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Linguagem e memória como forma de poder e resistência

Resumos

São examinadas diferentes situações de discurso onde se identificam marcas de transformações históricas da nossa sociedade: na incongruência entre entonação e sentido, na ausência de elo e de sequência na interlocução e na indiferenciação entre posições enunciativas. Tais transformações apontam para uma nova forma de poder designada como totalitária não-autoritária que opera através do apagamento da singularidade do sujeito e da promoção de uma memória indiferente. A abordagem construída para o exame e a interpretação das referidas situações baseia-se na análise dialógica do discurso e na teoria enunciativa, completadas por conceitos da filosofia contemporânea.

Entonação; Sentido; Enunciado; Memória; Resposta


We examine different discourse situations in which we identify marks of historical transformations of our society: in the incongruity between intonation and meaning, in the absence of link and sequence in the dialogue and in the indifferentiation between enunciative positions. Such transformations point to a new form of power designated as totalitarian non-authoritarian, which operates through the erasure of the singularity of the subject and the promotion of an indifferent memory. The approach built for the examination and interpretation of those situations is based on dialogic discourse analysis and on the enunciative theory, supplemented by concepts of contemporary philosophy.

Intonation; Meaning; Utterance; Memory; Response


ARTIGOS

Linguagem e memória como forma de poder e resistência

Marília Amorim

Professora da Universidade de Paris-8 – Paris, Île-de-France, França; marilia-amorim@uol.com.br

RESUMO

São examinadas diferentes situações de discurso onde se identificam marcas de transformações históricas da nossa sociedade: na incongruência entre entonação e sentido, na ausência de elo e de sequência na interlocução e na indiferenciação entre posições enunciativas. Tais transformações apontam para uma nova forma de poder designada como totalitária não-autoritária que opera através do apagamento da singularidade do sujeito e da promoção de uma memória indiferente. A abordagem construída para o exame e a interpretação das referidas situações baseia-se na análise dialógica do discurso e na teoria enunciativa, completadas por conceitos da filosofia contemporânea.

Palavras-chave: Entonação; Sentido; Enunciado; Memória; Resposta

ABSTRACT

We examine different discourse situations in which we identify marks of historical transformations of our society: in the incongruity between intonation and meaning, in the absence of link and sequence in the dialogue and in the indifferentiation between enunciative positions. Such transformations point to a new form of power designated as totalitarian non-authoritarian, which operates through the erasure of the singularity of the subject and the promotion of an indifferent memory. The approach built for the examination and interpretation of those situations is based on dialogic discourse analysis and on the enunciative theory, supplemented by concepts of contemporary philosophy.

Keywords: Intonation; Meaning; Utterance; Memory; Response

Introdução

A ideia de observar a linguagem para ler nela a História se fazendo parte de dois campos de reflexão. De um lado, dos trabalhos de Bakhtin e do Círculo. Em Medviédev, por exemplo, pode-se ler:

Qualquer enunciado concreto é um ato social. [...] Sua realidade enquanto elemento isolado já não é a realidade de um corpo físico, mas a de um fenômeno histórico. [...] Dessa forma, a própria presença peculiar do enunciado é histórica e socialmente significativa. Da categoria de uma realidade natural, ela passa a categoria de uma realidade histórica. O enunciado já não é um corpo nem um processo físico, mas um acontecimento histórico, mesmo que seja infinitamente pequeno (2012, p.183).

E em Bakhtin/Voloshinov,

É, portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados (1981, p.40).

Mais adiante, lê-se ainda que "a palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais ínfimas, mais efêmeras das mudanças sociais" (1981, p.41).

Por outro lado, o trabalho de Victor Klemperer (2009) abre uma perspectiva igualmente importante para os estudos da linguagem. Filólogo e historiador da literatura, ele explica que a linguagem cotidiana, com suas transformações sutis e com seu poder de disseminação, trabalhou pelo nazismo de modo muito mais eficaz que os discursos de Hitler e até mesmo que a propaganda massiva. De acordo com sua análise, o que acontece com a palavra é que todos passam a utilizá-la sem se darem conta. Ele demonstra através de certos termos e expressões que, embora contendo preconceitos em relação aos judeus, foram sendo, imperceptivelmente, adotados pelos próprios judeus.

Na França, a publicação do livro de Klemperer estimulou o surgimento de inúmeros trabalhos a respeito da relação entre as transformações no âmbito da linguagem e nosso contexto socio-histórico. Para a teoria da linguagem de Bakhtin e do Círculo, a História, a sociedade e os valores fazem parte, necessariamente, do fenômeno da linguagem. Impossível estudar esse sem considerar aqueles.

Meu trabalho nos últimos anos tem sido o de observar práticas ou situações discursivas do cotidiano na tentativa de identificar os pontos de articulação entre a linguagem e os valores da cultura contemporânea ou pós-moderna. Os resultados apontam para dispositivos socias que ameaçam ou subestimam aquilo que se poderia chamar de inteligência discursiva, gerando assim uma espécie de bêtise (besteira ou bobagem) específica da pós-modernidade (AMORIM, 2012).

Conforme demonstra Stiegler (2012), a bêtise é um objeto filosófico já tratado por autores como Adorno, Derrida e Deleuze. Esses autores analisam a questão no campo da razão ou da racionalidade e buscam identificar como se produz a dialética bêtise/raison nesse âmbito. Estamos aí no contexto de um saber teórico-conceitual que designamos como saber demonstrativo.

