé:

O sonho sobre o homem-deus, super-homem, nasce das lágrimas de um desespero verdadeiramente religioso quando se dissipou um outro grande sonho, quando o ser humano com toda a sua consciência compreendeu finalmente a inutilidade das suas buscas racionais na direção antiga. Ele rompeu com o Deus sem conseguir dominá-lo e, em um ímpeto de uma ofensa incomensurável, se entregou à fantasia demoníaca (VOLÝNSKI, 2011, p.344-345VOLÝNSKI, A. Dostoiévski. São Petersburgo: Leonardo Publishers, 2011.)11 11 Em russo: “Мечта о человекобоге, о сверхчеловеке рождается в слезах истинно религиозного отчаяния, когда рассеялась другая великая мечта, когда всем своим сознанием человек окончательно уразумел тщетность своих умственных исканий в старом направлении. Он разрывает с Богом, который не дается ему, и в порыве безмерной обиды ударяется в сатанинскую фантазию”. .

O diálogo com Nietzsche se manifesta aqui, assim como na obra de Chestov, Merejkóvski e Ivánov, na leitura da obra de Dostoiévski como trágica. Ela é avaliada por Volýnski como um divisor que marca o início da nova época na arte russa (2011, p.452). A crise da fé que está no cerne dessa tragédia resultará, em uma previsão otimista do autor, no nascimento de um novo ser humano:

Nasce um novo ser humano com uma nova vontade, dirigida à vida, mas que age sob o impulso de uma religião consciente, individualmente pensada. E, para realizar as suas ideias elevadas, esse novo ser humano lançará mão de uma alavanca velha, mas segura: a solidariedade com a sociedade, com a humanidade. E ele, esse novo ser humano, criará uma nova onda na literatura: não uma criação unilateral e analítica na área da psicologia individual, mas uma criação sintética, na qual o indivíduo, com toda a riqueza de suas tendências e necessidades psicológicas e filosóficas, será uma célula viva do organismo coletivo. Ocorrem processos muito significativos na vida; deve começar, ou, melhor dizer, renascer, um trabalho muito significativo na literatura. Vem vindo, vem vindo uma nova onda na arte russa! (VOLÝNSKI, 2011, p.658VOLÝNSKI, A. Dostoiévski. São Petersburgo: Leonardo Publishers, 2011.)12 12 Em russo: “Рождается новый человек с новой цельной волей, направленной в жизнь, но действующей под импульсом сознательной, индивидуально продуманной религии. И этот новый человек для воплощения своих высших идей вновь возьмет в руки старый, но вечный рычаг— солидарность с обществом, с человечеством. И он, этот новый человек, создает новую волну в литературе: не односторонне-аналитическое творчество в области личной психологии, а творчество синтетическое, в котором личность, со всем богатством ее психологических и философских настроений и потребностей, представится живою клеткою массового организма. Происходят многознаменательные процессы в жизни, должна начаться или, вернее сказать, возродиться многознаменательная идейная работа в литературе. Идет, идет новая волна в русском искусстве!”. .

Embora Volýnski reconheça a obra de Dostoiévski como um ponto de partida para uma nova era na arte russa, marcada pela solidariedade com a sociedade e com a humanidade, ele ainda não inclui o escritor nesses novos tempos.

A necessidade de repensar os conceitos herdados da tradição ortodoxa russa é um dos assuntos centrais da filosofia russa religiosa no limiar dos séculos. Entre as manifestações mais curiosas desse período está Correspondência de um canto para outro (Perepíska iz dvukh uglov), que reúne cartas trocadas por Viatcheslav Ivánov e Mikhail Gershenson literalmente de um canto para o outro enquanto dividiam o mesmo quarto de um sanatório em Moscou, no verão de 1920. Eles discutem a possibilidade da memória cultural e da religião sobreviverem ao crepúsculo dos ídolos e declínio do Ocidente, declarados, respectivamente, por Nietzsche e Spengler. Assim, a reflexão sobre o conceito de sobórnost, tão intrínseco à cultura russa no contexto do novo século, leva Ivánov a sugerir que a época atual, desmembrada e espalhada, seria incapaz de sustentar uma consciência de sobórnost devido ao “pecado da ‘individuação’ que envenenou toda a cultura humana, mas, ao contrário do seu correspondente, ainda demonstra certo otimismo:

Tentamos superar esse princípio mortífero a cada dia e a cada hora com a criação ininterrupta de cultos - grandes e pequenos – cada culto já tem um quê de sobórnost enquanto está vivo, ainda que una apenas dois ou três sacerdotes: sóbórnost inflama-se por um instante e apaga de novo, e a hidra multicéfala da cultura, dilacerada por guerras intestinas, não consegue se transformar em um culto harmonioso. [...] No fundo dos fundos - que nos é inacessível - somos todos um sistema de circulação sanguínea universal que nutre o coração uno de toda a humanidade (IVÁNOV; GERSHENSON, 1921, p.73-74IVANOV, V., GERSHENSON, M. Correspondência de um canto para o outro. (Perepíska iz dvukh uglov). São Petersburgo: Alkonost, 1921.)13 13 Em russo: “Мы силимся преодолеть это смертное начало вседневно и всечасно непрерывным творчеством больших и малых культов, —каждый культ уже соборен, пока жив, хотя бы соединял троих только или двоих служителей, — и соборность вспыхивает на мгновенье и гаснет опять, и не может многоголовая гидра раздираемой внутренним междоусобием культуры обратиться в согласный культ. [...] В глубине глубин, нам не досягаемой, все мы — одна система вселенского кровообращения, питающая единое всечеловеческое сердце”. .

