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Refletindo sobre letramento e responsividade na formação docente

Resumos

Neste artigo, objetivamos problematizar a formação inicial de professores do curso de Letras como sujeitos responsivos em contexto de pesquisa, dentro da perspectiva do letramento, com base em análise das orientações adotadas por uma graduanda, em atividades de leitura e de escrita desenvolvidas com alunos do ensino fundamental. Para tal, utilizamos os conceitos bakhtinianos de dialogicidade e compreensão responsiva ativa, aliados ao conceito de letramento. Isso por entendermos que a formação do professor de língua portuguesa, a partir da inserção do aluno em pesquisas que reflitam sobre sua prática pedagógica, possibilita a ele promover uma prática de ensino com um enfoque em eventos de escrita e leitura vinculados às práticas sociais. Observamos que, a partir dos dados analisados, quando o professor assume a postura de agente de letramento, ele tem condições de responder ativamente às determinações da contemporaneidade.

Responsividade; Letramento; Pesquisa; Formação de professor


The purpose of this paper is to problematize the initial education of teachers at Undergraduate Language Courses. Teachers are considered responsive subjects in the context of research, from the literacy perspective. The study is based on the analysis of the guidelines used by an undergraduate student in writing and reading activities, applied to elementary school students. The concepts of dialogicity and active responsive understanding, along with the concepts of literacy were adopted. We understand that education programs for Portuguese Language teachers, by involving students in research that fosters reflections on teaching practice, allow them to promote tasks focused on writing and reading in connection with social practices. From the analyzed data we have observed that, when the teachers take the position of literacy agents, they are qualified to actively respond to the determinations of contemporary times

Responsiveness; Literacy; Research; Teacher Education


ARTIGOS

Refletindo sobre letramento e responsividade na formação docente

Antônio Carlos Santos de LimaI; Lúcia de Fátima SantosII; Rita de Cássia Souto MaiorIII

IInstituto Federal de Alagoas - IFAL, Rio Largo, Alagoas, Brasil; professorantoniolima@hotmail.com

IIUniversidade Federal de Alagoas - UFAL, Maceió, Alagoas, Brasil; lfatima.ufal@gmail.com

IIIUniversidade Federal de Alagoas - UFAL, Maceió, Alagoas, Brasil; ritasoutomaior@gmail.com

RESUMO

Neste artigo, objetivamos problematizar a formação inicial de professores do curso de Letras como sujeitos responsivos em contexto de pesquisa, dentro da perspectiva do letramento, com base em análise das orientações adotadas por uma graduanda, em atividades de leitura e de escrita desenvolvidas com alunos do ensino fundamental. Para tal, utilizamos os conceitos bakhtinianos de dialogicidade e compreensão responsiva ativa, aliados ao conceito de letramento. Isso por entendermos que a formação do professor de língua portuguesa, a partir da inserção do aluno em pesquisas que reflitam sobre sua prática pedagógica, possibilita a ele promover uma prática de ensino com um enfoque em eventos de escrita e leitura vinculados às práticas sociais. Observamos que, a partir dos dados analisados, quando o professor assume a postura de agente de letramento, ele tem condições de responder ativamente às determinações da contemporaneidade.

Palavras-chave: Responsividade; Letramento; Pesquisa; Formação de professor

Introdução

As exigências educativas da sociedade visam a atender às várias dimensões da vida humana, destacando-se a preparação para o trabalho, a atuação na vida social e política, o usufruto das atividades de cultura e lazer e até mesmo a humanização, com vista à harmonia no planeta. Para todas essas dimensões, o uso da leitura e da escrita se apresenta como indispensável, principalmente se considerarmos que vivemos em uma sociedade que atribui à leitura e à escrita um grande valor1 1 Nesse sentido, vale conferir as reflexões de Gnerre (1998) e De Certeau (2002). Ambos os autores criticam a visão mítica da escrita. De Certeau (2002, p.227) afirma que "nos últimos três séculos, aprender a escrever define a iniciação por excelência em uma sociedade capitalista e conquistadora. É a sua prática iniciática fundamental" (grifo do autor). . Diante disso, o papel do letramento ganha terreno, pois reflexos das próprias mudanças sociais, as quais determinam uma nova maneira de compreender a presença da escrita e da leitura nas práticas discursivas, exigem, em primeiro lugar, uma concepção que extrapole a mera aquisição tecnológica do ler e escrever, estabelecendo, por exemplo, relações menos conflituosas entre a oralidade do cotidiano e a aquisição da escrita formal que se pressupõe e se busca na escola. Em segundo lugar, um entendimento dialógico do ato da produção como "ação para o outro2 2 Bakhtin (2003) diz que " eu ainda não existo no mundo axiológico como dado positivo tranquilizado igual a mim mesmo" (grifo do autor, 2003, p.174) e que "[...] a força organizadora é a categoria axiológica de outro, é a relação com o outro, enriquecida pelo excedente axiológico da visão para o acabamento transgrediente" (grifo do autor, 2003, p.175). " (BAKHTIN, 2004). Isso é necessário porque a modernização das sociedades (GIDEENS, 1991), com seu desenvolvimento tecnológico e sua ampliação da participação social e política, coloca demandas cada vez maiores com relação às habilidades de leitura e escrita, já que vivemos, segundo Giddens (1991, p.133), sob possíveis reações de adaptação ao perfil de risco da contemporaneidade, ou seja, com a "inevitabilidade de viver com perigos". Observar essa consideração da contemporaneidade é imprescindível já que

nenhum ato do homem integral, nenhuma formação ideológica concreta (o pensamento, a imagem artística, até o conteúdo de um sonho) pode ser explicada e entendida sem que se incorporem as condições socioeconômicas (BAKHTIN, 2007, p.11).

