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Contexto como espaço de criação e cocriação: um olhar sobre obras de Bakhtin e o Círculo

RESUMO

Este artigo objetiva tratar do sentido de contexto em obras de Bakhtin e o Círculo. O corpus de pesquisa são as edições das obras assinadas por Volóchinov, Bakhtin e Medviédev publicadas no Brasil. Partimos de uma imagem recorrente sobre um espaço de criação e cocriação na produção de sentidos, identificado como comunicação discursiva, sígnica, cultural ou artística. Os resultados demonstram quatro tipos de contextos: o contexto do enunciado na comunicação discursiva cujas fronteiras são locutor e interlocutor; o contexto único e singular na comunicação sígnica tendo como fronteiras a compreensão ativa e a entonação avaliativa; o contexto estético presente na comunicação artística cujas fronteiras são a relação entre autor e contemplador de uma obra de arte, autor e personagens no romance e herói lírico e seu outro na poesia; e o contexto extraverbal na comunicação cultural cujas fronteiras são um ‘eu-nós’ e o acontecimento da existência.

PALAVRAS-CHAVE:
Bakhtin e o Círculo; Formas de comunicação; Tipos de contexto; Produção de sentidos

ABSTRACT

This article aims to discuss the meaning of context in the works of Bakhtin and the Circle. The research corpus consists of works signed by Vološinov, Bakhtin and Medvedev published in Brazil. We set an image related to a space of creation and cocreation where discursive, ideological, cultural or artistic modes of communication exist. Results show four types of contexts: the context of the utterance in the speech communication mode of which borders are locutor and interlocutor; the unique and singular context in semiotic communication mode of which borders are active comprehension and evaluative intonation; the aesthetic context in the artistic communication mode of which borders are author and contemplator in a work of art, author and characters in the novel and lyric hero and his/her other in poetry; and the extraverbal context in the cultural communication mode of which borders are a “I-we” and the event of Being.

KEYWORDS:
Bakhtin and the Circle; Modes of communication; Types of contexts; Meaning making

A possível problemática do sentido de contexto

Ao percorrermos as obras de Bakhtin e o Círculo, percebemos que a ideia de contexto tem uma função relevante no processo de produção situada de sentidos e orientada à resposta ativa do outro. Em Volóchinov (2017 [1929])VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., encontramos algumas reflexões acerca do funcionamento da compreensão da palavra por parte daquele a quem a palavra é direcionada. O autor diz que a compreensão ativa é decorrência da orientação da palavra “em dado contexto e em dada situação, orientação dentro de um processo de constituição e não ‘orientação’ dentro de uma existência imóvel” (VOLÓCHINOV, 2017, p.179VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). O que nos chama a atenção nessa afirmação é a relação sintática de equivalência valorativa entre “contexto” e “situação”. Ao mesmo tempo, essa necessidade de explicitação sintática de dois termos aparentemente equivalentes abre espaço para considerarmos a possibilidade de uma provável distinção de sentidos entre eles.

Volóchinov (2017, p.195)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. oferece-nos mais alguns vieses para reflexão acerca do papel do contexto, quando atesta que “o sentido da palavra é inteiramente determinado pelo seu contexto”. Nesse mesmo ponto, reafirma o foco no processo situado de significação, estabelecendo uma proximidade entre contextos por onde circulam as palavras e os diversos usos, ou orientações, que são dadas às palavras nesses contextos, “existem tantas significações para uma palavra quantos contextos de seu uso” (p.195-196). Em outro momento, quando trata do funcionamento do enunciado no processo de interlocução, isto é, considerando a orientação a uma resposta ativa, Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. aproxima sintaticamente o contexto do aspecto discursivo e real. Isto é, o enunciado significa concretamente no momento em que são observadas as condições mínimas, relativas ao espaço, tempo e pessoa na interlocução. Dito de outro modo, o enunciado, quando é “abstraído de seu contexto discursivo e real” (VOLÓCHINOV, 2017, p.186VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), transforma-se em uma oração passível de ser analisada gramaticalmente, mas vazia de significação, pois “não se opõe a uma resposta” (VOLÓCHINOV, 2017, p.186VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.).

Esse ponto de vista acerca de uma possível problemática relacionada ao entendimento do que venha a ser contexto pode ainda ser visto quando Volóchinov (2017, p.196)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. afirma que o linguista “cria a ficção de um objeto único, real e correspondente à palavra. Esse objeto, por ser único e idêntico a si mesmo, garante a unidade do significado”. Dessa perspectiva, os “diferentes contextos de uso de uma palavra são compreendidos como se estivessem posicionados no mesmo plano” (VOLÓCHINOV, 2017, p.197VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) com o mesmo sentido: “é como se os contextos formassem uma série de enunciados fechados e autônomos, orientados para a mesma direção” (VOLÓCHINOV, 2017, p.197VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Contra esse ponto de vista, o autor argumenta que “os contextos de uso de uma mesma palavra frequentemente são opostos entre si”, funcionando como “réplicas de um diálogo” (VOLÓCHINOV, 2017, p.197VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) e, portanto, distintos toda a vez que entram em contato uns com os outros. Volóchinov (2017, p.197)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. encerra sua reflexão dizendo que “os contextos não se encontram lado a lado, como se não percebessem um ao outro, mas estão em estado de interação e embate tenso e ininterrupto”.

Medviédev (2019 [1928], p.185)MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019., na esteira das reflexões acerca da produção de sentidos em contexto, argumenta que o sentido de um enunciado não pode ser confundido com o “sentido da palavra de dicionário”, porque o entendimento deve levar em conta o contexto histórico e social em que é produzido. Nas palavras do autor, o enunciado deve ser compreendido no “contexto de sua contemporaneidade e da nossa (caso elas não coincidam)” (MEDVIÉDEV, 2019, p.185MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.). Esse ponto de vista acerca da consideração da não coincidência contextual implica diretamente a produção de conhecimentos científicos. Para o autor, perspectivas metodológico-científicas que partem do pressuposto denominado de “intuição subjetiva do objeto” (MEDVIÉDEV, 2019, p.134MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.) retiram do objeto seu caráter ideológico, seu sentido decorrente da circulação no meio social específico. Isso quer dizer que os estudos baseados na intuição subjetiva consideram o objeto científico de forma abstrata, sem levar em consideração os valores ideológicos que dão sentido a esse objeto na sociedade.

Contrário a isso, o autor estabelece que novas metodologias devem promover um tenso diálogo com o pensamento científico em vigência no instante da produção de certo conhecimento. Trata-se de uma proposta de produção de conhecimentos científicos resultante de embates com métodos consagrados e estabelecidos, diferentemente do conhecimento científico baseado na replicação de métodos produzidos em outros tempos e espaços que não levam em consideração o funcionamento das ciências e a produção de conhecimentos localmente situados. A perspectiva tratada pelo autor entende que metodologias científicas decorrentes do pensamento científico devem inserir-se “no meio de outras ciências e devem situar-se em relação a elas” (MEDVIÉDEV, 2019, p.134MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.), ou seja, devem trazer um ponto de vista outro sobre o pensamento científico aceito.

Desse breve levantamento de algumas formulações, percebemos que existe um possível espaço para reflexão e discussão acerca do sentido de contexto nas obras. É evidente o fato de que o Círculo refuta visões deterministas ou mecanicistas acerca de sentidos pré-determinados, importando para o falante a “significação nova e concreta” (VOLOCHINOV, 2017, p.177) que a palavra adquire a cada momento em que é produzida, em cada enunciado concreto do qual o falante ativamente participa. Por esse motivo, devemos suspeitar que o sentido de contexto nas obras do Círculo deva extrapolar a possibilidade de se constituir em um dado estático ou um subentendido no conjunto significativo das obras.

Em função desses aspectos, o objetivo deste artigo é discutir, com base nas obras de Bakhtin e o Círculo, ocorrências que permitam a compreensão do sentido de contexto. Para tanto, trabalhamos com as obras publicadas no Brasil em língua portuguesa, assinadas pelos três autores: M. M. Bakhtin, V. N. Volóchinov e P. N. Medviédev. Em decorrência do fato de não termos acesso à língua russa para a comparação da tradução com vistas a uma maior segurança quanto à ocorrência de um termo em língua portuguesa, utilizamos um método de confrontação com outras traduções em inglês, francês e espanhol1 1 Obras consultadas: BAJTÍN, M. (MEDVEDEV, P. N.). El método formal em los estudios literarios. Tradução de Tatiana Bubnova. Prólogo de Amalia Rodriguéz Monroy. Madrid: Alianza, 1995. BAJTÍN, M.M. Hacia uma filosofia del acto ético. De los borradores y otros escritos. Tradução do russo de Tatiana Bubnova. Comentários de Iris M. Zavala y Augusto Ponzio. Rubí (Barcelona): Anthropos; Universidad de Puerto Rico, 1997. BAJTÍN, M. M. Estética de la creación verbal. Tradução de Tatiana Bubnova. Buenos Aires: Siglo XXI, 2002. BAKHTIN, M. Problems of Dostoevsky´s poetics. Edição e tradução de Caryl Emerson. Introdução de Wayne C. Booth. Menneapolis; London: University of Minnesota Press, 1984. BAKHTIN, M. M. Toward a Philosophy of the Act. Tradução e notas de Vadim Liapunov. Editado por Vadim Liapunov e Michael Holquist. Austin: University of Texas, 1995. BAKHTIN, M. M.; MEDVEDEV, P. N. The formal method in literary scholarship: A critical introduction to sociological poetics. Traduzido por Albert J. Wherle. Baltimore; London: The Johns Hopkins University Press, 1978. BAKHTINE, M. Le marxisme et la philosophie du language. Essai d’application de la méthode en linguistic. Tradução do russo e apresentação de Marina Yaguello. Prefácio de Roman Jakobson. Paris: Les Éditions de Minuit, 1977. BAKHTINE, M. Pour une philosophie de l'acte. Prefácio de S. Bocharov. Anotações de S. Averintsev. Tradução do russo de Ghislaine Capogna Bardet. Paris: Éditions L’Age D’Homme, 2003. BAKHTINE, M. Esthétique de la création verbale. Prefácio de Tzvetan Todorov. Tradução do russo de Alfreda Aucouturier. Paris: Gallimard, 2007. VOLOSHINOV, V. N. El signo ideológico y la filosofia del language. Tradução do inglês de Rosa María Rússovich. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1976. VOLOŠINOV, V. N. Freudianism: A Marxist Critique. Tradução de I. R. Titunik. London; New York: Verso, 2012. VOLOŠINOV, V N. Marxism and the philosophy of language. Tradução de Ladislav Matejka e I. R. Titunik. Massachusetts; London: Harvard University Press, 8. impressão, 2000. . Consideramos confiável e aceitável quando uma ocorrência pode ser detectada numa mesma posição sintática em outras duas línguas.