De acordo com Liudmila Gogotichvili (2014, p.6)GOGOTICHVÍLI, L. Sobre uma possível fonte da ideia polifônica de Bakhtin [O vozmójnom istóke polifonítcheskoi idiéi Bakhtiná]. In: Revista de Filosofia Eletrônica Vox / Gólos, v. 71, dezembro, 2014, pp.1-18. Disponível em: https://vox-journal.org/content/vox17/Vox17-Gogotishvili.pdf Acesso em 22 abr. 2020.
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, nessa discussão com Gershenson, a posição de Bakhtin se aproxima à de Ivánov no que diz respeito à crítica do niilismo cultual14 14 Segundo Gogotichvili, Bakhtin visitou Viatcheslav Ivánov duas vezes no sanatório e no quarto em que se deu a correspondência com Gershenson no verão de 1920 (2014, p.6). . Apesar de notas otimistas que soam no final do trecho citado, o próprio modo como se deu a correspondência entre Ivánov e Gershenson demonstra certo impedimento de uma união, de uma comunicação simultânea e direta.

Quanto à interpretação da obra de Dostoiévski, a contribuição de Viatcheslav Ivánov é uma das referências abertas e mais importantes do livro de Bakhtin (BOTCHAROV et al, 2000, p.434BOTCHAROV, S.; MIÉLIKHOVA, V.; MÁKHLIN, B. Comentários. Problemas da criação de Dostoiévski [Komentárii. Probliémy tvórtchestva Dostoiévskogo]. In: BAKHTIN, M. Obra em sete volumes. Moscou: Rússkie slovarí, 2000. pp.428-543.) e é destacada como tal pelo próprio autor (BAKHTIN, 2000, p.16BAKHTIN, M. Problemas da criação de Dostoiévski. [Probliémy tvórtchestva Dostoiévskogo]. In: BAKHTIN, M. Obra em 7 volumes, v. 2, Moscou: Rússkie slovarí, Moscou: 2000. pp.6-175.). Bakhtin se referiu ao ensaio de Ivánov Dostoiévski e o romance-tragédia, de 1911, mas a influência implícita do pensamento de Ivánov na obra de Bakhin é ainda maior (BOTCHAROV et al, 2000, p.436BOTCHAROV, S.; MIÉLIKHOVA, V.; MÁKHLIN, B. Comentários. Problemas da criação de Dostoiévski [Komentárii. Probliémy tvórtchestva Dostoiévskogo]. In: BAKHTIN, M. Obra em sete volumes. Moscou: Rússkie slovarí, 2000. pp.428-543.). Entre as referências indiretas está, por exemplo, o artigo Duas forças do simbolismo moderno, de 1909, em que surge o conceito de polifonia, estendido para toda a esfera artística. Ivánov estabelece princípios da arte que surgiram com a Renascença: uníssono, monólogo e polifonia:

No coro polifônico, cada um dos participantes é individual e subjetivo, mas a reconstrução harmônica da ordem das consonâncias de maneira completa aprova a racionalidade objetiva dessa contradição aparente. O coro e a polifonia, a orquestra e o órgão da igreja servem como uma defesa formal do objetivismo musical e do realismo contra a invasão das forças da vontade livre lírica e subjetiva. O prazer estético causado por eles é relacionado à tranquilidade da nossa, se podemos assim dizer, consciência musical por meio da autoridade conciliar apoiada de maneira consoante pelas vozes e instrumentos de animação geral (IVÁNOV, 2005, p.207IVÁNOV, V. Duas forças no simbolismo moderno. In: CAVALIERE, A.; VÁSSINA, E.; SILVA, N. (Org.). Tipologia do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Humanitas, 2005. pp.195-244.).

Na concepção de Ivánov, que evidentemente ascende à de Solovióv, o artista é visto como um teurgo que, por meio da contemplação da essência una da existência (alma do mundo), cria uma nova existência, mais elevada e espiritual. No entanto, Ivánov nega a ideia do “artista-tirano, com o qual sonhava Nietzsche, um artista avassalador, que reavaliará todos os valores estéticos e quebrará os tabus antigos de beleza” (IVÁNOV, 2005, p.199IVÁNOV, V. Duas forças no simbolismo moderno. In: CAVALIERE, A.; VÁSSINA, E.; SILVA, N. (Org.). Tipologia do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Humanitas, 2005. pp.195-244.). O seu artista-teurgo é, antes de tudo, um contemplador:

Nós achamos que o princípio teúrgico na arte é um princípio de menor violência e de maior suscetibilidade. Não impor a sua vontade na superfície das coisas, mas profetizar e anunciar a vontade sagrada das essências: este é o supremo ensinamento do artista. [...] Ele afinará o ouvido e passará a ouvir ‘o que falam os objetos (as coisas)’ (IVÁNOV, 2005, p.199IVÁNOV, V. Duas forças no simbolismo moderno. In: CAVALIERE, A.; VÁSSINA, E.; SILVA, N. (Org.). Tipologia do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Humanitas, 2005. pp.195-244.).