Nesse sentido, a concepção de letramento "como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos" (KLEIMAN, 1995, p.18), determinadas pelas instituições sociais e relações de poder (BARTON e HAMILTON, 2000, p.8), correlacionam-se com essa posição bakhtiniana de imprescindibilidade contextual da ação em contexto socioeconômico (BAKHTIN, 2007). A visão do letramento como necessariamente vivenciado pelo homem da prática de linguagem se torna fundamental visto que essa ação é vivência do acabamento do outro em mim, considerando que, nas práticas de letramento, vivencio quem sou diante dessa condição letrada que adquiro pela visão do outro que assim me fez3 3 Nesse sentido, Bakhtin (2003, p.33) assevera que "o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, do seu ativismo que vê, lembra-se, reúne e unifica, que é o único capaz de criar para ele uma personalidade externamente acabada". . Desse modo, entre as condições sociais construídas/adquiridas subjacentes ao ato do letramento, está a preparação para o mundo do trabalho como ação efetiva social de construção de identidade profissional, e, nesse contexto, a formação de professores.

A partir dessas reflexões iniciais sobre a perspectiva de letramento, temos como objetivo neste artigo problematizar a formação inicial de professores do curso de Letras como sujeitos responsivos ativos em contextos de pesquisa, com base na análise de observações feitas por uma graduanda em Letras de uma situação de ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa no ensino fundamental de uma escola pública de Maceió. As experiências dessa graduanda foram transformadas em objeto de estudo4 4 O estudo foi desenvolvido no subprojeto PIBID/Fale, de 2010 a 2014, intitulado "A formação inicial dos professores de Língua Portuguesa em contextos de leitura e produção de textos" e coordenado pela Profa. Dra. Lúcia de Fátima Santos. A análise aqui apresentada adotou como objeto de reflexão a primeira versão do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) dessa graduanda, ex-bolsista do Pibid. no seu Trabalho de Conclusão de Curso (doravante TCC) e são esses dados que subsidiarão a análise que apresentaremos a seguir.

Essa correlação entre letramento e responsividade na formação dos professores está intrinsecamente vinculada à concepção de professor reflexivo, que se tornou, segundo Magalhães (2001), uma posição comum nas pesquisas sobre formação de professores a partir da década de 90. Aqui, essa concepção fundamenta-se nas discussões de Pimenta e Ghedin (2002) e Schön (2000) que corresponde à capacidade de esse profissional compreender sua prática pedagógica como um momento de reflexão crítica, problematizando sua realidade para, após a dinâmica da avaliação, reconstruir os caminhos de sua ação docente na tentativa de redirecionar a consecução dos objetivos pedagógicos. Ou ainda, como define Zabala (1998), corresponde à possibilidade de modificação que um professor opera, em algum aspecto de sua prática docente, como resposta a algum problema prático, depois de comprovar sua eficácia para resolvê-lo. Tudo isso considerando que toda prática pedagógica não prescinde de concepções subjacentes que direcionam e determinam todo o trabalho desenvolvido em sala de aula (SANTOS, 2007) e que a construção dialógica do professor como sujeito social é uma das representações fundamentais na ação docente enquanto desenvolvimento de suas práticas de letramento. Nesse sentido, diferentes trabalhos, reunidos em Kleiman (2001) e em Vóvio; Sito; De Grande (2010), sinalizam, de algum modo, para a necessidade de o professor constituir-se como sujeito reflexivo: questão importante a ser considerada nas mudanças prementes que podem ser observadas nos cursos de formação em Letras. Conforme Kleiman (2001, p.63),

Ninguém duvida da necessidade de redefinir os programas de formação de professores; porém a reforma deve estar baseada na análise das práticas de letramento no local do trabalho, levando em consideração as exigências de comunicação na sala de aula.

Vemos essas exigências como representações da necessária atualização de uma formação que não mais aceita a visão atomista da construção teórica per si, mas que a assume, acima de tudo, como construção prático-teórica de vivências pedagógicas efetivas que redirecionam as compreensões e ações de outras sociabilidades, exigências éticas, focos de estudo da contemporaneidade. Nesse caso, a compreensão responsiva ativa (BAKHTIN, 2003) desses sujeitos em formação inicial, operada nos discursos teórico-acadêmicos e desenvolvida em contexto de pesquisa, a partir das demandas resultantes dessa vivência, estimula práticas responsivas letradas. Entendemos que a compreensão dos discursos vivenciados nesses espaços de pesquisa, por sua vez, é determinada pelas formas linguísticas da composição e pelos elementos não verbais da situação (BAKHTIN, 2004, p.133); desse modo, a compreensão se dá como ação inerente ao ato enunciativo. Bakhtin (2003, p.275) considera que, na enunciação, "o falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva". Assim sendo, todos os momentos vivenciados pela graduanda aqui em foco, tanto no seu grupo de estudos no Pibid quanto na sala de aula em que atuou, compõem os espaços dialógicos que constituíram sua inscrição como agente de letramento.

O fio condutor dessa reflexão é a seguinte questão: Quais as implicações da participação do aluno em pesquisas em seu processo de formação inicial?

Para responder a essa pergunta, valemo-nos de algumas discussões sobre letramento e formação de professores (KLEIMAN, 1995; 2001; 2006) e de reflexões de Bakhtin (2003, 2004) sobre dialogicidade e compreensão responsiva ativa, identificando, no corpus analisado, a relação existente entre as práticas de letramento e a constituição do professor em formação inicial como sujeito reflexivo no ensino de língua materna a partir da noção de responsividade. Acreditamos que uma discussão sobre os aportes teóricos oriundos das práticas de letramento que norteiam a formação de professores de língua materna nos cursos de Letras devem estar associados à noção de significação, como também precisam ser norteados por

objetivos das demandas contemporâneas (documentos oficiais, provas de avaliação, estudos acadêmicos), promovem a redefinição de objetivos para as escolas e, consequentemente, a recondução de práticas significativas com a linguagem em sala de aula" (LIMA e SOUTO MAIOR, 2012, p.395).