A pesquisa aqui apresentada é uma tentativa de pensar a bêtise no âmbito do saber narrativo que envolve o saber contar histórias, sejam elas grandes ou pequenas histórias, mas também o simples relato de uma experiência ou situação do cotidiano. Ora, o saber narrativo confunde-se com a própria atividade falante do ser humano, pois, quando falamos, estamos sempre relatando ou interpretando algo que nos foi relatado. Então quando se identifica uma situação que subestima nossa inteligência discursiva, considera-se que também nosso saber narrativo está sendo ameaçado.

1 A entonação falseada e o não-acontecimento

Procurei observar a imbricação discurso/narração em uma situação que é talvez, na nossa sociedade, a mais corriqueira de todas: a televisão. Muito já se falou do baixo nível de qualidade dos conteúdos televisivos, mas uma afirmação, que a essa altura já se tornou famosa, é a que melhor resume o problema. Patrick Le Lay, presidente do canal TF1 (canal aberto de maior audiência na França, um equivalente da Globo brasileira), declarou em uma reunião com outros dirigentes de empresa o seguinte: "Nossos programas têm por vocação tornar [o cérebro do espectador] disponível, isto é, diverti-lo, descontraí-lo para prepará-lo entre duas mensagens [publicitárias]. O que vendemos à Coca-cola é o tempo do cérebro humano disponível. Nada é mais difícil do que obter essa disponibilidade"1 1 Ver < http://totosurlelavabo.free.fr/TF1-Coca-cola.htm> e < http://www.acrimed.org/article1688.html> , acessados em 28/09/2012. (Les associés d'EIM, 2004, p.92, traduzido por mim), um livro de e para o patronato francês - MEDEF2 2 MEDEF International é uma rede mundial a serviço das empresas francesas em mercados emergentes e em desenvolvimento. ).

Para Bernard Stiegler, a televisão traz o problema da formação da atenção, que é um aspecto central no processo de transmissão. A formação da atenção é o que determina em que medida a pulsão na criança ou no jovem pode se transformar em desejo e investir objetos culturais. O trabalho de transformação da pulsão em desejo supõe certo tipo de relação educativa que se perde quando essa relação se torna industrial. As indústrias relacionais do mundo contemporâneo, na expressão de Stiegler, entre as quais a televisão, visam justamente a uma captação da atenção de modo a dirigi-la para o funcionamento aditivo da sociedade de consumo. Estaríamos assim assistindo ao processo de desinvestimento dos objetos culturais para passar ao modo pulsional de relação com o objeto: uma vez consumido, ele é descartado para que se compre outro (2011). Stiegler designa então a televisão como psicotecnologia da besteira (ou bobagem).

Ora, se pensamos como Stiegler que a televisão é uma tecnologia relacional, para completar a análise do modo de relação que ela coloca em cena, é preciso indagar seu discurso. Seguindo as indicações bakhtinianas, resolvi analisar o aspecto da entonação no discurso televisivo. A entonação é um dos constituintes do sentido e é a marca discursiva de uma dimensão fundamental da palavra, a saber, sua dimensão ética. Designada também pelos termos tom ou acento, ela representa no pensamento baktiniano o índice dos valores que dá direção ao diálogo.

[...] a palavra viva não conhece objeto que seja totalmente dado: pelo simples fato de que comecei a falar dele, já adotei uma certa atitude em relação a ele, não uma atitude indiferente, mas uma atitude interessada operante. E é por isso que a palavra não designa somente o objeto como uma entidade disponível, mas, pela sua entonação (uma palavra pronunciada realmente não pode ser desprovida de entonação: sua entonação decorre do próprio fato de ser pronunciada), exprime também minha atitude avaliativa em relação a esse objeto, o desejável e o indesejável nele [...]. (BAKHTINE, 2003, p.57-58.)3 3 [...] le mot vivant, le mot plein ne connaît pas d'objet qui soit totalement donné: par le simple fait que j'aie commencé à en parler, j'ai déjà adopté une certaine attitude envers lui, non pas une attitude indifférente, mais une attitude intéressée-opérante. Et c'est pourquoi le mot ne désigne pas seulement l'objet comme une certaine entité disponible, mais par son intonation (un mot prononcé réellement ne peut être dépourvu d'intonation : son intonation découle du fait même de sa prononciation), exprime mon attitude évaluative par rapport à cet objet, le désirable et le non-désirable en lui [...].

Na linguística, o estudo da entonação é parte da prosódia e dos elementos não-verbais da fala: altura, intensidade, ritmo, vogais alongadas, etc. A prosódia depende em parte do sistema formal de cada língua na medida em que faz parte dos padrões entonativos típicos. Mas é enquanto marca avaliativa nos enunciados concretos e singulares que ela interessa à filosofia da linguagem do Círculo. Em Medviédev, pode-se ler: "A entonação expressiva que dá cor a cada palavra do enunciado reflete sua singularidade histórica, diferente da entonação sintática que é mais estável" (2012, p.185, traduzido por mim).