Certamente há aqui uma semelhança notável com a perspectiva polifônica de Bakhtin, na qual o autor é imperceptível e se dissolve em meio às personagens.

No ensaio Dostoiévski e o romance-tragédia (1911), Ivánov retoma a ideia de sobórnost (espírito conciliar) e explica a crise da modernidade que se expressou no gênero romanesco justamente pela perda desse ideal:

Na Idade Média, o indivíduo não concebia a si mesmo de outro modo a não ser dentro de uma hierarquia de subordinação conciliar à estrutura geral que deveria refletir a harmonia hierárquica do mundo divino; durante o Renascimento, ele rompeu com esse acordo celestial-terrestre, sentiu-se só e, nessa solidão arrogante, se viu como seu próprio princípio e seu próprio fim (IVÁNOV, 1916, p.405IVÁNOV, V. Dostoiévski e o romance-tragédia. In: IVÁNOV, V. Borozdy i miéji. Moscou: Mussaguet, 1916. pp.401-416.).15 15 Em russo: “Личность в средние века не ощущала себя иначе, как в иерархии соборного соподчинения общему укладу, долженствовавшему отражать иерархическую гармонию мира божественного; в эпоху Возрождения она оторвалась от этого небесно-земного согласия, почувствовала себя одинокою и в этом надменном одиночестве своеначальною и самоцельною”.

Embora o conceito de polifonia aqui esteja ausente, há uma relação entre a esfera musical e a obra de Dostoievski que representa, para Ivánov, uma renovação do gênero de romance:

Semelhante a um criador de sinfonias, ele [Dostoiévski] usou seu mecanismo para a arquitetônica da tragédia e aplicou ao romance um método correspondente ao desenvolvimento temático e contrapontual da música, o desenvolvimento por meio das curvas e das transformações do qual o compositor nos leva à percepção e à vivência psicológica do todo da obra como certa de unidade (IVÁVNOV, 1916, p.410IVÁNOV, V. Dostoiévski e o romance-tragédia. In: IVÁNOV, V. Borozdy i miéji. Moscou: Mussaguet, 1916. pp.401-416.).16 16 Em russo: “Подобно творцу симфоний, он использовал его механизм для архитектоники трагедии и применил к роману метод, соответствующий тематическому и контрапунктическому развитию в музыке, — развитию, излучинами и превращениями которого композитор приводит нас к восприятию и психологическому переживанию целого произведения, как некоего единства”.

A ideia de que o romance de Dostoiévski ascende à tragédia, inspirada em Nietzsche, é recusada por Bakhtin, mas ele destaca Ivánov como o “primeiro a apalpar a particularidade estrutural do mundo artístico de Dostoiévski” (BAKHTIN, 2000, p.16BAKHTIN, M. Problemas da criação de Dostoiévski. [Probliémy tvórtchestva Dostoiévskogo]. In: BAKHTIN, M. Obra em 7 volumes, v. 2, Moscou: Rússkie slovarí, Moscou: 2000. pp.6-175.)17 17 Em russo: “Впервые основную структурную особенность художественного мира Достоевского нащупал Вячеслав Иванов”. In Russian: “Подобно творцу симфоний, он использовал его механизм для архитектоники трагедии и применил к роману метод, соответствующий тематическому и контрапунктическому развитию в музыке, — развитию, излучинами и превращениями которого композитор приводит нас к восприятию и психологическому переживанию целого произведения, как некоего единства”. . A grande descoberta de Ivánov, segundo Bakhtin, consiste em afirmar que o realismo de Dostoiévski é fundamentado no método de penetração18 18 Em russo: “проникновение”. , graças ao qual o eu alheio é afirmado não como objeto, mas como outro sujeito. Bakhtin se refere à seguinte passagem:

O símbolo dessa penetração é uma afirmação absoluta, com toda a vontade e toda a razão, da existência alheia: “tu és". Com a condição da completude dessa afirmação da existência alheia, que como se exaure todo o conteúdo da minha própria existência, a existência alheia deixa de ser alheia para mim, “tu" se torna para mim outra designação do meu próprio sujeito. “Tu és” não significa “tu és concebido por mim como alguém que existe”, mas “tua existência é vivida por mim como se fosse minha” ou “por meio da tua existência, eu me conheço como alguém que existe”. Es, ergo sum. É claro que o altruísmo como uma moralidade não contém em si essa experiência interior em sua integridade: ela se realiza nas profundezas místicas da consciência e toda a moralidade é apenas um fenômeno que deriva dessa experiência (IVÁNOV, 1916, p.418IVÁNOV, V. Dostoiévski e o romance-tragédia. In: IVÁNOV, V. Borozdy i miéji. Moscou: Mussaguet, 1916. pp.401-416.)19 19 Em russo: “Символ такого проникновения заключается в абсолютном утверждении, всею волею и всем разумением, чужого бытия: «ты еси». При условии этой полноты утверждения чужого бытия, полноты, как бы исчерпывающей все содержание моего собственного бытия, чужое бытие перестает быть для меня чужим, «ты» становится для меня другим обозначением моего субъекта. «Ты еси» — значит не «ты познаешься мною, как сущий», а «твое бытие переживается мною, как мое», или: «твоим бытием я познаю себя сущим». Es, ergo sum. Альтруизм, как мораль, конечно, не вмещает в себе целостности этого внутреннего опыта: он совершается в мистических глубинах сознания, и всякая мораль оказывается по отношению к нему лишь явлением производным”. .