Por fim, consideramos que observar a dialogicidade no processo de interação entre a professora da turma, a graduanda em Letras e os alunos de uma escola pública do estado, possibilita a revisão de orientações de práticas adotadas nesses cursos, pois, conforme Bakhtin (2005, p.195), as "palavras do outro, introduzidas na nossa fala, são revestidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação, isto é, tornam-se bivocais"5 5 Bakhtin faz um estudo dos discursos na composição de uma obra literária, estabelecendo diferenças e aproximações entre três tipos de discurso: discurso referencial direto e imediato, definido como "o discurso que nomeia, comunica, enuncia, representa" (BAKHTIN, 2005, p.186); discurso representado ou objetificado, entendido como discurso-objeto ou obiéktnoie slovo, que tem como representante mais típico, segundo o autor, o discurso direto dos heróis; e, por fim, o discurso bivocal. . Assim sendo, trataremos a seguir da noção de letramento sob uma perspectiva bakhtiniana de responsividade, entendendo esse fenômeno na pluralidade de vozes que o envolvem.

1 Estudos de letramento a partir da responsividade bakhtiniana

De acordo com Kleiman (1995), Soares (1998), Vóvio; Sito; De Grande (2010) entre outros, os estudos sobre letramento no Brasil ainda são recentes, datam da década de 90, por isso ainda estão numa fase de expansão e ainda despertam o interesse de vários pesquisadores. Percebemos que não só a categoria é recente, mas a própria necessidade contemporânea de engajamento do homem ao contexto, na qual o conceito na sua acepção mais crítica está relacionado, é característica também construída na recente história da condução do homem contemporâneo à possibilidade autoral.

Conceito multifacetado, o letramento (ou letramentos), como sugere Street (1984), tem suscitado inúmeras reflexões. Diante da importância do letramento para a vida dos sujeitos contemporâneos, esse conceito foi sendo repensado, uma vez que apenas a tecnologia da decodificação não lhes assegurava se tornarem efetivamente atuantes, ou seja, a agirem com criticidade e reflexão nas práticas sociais das quais poderiam participar. Esses sujeitos, ao se expressarem diante dos acontecimentos da língua, geram uma significação que correlaciona o que é sensível ao que é inteligível e, nesse momento, essas instâncias são de responsividade, já que cada enunciado deve ser considerado antes de tudo como "uma 'resposta' aos enunciados precedentes de um determinado campo: ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta (BAKHTIN, 2003, p.297).

Como vimos, a própria concepção de letramento sofre modificações por conta da relação estabelecida entre o conceito e as situações emergentes da sociedade, e esse deslocamento do conceito reagrupa outras noções a ele atreladas, como veremos adiante. Segundo Street (1984), houve alterações quanto à concepção de letramento de um modo mais adequado às demandas sociais que consideramos estabelecidas nas relações dialógicas das práticas humanas. A concepção de letramento com base nas ideias desse autor permitiu "separar os estudos sobre o impacto social da escrita dos estudos sobre alfabetização" (KLEIMAN, 1995, p.15). Nessa primeira perspectiva, o letramento é concebido como o impacto social da escrita na vida dos sujeitos, como afirma Kleiman (1995); já na última, algumas vezes busca-se, a nosso ver, apenas o registro da apreensão da técnica de escrever que, apesar de ter importância na coleta de informações para a ação efetiva do estado sobre os resultados, mascarava, como ainda mascara, a condição da formação de jovens e adultos na nossa sociedade, gerando subcategorias como, por exemplo, a de analfabetismo funcional.

A proposta de Street (1984) de observação pontual do fenômeno do letramento em relação aos objetivos nos quais esse é pautado conferiu ao letramento uma dimensão socialmente mais ampla. Para esse autor, dois modelos de letramento coabitam no meio acadêmico: um modelo voltado para a dimensão individual e outro para a dimensão social. O primeiro foi denominado de letramento autônomo, que consideramos neste estudo como letramento monovocal, retomando as reflexões baktinianas sobre dialogicidade, e o segundo, de letramento ideológico ou bivocal, no qual os sujeitos se constituem letrados na dialogicidade da ação de se inscrever no mundo vivido. Na concepção de letramento autônomo, a idéia de alfabetização é um processo reducionista no qual a escrita é tida como um produto que se completa por si só. Assim, a leitura centra-se apenas no texto, e o sujeito leitor, por sua vez, não considera o contexto sócio-histórico da produção textual. Podemos entender que, nesse sentido, não se efetivam, nas ações de alfabetizar, as relações dialógicas da enunciação, pois estaríamos no plano da língua como objeto. E, segundo Bakhtin (2005, p.183), é essa comunicação dialógica que constitui o "verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda vida da linguagem, seja qual for seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística etc.), está impregnada de relações dialógicas".

Além dessa problemática de reduzir o ato de ler à mera decodificação de símbolos ou à ação objetificada, sem a consideração do contexto sócio-histórico de produção, o modelo de letramento autônomo dicotomiza dois processos fundamentais de interação entre os sujeitos: a fala e a escrita. Segundo Brito (1998), tal dicotomia não procede, pois oralidade e a escrita se complementam na interação entre os sujeitos, numa multiplicidade de situações nas quais eles estão inseridos, a fim de que possam realizar as mais variadas atividades em seu cotidiano. Sob essa concepção de linguagem, os sujeitos constroem e reconstroem as mais diversas atividades na dinamicidade e instabilidade das relações sócio-históricas (SANTOS, 2007), como veremos nas atividades propostas pela graduanda nas quais ela "reclama" a voz do sujeito como atividade social e como ativismo de sua possibilidade autoral.

O modelo ideológico de letramento, também proposto por Street (1984), é retomado e definido por Buzato (2007, p.153) como

práticas sociais, plurais e situadas, que combinam oralidade e escrita de formas diferentes em eventos de natureza diferente, e cujos efeitos ou consequências são condicionados pelo tipo de prática e pelas finalidades específicas a que se destinam.

Essa perspectiva de letramento contempla, desse modo, as demandas sociais requeridas pelos sujeitos em atuação social e, por conta disso, a ideia de um letramento plural ou letramentos. O letramento plural se ancora na concepção desse modelo ideológico que, além de não engessar a ideia de letramento apenas à escrita – pois, nessa perspectiva, "oralidade e escrita aparecem sempre entremeadas, diferentes códigos/registros linguísticos e modalidades semióticas se misturam, de modo que os sentidos da escrita são negociados interativamente, a despeito da natureza escrita do texto" (BUZATO, 2007, p.152) –, também não é ação monovocal, pois se estabelece numa ação dialógica de responsividade.

