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No rastro do ordinário do sentido: entre jogos de linguagem e práticas cotidianas

RESUMO

Neste artigo, busca-se desenvolver um exercício de elucubração sobre o conceito de “ordinário do sentido”, proposto inicialmente por Michel Pêcheux. O conceito, contudo, não foi plenamente desenvolvido devido à morte prematura do filósofo francês em 1983. Assim, o que se pretende é conjecturar o que poderia ser este “ordinário do sentido”. Para tal, em acordo com as sugestões de Pêcheux, segue-se explorando a “análise da linguagem ordinária”, conforme proposto por Ludwig Wittgenstein, e sua reinterpretação culturalista elaborada por Michel de Certeau nas “artes de fazer” cotidianas. Ao final do percurso, chega-se a duas hipóteses: a primeira é que o “ordinário do sentido” não configuraria um “aspecto” do sentido (ou a inclusão de novos objetos, como conversas etc.), mas sim um novo paradigma para se exercer a análise de discursos a partir de um “materialismo prático”; a segunda é que pensar o sentido em sua via ordinária faz com o que a análise do discurso tenha de levar em conta as práticas discursivas e seus diagramas de ação. Como singela homenagem às mais de 660 mil vítimas da covid-19 no Brasil, a discussão em torno dos jogos de linguagem e das práticas cotidianas será balizada pela leitura de um post do Memorial Inumeráveis em uma de suas redes sociais.

PALAVRAS-CHAVE:
Análise do discurso; Ordinário do sentido; Jogos de linguagem; Práticas cotidianas

ABSTRACT

In this article, we attempt to develop an essay on the concept of “ordinary meaning,” initially proposed by Michel Pêcheux. The concept, however, was not fully developed due to the French philosopher’s premature death in 1983. Thus, this essay aims to conjecture what this “ordinary way of meaning” might be. To do so, following Pêcheux’s suggestions, we will explore the “analysis of ordinary language,” as proposed by Ludwig Wittgenstein, and its culturalist reinterpretation by Michel de Certeau in everyday practices. At the end of the path, we arrive at two hypotheses: the first is that the “ordinary way of meaning” would not configure an “aspect” of meaning (or the inclusion of new objects, such as conversations, etc.), but a new paradigm to practice Discourse Analysis based on a “practical materialism”; the second is that thinking about meaning in its ordinary way causes Discourse Analysis to take into account discursive practices and their diagrams of action. Finally, as a simple homage to the more than 660,000 victims of COVID-19 in Brazil, the discussion around language-games and everyday practices will be guided by the reading of a Memorial Inumeráveis post in one of its social networks.

KEYWORDS:
Discourse Analysis; Ordinary way of meaning; Language-games; Everyday practices

Introdução

Em 1983, durante o congresso Marxismo e Interpretação da Cultura (Universidade de Illinois), Michel Pêcheux (2015, p.15)PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2015. inicia sua conferência anunciando a crítica que tecerá à figura do “velho teórico/erudito/marxista que queria fabricar sua biblioteca sozinho” e que, para realizar tal tarefa, “tinha absoluta convicção de estar equipado de parafusos celibatários marxistas, quando na verdade não dispunha senão de roscas... sem porcas”. Pêcheux prossegue em sua intervenção insistindo na necessidade de aproximar o marxismo a outras disciplinas do pensamento, alertando, no entanto, para que esta aproximação caminhe na direção de (re)constituir uma “ciência régia” ou uma nova ontologia. De sua parte, a preocupação parece ter sido suscitada pela emergência de uma problemática até então inédita para a Análise do Discurso: a do estatuto das discursividades que, trabalhando o acontecimento, produzem “proposições de aparência logicamente estável, suscetíveis de resposta unívoca (é sim ou não, é x ou y, etc) e formulações irremediavelmente equívocas” (PÊCHEUX, 2015, p.27-28PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2015.). É neste movimento que aflora o campo de questões relativas às circulações cotidianas tomadas no registro (do) ordinário do sentido1 1 Em uma mesma página, “ordinário das massas” se torna “ordinário do sentido” e, mais à frente, retorna outra vez como “registro [do] ordinário do sentido” (PÊCHEUX, 2015, p.48, grifos nossos). Em outros textos, a inquietação de Michel Pêcheux com as circulações cotidianas aparece pelo menos duas vezes: como “discursos subterrâneos” (PÊCHEUX, 2009, p.25) e como a possibilidade de um interdiscurso conversacional dos registros do cotidiano (PÊCHEUX, 2011). e que pretendo retomar e discutir aqui.