No entanto, apesar de reconhecer a descoberta de Ivánov, Bakhtin conclui que esse tema é possível também em um romance do tipo monológico, portanto a afirmação da consciência alheia como postulado ético-religioso ou tema da obra não cria uma nova forma, um novo tipo da construção do romance (BAKHTIN, 2000, p.16BAKHTIN, M. Problemas da criação de Dostoiévski. [Probliémy tvórtchestva Dostoiévskogo]. In: BAKHTIN, M. Obra em 7 volumes, v. 2, Moscou: Rússkie slovarí, Moscou: 2000. pp.6-175.).

O ideal da união de toda a humanidade, sugerido por Soloviov e retomado por Ivánov, também foi caro ao filósofo Nikolai Berdiáev. Assim como Soloviov, Berdiáev não é mencionado por Bakhtin e, provavelmente, por motivos políticos: no livro A visão do mundo de Dostoiévski, de 1921, há um capítulo inteiro dedicado à crítica do socialismo. O livro foi publicado no exterior em 1923, enquanto o seu autor foi expulso da Rússia Soviética um ano antes, em um dos assim chamados navios dos filósofos.

Berdiáev definiu a obra e Dostoiévski como uma antropologia cristã em que o ser humano é o “sol do mundo” (BERDIÁEV, 1923, p.36BERDIÁEV, N. A visão do mundo de Dostoiévski. [Mirosozertsánie Dostoiévskogo]. Pгaha: YMCA-PRESS, 1923.)20 20 Em russo: “христианский антропологизм”, “солнце мира”. . Assim como Mikhailóvski e Chestov, críticos de Dostoiévski, Berdiáev aponta Memórias do subsolo como um divisor de águas na obra do escritor: “A partir das Memórias do subsolo começa uma dialética das ideias. Ele já não é só um psicólogo, ele é metafísico, ele estuda a fundo a tragédia do espírito humano” (BERDIÁEV, 1923, p.24BERDIÁEV, N. A visão do mundo de Dostoiévski. [Mirosozertsánie Dostoiévskogo]. Pгaha: YMCA-PRESS, 1923.)21 21 Em russo: “C ‘Записокъ изъ подполья’ начинается геніальная идейная діалектика Достоевскаго. Онъ уже не только психологъ, онъ — метафизикъ, онъ изслѣдуетъ до глубины трагедію человѣческаго духа”. . Porém, se para outros leitores Dostoiévski teria criado a religião do sofrimento, para Berdiáev a sua religião era a liberdade, uma vez que “Dostoiévski se interessa, antes de tudo, pelo destino do homem em liberdade que se transforma em voluntariedade. É aí que se manifesta a natureza humana” (BERDIÁEV, 1923, p.42-43BERDIÁEV, N. A visão do mundo de Dostoiévski. [Mirosozertsánie Dostoiévskogo]. Pгaha: YMCA-PRESS, 1923.)22 22 Em russo: “Достоевскаго прежде всего интересуетъ судьба человѣка въ свободѣ, переходящей въ своеволіе. Вотъ гдѣ обнаруживается человѣческая природа”. . Segundo Berdiáev, essa natureza é polar, antinômica e irracional (1923, p.47), e nisso ele certamente se aproxima da leitura feita por Bakhtin. No entanto, a sua visão da estrutura da obra de Dostoiévski é totalmente diferente. Não se trata de uma construção polifônica e sim centralizadora:

Na construção dos romances de Dostoiévski há uma grande centralização. Tudo está voltado a uma pessoa central e essa pessoa central é voltada a todos e ao tudo. Essa pessoa é um mistério o qual todos decifram (BERDIÁEV, 1923, p.37-38BERDIÁEV, N. A visão do mundo de Dostoiévski. [Mirosozertsánie Dostoiévskogo]. Pгaha: YMCA-PRESS, 1923.)23 23 Em russo: “Въ конструкціи романовъ Достоевскаго есть очень большая централизованность* Всѣ и все устремлено къ одному центральному человѣку или этотъ центральный человѣкъ устремленъ ко всѣмъ и всему”. .