Além desta breve apresentação, em que estabelecemos os parâmetros para nossa proposta teórico-reflexiva, das considerações finais e referências, este artigo divide-se em três outras seções. A primeira seção, intitulada “Entre dois extremos que nunca se tocam, há um espaço da criação e da cocriação”, faz um movimento em direção ao entendimento do sentido de contexto enquanto espaço de produção de sentidos. A segunda seção, intitulada de “Formas de comunicação e o lugar da produção e da circulação de sentidos”, responde ao problema do estudo da relação entre manifestações comunicativas e seus contextos. Na terceira e última seção, intitulada “O contexto do enunciado, o contexto único e singular, o contexto discursivo, o contexto estético e o contexto extraverbal”, trataremos especificamente de quatro formas contextuais correspondentes a quatro manifestações comunicativas.

1 Entre dois extremos que nunca se tocam, há um espaço da criação e da cocriação

Medviédev (2019)MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019., em suas reflexões acerca das relações entre superestrutura e base econômica, dialoga criticamente com correntes do pensamento científico vigentes no período em que escreve seu texto. Essas correntes tendem a considerar uma relação direta e mecânica entre as mudanças ocorridas na base econômica e as ideologias vigentes. Isso implica dizer que deslocamentos ideológicos se refletem direta e verticalmente nas ações da base econômica e vice-versa. Este problema, apresentado por Medviédev (2019)MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019. como uma espécie de erro teórico-metodológico, desconsidera a possibilidade da existência de espaços sociais em que as ideologias entram em circulação e, por conseguinte, são retrabalhadas, ressignificadas e deslocadas. O autor advoga que, naquele momento, o estudo desses espaços sociais de produção e de circulação de sentidos ainda se encontrava em “estado embrionário” (MEDVIÉDEV, 2019, p.43MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.), tendo sido muito pouco explorado em suas particularidades, constituindo-se em “uma espécie de ruptura, um campo nebuloso e instável que cada pesquisador atravessa por sua conta e risco” (MEDVIÉDEV, 2019, p.43MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.).

Medviédev (2019)MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019. entende que esses espaços, a que denomina de campos da criação ideológica, devem ser estudados em suas especificidades, considerando-se os “aspectos qualitativos de cada campo da criação ideológica – ciência, arte, moral, religião” (MEDVIÉDEV, 2019, p.43MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.). Ocorre, entretanto, que pesquisadores passam “por esse campo, fechando os olhos para toda a dificuldade e obscuridade” (MEDVIÉDEV, 2019, p.43MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.), desconsiderando o fato de que cada um desses campos tem sua “linguagem, com suas formas e métodos, suas leis específicas de refração ideológica da existência comum” (MEDVIÉDEV, 2019, p.44MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.). De acordo com o autor, o pensamento científico daquele instante histórico parte de um pressuposto estático e abstrato acerca dos espaços de produção de sentidos, desconsiderando a diversidade fundamental da existência desses espaços em sua função de criação e cocriação ideológicas.

Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. faz um movimento parecido com o ponto de vista de Medviédev quando critica perspectivas científicas orientadas ao entendimento mecanicista em respeito à circulação e produção de sentidos de materiais ideológicos sígnicos que se estabelecem entre a superestrutura e a base. Dito de outra forma, existe um problema na não observância do espaço de produção de sentidos que se situa entre os variados materiais ideológicos que constituem palavra, escultura, desenho, pintura, música etc., e os sistemas ideológicos estabelecidos, a literatura, a arte, o direito etc. Quando esses materiais são observados isoladamente, destituídos de seu campo de circulação, retirados do “contexto ideológico integral e unificado” (VOLÓCHINOV, 2017, p.104VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), perdem seu valor de signos ideológicos representantes de uma época, de um posicionamento histórico, e passam a valer apenas em sua estrutura formal, como materiais brutos sem valor ideológico. Entre a base e a superestrutura existe uma “série de esferas qualitativamente distintas, cada uma delas com suas próprias leis específicas e singularidade” (VOLÓCHINOV, 2017, p.105VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.; itálicos no original). Assim, os deslocamentos de sentido ocorridos tanto na base quanto nos sistemas ideológicos precisam levar em consideração “toda a diferença qualitativa dos campos em interação e observar todas as etapas que acompanham essa mudança” (VOLÓCHINOV, 2017, p.104VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.; itálicos no original).

Nesse movimento de produção de sentidos, a ideologia do cotidiano tem papel determinante, porque permite que qualquer material sígnico, seja uma palavra ou uma obra de arte, flua em sentidos por meio do tenso processo dialógico por que passa em cada esfera de criação ideológica. O material sígnico “deve interagir estreitamente com a ideologia do cotidiano em transformação, preencher-se por ela e nutrir-se de sua seiva nova” (VOLÓCHINOV, 2017, p.214VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), promovendo, dessa maneira, descolamentos tanto nos sistemas ideológicos constituídos quanto na base. O autor percebe a ideologia do cotidiano como um espaço tenso de circulação, criação e cocriação de valores ideológicos, pois interage tanto com a base quanto com as superestruturas.

Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. percebe duas camadas de circulação de discursos na ideologia do cotidiano: uma inferior e outra superior. A camada inferior diz respeito àqueles discursos que circulam na vivência do dia a dia, nas interações imediatas e rápidas pelas quais passamos constantemente. Nesse caso, “essa vivência gerada por uma situação instantânea não terá nenhuma chance de adquirir força e influência sociais posteriores” (VOLÓCHINOV, 2017, p.214VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.); isto é, dificilmente essas vivências ocasionais e rápidas, ocorridas na base, interferirão nos sistemas ideológicos constituídos, gerando-lhes alguma modificação ou deslocamento, dada a distância em que se encontram desses sistemas. Já as camadas superiores da ideologia do cotidiano, formadas por esferas mais complexamente organizadas, por exemplo, a esfera literária, a imprensa, a esfera científica, estão mais próximas dos sistemas ideológicos constituídos e, consequentemente, exercem mais proximamente influência da base sobre a ideologia constituída. Essas camadas superiores “são mais substanciais, responsáveis e possuem um caráter criativo” (VOLÓCHINOV, 2017, p.215VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) e, portanto, devem ser observadas em seus movimentos dialógicos.

Ocorre que a interferência da ideologia do cotidiano de nível superior nos sistemas ideológicas constituídos não é direta, mas gradual e constante, pois a dinâmica de produção de sentidos advinda dos sistemas ideológicos também exerce influência sobre os materiais ideológicos da camada superior da ideologia do cotidiano. As novas criações ideológicas, “por mais revolucionárias que sejam, sofrem influência de sistemas ideológicos já formados, assimilando parcialmente as formas acumuladas, as práticas e abordagens ideológicas” (VOLÓCHINOV, 2017, p.215VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) existentes. Desse modo, o estudo da produção de sentidos “não será uma correspondência externa de dois fenômenos ocasionais e que se encontram em diferentes planos, mas um processo de formação dialética de uma sociedade real que tem início na base e termina nas superestruturas” (VOLÓCHINOV, 2017, p.104VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.).

Bakhtin (2010 [1924])BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. traz o mesmo tipo de imagem no tratamento da produção de sentidos quando propõe reflexões acerca da relação entre forma e conteúdo, dizendo que forma se encontra na vida e conteúdo em domínios da ciência, da cultura, da arte, da história. Existem dois mundos distintos. A um deles, de caráter ideológico, pertencem os conteúdos como possibilidades. A outro, de caráter concreto, correspondem os conteúdos relativos à vida em funcionamento. O mundo da vida “é o único mundo em que cada um de nós cria, conhece, contempla, vive e morre” (BAKHTIN, 2010, p.43BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.). Esses dois mundos devem se encontrar no plano unitário e comum do acontecimento para que a forma, a vida ganhe sentido e os conteúdos, as ideologias constituídas ganhem forma; isto é, o plano unitário do acontecimento, que se situa na ação refletida e situada, permite que forma e conteúdo constituam um todo de sentido. De acordo com o autor, o plano unitário é o espaço de produção de sentidos único e concreto em que há superação da “perniciosa separação e a mútua impenetrabilidade entre cultura e vida” (BAKHTIN, 2010, p.44BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.), constituindo-se no único modo de promover o encontro desses dois “mundos absolutamente incomunicáveis e mutuamente impenetráveis” (BAKHTIN, 2010, p.43BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.).