A questão da entonação pode ser observada em um programa de tevê da rede francesa aberta, bastante assistido, o jornal das 20 horas. Identificou-se aí um padrão entonativo na fala dos apresentadores que se repete a cada dia e em diferentes canais. Ele ocorre em um momento bem preciso, na passagem do estúdio para a reportagem externa. Quando o apresentador anuncia a transição e o nome do repórter, ocorre uma desaceleração, com altura descendente e pausa. Isso se acompanha de um semissorriso e um ligeiro piscar de olhos. Em alguns casos, a ausência total de pertinência entre a entonação e o conteúdo da reportagem suscita a pergunta: Por que o sorriso? Por exemplo, é perfeitamente possível ver/ouvir esse padrão entonativo acompanhar o anúncio de cenas horripilantes do massacre na Síria.

A entonação idêntica e invariável em relação ao conteúdo constitui o que designo como entonação falseada: ela deixa de ser uma pista para compreensão do sentido das informações transmitidas para se tornar um componente do formato do programa que parece nos dizer: "Mesmo que estejamos mostrando que uma catástrofe acaba de ocorrer, não se preocupe e, simplesmente, fique com a gente!" Monótona como uma litania, ela revela a intenção de produzir um efeito calmante: "aconteça o que acontecer, todos os dias estamos aqui com você". Uma espécie de discurso do não-acontecimento que reduz o que há de único à mesmidade do conhecido, cuja mensagem central é: "não desligue e não mude de canal." (Imagino ser possível fazer o mesmo exercício de análise com os apresentadores William Bonner e Patrícia Poeta.)

Sabemos que o acontecimento é uma noção-chave no pensamento bakhtiniano. Ele é o locus da produção de sentido na medida em que é encontro de sujeitos. A transmissão televisiva interpõe-se nesse encontro pelo mecanismo de captação de atenção descrito por Stiegler. Mais uma vez, cabe citar Medviédev: "A entonação social reúne a minuta da época e o assunto do dia com a tarefa histórica" (2012, p.185).

2 O sistema sem sujeito

Outras situações discursivas igualmente banais, justamente por terem se tornado banais, naturalizaram-se. Emprego o termo naturalizar para evocar um antigo conceito marxista que talvez seja ainda necessário: o conceito de ideologia, que explica o mecanismo de poder pelo qual se naturaliza o que não é natural e, sim, produzido socialmente. Algo que se impõe, que se generaliza e que, ao mesmo tempo, se esconde. As situações discursivas aqui analisadas rompem sutilmente, mas sistematicamente, com as condições elementares do diálogo. Ao fazê-lo, impedem o sujeito de exercer sua inteligência discursiva e narrativa e constituem assim uma nova forma de poder. Elas podem ser reunidas em uma categoria que denominei "o sistema sem sujeito".

Primeiro tipo de exemplo: falando com máquinas.

Nada mais comum hoje do que precisar de um serviço que somente oferece a possibilidade de que se fale com máquinas: telefone com mensagens automáticas às quais somente posso responder apertando a tecla 1 ou 2, site internet, etc. A automatização dos serviços das empresas, por meio da internet e das mensagens telefônicas automáticas, não é apenas um meio de lucrar mais diminuindo o número de empregados. Ela serve também para privar o usuário ou cliente de uma relação intersubjetiva. O contato entre empregado e cliente, sendo um contato humano, daria lugar a uma relação singularizante, isto é, entre sujeitos singulares que se re-singularizam a cada diálogo. O entendimento da situação poderia então ser refeito por novas interpretações, engendradas no jogo das trocas verbais. Daí o caráter imprevisível de toda interação humana, coisa que o modo atual de gestão parece não poder suportar.

Um exemplo real revela a situação de bêtise que esse tipo de "diálogo" pode criar. Ele ocorreu quando recorri, há poucos dias, ao serviço 102, de auxílio à lista telefônica:

Máquina: Você ligou para o serviço de auxílio à lista telefônica. Por favor, diga o nome da cidade com que deseja falar.

Eu: Campinas.

Máquina: Entendi. Você disse Campina Grande, correto?

Eu: Não.

Máquina: Entendi. Repita o nome da cidade com que deseja falar.

Eu: Campinas.

Máquina: Entendi. Você disse Campina Grande, correto?

A essa altura, resolvi dizer "Sim" para ver o que acontecia.

Máquina: Entendi. Agora, diga o nome da pessoa que você deseja localizar.

Eu: Mariana Fantini.

Máquina: Entendi. Você disse Guarda Municipal, correto?

Eu: Não.

Máquina: Entendi. Por favor, repita o nome da pessoa que você deseja localizar.

Eu: Mariana Fantini.

Máquina: Entendi. Você disse Guarda Municipal, correto?

Eu: ...?!

Segundo tipo de exemplo: telefone sem fio.

Isso ocorre nos serviços por telefone, por exemplo, quando se tem um problema com a conexão internet ou com o seguro do cartão de crédito. Como na maioria dos casos o problema não se resolve na primeira ligação e são necessárias inúmeras ligações, é possível observar o seguinte fenômeno: a cada ligação, nunca se fala com o mesmo empregado. Eles dizem o nome e são muito gentis: "Boa tarde, Samanta, em que posso ajudar?" Mas se você gostaria de falar com a primeira pessoa que lhe atendeu isso não será possível. Por telefone, parece que a tensão que essa situação nos provoca é maior porque somente dispomos da fala e do "fio da conversa" para nos apoiarmos e nos orientarmos. E é justamente o tal "fio da conversa" que não chega a se tecer. São conversas sem fio. Aí você reclama por ter que repetir e recomeçar, ao que respondem que você não deve se preocupar porque seu problema está registrado no "sistema". A memória do sistema substitui assim a do funcionário. E, de fato, vários enunciados comprovam que o grande sujeito agora é o sistema. (O grande "Outro") Por internet, volta e meia, acontece de nos depararmos com a mensagem: "Um erro no sistema não permitiu gravar seu pedido." Ou então, é o empregado que nos diz: "Sinto muito, o sistema caiu".