Associados à concepção ideológica de letramento, que imbrica oralidade e escrita e insere o sujeito bivocal ou dialógico, estão os conceitos de eventos e práticas de letramento. Os eventos correspondem a todas "as situações em que a escrita constitui parte essencial para fazer sentido da situação, tanto em relação à interação entre os participantes como em relação aos processos e estratégias interpretativas" (KLEIMAN, 1995, p.40). As práticas de letramento são padrões culturais de uso de leitura e escrita que as pessoas realizam em situações específicas de sua vida diária (BARTON e HAMILTON, 2000). Essas ações são consubstanciadas na vida diária prática dos sujeitos. Segundo Giddens (1991), essa vida diária na contemporaneidade revela-nos uma necessidade de ir em frente com coisas práticas e faz gerar uma noção de destino que é "uma sensação de as coisas vão seguir, de qualquer forma, seu próprio curso, reaparece assim no centro de um mundo que se supunha estivesse assumido controle racional de suas próprias questões" (p.134).

Assim, é relevante investigar se as práticas de letramento no cenário escolar têm possibilitado, aos sujeitos que dela participam, as potencialidades para a vida em sociedade de modo ativo e responsivo, nos termos previstos por Bakhtin (2003, 2004, 2005). Considerando, então, que o uso da língua se concretiza na interação verbal, que é mediada pela produção de efeitos de sentido entre os sujeitos envolvidos em determinado contexto, a sala de aula se apresenta como espaço6 6 Aqui concebemos espaço de acordo com De Certeau (2002, p.202-3). Ao estabelecer a diferença entre lugar e espaço, esse autor afirma que o lugar é a ordem que determina a distribuição dos elementos uns ao lado do outro, numa localização própria e estável; já o espaço pressupõe mobilidade, "é o efeito produzido pelas operações que o orientam". crucial na escola como agência de letramento. Os discursos da escola, dessa forma, demandam efeitos de sentidos que sugerem a pesquisa reflexiva sobre essa ação. Entendemos que várias orientações dialógicas estão presentes na ação de desenvolver a pesquisa acadêmica, nas interações que se estabelecem no processo de orientação, onde a compreensão de enunciação reflete e refrata sentidos na formulação de trabalhos dos licenciandos na construção de suas subjetividades profissionais, pois "compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente" (BAKHTIN, 2004, p.131-132).

Compreendemos, portanto, que esse espaço de intermediação discursiva encontrado em possíveis contextos de pesquisa na academia, quando da formação do sujeito da responsividade, pode se revelar como fundante em ações da docência na formação inicial do professor. A escola/academia é o espaço contextual do qual se emanam discursos concomitantes da tradição e da inovação. Dessa forma, na sala de aula, há a possiblidade de o sujeito tornar-se letrado. E, na sala de aula de formações de professores, esse letramento contribui para sua constituição como professor reflexivo e responsivo, pois ele pode revivenciar seus próprios significados7 7 A noção de significado bakhtiniana extrapola o uso da palavra no sentido de que "a emoção, o juízo de valor, a expressão são estranhos à palavra da língua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto. Em si mesmo o significado é uma palavra (sem referência à realidade concreta) é extraemocional" (BAKHTIN, 2003, p.292). e atos pedagógicos e reconstruí-los nas reflexões teórico-práticas de uma postura assumidamente de alteridade em pesquisas. Nessa perspectiva, apresentamos abaixo o contexto em que se deu o estudo, ao mesmo tempo em que refletimos sobre o fazer metodológico.

2 Contextualizando a pesquisa

A ideia de letramento plural, já mencionada neste artigo, refere-se às mais diversas especificações do letramento, considerando tanto o contexto sócio-histórico e as demandas sociais que emanam dessas relações, como a dialogicidade e a compreensão que nelas estão imbricadas. Como exemplo, podemos citar o letramento escolar, o acadêmico, o digital, entre outros. Interessa-nos aqui proceder nossa análise à luz do letramento escolar e do letramento acadêmico, na perspectiva dialógica. Para isso, adotaremos como objeto de análise a primeira versão8 8 A escolha da primeira versão se justifica porque ainda é um texto com reflexões da graduanda que não passaram pelo crivo de avaliação do professor-orientador. Portanto, consiste, do nosso ponto de vista, em um texto no qual as reflexões dessa professora sobre a sua própria prática são expressas sem avaliações. Portanto, com maiores incidências de marcas singulares. de um Trabalho de Conclusão de Curso de uma aluna do Curso de Letras. Pelo fato de o objeto de análise resultar das experiências na escola, faz-se necessário compreender o letramento escolar que, segundo Bunzen (2010, p.101), são

práticas socioculturais, histórica e socialmente variáveis, que possuem uma forte relação com os processos de aprendizagem formal da leitura e da escrita, transmissão de conhecimentos e (re) apropriação de discursos.

Sob nossa perspectiva, todo esse processo de transmissão de conhecimentos, de reapropriação e de produção de outros discursos somente se dá de forma significativa se os sujeitos atuarem de modo ativo e responsivo nas práticas sociais, quer sejam escolares ou não, pois a palavra só se constitui como enunciação quando carregada de sentido e quando associada a uma atitude ativa (BAKHTIN, 2003, 2004). Em cursos de formação de professores, e aqui no caso específico de Letras, mais do que uma gama de conhecimentos que vão desde a escolha teórico-metodológica até os processos de avaliação, esse letramento deve proporcionar ao futuro professor a possibilidade de atuação efetiva como docente, pois, muitas vezes, parece haver dois pólos a pairar nos programas de formação: a teoria e o método. Consideramos ainda mais sério "quando esses dois pólos são excludentes entre si, ou seja, busca-se ou 'o quê' ou 'o como'. A questão é que esses dois processos cumulativos de ver o ensino simplifica o ato em dois campos que vivenciam os velhos: teoria e prática" (SOUTO MAIOR, 2013a, p.73). Por fim, consideramos, ainda conforme a autora, que ambos elementos do processo de ensino, mesmo que complementares, não mais respondem a questões mais contemporâneas, contidas no 'por quê'. É no porquê que encontramos a incompletude histórica e complexa da contextualização do saber. Tudo isso na perspectiva da reflexão, pois o discurso didático está associado ao discurso científico; seu objetivo é a "transmissão" de saberes a um grupo institucionalmente definido o qual é introduzido em um campo científico. No entanto, nesse contexto, observa-se que, com