Observamos que os autores reconhecem a existência de um campo, uma esfera, um plano onde sentidos são produzidos, valores e ações são ressignificadas. Esses espaços interagem com dois extremos, que se inter-relacionam mutuamente, mas não diretamente ou mecanicamente, pois tudo que circula dentro desses espaços, desde a palavra até uma obra de arte, é comentado, discutido, avaliado, rejeitado, aceito, revisado etc. Segundo Bakhtin (2016 [1979], p.59)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70., isso acontece

porque a nossa própria ideia – seja filosófica, científica, artística – nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos dos outros, e isso não pode deixar de encontrar seus reflexos também nas formas de expressão verbalizada do nosso pensamento.

A dinâmica da construção de sentidos tem nesses espaços da criação ideológica um complexo conjunto, dialogicamente constituído, que não permite o encontro direto dos extremos. Os dois extremos são percebidos como os sistemas ideológicos constituídos e a base socioeconômica. Ao primeiro, correspondem a cultura, a religião etc.; e, ao segundo, corresponde a vida cotidiana. Entre o mundo sensível, correspondente ao universo dos objetos presentes no mundo, e os sistemas ideológicos que orientam os valores sociais atribuídos aos objetos, transformando-os em signos ideológicos, há um espaço opaco, dialogicamente constituído, preenchido por meio de “formas peculiares de comunicação social” (MEDVIÉDEV, 2019, p 53MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.).

2 Formas de comunicação e o lugar da produção e da circulação de sentidos

Medviédev (2019, p.50)MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019. considera que a criação ideológica se realiza concretamente no espaço da comunicação social, constituindo-se no meio pelo qual “um fenômeno ideológico adquire, pela primeira vez, sua existência específica, seu significado ideológico, seu caráter de signo”. Disso decorrem as formas de comunicação social instituídas e válidas para um grupo social, pois “uma coletividade possuidora de percepção ideológica cria formas específicas de comunicação social” (MEDVIÉDEV, 2019, p.53MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.), que correspondem às relações dialógicas estabelecidas entre um locutor (falante, autor, escritor, poeta etc.) e seu auditório visado, que reage ao movimento do locutor.

Para tanto, o autor aponta duas características constitutivas presentes em qualquer espaço de comunicação social: a “orientação mútua entre pessoas” (MEDVIÉDEV, 2019, p.56MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.) e a relação social que promove a intercompreensão. A primeira característica, a orientação mútua entre pessoas, considera que “o homem individual e isolado não cria ideologia” (MEDVIÉDEV, 2019, p.49MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.), por isso a importância da comunicação social na circulação de sentidos dentro do espaço de criação e cocriação. A comunicação social torna-se o agente vivo do processo de construção e reconstrução de sentidos, pois permite que os signos em constante movimento tornem-se “parte da realidade que circunda o homem” (MEDVIÉDEV, 2019, p.49MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.). A segunda característica da comunicação social é a capacidade de compreensão social de um signo, ou melhor dizendo, “quanto mais complexa, diferenciada e organizada for essa orientação tanto mais essencial e profundo será o conhecimento” (MEDVIÉDEV, 2019, p.56MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.).

Volóchinov (2017, p.96)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. segue a mesma direção em relação à relevância da comunicação social quando reflete acerca da circulação do “material sígnico”, enfatizando que a comunicação social se constitui entre indivíduos que “sejam socialmente organizados, ou seja, componham uma coletividade” (VOLÓCHINOV, 2017, p.97VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Dentre as formas de comunicação social possíveis, destacamos a comunicação ideológica ou sígnica, por onde circulam os signos específicos decorrentes da “interação sígnica de uma coletividade” (VOLÓCHINOV, 2017, p.98VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Embora essa forma de comunicação exista para quaisquer esferas ideológicas, pois suas leis correspondem àquelas da “comunicação sígnica” (VOLÓCHINOV, 2017, p.98VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) em geral, a produção de sentidos da comunicação sígnica ocorre distintamente para “uma esfera ideológica” (VOLÓCHINOV, 2017, p.99VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) específica, isto é, cada esfera ou campo ideológico “possui seu próprio material ideológico e forma seus signos e símbolos específicos inaplicáveis a outros campos” (VOLÓCHINOV, 2017, p.99VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). De acordo com Volóchinov (2017, p.99)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., “é justamente no material da palavra que se pode explicar, do melhor modo possível, as principais formas ideológicas da comunicação sígnica”, já que a palavra é um signo ideológico capaz de circular em todas as esferas ideológicas, isto é, sujeita às mesmas leis da comunicação sígnica.

Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. traz à reflexão a produção de sentidos que ocorre na comunicação artística ou estética, entendida como de natureza e organização complexa, pois a obra de arte decorrente desse processo de comunicação torna-se única, resultado do posicionamento ético-estético do observador. Isso decorre do fato de a obra de arte, resultado da comunicação artística, concentrar em si tanto os valores sócio-históricos visados pelo autor quanto os valores sócio-históricos visados pelo mesmo autor para o seu auditório real ou imaginado, com quem trava esse diálogo ético-estético. Em outras palavras, não somente o autor torna-se “membro desta arquitetônica” (BAKHTIN, 2010, p.132BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.), mas também inclui na obra o próprio contemplador, imaginado ou previsto, o que implica dizer que a obra de arte contém dentro de si o gérmen de uma resposta.

Além da comunicação artística ou estética, Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70., posteriormente, menciona a comunicação cultural, que ocorre em todas as esferas de produção, circulação e recepção de linguagens. Esse tipo de comunicação implica um indivíduo específico com pleno domínio do “discurso em diferentes campos da comunicação cultural” (BAKHTIN, 2016, p.41BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.), isto é, o indivíduo da comunicação cultural consegue interagir adequadamente em diversos embates de sentido com seus outros, entendidos como uma obra de arte, um projeto científico, um encontro socialmente ou formalmente estruturado etc. Este é um indivíduo que “sabe ler um relatório, desenvolver uma discussão científica, fala muito bem sobre questões sociais” (BAKHTIN, 2016, p.41BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.).

Isso não quer dizer que esse mesmo indivíduo esteja apto a sair-se bem em quaisquer esferas da comunicação, podendo não ser bem-sucedido em conversas cotidianas, cuja “composição é muito simples” (BAKHTIN, 2016, p.41BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.). Pode acontecer que esse indivíduo “em uma conversa mundana cal(a)[e] ou interv(ém)[enha] de forma muito desajeitada” (BAKHTIN, 2016, p.41BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.), porque a comunicação cultural pressupõe um indivíduo que se ocupe da produção de discursos em campos específicos do conhecimento e da cultura. Os discursos produzidos por esse indivíduo da comunicação cultural correspondem àqueles que circulam mais proximamente à ideologia do cotidiano em nível superior, isto é, em suas formas mais estruturadas e próximas das superestruturas. Além disso, esse mesmo indivíduo pode ter como interlocutor direto outro indivíduo, posicionado em um tempo e espaço outro a quem são direcionados esses discursos culturalmente constituídos. Mesmo assim, segundo Bakhtin (2016, p.63)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.,

Ao falar, sempre levo em conta o campo aperceptivo da percepção do meu discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a par da situação, dispõe de conhecimentos especiais de um campo cultural da comunicação; levo em conta as suas concepções e convicções, os seus preconceitos (do meu ponto de vista), as suas simpatias e antipatias.

É inegável o fato (e não poderíamos deixar de mencioná-lo) que a comunicação social, a comunicação sígnica, a comunicação artística e a comunicação cultural estão contidas na comunicação discursiva, que, segundo Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70., ocorre entre quaisquer indivíduos socialmente organizados nas diversas esferas ou campos de atuação humana. A comunicação discursiva pode se constituir da produção, circulação e recepção de enunciados mais simples, ocorridos nas manifestações discursivas do dia a dia, entre um “subordinado, o chefe, um inferior, um superior, uma pessoa íntima, um estranho” (BAKHTIN, 2016, p.62-63BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.). Essa forma de comunicação pode implicar a produção de enunciados mais complexos, decorrentes de uma esfera onde se encontra “um público mais ou menos diferenciado, um povo, os contemporâneos, os correligionários, os adversários e inimigos” (BAKHTIN, 2016, p.62BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.). Em todos esses casos, percebemos o papel responsivo ativo do outro como “traço essencial (constitutivo)” (BAKHTIN, 2016, p.62BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.) desse tipo de comunicação.

3 O contexto do enunciado, o contexto único e singular, o contexto estético e o contexto extraverbal

O “processo complexo e amplamente ativo da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2016, p.24BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.) instaura o contexto do enunciado, cujas fronteiras são, de um lado, o locutor, que toma a palavra e a orienta a seu interlocutor e, de outro, o próprio interlocutor, que responde ativamente às demandas instauradas pelo locutor primeiro; isto é, “os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunicação discursiva são definidos pela alternância dos sujeitos do discurso, ou seja, pela alternância dos falantes” (BAKHTIN, 2016, p.29BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.; itálicos no original). O locutor toma a palavra, estabelecendo seu momento de dizer, seu querer-dizer e, ao perceber o esgotamento do objeto de sentido do locutor, o interlocutor estabelece um processo de resposta ativa em que “o ouvinte se torna falante” (BAKHTIN, 2016, p.25BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.). Essa reação também pode ser menos imediata em decorrência de enunciados mais complexos exigirem, muitas vezes, outros movimentos de interlocução, porém “cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente entendido, responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte” (BAKHTIN, 2016, p.25BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.). Assim, segundo Bakhtin (2016, p.29)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.,

Todo enunciado – da réplica sucinta (monovocal) do diálogo cotidiano ao grande romance ou tratado científico – tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados dos outros; depois do seu término, os enunciados responsivos de outros.