Assim como Merejkóvski, Volýnski e Chestov, Berdiáev coloca Dostoiévski ao lado de Nietzsche, ao afirmar que ambos teriam constatado a crise do humanismo, depois da qual restam apenas dois caminhos: Deus-homem ou Homem-Deus (1923, p.60). Ao mesmo tempo, ele questiona a definição de Dostoiévski como um “talento cruel”. Para Berdiáev, essa crueldade resulta da liberdade que Dostoiévski dá às suas personagens. Liberdade que, levada ao extremo, se transforma em voluntariedade e resulta em caráter dúbio, cindido das suas personagens: “O extremo da cisão deve resultar e personificar-se em um outro ‘eu’ do ser humano, em seu mal interior, como um diabo. O extremo dessa cisão é revelado por Dostoiévski com força genial no pesadelo de Ivan Karamázov, na sua conversa com o diabo” (BERDIÁEV, 1923, p.111BERDIÁEV, N. A visão do mundo de Dostoiévski. [Mirosozertsánie Dostoiévskogo]. Pгaha: YMCA-PRESS, 1923.)24 24 Em russo: “Въ предѣлѣ раздвоенія должно выдѣлиться и персонифицироваться другое «я» человѣка, его внутреннее зло, какъ чортъ. Этотъ предѣлъ раздвоенія съ геніальной силой обнаруженъ Достоевскимъ въ кошмарѣ Ивана Карамазова, въ разговорѣ его съ чортъ”. . Ao retomar a ideia de Soloviov, ele afirma que o cristianismo é a religião do amor e o verdadeiro amor é sempre voltado para o outro. Já quando ele é voltado a si próprio, o indivíduo sofre da solidão mortal (BERDIÁEV, 1923, p.125BERDIÁEV, N. A visão do mundo de Dostoiévski. [Mirosozertsánie Dostoiévskogo]. Pгaha: YMCA-PRESS, 1923.). Embora em alguns pontos essas reflexões lembrem a interpretação de Bakhtin, na análise de Berdiáev elas permanecem no plano ético-religioso.

Pluralidade de vozes desde os primórdios do pensamento filosófico de Bakhtin

Apresentamos alguns dos principais interlocutores de Bakhtin no que diz respeito à análise da obra de Dostoiévski sob o prisma da filosofia religiosa. Além desse diálogo, uma das fontes importantíssimas da ideia polifônica em Bakhtin é a sua filosofia moral, formulada principalmente em Para uma filosofia do ato, escrito entre 1918-1924 (GOGOTICHVILI, 2014, p.2GOGOTICHVÍLI, L. Sobre uma possível fonte da ideia polifônica de Bakhtin [O vozmójnom istóke polifonítcheskoi idiéi Bakhtiná]. In: Revista de Filosofia Eletrônica Vox / Gólos, v. 71, dezembro, 2014, pp.1-18. Disponível em: https://vox-journal.org/content/vox17/Vox17-Gogotishvili.pdf Acesso em 22 abr. 2020.
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). Como se sabe, a obra permaneceu inacabada, em fragmentos manuscritos em que há trechos ilegíveis. De acordo com o plano, esboçado no próprio texto, o livro deveria consistir em uma parte introdutória e mais quatro capítulos, sendo que a última parte (conclusiva) deveria abordar a religião (GOGOTICHVILI, 2014, p.1GOGOTICHVÍLI, L. Sobre uma possível fonte da ideia polifônica de Bakhtin [O vozmójnom istóke polifonítcheskoi idiéi Bakhtiná]. In: Revista de Filosofia Eletrônica Vox / Gólos, v. 71, dezembro, 2014, pp.1-18. Disponível em: https://vox-journal.org/content/vox17/Vox17-Gogotishvili.pdf Acesso em 22 abr. 2020.
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).

De acordo com Liudmila Gogotichvili, graças a esforços de L. Deriúguina e S. Botcharov, foi possível decifrar alguns trechos, antes considerados ilegíveis, inclusive a parte final do manuscrito, que contém uma fórmula que expressa de modo mais abrangente o princípio moral primordial da ética bakhtiniana. Trata-se da “‘autoexclusão absoluta’ do sujeito ético da existência como uma coexistência” (GOGOTICHVILI, 2014, p.3-4GOGOTICHVÍLI, L. Sobre uma possível fonte da ideia polifônica de Bakhtin [O vozmójnom istóke polifonítcheskoi idiéi Bakhtiná]. In: Revista de Filosofia Eletrônica Vox / Gólos, v. 71, dezembro, 2014, pp.1-18. Disponível em: https://vox-journal.org/content/vox17/Vox17-Gogotishvili.pdf Acesso em 22 abr. 2020.
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)25 25 Em russo: “Эта формула предусматривает ‘абсолютное себя-исключение’ этического субъекта из события бытия”. que, por sua vez, retoma motivos cristãos, uma vez que, citando as palavras do próprio Bakhtin, “o mundo do qual o Cristo partiu já não será aquele mundo em que ele nunca esteve, ele será por princípio diferente”, ou seja, o princípio bakhtiniano da autoexclusão absoluta pode ser assemelhado à partida do Cristo (GOGOTICHVILI, 2014, p.4GOGOTICHVÍLI, L. Sobre uma possível fonte da ideia polifônica de Bakhtin [O vozmójnom istóke polifonítcheskoi idiéi Bakhtiná]. In: Revista de Filosofia Eletrônica Vox / Gólos, v. 71, dezembro, 2014, pp.1-18. Disponível em: https://vox-journal.org/content/vox17/Vox17-Gogotishvili.pdf Acesso em 22 abr. 2020.
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)26 26 Em russo: “Мир, откуда ушел Христос, уже не будет тем миром, где его никогда не было, он принципиально иной”. . A ideia de sacrifício do eu em prol do outro, ainda que apenas esboçada no primeiro trabalho filosófico de Bakhtin, remete à posição autoral específica descrita no manuscrito O autor e a personagem na atividade estética (1923-1924) e desenvolvida no livro sobre Dostoiévski.