O que fica no sistema é um conjunto de informações, não é uma relação. A memória de uma relação não é traduzível em memória do sistema. A relação é o que cria engajamento e responsabilidade. Se o sujeito me diz "Eu prometo à senhora que...", performativo clássico dos estudos de Austin, ele vai se sentir constrangido, na vez seguinte, de me dizer que não cumpriu sua promessa. Entretanto, é preciso saber que, para os empregados, a mutação constante e a ausência de sequência, de elo, de relação e, portanto, de diálogo, é também fonte de sofrimento e angústia. Até mais do que para os clientes porque, findo o problema, o cliente está livre daquela empresa, mas o empregado trabalha ali, naquelas condições. Uma das empresas francesas que mais pratica a mutação sistemática dos empregados é a France Telecom, "gigante" da telefonia. Ela lançou um programa de gestão que se chamava justamente Time to move em que os empregados eram constantemente transferidos. Na sequência desse programa, entre 2008 e 2009, houve 35 suicídios na empresa e o chamado suicídio profissional tornou-se uma constante na sociedade francesa.

A ausência de elo, de sequência e de memória intersubjetiva parece corresponder ao modelo cibernético segundo o qual as relações humanas podem ser concebidas como sistemas de informação que se autorregulam sem a direção ou controle dos sujeitos. Ora, um diálogo não é uma troca de informação e o sujeito humano não transmite mensagens, ele fala. A informação é reiterável na sua identidade enquanto que a fala tem sentido: algo único e singular. Segundo o princípio do dialogismo, no discurso, A não é jamais idêntico a A. Talvez por isso, poder falar com o outro, dialogar, tornou-se nessas situações, embora corriqueiras, algo quase impossível ou proibido porque escapa a qualquer sistema de autorregulação. Se tomarmos como verdade que é falando que o sujeito advém, podemos realmente conceber esse sistema como um sistema sem sujeito. Um sistema que tem memória ou que é memória. Mas de que memória se trata?

3 A memória indiferente

Falar de memória hoje traz à cena, instantaneamente, a informática com sua capacidade e sua velocidade extraordinárias de armazenar dados. Em relação à escrita, primeira grande revolução na memória humana, a informática dá um salto à frente. A informática desempenha hoje um papel central no avanço da ciência, pelo que ela permite em matéria de simulação graças ao seu poder extraordinário de efetuar cálculos de situações virtuais.

Do ponto de vista social e político, assim como a escrita impressa permitiu o acesso de muitos a múltiplos textos e, com isso, fomentou o espírito crítico, a internet permite aos cidadãos acesso a informações que a grande mídia não fornece. Ainda do ponto de vista político, a expressão dos sujeitos individuais que não mais dependem de instituições ou de partidos para dizer o que pensam é uma conquista inestimável. Se acrescentarmos a rapidez e a amplitude com que tudo isso é difundido, entendemos que a informática é de fato a segunda grande revolução no âmbito das técnicas de comunicação e expressão. Tudo isso se deve a sua incomensurável capacidade e velocidade de armazenar dados e de, portanto, constituir uma memória.

A reflexão de Sócrates sobre a relação entre escrita e memória, no diálogo Fedro de Platão, traz um elemento que permanece válido para a informática pois, nos dois casos, opera-se uma externalização da memória e a disjunção do corpo do sujeito. Sócrates distingue hypomnese e anamnese: a primeira refere-se aos auxiliares de memória que, como a escrita, são uma técnica que permite gravar algo em um determinado suporte externo; já a segunda remete ao trabalho de lembrar o que foi gravado. Vê-se que a distinção que se coloca, é entre técnica e trabalho. A técnica serve justamente para nos poupar de imensos trabalhos, basta ver a praticidade e o conforto que a informática e a internet propiciam. Mas nem todo trabalho pode ser poupado. Pode-se então associar essa idéia de trabalho de memória ao ato responsável de transmissão cultural entre sujeitos que resulta em algo que, parafraseando Bakhtin, corresponderia a uma memória não-indiferente. A atitude avaliativa que está implícita no ato de registro e de transmissão cultural refere-se antes de tudo à escolha daquilo que merece ser transmitido. Se, como dizia Sócrates, é necessário que a escrita seja acompanhada de um trabalho de memória, com a internet, mais do que nunca esse trabalho é necessário.