determinadas elaborações de conhecimento sobre a linguagem, cria-se, por vezes, outro mundo de ação paralelo, mundo desabitado, mundo construído por sistemas amorfos de uma essência de vida mecânica. Esse mundo, que não é o do cotidiano, que não é o mundo vivido, se retroalimenta e cria elos de significações que se relacionam às práticas vigentes por sua ligação interna (SOUTO MAIOR, 2013b, p.36).

Dessa forma, os reflexos desse letramento são observáveis nos discursos, nas práticas e nas produções dos alunos em formação, o que nos permite identificá-los através de produções formais, institucionalizadas, como o TCC, que se configura como elemento do letramento acadêmico. Para Lorgus (2009, p.41), o letramento acadêmico é expresso pelas habilidades letradas, associadas pelas estruturas de valores que as sustenta. Assim, o TCC, configurado como uma representação do letramento acadêmico, pode ser utilizado como um gênero discursivo que reflete esse conhecimento construído associado a uma determinada esfera de produção do conhecimento na academia. No curso de formação de professores, por exemplo, esse trabalho de conclusão pode revelar se as orientações (teóricas, metodológica, dialógicas) adotadas correspondem ou não a uma perspectiva de letramento na formação do professor reflexivo e responsivo.

Segundo Lüdke & André (1986), a realização de uma pesquisa está condicionada à promoção de um confronto entre dados, evidências e informações coletadas sobre determinado assunto e ao conhecimento teórico acumulado acerca dele. Em geral isso se processa a partir do estudo de um problema que, ao mesmo tempo em que desperta o interesse do pesquisador, limita sua atividade a uma determinada porção do saber que este pesquisador se compromete a construir a partir de um dado momento. Mas, para que isso ocorra, é necessário que esse pesquisador, esse aluno em formação, seja letrado nos aspectos concernentes à sua formação. É aí que as práticas de letramento escolar e acadêmico exercem seu papel. O reflexo desse letramento se apresenta no produto final, o texto, que denuncia a que tipos de eventos de letramento os alunos em formação são expostos e que implicações esses eventos trazem para sua formação.

Nesse sentido, a graduanda em foco teve uma situação privilegiada em relação a outros alunos, porque começou a vivenciar experiências em diferentes eventos de letramento tanto na graduação, na condição de aluna, quanto no processo de formação como bolsista do Pibid, participando de diferentes eventos orientados pela professora–coordenadora tanto no âmbito acadêmico – seminários, apresentação de comunicações em congressos, elaboração de resenhas – quanto nas escolas – planejamento de aulas, elaboração de projetos pedagógicos, elaboração de notas de campo e diários de atuação (esses últimos produzidos para serem entregues à coordenadora do Pibid). Embora o foco da pesquisa desenvolvida pela graduanda fosse a produção do trabalho a partir de reflexões teóricas e de exposição a situações-problema, a orientadora em questão não expôs a graduanda ao domínio de um conhecimento sem reflexão. Essa mesma conduta foi adotada pela graduanda com os alunos da educação básica, como veremos a seguir.

3 Analisando a responsividade da prática docente

A discussão aqui proposta será pautada em dados apresentados pela graduanda em Letras Eduarda9 9 Para preservar a identidade dos sujeitos, todos os nomes apresentados nos dados da análise são fictícios. em seu Trabalho de Conclusão de Curso. São dados provenientes das experiências realizadas enquanto bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), financiado pela Capes. Na Universidade Federal de Alagoas, o subprojeto desenvolvido pelo grupo de Letras/Ufal iniciou as atividades em 2010 e tem desde então como enfoque principal a constituição dos professores e alunos como leitores e produtores de textos, fundamentada em uma perspectiva de letramento10 10 Como já foi dito, o subprojeto desenvolvido de 2010 a 2014 teve como título "A formação inicial dos professores de Língua Portuguesa em contextos de leitura e produção de textos". Em 2014, dando continuidade e redimensionando algumas propostas do subprojeto anterior, foi aprovado outro subprojeto com o título "Letramentos e formação de professores no PIBID." . Portanto, trata-se de uma professora com uma formação inicial em que a leitura e a escrita são concebidas como práticas historicamente situadas.

A concepção de escrita e de leitura como práticas discursivas é evidenciada em toda a análise realizada por Eduarda, a começar pelo interesse do tema que escolheu para pesquisar: "o ethos do aluno considerado indisciplinado"11 11 Fundamentada na concepção de Amossy (2008), a aluna concebe ethos como a imagem revelada pelos sujeitos durante o processo interativo. . Não se trata de um tema circunscrito a questões estritamente linguísticas, o objetivo de seu trabalho é, por um lado, observar práticas discursivas que compõem o processo de ensino em sala de aula e, por outro, promover o desenvolvimento linguístico-discursivo do aluno por meio da prática social (KLEIMAN, 1995). Essa preocupação em correlacionar questões relacionadas à vida dos alunos com as atividades propostas na escola permeou todo o trabalho desenvolvido no subprojeto do Pibid/Letras. Eduarda expressa essa preocupação quando justifica a escolha e a importância do trabalho que realiza:

Trecho 1:

Ao refletir sobre essa questão, entende-se que a indisciplina dos alunos não é aleatória, assim como o ethos que eles assumem em sala. Tal indisciplina pode ter como uma das motivações as orientações adotadas pelo professor e/ou coordenação e/ou direção da escola, bem como a ideia que é formada sobre eles. [...] Além disso, a pesquisa poderá contribuir para que nós, enquanto futuros professores, reflitamos sobre a prática pedagógica em sala de aula, tendo em vista que a constituição do ethos do aluno também depende do método que escolhemos para promover uma aprendizagem significativa, principalmente daqueles alunos a respeito dos quais não há expectativa de crescimento pessoal, justamente por conta do seu comportamento.