Com as fronteiras do enunciado definidas como a alternância dos participantes de uma interação, dois componentes principais constituem esse tipo de contexto: a conclusibilidade e os tons avaliativos. A conclusibilidade, com seus três eixos de sentido: a exauribilidade semântico-objetal, a vontade de sentido dada pelo locutor e as formas típicas do acabamento do gênero, oferece elementos para a orientação do enunciado em direção à compreensão ativa do interlocutor. Isso quer dizer que o locutor orienta seu enunciado a um interlocutor visado ou previsto e, ao mesmo tempo, abre-lhe espaço para a “possibilidade de responder a ele, em termos mais amplos, de ocupar em relação a ele uma posição responsiva” (BAKHTIN, 2016, p.35BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.; itálicos no original). Já os tons avaliativos produzidos pela entonação do locutor promovem as colorações necessárias ao enunciado para que o interlocutor visado inicie imediatamente seu processo de compreensão ativa e responsividade posterior. Desse modo, o contexto do enunciado na comunicação discursiva não se relaciona à possibilidade única do reconhecimento e à transmissão da forma linguística, mas à “compreensão em um contexto concreto, à compreensão da sua significação em um enunciado” (VOLÓCHINOV, 2017, p.177VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.).

Trataremos dos três eixos constitutivos da conclusibilidade: a exauribilidade semântico-objetal, a vontade de sentido dada pelo locutor e as formas típicas do acabamento do gênero. Esses três eixos estabelecem uma confluência entre forma e conteúdo que indissoluvelmente produzem um sentido constituído concretamente dentro do espaço e tempo em que locutor e interlocutor se encontram. É relevante lembrar que forma e conteúdo estão unidos não como elementos harmônicos, mas em tensão, já que o sentido é produzido na “contraposição entre forma e conteúdo” (MEDVIÉDEV, 2019, p.96MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.), isto é, na orientação dialógica do locutor para uma forma e para um conteúdo, considerando seu interlocutor visado.

O primeiro elemento constitutivo do eixo da conclusibilidade, a exauribilidade semântico-objetal, orienta a forma e o conteúdo em duas direções. De um lado, o eixo permite o diálogo entre o locutor e seu objeto de sentido, pois o locutor não traz diretamente o objeto de sentido para seu enunciado, mas traz um ponto de vista situado sobre ele, isto é, responde ativamente a esse objeto em seu enunciado, concordando com ele, rejeitando-o etc. No contexto do enunciado da comunicação discursiva, o objeto não se exaure por si mesmo, ele vive nas correntes de discursos que o dizem, que o interpelam. Entretanto, em sua orientação para o enunciado, em que forma e conteúdo entram em tensão dialógica, o conteúdo exaure-se momentaneamente em uma forma, abrindo espaço para ser contestado, respondido. Além disso, o mesmo objeto de sentido deve ser de conhecimento comum entre locutor e interlocutor, isto é, deve ser socialmente constituído e circulante em determinada época e lugar. Nas palavras de Volóchinov (2019, p.120)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146.,

aquilo que eu sei, que eu vejo, que eu quero e que eu amo não pode ser subentendido. Apenas aquilo que todos nós, os falantes, conhecemos, vemos e amamos e reconhecemos, aquilo que une todos nós, pode se tornar parte subentendida do enunciado.

O segundo elemento do eixo da conclusibilidade é o projeto discursivo ou vontade discursiva do falante que permite ao interlocutor perceber “a totalidade do enunciado, seu volume e suas fronteiras” (VOLÓCHINOV, 2019, p.37VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146.). As palavras, expressões, formas linguísticas etc. são trazidas para o enunciado pelo locutor com o objetivo de fazer o interlocutor sentir “a intenção discursiva ou vontade de produzir sentido por parte do falante” (VOLÓCHINOV, 2019, p.37VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146.; itálicos no original). Aos interlocutores, desse modo, é aberta a possibilidade de resposta ativa desde as primeiras palavras do locutor. Isso decorre porque, em sendo o enunciado direcionado ao interlocutor e este contendo o gérmen da resposta, o interlocutor percebe desde as primeiras palavras o querer-dizer de seu locutor. O terceiro elemento, constitutivo do eixo da conclusibilidade, relaciona-se às formas típicas de acabamento do gênero que existem e circulam em todas as esferas de atuação humana, podendo ser mais ou menos plásticas, isto é, permitindo ou não um maior ou menor grau de interferência do locutor. Quanto mais plásticas forem as formas do gênero do acabamento, mais possibilidades de criação e cocriação se abrem.

Os tons valorativos dados ao enunciado, segundo componente do contexto do enunciado na comunicação discursiva, estão voltados para duas orientações; “essa orientação social dupla determina e atribui sentido a todos os aspectos da entonação” (VOLÓCHINOV, 2019, p.127VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146.; itálicos no original). A primeira orientação relaciona-se à reação do locutor aos discursos circulantes acerca do objeto de sentido que constitui seu enunciado. Isto é, o locutor orienta sua entonação “para o objeto do enunciado, como um terceiro participante vivo, o qual a entonação xinga, acaricia, aniquila ou eleva” (VOLÓCHINOV, 2019, p.127VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146.). Considerando que o locutor é também um respondente ativo de discursos circulantes nas esferas onde atua, ao construir seu enunciado, o locutor instaura responsividade em relação a outros locutores, situados em outros tempos e espaços. Segundo Bakhtin (2016, p.57)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.,

Todo enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela esfera de comunicação discursiva. Todo o enunciado deve ser visto como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo.

A segunda orientação dada por meio dos tons valorativos refere-se à expectativa do locutor pela resposta ativa do interlocutor visado, o que implica a inserção por parte do locutor de possíveis valores do horizonte do interlocutor no contexto de produção do próprio enunciado. Isso quer dizer que o locutor “constrói seu enunciado em território alheio, no campo aperceptivo do ouvinte” (BAKHTIN, 2015 [1977], p.56BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Teoria do Romance I: A estilística [1977]. Tradução, prefácio e notas de Paulo Bezerra. Organização da edição russa por Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015, pp.19-242.), “é como se a palavra vivesse na fronte do meu contexto e do contexto do outro” (BAKHTIN, 2015, p.57BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. edição. São Paulo: Forense Universitária, 2015.).

Essa relação dialógica entre contextos aponta para o problema do contexto único e singular que ocorre no processo de comunicação sígnica, cujas fronteiras são a compreensão ativa, porta de entrada do signo ideológico na consciência do interlocutor, e entonação avaliativa do interlocutor, que colore o signo ideológico de tons variados visando ao auditório real ou imaginado a quem o signo se destinará posteriormente. Em relação à compreensão ativa ocorrida no contexto único e singular, podemos destacar cinco características principais: consciência sígnica e social, a assimilação criadora, a possibilidade de pensar eticamente, o embate entre signos e a validação do novo signo.

A primeira característica, a consciência sígnica e individual, refere-se, segundo argumenta Volóchinov (2017, p.116)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., à impossibilidade de o psiquismo funcionar como algo essencialmente e unicamente subjetivo, porque “não há psiquismo fora do material sígnico”. Em outras palavras, os signos ideológicos circulantes e válidos na consciência do indivíduo não nascem e circulam dentro de um movimento psíquico somente, isto é, não se restringem apenas à consciência individual. Os signos ideológicos existem no “mundo dos signos” (VOLÓCHINOV, 2017, p.93VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.; itálicos no original), circulando em todos os campos da criação ideológica, refletindo e refratando a realidade de diferentes modos dependendo do campo de circulação, pois “cada campo possui sua função específica na unidade da vida social” (VOLÓCHINOV, 2017, p.94VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.).

A segunda característica, a assimilação criadora do signo, corresponde ao “processo de assimilação – mais ou menos criador – das palavras do outro” (BAKHTIN, 2016, p.54BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.; itálicos no original). Na compreensão ativa do signo, dentro do contexto único e singular, correspondente à consciência sígnica do indivíduo, os signos ideológicos são percebidos como signos alheios, palavras dos outros que se lhe apresentam em “um grau vário de alteridade e assimilabilidade” (BAKHTIN, 2016, p.54BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.). No segundo momento, o indivíduo passa a utilizar essas palavras, signos ideológicos por natureza, de forma a indicar que esses signos ideológicos vieram de fora, são-lhes alheios, possuindo ecos “de uma expressão individual alheia” (BAKHTIN, 2016, p.55BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.). Em um terceiro instante, a assimilação mais ou menos criadora ocorre totalmente quando “assimilamos, reelaboramos e reacentuamos” (BAKHTIN, 2016, p.54BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.) as palavras, os signos ideológicos, de tal forma que não percebemos mais que esses signos foram um dia de outrem.

Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em três aspectos: como palavra da língua neutra e não pertencente a ninguém; como palavra alheia dos outros, cheia de ecos de outros enunciados; e, por último, como a minha palavra, porque, uma vez que eu opero com ela em uma situação determinada, com uma intenção discursiva determinada, ela já está compenetrada na minha expressão (BAKHTIN, 2016, p.53BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, pp.11-70.).