Vejamos agora o que diz B. Bachimont, diretor científico no INA (Instituto Nacional do Audiovisual) que cuida da informatização do patrimônio audiovisual francês, em sua conferência "Conservar o patrimônio audiovisual: quando a informatização não é a solução e sim, o problema" (2009, traduzido por mim). Segundo ele, o que está verdadeiramente em jogo na questão da memória coletiva é o problema da legibilidade dos arquivos informatizados e não o da capacidade infinita de estocagem que apresentam os utensílios informáticos. Evoquemos rapidamente o aspecto da legibilidade técnica, onde o problema vem do fato de que o suporte numérico é essencialmente mutável. A cada mudança, é necessário construir estratégias de conservação tais como a migração de um suporte a outro (por exemplo, do vinil ao CD ou do .wav ao .mp3) que implicam sempre em problemas de fidelidade ao original pois, segundo ele, arquivar é editar. Nesse sentido, ao compararmos a estocagem numérica à analógica, essa última se degrada mais facilmente, mas em compensação, ela é mais fiel. Basta lembrar toda a polêmica que surgiu em torno da digitalização dos concertos musicais gravados originalmente em vinil. O autor lembra que esse problema é antigo e que já existia no caso da escrita: os antigos manuscritos, com suas "margens falantes", alteravam o original. A memória medieval oral era talvez mais confiável que a dos copistas. Mas, diz Bachimont, o fato de um problema ser antigo não o resolve e seria necessário acompanhar a estocagem de um trabalho crítico permanente que permitisse identificar a cadeia de transformações e, ao mesmo tempo, indagar sobre o que constitui a identidade de um conteúdo.

Para nossa reflexão, o segundo aspecto do problema da legibilidade de um conteúdo armazenado é ainda mais pertinente. Trata-se da questão da legibilidade intelectual formulada por Bachimont da seguinte maneira: "Em que condições é possível convocar o que está gravado?"(2009, traduzido por mim). Um conteúdo se torna rapidamente ilegível se ele não se acompanha de uma atividade de leitura que o conserva e lhe confere sentido para cada nova geração. Ele dá o seguinte exemplo: a legibilidade de Aristóteles não se deve ao texto em si, ela é construída pela sucessão de leituras e de comentários, enquanto que a escrita etrusca está inteiramente conservada, mas é incompreensível porque lhe falta uma tradição de leitura associada a ela. O acesso físico à escrita etrusca se mantém, mas o acesso intelectual perdeu-se. Diz Bachimont: "A memória não é um estoque, ela é um trabalho presente. O problema não são os estoques, mas a manutenção da inteligibilidade dos estoques" (2009, traduzido por mim). Essa manutenção, sempre segundo o autor, faz-se por todos aqueles que produzem legibilidade: pela escola, pelos livros, pelos colóquios, pelas pesquisas, pelas novas edições, etc. Ele resume seu argumento da seguinte maneira: "O livro não é a condição da leitura, é a leitura que é a condição de conservação do livro. É porque se lê que se conserva, e não o inverso" (2009, traduzido por mim).

O trabalho de memória deve produzir e entreter o apetite cultural e científico pela leitura para que o conteúdo permaneça como questão e não se reduza a um mero problema de acesso. É o trabalho de interpretação, logo de leitura, que dá sentido a um texto e isso se produz como atividade intersubjetiva. Sem a renovação incessante do sentido, o texto se perde, torna-se mudo e morre. Entendo então o trabalho de memória como aquilo que torna possível a memória não-indiferente. Encontramos em Bakhtin indicações de que também ele se preocupava com o problema da relação entre técnica e singularidade:

Tudo o que é técnico, desligado da unidade singular e entregue ao livre curso da lei imanente de seu desenvolvimento é terrível; às vezes, pode irromper nessa unidade singular da vida como uma força irresponsável, atemorizadora e destrutiva (2003, p.24, traduzido por mim)4 4 Tout ce qui est technique, détaché de l'unité singulière et livré au libre cours de la loi immanente de son propre développement est terrible; cela peut parfois faire irruption dans cette unité singulière de la vie, comme une force irresponsable, effrayante et destructrice. .

A memória não-indiferente é aquela em que o valor dos objetos culturais não remete à economia de mercado, mas às outras economias humanas: simbólica, psíquica, semiótica ou estética. Por isso ela implica uma responsabilidade da fala no ato de transmiti-la. Trata-se aqui do conceito de "economia humana" formulado por Dufour (2007). Ele designa economia toda atividade de troca entre os sujeitos. Trocamos várias coisas que são fundamentais para a humanidade: trocamos relações de sentido quando falamos (é, por exemplo, o que estamos fazendo aqui neste trabalho), trocamos valores sociais, trocamos valores estéticos. Entretanto, o ultraliberalismo fez com que a economia de bens monetarizados invadisse as demais economias e imprimisse nelas sua lógica. É o que ele chama de religião do mercado.

Na nossa sociedade ocidental, o mercado invadiu todos os espaços e, portanto, todas as esferas sociais e as economias humanas. Podemos pensar essa nova forma de poder como totalitária não-autoritária. Trata-se de um totalitarismo diferente do analisado por Klemperer. A ditadura do mercado não tem centro nem hierarquia porque a mercadoria deve poder circular livremente. Do mesmo modo, sua ideologia quer nos fazer crer que somos livres para escolher. Desde que essa escolha implique consumo. Essa invasão do mercado nas diferentes esferas de atividade humana cria uma hegemonia de gênero. Os gêneros discursivos do mercado e da gestão invadem todos os outros gêneros discursivos e os transformam, uniformizando-os. Ora, quando falamos com alguém, mesmo que seja em um simples diálogo informativo de um serviço bancário, estamos sempre narrando, fazendo relatos e reconstruindo versões. A nova forma de poder aqui identificada agiria, assim, naquilo que o sujeito humano tem de central, que é sua inteligência discursiva, e naquilo de que ele é feito, isto é, de histórias e de relatos.