Nessa declaração, Eduarda atenta para a necessidade de as orientações adotadas por ela, enquanto professora, estarem em sintonia com a realidade dos alunos, constituindo-se na alteridade. Inclusive, ela expressa o desejo de concretizar um compromisso que extrapola o contexto escolar, quando busca, através de seu estudo, uma compreensão para a indisciplina de alguns alunos, a fim de que não sejam, segundo ela, "colocados à margem da sociedade por conta de práticas excludentes, como por exemplo, aquelas com o caráter de seletividade". Para isso, reconhece a responsabilidade do professor em promover alterações na vida dos alunos, numa ação bivocal ou dialógica, demonstrando compreender também a necessária responsabilidade desse professor em construir uma proposta pedagógica, na qual tanto ele quanto os alunos possam responder de modo ativo às práticas de sala de aula. Observamos que a escolha da metodologia precisa ser significativa para que a aprendizagem também aconteça de modo correspondente. Assim, teoria e prática não constituem dois pólos, como menciona Souto Maior (2013a), nem o compromisso do professor com as práticas pedagógicas acontecerá dissociado das práticas sociais.

Consideramos que um dos grandes problemas que deve ser enfrentado na formação do profissional de modo geral é a descontinuidade que persiste em existir entre objetivos profissionais e demandas sociais, consequência da exacerbação de um dos elementos do perfil de risco da contemporaneidade, segundo Giddens (1991, p.134), que nos impulsiona para um senso de "destino" que seria, nas palavras do autor: "uma vaga e generalizada sensação de confiança em eventos distantes sobre os quais não se tem controle". Essa sensação aliviaria o sujeito, ainda conforme Giddens, do "fardo de engajamento" que resulta, por sua vez, numa insensibilidade em relação à vida. Observamos que, no letramento para a formação reflexiva e responsiva, ou no letramento da dialogicidade, há uma tendência a sensibilizar o sujeito em relação ao seu contexto, num movimento da consideração das vozes da sociedade que se exteriorizam e são apreendidas como material ideológico e, consequentemente, revelam a característica bivocal das situações. O professor em formação, ao assumir o estado lacunar de sua pesquisa, assume também a possibilidade autoral dos demais que estão fora dele (seus "outros") e que exotopicamente12 12 Exotopia é um conceito que atravessa toda a obra e reflexões bakhtinianas e do Círculo de Bakhtin. Ele diz: "o próprio homem não consegue perceber de verdade e assimilar integralmente nem a sua própria imagem externa, nenhum espelho ou foto o ajudarão; sua autentica imagem externa pode ser vista e entendida apenas por outras pessoas, graças a distancia espacial e ao fato de serem outros" (BAKHTIN, 2003, p.366, grifo do autor). o constituem como sujeito. Assim parece caracterizar-se a formação de Eduarda no âmbito do Pibid/Letras no curso.

Movida pelo desejo de construir seu fazer pedagógico a partir do que observou em seu contexto de ação, expressando o desejo de se constituir como sujeito responsivo, Eduarda relata, em vários momentos da análise, as orientações que adotou em sua atuação durante as aulas de Língua Portuguesa (juntamente com Clara, bolsista que atuava com ela), para que compreendesse a razão da indisciplina de um grupo de alunos. Para isso, ela dedicou atenção a esses alunos, permitindo-lhes que expressassem, em oficinas de leitura e produção de textos, uma posição ativa bastante diferenciada daquela, geralmente, pré-construída pela escola naquele contexto. Antes, porém, ela realizou uma criteriosa observação sobre cada um dos alunos, a fim de compreender mais cada um, como ela descreve em dados de anotações de campo sobre a aluna Ana durante as aulas ministradas pela professora Marta13 13 Marta era a professora de Língua Portuguesa na turma em que Eduarda e Clara atuavam como bolsistas do Pibid. :

Trecho 2:

A aluna Ana não interage de forma nenhuma com a turma. Sentada no recanto da sala, se apresenta de braços cruzados e cabisbaixa. Por causa do seu modo de falar (em certos momentos) se mostra uma aluna grosseira, desobediente e até mesmo irreverente. Para cada pergunta que se relacione a ela, sempre tem uma resposta na "ponta da língua". Parece não ter interesse algum em mudar seu comportamento em sala. A aluna se mostra desinteressada, já que não está fazendo o exercício (Nota de campo, realizada por Clara e Eduarda, no dia 15/06/2012).

Através de minuciosas observações processuais, Eduarda procurou entender a conduta adotada por cada aluno, especialmente daqueles que eram sujeitos de sua pesquisa, porque concebia os sujeitos como heterogêneos, polifônicos14 14 Conforme Bakhtin, o termo polifonia é concebido como "multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis" (2005, p.4). , e, por isso, como sujeitos que apresentam respostas diferenciadas.