A terceira característica do contexto único e singular, o pensar eticamente, refere-se à possibilidade, segundo Bakhtin (2010, p.90)BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010., de o contato entre cultura e vida somente ocorrer por meio do indivíduo, “a partir do interior de mim mesmo enquanto participante obrigatório” desse acontecimento. O pensar eticamente permite que se olhe, “como um Jano bifronte, em duas direções opostas” (BAKHTIN, 2010, p.43BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.): de um lado, há os sistemas ideológicos válidos e circulantes para uma comunidade e, de outro, há o indivíduo que pensa a vida, e, ao pensar, orienta-se para a “a unidade objetiva de um domínio da cultura e para a singularidade irrepetível da vida que se vive” (BAKHTIN, 2010, p.43BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.). Dessa perspectiva, o indivíduo posiciona-se no entremeio entre o mundo das ideologias (cultura, ciências etc.) e a vida vivida, construindo sentidos para si mesmo e para a sociedade em que vive, pois “cada um de meus pensamentos, com o seu conteúdo, é um ato singular responsável meu; é um dos atos de que se compõe a minha vida singular inteira” (BAKHTIN, 2010, p.44BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.). Cada indivíduo constitui-se em um “contexto unitário e singular de uma consciência viva” (BAKHTIN, 2010, p.90BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.), dentro do qual o signo ideológico desenvolve-se por meio de um contínuo processo que parte da compreensão, passa pela relação desse signo com os signos adquiridos pelo indivíduo e termina com a assimilação ativa. O falante, ao ser confrontando com um signo, assimila-o ativamente, o que permite que esse signo ganhe outras nuances de sentido, inserindo-se ao repertório sígnico desse falante. O signo vive em constante “processo de renovação de sua compreensão, vivência e assimilação, ou seja, em sua inserção contínua no contexto interior” (VOLÓCHINOV (2017, p.128)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017..

A quarta caraterística, entendida como embate de sentidos entre os signos internos à consciência individual e o signo externo, aponta para o momento em que o signo penetra a consciência em busca da resposta ativa do interlocutor. A compreensão ativa ocorre no embate do signo ingressante na consciência com “outros signos já conhecidos; em outras palavras, a compreensão responde ao signo e o faz também com signos” (VOLÓCHINOV, 2017, p.95VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). O resultado disso são deslocamentos de sentidos em todos os signos ideológicos presentes na consciência, pois nem o signo que acabou de entrar na consciência, nem os signos anteriormente circulantes no espaço contextual da consciência mantêm-se os mesmos. Esses deslocamentos constantes são decorrência da tensão que se constitui durante esse choque de sentidos, porém ainda é necessária uma validação desse novo sentido “a partir da orientação para um sistema ideológico” (VOLÓCHINOV, 2017, p.128VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) válido e compartilhado por um grupo social.

Esta se caracteriza como a quinta característica desse contexto, isto é, é a validação do novo signo, momento em que o signo ideológico, banhado “por todos os lados nos signos interiores, ou seja, na consciência” (VOLÓCHINOV, 2017, p.128VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), por isso renovado pelos embates sofridos, precisa ser validado pelos sistemas ideológicos vigentes. O processo de compreensão ativa também “significa perceber o signo dentro de um sistema ideológico correspondente” (VOLÓCHINOV, 2017, p.131VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) cujos valores já se constituíram em “signos ideológicos absorvidos por mim anteriormente” (VOLÓCHINOV, 2017, p.128VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Isso quer dizer que o universo de valores sociais circulante externamente também se encontra presente e vivo na consciência individual, o que implica dizer que a percepção de cada um acerca da realidade é individual e, ao mesmo tempo, coletiva. Ocorre que, durante o processo de validação do signo, os deslocamentos de sentido, ocorridos durante o embate com os signos internos, interferem na percepção do indivíduo acerca da realidade.

Isso nos leva ao outro extremo da fronteira do contexto único e singular na consciência do indivíduo, a entonação avaliativa, que “possui um papel criativo nas mudanças das significações” (VOLÓCHINOV, 2017, p.237VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), gerando mais cedo ou mais tarde uma réplica responsiva. Os novos valores, constituídos pelos sentidos decorrentes do embate ocorrido na consciência do indivíduo e já validados pelos sistemas ideológicos presentes na mesma consciência, precisam retornar à realidade concreta, ao mundo vivido do indivíduo, ao mundo exterior. O papel da avaliação, que corresponde à orientação dada ao signo em função do interlocutor, isto é, para o auditório social visado ou imaginado do indivíduo, prepara o signo para retornar à realidade social, externa, focalizando os interlocutores visados pelo locutor. Isso quer dizer que, tendo em vista um auditório social real ou previsto com quem vai entrar em estado de interação, o signo que passou pelo processo de compreensão é preparado para retornar ao mundo exterior. Para tanto, o indivíduo, antes interlocutor do direcionamento do signo de outrem, colore o novo signo com entonações avaliativas visando a seus próprios interlocutores, com o objetivo de buscar outras novas responsividades ativas.

Podemos dizer que a entonação avaliativa tem uma dupla função, pois visa à resposta ativa do auditório e focaliza os valores constituídos nos sistemas ideológicos vigentes. De um lado, a entonação avaliativa prepara o caminho responsivo do signo ideológico, que ainda se encontra na consciência, visando a esse outro interlocutor com o objetivo de instaurar um novo processo de compreensão na consciência alheia. De outro lado, a entoação avaliativa visa também ao estabelecimento de um diálogo responsivo com os sistemas ideológicos vigentes. Esse diálogo integra os sistemas ideológicos visados pelo locutor no centro da produção de sentidos, o que implica dizer que as nuances de sentidos dos tons avaliativos colocados nos signos ideológicos objetivam estabelecer um ponto de tensão com esses sistemas, produzindo outros sentidos também no processo de significação das ideologias constituídas.

Os valores sociais são retrabalhados na consciência ideológica do sujeito no espaço da criação ideológica e, posteriormente, devolvidos à circulação externa. Esse movimento garante a manutenção e evolução dos sistemas ideológicos constituídos por meio da renovação contínua de seus valores. Esse é o processo de criação, recriação e cocriação produzido dentro do contexto único e singular que se constitui na consciência individual, decorrente da comunicação sígnica, em seu trabalho de promoção da mediação entre o mundo sensível e o mundo das ideologias, porque “tudo o que é universal e pertence ao sentido adquire o seu peso e obrigatoriedade somente em relação com a real singularidade” (BAKHTIN, 2010, p.102BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.).

O terceiro viés contextual de que trataremos neste artigo diz respeito ao contexto estético que funciona dentro da comunicação artística, organizando a obra por fora e também por dentro. Isso porque o contexto estético implicado nesta forma de comunicação aponta para uma estrutura contextual complexa, que parte do autor de uma obra de arte. A primeira fronteira tem, de um lado, o artista/autor de uma obra e, de outro, o público/auditório/leitor a quem a obra se destina; ou seja, os dois extremos deste contexto estético correspondem ao autor e seu interlocutor visado. Para a discussão da segunda e da terceira fronteiras do contexto estético, precisamos levar em consideração que “cada arte, dependendo do material e de suas possibilidades construtivas, tem suas maneiras de acabamento” (MEDVIÉDEV, 2019, p.194MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.). Queremos dizer com isso que, em decorrência das diversas formas de acabamento dentro de dado campo da comunicação estética, nossas observações e reflexões serão voltadas a apenas duas manifestações estéticas: romance e poesia; deixaremos as reflexões acerca de outras manifestações para outro momento. As fronteiras contextuais do romance constituem-se pelo autor da obra, de um lado, e, de outro, pelas personagens circulantes na obra. Já as fronteiras contextuais da poesia correspondem ao “herói lírico (o autor objetivado)” (BAKHTIN, 2010, p.131BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.) e seu interlocutor, o outro constituído pelo próprio herói lírico.

A primeira manifestação do contexto estético tem suas fronteiras definidas pela relação dialógica estabelecida entre autor e seu interlocutor, seu auditório real ou visado, e é “inseparável do acontecimento de comunicação” (MEDVIÉDEV, 2019, p.183MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.). Nesse aspecto, o contexto estético assemelha-se muito proximamente às características constitutivas do contexto do enunciado na comunicação discursiva em que o autor espera uma resposta de seu interlocutor por meio da obra de arte. A distinção entre o contexto estético e o contexto do enunciado está no tratamento do objeto de sentido da obra, que dá ao enunciado artístico seu estatuto de arte, pois este objeto não somente está tematizado pela obra, mas também se encontra materializado como parte da relação entre forma e conteúdo na própria obra. O objeto tematizado materializa-se como parte do todo acabado da obra, constituindo “uma totalidade típica do enunciado artístico, e, ainda, uma totalidade essencial e acabada” (MEDVIÉDEV, 2019, p.193MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.). A obra de arte esgota totalmente seu objeto de sentido, que, por sua vez, fecha-se em si mesmo apontando para a própria construção estética da obra de arte. Medviédev (2019, p.194)MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019. argumenta que “a possibilidade de se ter um acabamento é uma particularidade específica da arte que a diferencia de todos os outros campos da ideologia”, porque nesses outros campos o objeto de sentido é discursivamente constituído, portanto, “determinado por causas externas e não pelo acabamento interno e exaurido do próprio objeto” (MEDVIÉDEV, 2019, p.194MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.) como na obra de arte.