4 O enunciado fusional

Uma última transformação pode ser observada a partir de outro indício: as marcas línguísticas da enunciação em determinados discursos sociais. Para tanto, foi constituído um corpus de enunciados presentes em lugares públicos, analisados a partir do uso dos dêiticos pessoais eu/tu/ele e interpretado através do conceito bakhtiniano de resposta. O ponto de partida empírico dessa parte da pesquisa constituiu-se de algo aparentemente insignificante: uma bula de remédio no Brasil. Apesar da insignificância, esse material funcionou como signo que força a pensar, para empregar a expressão deleuziana. Na bula, encontrei os seguintes enunciados:

Informações ao paciente:

Como este medicamento funciona?

Atua amenizando os sintomas X, Y, Z. [...] Seu médico é a pessoa mais adequada para lhe dar maiores informações. Siga sempre suas orientações. Não devem ser utilizadas doses superiores às recomendadas.

Quando não devo usar este medicamento?

Pacientes com histórico de alergia a qualquer um dos componentes da fórmula. [...] Informe a seu médico etc, ... [...]. Não use medicamento sem o conhecimento de seu médico. [...]

Onde e como devo guardar este medicamento?

Conservar o produto em temperatura ambiente...

[...]

Informações técnicas aos profissionais de saúde:

[...] Indicações: [...]. Contra-indicações: [...]. Modo de usar e cuidados de conservação depois de aberto: [...]

O gênero bula aparece aqui diferenciando a forma enunciativa quando informa ao paciente e quando informa aos profissionais. Em alguns itens, as informações são idênticas, mas o endereçamento muda. Para o paciente utiliza-se a forma de perguntas e respostas. Tradicionalmente, porém, a forma usada era genérica e impessoal: "Informações ao paciente: Ação esperada do medicamento: devido a sua ação antioxidante, a acetilcisteína é capaz de prevenir [...]. / Cuidados no armazenamento: proteger da luz, etc. / Cuidados de administração: Siga a orientação do seu médico [...]. / Contra-indicações e precauções: O uso deste medicamento é contra-indicado [...]/ NÃO TOME REMÉDIO SEM O CONHECIMENTO DO SEU MÉDICO, PODE SER PERIGOSO PARA A SAÚDE."

Um primeiro estranhamento vem daí. Cada vez mais, produtos ou sites de venda de produtos utilizam a forma perguntas e respostas. Em alguns deles, esses enunciados são precedidos da menção "perguntas mais frequentes". Mas ao entrar no link "Tire suas dúvidas", descobre-se que é impossível perguntar o que se deseja, pois o que se encontra é uma lista pronta e fechada de informações. Ou seja, não se trata verdadeiramente de perguntas nem de respostas. Em inglês já se forjou a sigla "FAQ" para "Frequently asked questions" que passou a ser adotada tal qual nos sites franceses com a menção: "Vos FAQ".

O que significa essa mudança? Num primeiro momento, o efeito parece ser de apresentar um texto mais leve, mais interativo e de mais fácil compreensão. Mas será mesmo? Fica a impressão de que há algo de infantilizante nessa forma. Como se fosse necessário esse tipo de artifício para se animar com a leitura e para poder compreender as explicações. Além disso, entre as perguntas mais frequentes dos pacientes a respeito de um remédio, parece improvável que uma delas fosse: "Como devo conservar este medicamento?"

O que mais chama a atenção, no entanto, é que, além da forma pergunta-resposta, aparece o uso do Eu na pergunta. Até pouco tempo, a pergunta apareceria nas formas genéricas "Quando não usar esse medicamento?" ou "Quando esse medicamento não deve ser usado?". Mas nas bulas do corpus, o Eu aparece sem preparação ou transição, sem mesmo ser precedido da menção "Perguntas mais frequentes". Ora, na França, o uso dessa forma enunciativa generalizou-se para diversos gêneros discursivos. Em algumas farmácias, os diferentes setores que antes eram indicados por tabuletas como "Remédios", "Cosméticos", etc., agora apresentam tabuletas com o possessivo da primeira pessoa: "Meus remédios", "Meus cosméticos", "Meus fitoterápicos", "Minha receita", "Meu farmacêutico me aconselha", etc. Também nos sites de venda pela internet, quase sempre, pode-se ler "Já sou cliente?"

No metrô, tradicionalmente, lê-se ou ouve-se a seguinte advertência: "Senhoras e senhores, prestem atenção ao fechamento das portas". Mas, recentemente, a RATP, companhia responsável pelo metrô, lançou uma campanha na linha 13, que atende a uma periferia considerada "difícil". A campanha dirigia-se aos jovens e, para isso, foram colados adesivos nas portas com os dizeres: "Ao ouvir o sinal, eu me afasto das portas", ou "Ao abrir da porta, eu deixo os outros descerem". Na estrada, em vez de "Em caso de chuva, reduza a velocidade", já aparece: "Em caso de chuva, eu reduzo a velocidade".

Que efeito de sentido essa nova forma busca produzir? No âmbito da retórica, Perelman (2009) identifica a figura de comunhão com o auditório que o orador utiliza na tentativa de persuasão. Ela consiste no procedimento de enálage de pessoa pela qual o orador substitui o Eu ou o Tu pelo Nós, como a mãe que diz à criança: "Agora, nós vamos dormir". Perelman diz então que, através dessa figura, "o orador se assimila ao auditor". Nos casos aqui citados, não é o Tu ou o Nós que substitui o Eu, e sim, o inverso: em vez de dizer Tu/Você, o locutor diz Eu ali onde o endereçamento ao destinatário se marcaria. Em vez de "Compre agora" ou "Comprar agora", aparece "Eu compro agora" ou em vez de "Compre aqui", aparece "Eu compro aqui". Ao invés de "Entre na fila", aparece "Eu entro na fila".