Apesar das diversas passagens que aludem direta ou indiretamente a este “ordinário do sentido”, Pêcheux não se deteve para dar-lhe contornos claros. Infelizmente, sua morte prematura o impediu de transformar esta alusão em um conceito mais elaborado dentro do arcabouço teórico da Análise do Discurso. Desde o ano anterior à conferência, no entanto, havia o plano de realizar uma segunda edição do colóquio Materialidades Discursivas, dedicado agora a este “ordinário do sentido”, cujo potencial, segundo Denise Maldidier (2003, p.80-81)MALDIDIER, D. A inquietação do discurso: (re)ler Michel Pêcheux hoje. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2003., era de renovação da pesquisa: “perspectiva interdisciplinar mais ampla que em 1980; acolhimento de referências pouco familiares ainda”. Nesse mesmo espírito “não-monogâmico” de sua última produção (e que sustentaria o segundo colóquio), pretendo desenvolver um exercício de elucubração para, enfim, traçar alguns contornos para o conceito.

Com essa tarefa em mente, me lanço no rastro das pistas (algumas...) que Pêcheux nos legou: os trabalhos de Ludwig Wittgenstein e Michel de Certeau. De sua parte, Pêcheux elabora um diálogo com a filosofia da linguagem de longa data, em que Wittgenstein se tornou uma figura cada vez mais presente. Este é o caso, por exemplo, do livro que escreveu com Françoise Gadet, A língua inatingível (2004 [1981])GADET, F.; PÊCHEUX, M. A língua inatingível: O discurso na história da Linguística. Trad. B. Mariani e Maria Elizabeth C. de Mello. Campinas: Pontes, 2004., no qual o filósofo austríaco é caracterizado como paradigmático de ambas as correntes (da Vida e do Direito) que constituem a contradição da disciplina linguística – sem, no entanto, se reduzir a elas. Na mesma direção, em sua conferência, Pêcheux (2015, p.49)PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2015. reconhece abertamente os possíveis avanços de uma aproximação entre as práticas interpretativas de leitura de arquivo (como a Análise do Discurso) e “as práticas da ‘análise da linguagem ordinária’ (na perspectiva anti-positivista que se pode tirar da obra de Wittgenstein)”. Para Maldidier (2003)MALDIDIER, D. A inquietação do discurso: (re)ler Michel Pêcheux hoje. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2003., enfim, Wittgenstein era definitivamente um dos interlocutores no horizonte do colóquio.

Também em sua conferência, Pêcheux (2015, p.48)PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2015. acena de passagem às explorações de Michel de Certeau em A invenção do cotidiano (1998 [1980]) como características da postura de escuta das “circulações cotidianas”. Aparentemente, no entanto, o interesse pela reinterpretação de Certeau do “modelo Wittgenstein” era muito mais significativo do que faz crer sua breve menção a ela. Ainda segundo Maldidier (2003, p.81)MALDIDIER, D. A inquietação do discurso: (re)ler Michel Pêcheux hoje. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2003., as astúcias cotidianas pareciam oferecer à Análise do Discurso o “novo objeto” que procurava, acentuado pelo interesse pelas circulações menos estabilizadas: “como, nesse novo objeto, apreender a resistência da língua? Reencontrávamos, inteira, a questão que Michel Pêcheux colocava desde sempre”.