Dina Magomiédova (2005, p.7-8)MAGOMIÉDOVA, D. O conceito da voz na estética de Bakhtin [Poniátie gólossa v estiétike Bakhtiná]. In: Nóvi Filologuítcheski Viéstnik, v. 1, 2005, pp.1-9. Disponível em: http://slovorggu.ru/nfv2005_1_pdf/19Magomedova.pdf Acesso em: 22 abr. 2020.
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atenta para a presença de diferentes interpretações do conceito de polifonia no livro sobre Dostoiévski: a primeira é representada por uma imagem ideal de um coro que glorifica a Deus e diz respeito à ensaística e ideologia religiosa de Dostoiévski, e a segunda, pouco pacífica e harmoniosa, presente em sua obra de ficção. Essa distinção é feita pelo próprio Bakhtin no seguinte trecho:

De modo geral, a pacificação e a fusão de vozes mesmo nos limites de uma única consciência – segundo o projeto de Dostoiévski e de acordo com suas principais premissas ideológicas – não pode ser um ato monológico, mas pressupõe a comunhão de vozes do personagem com o coro; mas para isso é preciso dominar e abafar suas vozes fictícias, que se entremeiam na verdadeira voz humana e a arremedam. No plano da ideologia social de Dostoiévski, isso se transformou na exigência da fusão da intelligentsia com o povo: “Submeta-se, homem orgulhoso, e, acima de tudo, domine seu orgulho. Submeta-se, homem ocioso, e, acima de tudo, trabalhe em sua própria terra”. Já no plano da sua ideologia religiosa isso significava unir-se ao coro e exclamar com todos “Hosana”. Nesse coro a palavra passa de uma boca para outra nos mesmos tons de glorificação, alegria e felicidade. Contudo, no plano dos seus romances é desenvolvida não a polifonia dessas vozes pacificadas, mas a polifonia das vozes em luta e internamente cindidas. Essas últimas foram dadas já não no plano das suas aspirações estritamente ideológicas, mas na realidade social daquele tempo. A utopia social e religiosa, própria das suas posições ideológicas, não absorveu nem diluiu a sua visão objetivo-artística (BAKHTIN, 2000, p.152-153BAKHTIN, M. Problemas da criação de Dostoiévski. [Probliémy tvórtchestva Dostoiévskogo]. In: BAKHTIN, M. Obra em 7 volumes, v. 2, Moscou: Rússkie slovarí, Moscou: 2000. pp.6-175.)27 27 Em russo: “Вообще примирение и слияние голосов даже в пределах одного сознания – по замыслу Достоевского и согласно его основным идеологическим предпосылкам – не может быть актом монологическим, но предполагает приобщение голоса героя к хору; но для этого необходимо сломить и заглушить свои фиктивные голоса, перебивающие и передразнивающие истинный голос человека. В плане общественной идеологии Достоевского это вылилось в требование слияния интеллигенции с народом: “Смирись, гордый человек, и прежде всего сломи свою гордость. Смирись, праздный человек, и прежде всего потрудись на народной ниве”. В плане же его религиозной идеологии это означало – примкнуть к хору и возгласить со всеми “Hosanna!”. В этом хоре слово передается из уст в уста в одних и тех же тонах хвалы, радости и веселья. Но в плане его романов развернута не эта полифония примиренных голосов, но полифония голосов борющихся и внутренне расколотых”. .

Dessa forma, trata-se de duas polifonias: uma harmoniosa que representa um ideal ético-religioso de Dostoiévski e outra, presente em sua narrativa, em que as vozes falham em encontrar harmonia, mas, ao mesmo tempo, cada uma delas é ouvida e valorizada.

Conclusão

Procurei mostrar, nesse panorama polifônico da bibliografia sobre Dostoiévski de cunho filosófico-religioso, as origens do conceito de polifonia que nasce no diálogo com diversos estudiosos, interlocutores explícitos e implícitos de Bakhtin, todos impulsionados, por sua vez, pela obra de Dostoiévski. Há temas recorrentes, como comparação de Dostoiévski com Nietzsche e Tolstói, e há descobertas particulares. Em cada um dos autores citados encontramos ideias que dialogam com a leitura feita por Bakhtin: o ideal da união universal de Solovióv, Merejkóvski, Volýnski e Ivánov confrontado com a constatação do subsolo sombrio da alma humana na obra de Mikhailóvski e Chestov; a primazia da individualidade e seu caráter inacabado, destacado por Rózanov; a posição contemplativa do autor, observada por Ivánov, bem como o método da penetração no eu alheio; a liberdade de escolha que Dostoiévski atribui às personagens e que, na concepção de Berdiáev, se manifesta em seu caráter cindido; a ideia de estender o conceito musical de polifonia para toda a esfera artística, sugerida por Ivánov; o princípio bakhtiniano de “autoexclusão absoluta do sujeito ético da existência como uma coexistência”, que se origina na filosofia do próprio Bakhtin. As reflexões sobre o futuro da cultura, da religião e da literatura caminham nessas obras lado ao lado.