Importante distinguir essa nova forma enunciativa daquela em que se antecipa a pergunta do auditório: "porque estou dizendo tudo isto?" ou indiretamente: "poder-se-ia perguntar...". Nesse caso, trata-se de um diálogo interno com figura de antecipação, figura clássica da retórica que ocorre no seio de uma argumentação. Cabe distinguir, ainda, essa nova forma do uso argumentativo do Eu e do Você no qual é possível passar de um a outro no interior de um percurso de raciocínio cuja pretensão de generalização é submetida à verificação do auditório ou do leitor. É o uso consagrado por Descartes: "Penso logo existo". Aqui, o que Descartes diz deve valer para ele e para todo e qualquer leitor, pois se trata de uma pretensão à universalidade.

Nos casos desta pesquisa, os enunciados em Eu nem sempre valem para o locutor: quem deve comprar é o destinatário e não o anunciante. Além disso, o Eu aparece abruptamente e conclusivamente, sem estar a serviço de nenhum processo reflexivo. São enunciados que substituem imperativos, injunções ou instruções. Designei então essa forma como enunciado fusional, pois nele há fusão do locutor e do interlocutor. O locutor se dirige a mim dizendo Eu no meu lugar, suprimindo o jogo de tensão e de reversibilidade entre os dois lugares enunciativos. Sabemos pela teoria da enunciação que é porque há um Eu que se dirige a um Tu, designando-o como interlocutor, que este pode assumir a condição daquele que responde e, ao fazê-lo, dizer Eu na sua vez. Nessa nova forma, o interlocutor não tem vez, sua vez já passou na fala do outro. Ou melhor, o outro usurpou seu lugar e disse aquilo que ele queria que fosse dito: "Eu compro já!".

Podem-se identificar aí vários efeitos de sentido. O primeiro deles é infantilizante: ele subestima a inteligência enunciativa do interlocutor, como se fosse mais simples ou mais fácil economizar-lhe o percurso de interpretar o endereçamento e de assumir seu lugar na cadeia verbal. Do mesmo modo que na figura de comunhão de Perelman, há uma proximidade com o enunciado da mãe à criança, aqui, na forma fusional, também retorna de nossa memória discursiva o gênero "mãe-bebê". O bebê é aquele que ainda não fala, que não é um interlocutor como os outros. Mesmo assim, toda mãe sabe que é fundamental que ela fale ao bebê para que ele possa aceder à linguagem. Saber intuitivo que é amplamente confirmado pela psicanálise. Ela diz então Eu no lugar do bebê, interpretando seus mínimos sinais. O bebê chora e ela diz: "Ô, como eu estou com fome!". Piera Aulagner analisa esse processo em um clássico da psicanálise que tem como título A violência da interpretação (1979).

Dizer Eu no lugar do outro é, de fato, uma violência somente justificável na relação com aquele que ainda não fala: o infante (in-fans: negação+verbo falar). Na situação discursiva entre adultos, dizer Eu no lugar do interlocutor traz uma violência escondida que não se justifica, mas que se difunde e vira norma. Merece então ser interpretada no âmbito da ideologia, isto é, de uma forma de poder que se impõe ao mesmo tempo em que se oculta.

A ocultação se produz pelo apagamento do imperativo e da assimetria. Quando o motorista do trem do metrô diz: "Prestem atenção ao fechamento das portas", ele está me dizendo o que devo fazer e o diz de seu lugar de autoridade: representante da segurança da RATP. Entre ele e eu, há não somente uma diferença entre locutor e interlocutor, mas também uma assimetria entre a autoridade de segurança do metrô e os passageiros. (De acordo com Benveniste, a primeira assimetria já é dada na diferença entre locutor e interlocutor porque é o Eu quem designa o Tu e não, o inverso.) Na formulação convencional, os dois lugares estão claramente dispostos: quem fala e a quem fala. Uma vez fundidos, desaparecem tanto o lugar de autoridade como seu enunciado típico que é o imperativo. Esse efeito parece convergir com os valores dominantes da cultura ocidental contemporânea pelos quais a idéia de autoridade vem se perdendo. As ciências sociais e humanas têm se detido na análise desse fenômeno e de suas consequências, principalmente, para a educação. As marcas discursivas desse fenômeno se produzem por uma espécie de ludismo onde as ordens e os imperativos são banidos. Em seu lugar, uma proliferação de Eus. É a cultura do Eu. Eu isso, Eu aquilo. Reduzir a velocidade na estrada não é mais um imperativo que decorre de uma instância terceira que se chamava comumente Lei. Passou a ser uma escolha que eu posso ou não fazer.

A ilusão que se cria, visto que toda ideologia visa a criar ilusões, é de que o sujeito contemporâneo é mais livre, que não está submetido a nenhuma Ordem. Ocorre que o enunciado fusional, além de apagar a figura enunciadora da autoridade, suprime o lugar do interlocutor já que ele não é designado e tem sua fala roubada. Suprime-se o lugar de onde ele poderia interpretar o que lhe foi dito ou ordenado e responder. Poder responder, mesmo que calado, é o que o constitui como sujeito no diálogo. Em Bakhtin/Voloshinov, a resposta ocupa um lugar central na teoria da linguagem e é inerente ao conceito de dialogismo.