Dito de outro modo, na obra de arte, forma, conteúdo e objeto temático estão organicamente fixados, por isso, a obra de arte torna-se única, moldada no material que a constitui. Desse ponto de vista, forma, conteúdo e objeto temático de uma obra de arte não podem ser retrabalhados, remodelados, sem que a unidade da obra de arte se desfaça e ela se torne outra. A obra de arte produzida em um momento resulta da orientação do autor para fora, para “os ouvintes e os receptores, e para determinadas condições de realização e de percepção” (MEDVIÉDEV, 2019, p.195MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.). Ao mesmo tempo, ela também é resultado concreto da orientação da obra para a “vida, como se diz, por dentro, por meio de seu conteúdo temático” (MEDVIÉDEV, 2019, p.195MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.). Nas palavras de Medviédev (2019, p.199)MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019., “o artista consegue ver a vida de um modo que ela caiba, de maneira essencial e orgânica, no plano da obra”.

A segunda fronteira do contexto estético, que diz respeito às fronteiras no romance, coloca-nos frente a dois planos de construção de uma obra literária no que se refere à relação entre autor e personagem: o plano monológico e o plano polifônico. No contexto estético em que se materializa o plano monológico, encontramos, de um lado, o autor da obra, cuja concepção coloca cada personagem a serviço de um único ponto de vista, que corresponde ao ponto de vista do autor. Cada personagem construída nesse plano “age, sofre, pensa e é consciente nos limites daquilo que ela é, isto é, nos limites de sua imagem definida como realidade” (BAKHTIN, 2015, p.58BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. edição. São Paulo: Forense Universitária, 2015.). O plano monológico do autor em relação à obra implica um mundo constituído como mundo do autor na obra, em que tudo “é representado de uma mesma posição do autor” (BAKHTIN, 2015, p.81BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. edição. São Paulo: Forense Universitária, 2015.; itálicos no original), cuja voz espalha-se e se confunde com a voz das personagens. Em outras palavras, nenhuma das personagens situa-se em relação de igualdade com o autor, isto é, posicionam-se em posição inferior em relação ao plano do autor, vivendo “com a palavra do autor e com a verdade do autor” (BAKHTIN, 2015, p.82BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. edição. São Paulo: Forense Universitária, 2015.). O autor é o único que possui o excedente de visão total em relação às personagens e, por esse motivo, determina e controla o funcionamento e a circulação de ideias, opiniões e pontos de vistas. Todas as personagens, “com seus campos de visão, suas verdades, suas buscas e discussões, estão inseridas no todo monolítico-monológico do romance que remata a todas elas” (BAKHTIN, 2015, p.82BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. edição. São Paulo: Forense Universitária, 2015.; itálicos no original).

No contexto estético que corresponde ao plano polifônico, as personagens travam embates dialógicos entre si e com o autor, porque as “personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desses discursos diretamente significante” (BAKHTIN, 2015, p.5BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. edição. São Paulo: Forense Universitária, 2015.; itálicos no original). Isto é, as personagens constituem-se por meio de uma “multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis” (BAKHTIN, 2015, p.5BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. edição. São Paulo: Forense Universitária, 2015.; itálicos no original) que fazem circular valores próprios e estão em relação de igualdade entre si e com o autor, pois no contexto estético do romance polifônico “o dominante da representação da realidade circundante é o ponto de vista sob o qual o herói contempla esse mundo” (BAKHTIN, 2015, p.25BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. edição. São Paulo: Forense Universitária, 2015.).

A terceira fronteira do contexto estético relaciona-se à poesia e se constitui por um herói lírico que é responsável pelo enunciado poético e um interlocutor a quem o enunciado poético se dirige e que está fixado na obra. As duas fronteiras internas do contexto estético da poesia correspondem a “dois contextos de valores, dois pontos concretos que são correlatos e momentos concretos correlatos do existir” (BAKHTIN, 2015, p.131BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. edição. São Paulo: Forense Universitária, 2015.). Ocorre que nesse tipo de enunciado os contextos de valores, por mais variados que se apresentem, voltam-se sempre para o herói lírico, pois é pela voz do herói lírico que a fronteira estética se constitui. Desse modo, na poesia, o outro a quem o herói faz referência, “o segundo contexto, sem perder a própria independência, é, sobre o plano dos valores, abrangido pelo primeiro (é afirmado sobre o plano dos valores deste)” (BAKHTIN, 2015, p.131BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. edição. São Paulo: Forense Universitária, 2015.). Esses dois contextos valorativos, no entanto, não são independentes, pois “estão envoltos pelo contexto estético unificante e que afirma os valores, do autor-artista e contemplador” (BAKHTIN, 2015, p.131BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. edição. São Paulo: Forense Universitária, 2015.).

O autor-artista e o contemplador constituem as duas fronteiras máximas dentro das quais o contexto estético, com suas outras fronteiras, se constitui. Todos os movimentos das personagens são concretizados “simultaneamente também no contexto da vida do autor” (BAKHTIN, 2015, p.133BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. edição. São Paulo: Forense Universitária, 2015.), que se encontra em estado de interação com o contemplador, seu interlocutor previsto ou imaginado. Segundo Volóchinov (2019, p.125VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146.; itálicos no original), as entonações estabelecem uma relação “viva com o objeto do enunciado”, em que o contemplador se torna cúmplice, “uma espécie de testemunha e aliado” do autor. As entonações estão nos limites entre o verbal e extraverbal, entre o dito e o não-dito na obra acerca de determinado acontecimento, são compartilhamentos emotivo-volitivos entre autor e contemplador que podem ser ou explicitados na obra ou subentendidos, quando remetem a conhecimentos comuns entre os dois. Por isso, “toda a entonação se orienta em duas direções para o ouvinte, como cúmplice ou testemunha, e para o objeto do enunciado, como um terceiro participante, vivo” (BAKHTIN, 2015, p.127BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. edição. São Paulo: Forense Universitária, 2015.).

Chegamos ao último viés contextual de que trataremos neste artigo, o contexto extraverbal presente na comunicação cultural. Entretanto, sabemos que, por implicar uma relação dialógica com os valores da existência, o contexto extraverbal está presente em quaisquer tipos e formas de comunicação situada e orientada a um interlocutor. Segundo Volóchinov (2019, p.114-115)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146., a palavra, carregada de sentidos e presente em toda interação verbal, “deixa de ser um objeto autossuficiente e já não pode ser compreendida fora da situação social que a gerou” (VOLÓCHINOV, 2019, p.114-115VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146.), isto é, podemos observar o funcionamento do contexto extraverbal em qualquer manifestação discursiva em que a palavra circula.

As fronteiras que constituem o contexto extraverbal podem ser estabelecidas por meio da relação dialógica envolvendo dois participantes presentes na comunicação e definidos como um ‘eu’ e a “categoria axiológica mediadora de outro” (BAKHTIN, 2006 [1979], p.88BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. 4. ed., 2. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp.3-194.) que não é exatamente aquele a quem o locutor direciona seu enunciado. Trataremos primeiramente do ‘eu’, cujas primeiras pistas encontramos em Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., quando da discussão do autor acerca da primeira tendência do pensamento filosófico-linguístico no tratamento do problema da vivência centrada no ‘eu’. Para o autor, a vivência do eu, sem um auditório social a quem esse ‘eu’ possa orientar seu enunciado, “perde a sua forma ideológica” (VOLÓCHINOV, 2017, p.208VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Assim,

No limite, a vivência perde todas as potencialidades, todos os germes de orientação social e, consequentemente, também a sua forma verbal. Algumas vivências e até grupos inteiros podem se aproximar desse limite extremo, sendo privados de sua clareza e forma ideológica e demonstrando uma falta de enraizamento social da consciência.

Por esse motivo e ainda segundo Volóchinov (2017, p.208)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., esse ‘eu’ socialmente orientado está mais próximo do que pode ser denominado de vivência do nós, isto é, a “diferenciação ideológica e o aumento da consciência são diretamente proporcionais à firmeza e à convicção da orientação social” do indivíduo. Esse ‘eu’, da vivência do ‘nós’, corresponde a um ‘eu’ coletivamente constituído e orientado, pois “quanto mais unida, organizada e diferenciada for a coletividade na qual se orienta um indivíduo, tanto mais diversificado e complexo será seu mundo interior” (VOLÓCHINOV, 2017, p.209VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Volóchinov (2019, p.120)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146. retoma essa questão do ‘eu’ socialmente orientado ao tratar do papel da subjetividade na constituição das “representações, pensamentos, sentimentos” do falante, dizendo que “o subjetivo-individual recua para o segundo plano em benefício do sócio-objetivo” (itálicos no original). Podemos dizer com isso que o ponto de vista do indivíduo acerca de seu mundo aponta e responde a valores coletivos válidos para uma coletividade.

Dito de outro modo, o ‘eu’ não pode se constituir a partir da unidade interior somente, desvinculada da coletividade a que pertence, pois essa unidade interior somente pode produzir sentido para o próprio ‘eu’ e para os outros com quem interage se os valores, isto é, os sentimentos, pensamentos, desejos etc., existirem tanto para o próprio indivíduo quanto para os participantes dessa mesma sociedade. De acordo com Volóchinov (2019, p.120)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146.,

Aquilo que eu sei, que eu vejo, que eu quero e que eu amo não pode ser subentendido. Apenas aquilo que todos nós, os falantes, conhecemos, vemos, amamos e reconhecemos, aquilo que une todos nós, pode se tornar parte subentendida do enunciado.

Diremos, então, que esse ‘eu’, que se situa de um lado da fronteira contextual, é um ‘eu-nós’, pois está repleto de valores sociais que são dele ao mesmo tempo que são também de outros. No momento em que esse indivíduo, ‘eu-nós’, se insere na interação, orientando seus enunciados para um interlocutor, ele imediatamente dialoga com seus próprios valores sociais, respondendo às demandas que esses valores sociais lhe impõem. Por esse motivo, não podemos dizer que a outra fronteira desse contexto extraverval pode ser confundida com o interlocutor direto ou vislumbrado desse ‘eu-nós’. Ocorre que esse interlocutor também se torna um ‘eu-nós’, pois ele também dialoga com os mesmos valores sociais válidos para a coletividade a que pertence.