As profundas transformações culturais e a crise da fé encontraram expressão em outros domínios da arte, além da literatura. Por exemplo, a obra mais conhecida da pintura russa do século XIX é o quadro monumental de Aleksandr Ivanov Aparição de Cristo diante do povo, finalizado em 1857. Ao contrário do que se poderia imaginar pelo título, não é o Cristo que está nele em primeiro plano, mas as pessoas e cada uma delas é retratada com inúmeros pormenores. Já o Cristo aparece no fundo, afastado, quase imperceptível. Em um outro quadro, A procissão religiosa na província de Kursk (1883), de Iliá Riépin, o espectador é inserido no meio de uma procissão composta por várias personagens tomadas por sentimentos contraditórios que, em alguns casos, nada tem a ver com uma devoção religiosa. A crise da fé é também um dos temas centrais da literatura russa clássica e justamente por isso muitos dos autores citados concordam em afirmar que Dostoiévski e Tolstói prenunciaram o início de uma nova era na cultura russa e universal. Contudo, Bakhtin transfere essa discussão do plano ético para o estético: para ele, a descoberta de Dostoiévski consistiu na criação de um novo tipo de romance em que a polifonia não é um ideal religioso e sim um princípio de construção artística.

Notes

  • 1
    Em russo: “сведение, которое, вероятно, доставил в журнал П. Н. Медведев, могло быть преувеличено”.
  • 2
    Em russo: “имеет глубокую и во многом скрытую генеалогию”.
  • 3
    O conceito sobórnost, compreendido como união espiritual das pessoas tanto na igreja quanto fora dela, foi formulado por filósofo-eslavófilo Aleksei Khomiakov (1804-1860).
  • 4
    Em russo: “Эпитет «жестокий талант», данный Достоевскому Михайловским, имеет под собою почву, хотя и не такую простую, какою она представлялась Михайловскому. Своего рода моральные пытки, которым подвергает своих героев Достоевский, чтобы добиться от них слова самосознания, доходящего до своих последних пределов, позволяют растворить все вещное и объектное, все твердое и неизменное, все внешнее и нейтральное в изображении человека в чистом medium’e его самосознания и самовысказывания”.
  • 5
    Em russo: “Признают Достоевского глубочайшим аналитиком человеческой души”.
  • 6
    Em russo: “И чудесным, почти невероятным было для нас это совпадение самого нового, крайнего из крайних европейцев и самого русского из русских”.
  • 7
    Em russo: “В самом деле, современному европейскому человечеству предстоит неминуемый выбор одного из трех путей: первый - окончательное выздоровление от болезни, которую людям пришлось бы назвать ‘Богом’ [...]; второй путь - гибель от этой же болезни в окончательном упадке, вырождении,’декадентстве’, в безумии Ницше и Кирилова, проповедников Человекобога, который будто бы уничтожил Богочеловека; и, наконец, третий путь - религия последнего великого соединения, великого Символа, религия Второго, уже не тайного, скрытого, как первое, а явного Пришествия в стиле и славе - религия Конца”.
  • 8
    Em russo: “раздвоенное сознание”.
  • 9
    Em russo: “символом вечного горения души, символом духовных страстей”.
  • 10
    Em russo: “При этом ни одна человеческая фигура не кажется вам у Достоевского мелкою, с ограниченным внутренним содержанием, с неподвижно установившимся замкнутым характером. Каждый человек является в его изображении какою-то геологическою громадою, с неизбежными психологическими туманами и вихрями безумных страстей”.
  • 11
    Em russo: “Мечта о человекобоге, о сверхчеловеке рождается в слезах истинно религиозного отчаяния, когда рассеялась другая великая мечта, когда всем своим сознанием человек окончательно уразумел тщетность своих умственных исканий в старом направлении. Он разрывает с Богом, который не дается ему, и в порыве безмерной обиды ударяется в сатанинскую фантазию”.
  • 12
    Em russo: “Рождается новый человек с новой цельной волей, направленной в жизнь, но действующей под импульсом сознательной, индивидуально продуманной религии. И этот новый человек для воплощения своих высших идей вновь возьмет в руки старый, но вечный рычаг— солидарность с обществом, с человечеством. И он, этот новый человек, создает новую волну в литературе: не односторонне-аналитическое творчество в области личной психологии, а творчество синтетическое, в котором личность, со всем богатством ее психологических и философских настроений и потребностей, представится живою клеткою массового организма. Происходят многознаменательные процессы в жизни, должна начаться или, вернее сказать, возродиться многознаменательная идейная работа в литературе. Идет, идет новая волна в русском искусстве!”.
  • 13