A trilha a ser percorrida, portanto, está assim desenhada: das possíveis contribuições da análise da linguagem ordinária ao seu desdobramento nas práticas cotidianas, tocando, enfim, nas técnicas de leitura de arquivo da Análise do Discurso. Com isso, pretendo dar o passo inicial em direção ao “ordinário do sentindo”, alimentando as inquietações fundamentais dela: a existência da língua e a existência da história.

1 A linguagem ordinária e os jogos de linguagem

Em Semântica e discurso (2014 [1975]), Pêcheux argumenta que, atravessando sua história, seja pelos caminhos do empirismo ou do racionalismo, a filosofia da linguagem havia gravitado sob a tese fenomenológica segundo a qual a construção do conhecimento resultava da relação sensível do sujeito com os objetos em seu entorno. As representações linguageiras e mentais das coisas-a-saber seriam assim o meio pelo qual este sujeito de conhecimento poderia descobrir a verdade ou essência dos objetos. Um dos problemas que teria se imposto à filosofia da linguagem, por outro lado, seria o do vínculo ou até da adequação representacional entre linguagem e pensamento. Ecoando as teses de Pêcheux, pode-se facilmente ainda sustentar, como o faz Helena Martins (2000, p.23)MARTINS, H. Sobre a estabilidade do significado em Wittgenstein. Veredas: Revista de Estudos Linguísticos, Juiz de Fora, v. 4, n. 2, p.19-42, dez. 2000. Disponível em: https://www.ufjf.br/revistaveredas/files/2009/12/artigo29.pdf. Acesso em: 05 nov. 2021.
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, que muito da filosofia da linguagem está pautada, portanto, pela inclinação essencialista segundo a qual “a linguagem é basicamente um instrumento de representação - de que as palavras funcionam, antes de mais nada, como sucedâneos de entidades extra-lingüísticas”.

Dentre os muitos filósofos que se dedicaram a esta tarefa, contudo, Pêcheux (2014)PÊCHEUX, M. Semântica e discurso. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. destaca Gottlob Frege como um dos poucos que, por sua vez, teria questionado a premissa fenomenológica, principalmente quando o filósofo austríaco se aproxima do pensamento materialista quando demonstra, através das estruturas linguísticas de encaixe - no caso, as orações relativas - que, se as representações mentais dos objetos-a-conhecer “aparecem” para o sujeito, ele não passa do seu portador - e não sua origem. A objeção de Frege abriria assim espaço para pensar a significação fora de um paradigma sensível, mas material. Contudo, o “ponto cego” do materialismo fregeano, como aponta Pêcheux (2014)PÊCHEUX, M. Semântica e discurso. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 2014., foi tratar toda perturbação lógica causada pela não-coincidência entre objeto e representação (as ambiguidades, as contradições, a polissemia etc.) como “ilusões” introduzidas pelas línguas naturais no pensamento, delegando à filosofia da linguagem o desenvolvimento de uma escrita lógica - sua conceitografia [Begriffßchrift] (cf. Frege, 2009 [1890]FREGE, G. Lógica e filosofia da linguagem. Trad. Paulo Alcoforado. São Paulo: Edusp, 2009.) - que as deveria resolver ou dissipar.

Em certo sentido, até mesmo em sua crítica à premissa sensível, Frege e boa parte da filosofia da linguagem responderia ainda ao antigo “desejo aristotélico”, como o designa Helena Martis (2004, p.466; grifos nossos), de “garantir (...) que a linguagem funcione de tal forma que um termo (...) signifique com objetividade a mesma coisa nas múltiplas circunstâncias em que é utilizado”. Assim, mesmo que Pêcheux (2014)PÊCHEUX, M. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. In: PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. p.269-282. Anexo III. encontre em Frege um caminho fora da fenomenologia sensível para elaborar a construção discursiva das coisas-a-saber, o lógico austríaco estaria ainda preso à ontologia logicista segundo a qual os objetos e o pensamento, bem como sua relação, seriam da ordem do calculável. É precisamente pelo modo como Wittgenstein o desconstrói quando enfrenta problemas similares ao de Frege, mas propondo saídas diametralmente opostas, que seu pensamento pode ser interessante à Análise do Discurso.