Volóchinov (2019)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146. oferece-nos alguns indícios que nos possibilitam as primeiras aproximações em direção ao outro extremo dessa fronteira, já que este extremo não deve ser confundido com o interlocutor direto ou visado do falante. Em primeiro lugar, o autor deixa-nos bem evidente que o interlocutor direto não é aquele a quem o locutor direciona a resposta valorativa. O interlocutor direto é testemunha ou aliado em relação aos enunciados produzidos por um locutor, ambos são ‘eu-nós’. Segundo o autor, em toda a relação dialógica envolvendo um locutor, ‘eu-nós’, e um interlocutor, também ‘eu-nós’, existe um terceiro participante a quem denomina de “personagem da obra verbal” (VOLÓCHINOV, 2019, p.125VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146.) que permite ao falante estabelecer uma relação dinâmica e viva com o objeto de sentido do enunciado por meio do diálogo com os valores sociais que dão sentido para esse objeto, colocando-o no tempo e no espaço da interação.

Bakhtin (2006)BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. 4. ed., 2. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp.3-194. também nos dá pistas para o entendimento desse terceiro participante ao tratar do outro como categoria mediador dos valores circulantes. Esta categoria se distingue do autor de uma obra de arte e de seu contemplador. Para Bakhtin (2006, p.88)BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. 4. ed., 2. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp.3-194., “o autor cria tecnicamente o objeto do prazer, o contemplador se proporciona passivamente esse prazer” e esse mediador axiologicamente participante do diálogo é visto como um outro, um por fora, que se constitui por valores éticos de que compartilham tanto autor quanto contemplador. Esses valores produzem sentido para o autor (eu-nós) e para o contemplador (eu-nós) mantendo o objeto vivo, presente e vibrante no momento da interação.

Ao tratar das formas externa e interna em relação à vida vivida, isto é, da vida de cada um em interação com os objetos do mundo e com próprio sentido da vida para si, Bakhtin (2006, p.93BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. 4. ed., 2. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp.3-194.; itálicos no original) argumenta que em ambos os casos o que entra em jogo são os valores que “são para mim na existência”. Essa existência somente pode ser compreendida como acontecimento, pois ela dá sentido à vida como vida vivida. Segundo o autor,

Minha imagem externa não pode vir a ser um elemento de minha caracterização para mim mesmo. Na categoria do eu, minha imagem externa não pode ser vivenciada como um valor que me engloba e me acaba, ela só pode ser assim vivenciada na categoria do outro, e eu preciso me colocar a mim mesmo sob essa categoria para me ver como elemento de um mundo exterior plástico-pictural e único (BAKHTIN, 2006, p.33BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. 4. ed., 2. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp.3-194.).

Chamaremos esse terceiro participante, que faz fronteira com o ‘eu-nós’, de “acontecimento da existência” (BAKHTIN, 2006, p.89BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. 4. ed., 2. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp.3-194.). Diferentemente da interlocução ocorrida entre participantes diretos, a interlocução com o acontecimento da existência aponta para valores sociais situados “no futuro, no desejado, no devido e não no dado autossuficiente do objeto em sua presença, em seu presente, em sua integridade, em sua já exequibilidade” (BAKHTIN, 2006, p.89BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. 4. ed., 2. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp.3-194.).

Para este artigo, refletiremos acerca de dois vieses referentes à circulação e produção de sentidos dentro desse espaço definido como contexto extraverbal: o horizonte comum de valores e a compreensão simpática. O horizonte comum de valores trata dos valores sociais que se constituem dentro do conjunto de valores comuns e acessíveis aos participantes no momento da interação. O segundo aspecto, a compreensão simpática, implica um “ativismo que vem de fora e visa ao mundo interior do outro” (BAKHTIN, 2006, p.94BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. 4. ed., 2. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp.3-194.).

Segundo Volóchinov (2019, p.119)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146., o horizonte comum entre locutor e interlocutor implica um conhecimento compartilhado que corresponde a subentendidos, ao “dito e o não dito”, presentes na palavra direcionada de um a outro. Isso é decorrência de a composição do enunciado se constituir de duas partes: “1) uma parte verbalmente realizada (ou atualizada) e 2) a subentendida” (VOLÓCHINOV, 2019, p.120VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146.). A parte verbalmente realizada refere-se aos elementos linguísticos, repetitivos e sistemáticos transmitidos de um falante a um ouvinte que garantem a unicidade da fala.

São justamente esses elementos idênticos – fonéticos, gramaticais, lexicais – e portanto normativos para todos os enunciados que proporcionam a unidade de dada língua e sua compreensão por todos os membros de dada coletividade (VOLÓCHINOV, 2017, p.155VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.; itálicos no original).

Ainda segundo Volóchinov (2019)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146., a parte subentendida não pode ser vista como um ato psíquico subjetivo, como um ponto de vista individual acerca de um evento linguístico. A parte subentendida deve ser de conhecimento comum e compartilhada entre um locutor, situado em seu tempo e espaço, e seu interlocutor, também situado em determinado tempo e espaço. O subentendido extrapola a relação meramente linguística e formal de uma língua, pois se refere àquilo que é comum entre locutor e interlocutor, aos valores compartilhados entre os dois. Em outras palavras, as emoções e os sentimentos somente podem ser compreendidos pelo outro se ambos os participantes pertencerem ao mesmo espaço de produção de sentidos.

É exatamente na percepção do não-dito tanto pelo locutor quanto pelo interlocutor que observamos o diálogo estabelecido com o acontecimento da existência, o terceiro participante da interação. Os valores circulantes no horizonte comum onde se situam locutor e interlocutor são trazidos para a interlocução e ressignificados em decorrência do posicionamento de cada um desses participantes frente ao acontecimento da existência. Esses valores retornam ao contexto extraverbal para entrarem novamente em outras interações, em um movimento contínuo de deslocamento de sentidos, de significação e de ressignificação.

As entonações do horizonte comum têm um papel primordial nesse processo, porque são elas que envolvem os valores sociais e históricos comuns com uma camada a mais de sentido. Porém, essa camada outra de sentido não está voltada para o interlocutor direto da interação, pois este compartilha da entonação utilizada. Essas entonações voltam-se para o terceiro participante, o acontecimento da existência, com quem os participantes diretos travam polêmica velada ou aberta. Segundo Volóchinov (2019, p.121)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146., as entonações utilizadas durante o diálogo com o terceiro participante apontam para avaliações acerca da realidade comum para os participantes diretos do diálogo, “as avaliações subentendidas não são emoções individuais, mas os atos socialmente lógicos e necessários” coletivamente orientados.

Volóchinov (2019, p.123)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146. afirma ainda que as entonações produzidas no horizonte comum do contexto extraverbal colocam a palavra “em contato direto com a vida”. As emoções individuais existem somente quando acompanham “o tom principal da avaliação social” (VOLÓCHINOV, 2019, p.121VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146.; itálicos no original), apoiando-se no “caráter partilhado das avaliações” (VOLÓCHINOV, 2019, p.120VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146.; itálicos no original), nos aspectos comuns da existência tanto do locutor quanto de seu interlocutor real ou imaginado. Volóchinov (2019, p.119-120VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, pp.109-146.; itálicos no original), argumenta que

Para nós, é importante outro aspecto do enunciado cotidiano: seja qual for, ele sempre conecta os participantes da situação, como coparticipantes que conhecem, compreendem e avaliam a situação do mesmo modo. Por conseguinte, o enunciado se apoia no fato de eles pertencerem real e materialmente à mesma parcela da existência, o que atribui a essa comunidade material uma expressão ideológica bem como um desenvolvimento ideológico posterior.

Chegamos ao segundo aspecto do horizonte extraverbal de valores de que trataremos neste artigo, a compreensão simpática. Segundo Bakhtin (2006, p.94)BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. 4. ed., 2. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp.3-194., na compreensão simpática, há “transferência do vivenciamento para um plano axiológico inteiramente distinto, para uma nova categoria de valorização e informação” acerca do que se compreende a respeito da vivência interior do outro. Isso quer dizer que a maneira como percebemos e lidamos com os sentimentos alheios não ocorre da mesma maneira como o próprio indivíduo sente. A percepção do sentimento, o sentir o que acreditamos que o outro sente, depende da orientação dada em direção aos valores da existência presentes no contexto extraverbal, pois é no estabelecimento do diálogo entre um locutor com o acontecimento da existência que os sentimentos, os desejos, o sofrimento etc. do interlocutor direto ganham sentido e orientação social por meio do meu próprio olhar: são valores sociais localizados para mim na existência. Isso significa que a percepção da vida interior está direcionada aos valores presentes na vida percebida como categoria do outro.

Bakhtin (2017BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971 [1970-1971]. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa por Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017. [1970-1971]) aponta para essa mesma compreensão simpática quando trata das figuras da testemunha e do juiz em relação à consciência no mundo (na existência). Cada um de nós é testemunha do acontecimento da existência, ao mesmo tempo que também somos juízes desse acontecimento, o que implica dizer que, de um lado, testemunhamos e percebemos um acontecimento como comum e, de outro lado, essa percepção do acontecimento comum está axiologicamente orientada aos relativos à vida em sociedade. Locutor e interlocutor, pertencentes ao acontecimento, julgam-no por meio do acesso aos valores sociais comuns e em circulação no momento da interação.