Com base na compreensão sobre possíveis razões para a indisciplina dos alunos, durante a realização das oficinas de leitura e de escrita, Eduarda e Clara conduziram o trabalho de uma forma que todos os alunos tivessem oportunidade de participar ativa e responsivamente, instigando-os com questionamentos, propondo-lhes reflexão e instigando-os a se posicionar oralmente, considerando, como foi desenvolvida nas reflexões deste estudo, a oralidade como fundamental no processo de letramento não monovocal. Numa dessas ocasiões, no decorrer da oficina, cujo tema era "Eu sou assim", Eduarda faz uma pergunta a Ana, porém ela reage com certa indiferença. Entretanto, como já havia adotado uma posição de compreensão para as atitudes de Ana, Eduarda apresenta a seguinte reflexão sobre essa atitude:

Trecho 3:

Com o passar da oficina, notou-se que Ana, discretamente, atentava para as discussões realizadas pelos bolsistas e, também, pelo momento com música e leitura de textos, relacionados com a temática da oficina. Entretanto, quando alguma pergunta era direcionada a ela, a aluna rapidamente revidava "Oxe, professora, porque ta perguntando pra mim" ou "Sei não! Pergunte ao povo que sabe", falando como se estivesse chateada, embora não estivesse. Ao dizer tais palavras, era notável que, de forma implícita, o dizer da professora perpassava pela fala da aluna que se colocava no lugar de não saber de nada, pois somente "o povo que sabe", isto é, os alunos considerados disciplinados, é quem sabe responder. Embora a aluna reagisse de tal forma, as bolsistas não deixaram de trazê-la para a discussão do momento. Pelo contrário, ela e toda turma eram mencionados por igual. Ao notar isso, percebeu-se que Ana parecia estar surpresa, mas, por não querer que essa reação fosse demonstrada, ela ainda se mantinha resistente em certos instantes.

Nessa análise dos dados apresentada no TCC, Eduarda reconhece a importância de insistir para que Ana se envolvesse e demonstrasse, efetivamente, uma atitude responsiva diferenciada do que a escola lhe impunha. Para isso, Eduarda, juntamente com Clara, instauraram espaços dialógicos com os alunos. Determinada pelo objetivo de possibilitar que Ana, assim como os demais alunos considerados indisciplinados, demonstrasse outra postura como sujeito ativo naquele contexto, Eduarda se constitui pela alteridade em relação aos discursos dialógicos que perpassam suas ações. Conforme afirma Bakhtin (1998, p.89), "todo discurso é orientado para a resposta e ele não pode esquivar-se à influência profunda do discurso da resposta antecipada". Observamos, assim, que a professora em formação também não pode esquivar-se a essa influência. Retomando a situação analisada, reconhecemos que Eduarda demonstra persistência quanto ao objetivo de desenvolver uma prática de letramento, mesmo quando os alunos demonstram resistência, como ela afirma no trecho a seguir:

Trecho 4:

Ao entregar as folhas de produção para os alunos, nas quais eles desenhariam ou escreveriam, a aluna [Ana] de imediato disse que não faria nada. Isso, porém, não foi dito voz alta, mas somente para a bolsista Eduarda que, mesmo assim, colocou uma folha em sua banca. Passados alguns instantes, notou-se que a aluna olhava para o papel diversas vezes. Foi num desses momentos, então, que Ana começou a escrever. Ela foi uma das últimas alunas a entregar o texto e, quando entregou, disse que decidiu fazer a atividade porque gostava muito de escrever.

Nessa declaração, Ana parece reconhecer que Eduarda está construindo uma interação diferenciada na turma e se propõe a escrever, atendendo à solicitação que havia sido apresentada para a escrita do texto, inclusive afirmando que era uma atividade que gostava de realizar (esse era um dado totalmente novo, porque ela resistia a escrever durante as aulas da professora Marta). No texto, ela desvela uma caracterização antagônica, encoberta pelo comportamento de indisciplina apresentado nas aulas. Ana assim se autodefine no texto:

Texto 1:

Eu me vejo uma pessoa carinhosa, cheia de sonhos [...]. Uma menina que luta muito pra ter o que quer [...]. Uma menina que não tem ninguém para dizer o que eu sinto, o que eu sou e como vou mudar o meu jeito de ser [...] Eles me veem uma menina complicada, cheia de erros, cheia de defeitos [...]. Tenho medo de ser como meu pai. Ele foi ausente na minha vida, mas não quero ser ausente. É assim que eu me vejo. (Relato de Ana, realizado na oficina "Eu sou assim", dia 20/6/2012).

A insistência de Eduarda para que Ana despertasse para uma participação nas aulas, consequentemente, nas práticas sociais de um modo geral, certamente somente aconteceu porque sua conduta como professora estava fundamentada numa concepção de ensino e aprendizagem dialógica, através da qual professores e alunos podem construir possibilidades outras diferentes daquelas determinadas nos parâmetros e diretrizes oficiais. Violando uma concepção de escrita e leitura como reprodução, Eduarda criou condições para que Ana refletisse sobre a imagem discriminatória sobre ela. Assim, em seu processo de formação, parece compreender que a responsividade de um pesquisador está em reconhecer que seu trabalho reflete e refrata uma ação individual-coletiva que reestrutura o conhecimento de mundo, abrindo para outras formas de conhecimento da vida e de atuação na vida.

As posições assumidas por Ana revelam a importância das concepções que embasam a conduta dos professores em eventos de letramento. Concebendo cada aluno como sujeitos históricos, constituídos por vozes heterogêneas, e, por vezes, estigmatizadoras, Eduarda investe na alternativa de transformar as atividades de escrita e de leitura em espaços efetivos de reflexão, motivando os alunos a produzir outras histórias sobre si mesmos. A abordagem que subjaz essa prática é a de pesquisador que considera seus posicionamentos na alteridade da situação vivenciada, assumindo "o outro" da pesquisa. Esse outro é "o outro olhar", é o "outro sujeito", é o "outro modo de compreender". Consideramos que essa postura é necessária para conceber a prática docente, no curso de Letras, como responsiva.