Na tradição filosófica, entre o Tractatus Logico-Philosophicus (2001 [1921]) e a obra de maior interesse, Investigações Filosóficas (2014 [1953]), a interpretação mais corrente é que haveria ocorrido uma ruptura epistemológica, o que dividiria seu pensamento entre um “primeiro” e um “segundo” Wittgenstein. Nesse sentido, a contradição própria ao pensamento filosófico de Ludwig Wittgenstein torna-se particularmente interessante: se por um lado sua primeira obra foi a inspiração para o ápice da manifestação do desejo aristotélico entre os neopositivistas do Círculo de Viena2 2 Segundo Mélika Ouelbani (2009, p.28), apesar de sua heterogeneidade, o Círculo de Viena, composto por filósofos autoproclamados neopositivistas, tinha por objetivo combater a metafísica por meio de uma purificação da linguagem: “Livrar-se de todos os detritos e talhar os paralelepípedos de tal maneira que eles se encaixem uns nos outros” é a metáfora que a autora escolhe para representar a atuação da “filosofia científica”, definida como “uma atividade mental de esclarecimento da linguagem” (OUELBANI, 2009, p.29). - seguidores de Frege, Bertrand Russell e do “primeiro Wittgenstein” -, foi também o “segundo Wittgenstein” quem inspirou a filosofia analítica a recusá-lo ou negá-lo. Contudo, alguns de seus comentadores mais contemporâneos argumentam que, por trás do “efeito Wittgenstein”3 3 Foi assim que Gadet e Pêcheux (2004, p.125), (nota 3) nomearam a “posteridade contraditória dos dois produtos que a obra de Wittgenstein autoriza”. , há na realidade um processo de reelaboração teórica em função de uma nova necessidade filosófica, “a exigência de que a linguagem possa ser comparada diretamente com a realidade” (HINTIKKA; HINTIKKA, 1986, p.176HINTIKKA, M.; HINTIKKA, J. Investigating Wittgenstein. Oxford: Basil Blackwell, 1986.)4 4 Tradução nossa. No original, em inglês: “Wittgenstein's change of his basic language was motivated by the requirement that language must be capable of being compared with reality directly.” . Em outras palavras, o princípio ostensivo que sustenta a ontologia locisista - resumida por Wittgenstein na cena agostiniana do §1, p.155 5 Em assonância com a tradição filosófica, as passagens das IF serão referenciadas pelo número de entrada dos aforismas, ao que também acrescentarei a paginação. ) não daria mais conta de explicar a relação ordinária entre palavra, objeto e sentido.

Deparando-se com estes novos limites epistemológicos, foi necessário rever, portanto, a postura ético-política da filosofia frente à linguagem, desvelando dessa forma “o equívoco fundamental de uma certa empreitada intelectual humana, a saber, a especulação filosófica sobre o que as coisas são, a busca da determinação de suas essências” (MARTINS, 2000, p.21MARTINS, H. Sobre a estabilidade do significado em Wittgenstein. Veredas: Revista de Estudos Linguísticos, Juiz de Fora, v. 4, n. 2, p.19-42, dez. 2000. Disponível em: https://www.ufjf.br/revistaveredas/files/2009/12/artigo29.pdf. Acesso em: 05 nov. 2021.
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). Wittgenstein, portanto, avançou sobre a posição fenomenológica ao questionar seu “projeto essencialista, numa investida clara para desestabilizar a própria aposta milenar na existência de absolutos metafísicos” (MARTINS, 2004, p.471MARTINS, H. Três caminhos na filosofia da linguagem. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. (orgs.). Introdução à Linguística: Fundamentos epistemológicos. Vol. 3. São Paulo: Cortez, 2004. p.439-473.). Acredito que, se há uma perspectiva antipositivista em sua obra, ela deve se encontrar aí.