Ao tratar do sentido de testemunha e juiz, Bakhtin (2017, p.28)BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971 [1970-1971]. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa por Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017. estabelece que

A pedra continua pétrea, o sol, solar, mas o acontecimento da existência no seu todo (inacabável) se torna inteiramente distinto porque pela primeira vez aparecem em cena da existência terrestre as personagens novas e principais do acontecimento – a testemunha e o juiz. Até o sol, que mesmo permanecendo fisicamente o mesmo, tornou-se outro porque passou a ser conscientizado pela testemunha e pelo juiz. Ele deixou apenas de existir, porque passou a existir em si e para si (essas categorias surgiram aí pela primeira vez) e para o outro, porque se refletiu na consciência do outro (da testemunha e do juiz): com isso ele mudou radicalmente, enriqueceu e transformou-se.

A entonação tem papel fundamental na produção de sentidos na compreensão simpática, pois aponta para o fato de que os tons avaliativos relativos ao enunciado extrapolam as palavras e se ligam mais proximamente ao objeto de sentido. Na compreensão simpática, a busca pelo entendimento do interior do outro pela testemunha implica um julgamento valorativo desse interior baseado nos valores sociais que estão no horizonte comum. Esse julgamento valorativo implica um constante processo avaliativo em relação aos valores circulantes, garantindo a evolução dos valores sociais válidos e presentes em uma sociedade pelo movimento dialógico que se constitui. No momento em que uma avaliação é feita, pode-se afirmar seguramente que outra avaliação está sendo preparada, pois há outras testemunhas e juízes entrando em estado de interação acerca do mesmo objeto de sentido.

Considerações finais

Este artigo não pretendeu exaurir todas as possibilidades e vieses de leitura possíveis acerca do sentido de contexto nas obras de Bakhtin e o Círculo publicadas em língua portuguesa no Brasil. Apesar da complexidade apresentada pelo conceito, pudemos identificar uma imagem recorrente nas obras que se mostrou bastante produtiva para refletirmos teoricamente acerca desse ponto: a imagem do contexto como espaço de produção de sentidos contido dentro de fronteiras que se estabelecem no momento da interação. Isso se tornou possível somente porque tanto Medviédev (2019)MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019., quanto Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. e Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. fazem menção a esse espaço, porém cada um a seu modo e visando seu próprio objeto de estudo.

Medviédev (2019)MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019. determina que este é um espaço de criação e cocriação único em que o objeto de sentido, ideológico em sua essência, é colocado em discussão e reflexão e se materializa na própria obra juntamente com a forma e o conteúdo da obra. Já Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. denomina esse espaço de lugar da criação ideológica, dentro do qual circulam as ideologias do cotidiano que estabelecem uma ligação tensa entre a base socioeconômica da sociedade e os sistemas ideológicos constituídos, gerando assim deslocamentos em todas as partes. Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável [1924]. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010., por sua vez, estabelece que o elo de ligação entre a vida e a cultura é a unidade do sujeito pensante, pois, ao concentrar os dois extremos em si, dá sentido para a vida e também para as manifestações culturais.

Seguindo essa imagem, dentre as possibilidades de focalização do olhar que as obras oferecem, refletimos acerca de quatro possíveis contextos que ocorrem dentro de espaços de produção de sentidos. Percebemos também que cada uma dessas ocorrências de contextos acontece em situações comunicativas distintas. A primeira situação apresentada e discutida foi a comunicação discursiva, cujo respectivo contexto corresponde ao enunciado e tem como fronteiras a alternância dos participantes em uma interação. Na segunda manifestação, a comunicação sígnica caracteriza-se como o espaço em que ocorre o contexto sígnico, que se situa na consciência de cada um de nós e tem suas fronteiras delimitadas de um lado pela compreensão ativa e de outro pela avaliação responsiva.

Observamos também a comunicação artística em que se situa o contexto estético e tem suas fronteiras máximas definidas pela relação entre autor e contemplador. No que se refere ao romance e à poesia, percebemos a existência de outras fronteiras que se constituem dentro do contexto estético. Do lado do romance, as fronteiras correspondem ao espaço de sentido que se estabelece entre autor e personagem. Esse espaço pode ser de duas formas, ou monológico, em que as personagens refletem o ponto de vista do autor; ou polifônico, em que as personagens ganham independência discursiva em relação ao autor, o que implica uma relação dialógica bastante tensa entre autor e as personagens.

Do lado da poesia, as fronteiras correspondem ao herói lírico, autor objetivado na obra, e um outro com que dialoga dentro do espaço da poesia. Cada uma dessas fronteiras corresponde a uma posição valorativa acerca do mundo, no entanto, o outro do herói lírico não possui total independência discursiva. O outro do herói lírico está inserido no campo de visão do próprio herói; portanto, os valores trazidos pelo segundo contexto são trabalhados pela visão do herói lírico. Dito de outro modo, os valores que remetem a esse outro são aqueles a que o herói lírico tem acesso de seu campo de visão.

O quarto e último contexto de que tratamos, o contexto extraverbal de circulação de valores, implica o direcionamento dos enunciados para um outro, situado fora da relação direta de interlocução, isto é, fora da relação entre locutor e interlocutor. Esse outro de fora participa diretamente da produção de sentidos, porque se relaciona aos valores que circulam na existência comum. Esses valores garantem não somente percepções comuns entre interlocutores acerca do acontecimento em que a interação ocorre, mas garantem o devir da existência, a continuidade da própria existência, da vida em comum, porque é por meio desse outro, mediador de fora das interações, que os valores são percebidos e ao mesmo tempo retrabalhados pelos tons valorativos.

Por meio dessas reflexões, propomos que o contexto deve ser pensado como um espaço ativo na produção de sentidos, pois implica responsividade de todas as direções e para todas as direções, cujas fronteiras, dentro das quais os sentidos são atualizados, constituem-se no instante da interação. Isso quer dizer que as fronteiras estabelecidas se alteram, expandem-se, retraem-se, multiplicam-se dependendo das relações dialógicas percebidas por meio do olhar posicionado de um outro.

Em outras palavras, esses contextos e suas fronteiras somente são possíveis de serem observados por meio de um observador posicionado fora do acontecimento. Isto é, a observação se dá em situações em que esse observador se mantém afastado do evento discursivo. O observador distanciado percebe os contextos a partir da própria relação que observa, abrindo sempre espaço para outras e novas percepções de fronteiras e valores. O diálogo que deve se estabelecer entre observador e contextos interacionais possíveis posiciona-se próximo da perspectiva de Medviédev (2019)MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019. quando propõe um reposicionamento do olhar para formas de comunicação para além de uma possível comunicação direta.

Para o autor, a comunicação direta implica o entendimento de que os sentidos são mecanicamente dados e que os contextos em que circulam esses processos de comunicação constituem-se em dados estáticos e pré-determinados. Esse ponto de vista pode ser definido como se houvesse um grupo de pessoas aglomeradas em um só lugar, recebendo sem interferências o direcionamento de uma fala, de uma voz única emitida. Para o autor, isso não é possível porque

O homem social está rodeado de fenômenos ideológicos, de “objetos-signo” dos mais diversos tipos e categorias: de palavras realizadas nas suas mais diversas formas, pronunciadas, escritas e outras; de afirmações científicas; de símbolos e crenças religiosas; de obras de arte, e assim por diante. Tudo isso em conjunto constitui o meio ideológico que envolve o homem por todos os lados em um círculo denso (MEDVIÉDEV, 2019, p.56MEDVIÉDEV, P. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2019.).

  • 1
    Obras consultadas:
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    BAJTÍN, M. M. Estética de la creación verbal. Tradução de Tatiana Bubnova. Buenos Aires: Siglo XXI, 2002.
    BAKHTIN, M. Problems of Dostoevsky´s poetics. Edição e tradução de Caryl Emerson. Introdução de Wayne C. Booth. Menneapolis; London: University of Minnesota Press, 1984.
    BAKHTIN, M. M. Toward a Philosophy of the Act. Tradução e notas de Vadim Liapunov. Editado por Vadim Liapunov e Michael Holquist. Austin: University of Texas, 1995.
    BAKHTIN, M. M.; MEDVEDEV, P. N. The formal method in literary scholarship: A critical introduction to sociological poetics. Traduzido por Albert J. Wherle. Baltimore; London: The Johns Hopkins University Press, 1978.
    BAKHTINE, M. Le marxisme et la philosophie du language. Essai d’application de la méthode en linguistic. Tradução do russo e apresentação de Marina Yaguello. Prefácio de Roman Jakobson. Paris: Les Éditions de Minuit, 1977.
    BAKHTINE, M. Pour une philosophie de l'acte. Prefácio de S. Bocharov. Anotações de S. Averintsev. Tradução do russo de Ghislaine Capogna Bardet. Paris: Éditions L’Age D’Homme, 2003.
    BAKHTINE, M. Esthétique de la création verbale. Prefácio de Tzvetan Todorov. Tradução do russo de Alfreda Aucouturier. Paris: Gallimard, 2007.
    VOLOSHINOV, V. N. El signo ideológico y la filosofia del language. Tradução do inglês de Rosa María Rússovich. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1976.
    VOLOŠINOV, V. N. Freudianism: A Marxist Critique. Tradução de I. R. Titunik. London; New York: Verso, 2012.
    VOLOŠINOV, V N. Marxism and the philosophy of language. Tradução de Ladislav Matejka e I. R. Titunik. Massachusetts; London: Harvard University Press, 8. impressão, 2000.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2021
  • Aceito
    10 Nov 2021
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