[...] esse tipo de compreensão, que exclui de antemão qualquer resposta, nada tem a ver com a compreensão da linguagem. Essa última confunde-se com uma tomada de posição ativa a propósito do que é dito e compreendido (1979, p.101).

Em Problemas da poética de Dostoievski, Bakhtin formula uma gradação relativa à presença da voz do outro no discurso e fala do enunciado bivocal. Num primeiro momento, se poderia pensar que o enunciado fusional seria bivocal, na medida em que o Eu e o Tu estão presentes. Mas o bivocal, como todo enunciado verdadeiramente dialógico, designa uma relação de tensão entre as duas vozes o que supõe, necessariamente, uma diferença entre elas. Na fusão, não há tensão, pois a voz do interlocutor está dissolvida na voz do locutor. Um locutor que fala no lugar do interlocutor. Ora, isso corresponde ao que Bakhtin define como discurso monologicamente fechado: aquele que "não é suscetível de resposta" (1981, p.88). O autor que ilustra essa forma no romance é Tolstoi:

A Tolstoi é estranha a posição dialógica em relação às personagens. Ele não leva e, em princípio, não pode levar seu ponto de vista à consciência da personagem e esta, por sua vez, não pode dar uma resposta a esse ponto de vista. Por sua própria natureza, a avaliação conclusiva da personagem pelo autor no romance monológico é uma avaliação à revelia, que não pressupõe nem leva em conta a possível resposta da própria personagem a tal avaliação (1981, p.86).

Tolstoi é contraposto a Dostoievski:

Dostoievski desconhece o discurso à revelia, que sem interferir no diálogo interior do herói, construiria de forma neutra e objetiva a imagem acabada deste. O discurso "à revelia", que resume em definitivo a personagem, não faz parte do seu plano. No mundo de Dostoievski não há discurso sólido, morto, acabado, sem resposta, que já pronunciou sua última palavra (1981, p.271, grifo meu).

Descobrimos assim que o enunciado fusional corresponde a uma relação de poder e que é pertinente designá-lo como totalitário uma vez que suprime o lugar e a voz do outro. Ao suprimir a resposta, o discurso à revelia suprime a distância crítica da interpretação, da reflexão e do julgamento. Trata-se de uma nova forma de poder, talvez mais difícil de identificar e de combater, pelo fato de ser não-autoritária e esconder aquele que fala. Um poder sem sujeitos, onde não há responsabilidade nem assinatura. A idéia de responsabilidade supõe a possibilidade de resposta: é responsável aquele que responde por sua própria fala e por seu próprio lugar face ao outro. Isso fica claro em Bakhtin quando lemos Para uma filosofia do ato e vemos que a responsabilidade é a face ética do conceito de responsividade.

Para concluir, cabe perguntar: de onde vem esse poder? A que força social ele corresponde? Será que todos aqueles que utilizam esse tipo de enunciado têm a intenção de exercer essa nova forma de poder? Acredito que não e que o fenômeno em questão corresponde àquele analisado por Victor Klemperer na Língua do Terceiro Reich: a língua serve ao poder pela sua simples, porém eficaz, propriedade de se difundir. Como na relação entre o nazismo e os judeus, mesmo aqueles que sofrem o exercício do poder, sem se darem conta, acabam falando e confirmando aquilo que não querem.

Fazer-me dizer "eu" ou "meu" ali onde justamente não sou eu, essa é a essência da perversão da nova forma enunciativa. Em um aparente paradoxo, o enunciado que parece ser mais interativo e simpático, é na verdade monológico. Em síntese, minha interpretação é que a fusão dos lugares enunciativos constitui um enunciado-tipo do discurso "comercial mercadológico" atual e que sua hegemonia através das demais esferas corresponde à ideologia do ultraliberalismo na qual todas as trocas e interações devem ser redutíveis à economia de mercado.

Recebido em 27/09/2012

Aprovado em 10/11/2012

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  • 1
    Ver <
    http://www.acrimed.org/article1688.html> , acessados em 28/09/2012.
  • 2
    MEDEF International é uma rede mundial a serviço das empresas francesas em mercados emergentes e em desenvolvimento.
  • 3
    [...] le mot vivant, le mot plein ne connaît pas d'objet qui soit totalement donné: par le simple fait que j'aie commencé à en parler, j'ai déjà adopté une certaine attitude envers lui, non pas une attitude indifférente, mais une attitude intéressée-opérante. Et c'est pourquoi le mot ne désigne pas seulement l'objet comme une certaine entité disponible, mais par son intonation (un mot prononcé réellement ne peut être dépourvu d'intonation : son intonation découle du fait même de sa prononciation), exprime mon attitude évaluative par rapport à cet objet, le désirable et le non-désirable en lui [...].
  • 4
    Tout ce qui est technique, détaché de l'unité singulière et livré au libre cours de la loi immanente de son propre développement est terrible; cela peut parfois faire irruption dans cette unité singulière de la vie, comme une force irresponsable, effrayante et destructrice.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      27 Set 2012
    • Aceito
      10 Nov 2012
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