    Em russo: “Мы силимся преодолеть это смертное начало вседневно и всечасно непрерывным творчеством больших и малых культов, —каждый культ уже соборен, пока жив, хотя бы соединял троих только или двоих служителей, — и соборность вспыхивает на мгновенье и гаснет опять, и не может многоголовая гидра раздираемой внутренним междоусобием культуры обратиться в согласный культ. [...] В глубине глубин, нам не досягаемой, все мы — одна система вселенского кровообращения, питающая единое всечеловеческое сердце”.
  • 14
    Segundo Gogotichvili, Bakhtin visitou Viatcheslav Ivánov duas vezes no sanatório e no quarto em que se deu a correspondência com Gershenson no verão de 1920 (2014, p.6).
  • 15
    Em russo: “Личность в средние века не ощущала себя иначе, как в иерархии соборного соподчинения общему укладу, долженствовавшему отражать иерархическую гармонию мира божественного; в эпоху Возрождения она оторвалась от этого небесно-земного согласия, почувствовала себя одинокою и в этом надменном одиночестве своеначальною и самоцельною”.
  • 16
    Em russo: “Подобно творцу симфоний, он использовал его механизм для архитектоники трагедии и применил к роману метод, соответствующий тематическому и контрапунктическому развитию в музыке, — развитию, излучинами и превращениями которого композитор приводит нас к восприятию и психологическому переживанию целого произведения, как некоего единства”.
  • 17
    Em russo: “Впервые основную структурную особенность художественного мира Достоевского нащупал Вячеслав Иванов”. In Russian: “Подобно творцу симфоний, он использовал его механизм для архитектоники трагедии и применил к роману метод, соответствующий тематическому и контрапунктическому развитию в музыке, — развитию, излучинами и превращениями которого композитор приводит нас к восприятию и психологическому переживанию целого произведения, как некоего единства”.
  • 18
    Em russo: “проникновение”.
  • 19
    Em russo: “Символ такого проникновения заключается в абсолютном утверждении, всею волею и всем разумением, чужого бытия: «ты еси». При условии этой полноты утверждения чужого бытия, полноты, как бы исчерпывающей все содержание моего собственного бытия, чужое бытие перестает быть для меня чужим, «ты» становится для меня другим обозначением моего субъекта. «Ты еси» — значит не «ты познаешься мною, как сущий», а «твое бытие переживается мною, как мое», или: «твоим бытием я познаю себя сущим». Es, ergo sum. Альтруизм, как мораль, конечно, не вмещает в себе целостности этого внутреннего опыта: он совершается в мистических глубинах сознания, и всякая мораль оказывается по отношению к нему лишь явлением производным”.
  • 20
    Em russo: “христианский антропологизм”, “солнце мира”.
  • 21
    Em russo: “C ‘Записокъ изъ подполья’ начинается геніальная идейная діалектика Достоевскаго. Онъ уже не только психологъ, онъ — метафизикъ, онъ изслѣдуетъ до глубины трагедію человѣческаго духа”.
  • 22
    Em russo: “Достоевскаго прежде всего интересуетъ судьба человѣка въ свободѣ, переходящей въ своеволіе. Вотъ гдѣ обнаруживается человѣческая природа”.
  • 23
    Em russo: “Въ конструкціи романовъ Достоевскаго есть очень большая централизованность* Всѣ и все устремлено къ одному центральному человѣку или этотъ центральный человѣкъ устремленъ ко всѣмъ и всему”.
  • 24
    Em russo: “Въ предѣлѣ раздвоенія должно выдѣлиться и персонифицироваться другое «я» человѣка, его внутреннее зло, какъ чортъ. Этотъ предѣлъ раздвоенія съ геніальной силой обнаруженъ Достоевскимъ въ кошмарѣ Ивана Карамазова, въ разговорѣ его съ чортъ”.
  • 25
    Em russo: “Эта формула предусматривает ‘абсолютное себя-исключение’ этического субъекта из события бытия”.
  • 26
    Em russo: “Мир, откуда ушел Христос, уже не будет тем миром, где его никогда не было, он принципиально иной”.
  • 27
    Em russo: “Вообще примирение и слияние голосов даже в пределах одного сознания – по замыслу Достоевского и согласно его основным идеологическим предпосылкам – не может быть актом монологическим, но предполагает приобщение голоса героя к хору; но для этого необходимо сломить и заглушить свои фиктивные голоса, перебивающие и передразнивающие истинный голос человека. В плане общественной идеологии Достоевского это вылилось в требование слияния интеллигенции с народом: “Смирись, гордый человек, и прежде всего сломи свою гордость. Смирись, праздный человек, и прежде всего потрудись на народной ниве”. В плане же его религиозной идеологии это означало – примкнуть к хору и возгласить со всеми “Hosanna!”. В этом хоре слово передается из уст в уста в одних и тех же тонах хвалы, радости и веселья. Но в плане его романов развернута не эта полифония примиренных голосов, но полифония голосов борющихся и внутренне расколотых”.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2020
  • Aceito
    29 Mar 2021
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