Considerações finais

As reflexões apresentadas por Eduarda nessa primeira versão do TCC nos permitem reafirmar a necessidade de alterações no currículo dos cursos de Letras para que, assim, de fato, seja possível propiciar aos alunos iniciantes o aprendizado responsivo em ambientes de letramento ainda em sua formação inicial. Assim esses graduandos poderiam aprender a exercer uma compreensão responsiva acerca de suas ações pedagógicas. Na análise dos dados em questão, Eduarda demonstra, nas ações que desenvolve com os alunos, que as orientações pedagógicas centradas numa concepção de letramento foram o diferencial na sua formação, no decorrer do trabalho realizado enquanto bolsista do Pibid. Com a prática de pesquisa, ela reconhece quais atividades discursivas desenvolvidas nas escolas lhes possibilitou ativar potencialidades para assumir uma conduta profissional de modo ativo e responsivo, considerando o desejo de aprendizado dos alunos. Duas respostas apresentadas por ela em questionários de avaliação das atividades do Pibid sintetizam essa sua compreensão acerca de sua constituição como sujeito nas relações com o outro, num contínuo processo de (re) descobertas, bem como sobre o desenvolvimento de práticas de ensino que promovam a constituição de sentidos para ela e para os alunos em relação à participação nas diferentes práticas sociais. Na avaliação de 2011, ela afirma que o "contato com os alunos me fez aprender novas coisas e descobrir que eu sou capaz de atuar com uma prática diferenciada (de interação com os alunos), mesmo que muitos não acreditem". Na avaliação de 2013, ela declara:

O PIBID nos proporciona uma experiência importantíssima: o contato inicial com a sala de aula, com os alunos, com a escola, fazendo-nos refletir não somente sobre a prática pedagógica, mas principalmente sobre o ser professor, sobre a responsabilidade dessa escolha.

Nessas declarações, ficam evidentes as razões por que Eduarda se distancia das práticas de ensino de Língua Portuguesa centrada em conteúdos gramaticais, repetitivos e homogeneizantes e promove uma prática de ensino com um enfoque em eventos de escrita e leitura vinculados às práticas sociais, atuando, desse modo, como agente de letramento e caracterizando-se como uma professora com uma formação que lhe proporcionou condições para responder ativamente às determinações da contemporaneidade devido a sua inserção em uma pesquisa que possibilitou a correlação dos conhecimentos teóricos às práticas pedagógicas.

Recebido em 28/04/2014

Aprovado em 30/10/2014

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  • 1
    Nesse sentido, vale conferir as reflexões de Gnerre (1998) e De Certeau (2002). Ambos os autores criticam a visão mítica da escrita. De Certeau (2002, p.227) afirma que "nos últimos três séculos, aprender a escrever define a iniciação por excelência em uma sociedade capitalista e conquistadora. É a sua
    prática iniciática fundamental" (grifo do autor).
  • 2
    Bakhtin (2003) diz que "
    eu ainda não existo no mundo axiológico como dado positivo tranquilizado igual a mim mesmo" (grifo do autor, 2003, p.174) e que "[...] a força organizadora é a categoria axiológica de
    outro, é a relação com o outro, enriquecida pelo excedente axiológico da visão para o acabamento transgrediente" (grifo do autor, 2003, p.175).
  • 3
    Nesse sentido, Bakhtin (2003, p.33) assevera que "o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, do seu ativismo que vê, lembra-se, reúne e unifica, que é o único capaz de criar para ele uma personalidade externamente acabada".
  • 4
    O estudo foi desenvolvido no subprojeto PIBID/Fale, de 2010 a 2014, intitulado "A formação inicial dos professores de Língua Portuguesa em contextos de leitura e produção de textos" e coordenado pela Profa. Dra. Lúcia de Fátima Santos. A análise aqui apresentada adotou como objeto de reflexão a primeira versão do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) dessa graduanda, ex-bolsista do Pibid.
  • 5
    Bakhtin faz um estudo dos discursos na composição de uma obra literária, estabelecendo diferenças e aproximações entre três tipos de discurso: discurso referencial direto e imediato, definido como "o discurso que nomeia, comunica, enuncia, representa" (BAKHTIN, 2005, p.186); discurso representado ou objetificado, entendido como discurso-objeto ou
    obiéktnoie slovo, que tem como representante mais típico, segundo o autor, o discurso direto dos heróis; e, por fim, o discurso bivocal.
  • 6
    Aqui concebemos espaço de acordo com De Certeau (2002, p.202-3). Ao estabelecer a diferença entre lugar e espaço, esse autor afirma que o lugar é a ordem que determina a distribuição dos elementos uns ao lado do outro, numa localização própria e estável; já o espaço pressupõe mobilidade, "é o efeito produzido pelas operações que o orientam".
  • 7
    A noção de significado bakhtiniana extrapola o uso da palavra no sentido de que "a emoção, o juízo de valor, a expressão são estranhos à palavra da língua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto. Em si mesmo o significado é uma palavra (sem referência à realidade concreta) é extraemocional" (BAKHTIN, 2003, p.292).
  • 8
    A escolha da primeira versão se justifica porque ainda é um texto com reflexões da graduanda que não passaram pelo crivo de avaliação do professor-orientador. Portanto, consiste, do nosso ponto de vista, em um texto no qual as reflexões dessa professora sobre a sua própria prática são expressas sem avaliações. Portanto, com maiores incidências de marcas singulares.
  • 9
    Para preservar a identidade dos sujeitos, todos os nomes apresentados nos dados da análise são fictícios.
  • 10
    Como já foi dito, o subprojeto desenvolvido de 2010 a 2014 teve como título "A formação inicial dos professores de Língua Portuguesa em contextos de leitura e produção de textos". Em 2014, dando continuidade e redimensionando algumas propostas do subprojeto anterior, foi aprovado outro subprojeto com o título "Letramentos e formação de professores no PIBID."
  • 11
    Fundamentada na concepção de Amossy (2008), a aluna concebe ethos como a imagem revelada pelos sujeitos durante o processo interativo.
  • 12
    Exotopia é um conceito que atravessa toda a obra e reflexões bakhtinianas e do Círculo de Bakhtin. Ele diz: "o próprio homem não consegue perceber de verdade e assimilar integralmente nem a sua própria imagem externa, nenhum espelho ou foto o ajudarão; sua autentica imagem externa pode ser vista e entendida apenas por outras pessoas, graças a distancia espacial e ao fato de serem
    outros" (BAKHTIN, 2003, p.366, grifo do autor).
  • 13
    Marta era a professora de Língua Portuguesa na turma em que Eduarda e Clara atuavam como bolsistas do Pibid.
  • 14
    Conforme Bakhtin, o termo polifonia é concebido como "multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis" (2005, p.4).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Dez 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Aceito
      30 Out 2014
    • Recebido
      28 Abr 2014
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