No entanto, se é verdade, como Gilles Deleuze (2013, p.110)DELEUZE, G. Rachar as coisas, rachar as palavras. In: DELEUZE, G. Conversações: (1972-1990). Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013. p.109-121. certa vez escreveu, que a “lógica de um pensamento é o conjunto das crises que ele atravessa”, cabe antes remontar minha discussão aos primeiros parágrafos das Investigações, onde Wittgenstein experimenta com a perspectiva ostensiva. Para esse propósito, a “linguagem primitiva” especulada no jogo de linguagem em §2 é exemplar:

Imaginemos uma linguagem para a qual a descrição dada por Santo Agostinho esteja correta: a linguagem deve servir ao entendimento de um construtor A com um ajudante B. A constrói um edifício usando pedras de construção. Há blocos, colunas, lajes e vigas. B tem que lhe passar as pedras na sequência em que A delas precisa. Para tal objetivo, eles se utilizam de uma linguagem constituída das palavras: ‘blocos’, ‘coluna’, ‘laje’, ‘viga’. A grita as palavras; - B traz a pedra que aprendeu a trazer ao ouvir esse grito (WITTGENSTEIN, 2014 [1953], §2, p.16WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.).

Como dito, a ostensão prega que a relação entre linguagem e o mundo é referencial: cada palavra apontaria para o objeto que ela designa. Ora, como sua contraparte, está a proposição ontológica – isto é, relativa ao estatuto do ser – de que a relação fundamental entre as palavras e as coisas são relações de identidade monísticas de objeto-designação: “toda palavra tem um significado. Este significado é atribuído à palavra. Ele é o objeto que ela designa” (WITTGENSTEIN, 2014, §1, p.15WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.; grifos nossos)6 6 Isto é, uma palavra para um (e apenas um) objeto (e vice-versa). Cf. Barbosa Filho (2008 [1973]). . Está na substância designada (o objeto ou a coisa) a essência oculta das palavras – e o papel da lógica e da filosofia seria desvelá-la.

À primeira vista, a ostensão sustentaria a linguagem em §2: cada uma das palavras anunciadas pelo construtor A (“blocos”, “coluna”, “laje”, “viga” etc.) apontaria para um (e apenas um) dos objetos que o ajudante B deve trazer (os blocos, as colunas, as lajes, as vigas etc.), constituindo-se assim como seu sentido. Uma vez que se supõe uma identidade prévia que de alguma forma estaria sempre lá, o interesse lógico seria construir, por exemplo, uma notação em que fosse possível assegurar que cada palavra anunciada por A correspondesse sempre ao mesmo objeto recolhido por B, não importando a situação em que fossem proferidas. No entanto, dando um passo atrás, Wittgenstein (2014, §19, p.23)WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014. coloca em questão as premissas desse funcionamento: como B sabe, por exemplo, que, ao dizer “laje”, A se refere ao objeto laje como um todo, e não à sua forma, cor etc.? Ou que com “laje” A esteja sempre se referindo ao mesmo objeto (laje) ou, indo além, esteja sempre anunciando a mesma ordem (trazer)? Isto é, em que consistiria, pois, este ato designativo identitário de apontar? Como se faz isso?

Wittgenstein (2014, §305, p.140)WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014. descarta qualquer resposta “psicologizante” do sujeito sensível; sua posição é categórica: “O que negamos é que a imagem do processo interior nos dá a ideia correta do emprego da palavra”. Isto é, não há nada nos processos mentais do sujeito, induzidos por sua experiência sensível, que dê conta de estabilizar os sentidos em §2 (ou em qualquer outro jogo). Mas, talvez ainda mais importante, ao voltar seu interesse para a linguagem ordinária, ponderam Merrill e Jaakko Hintikka (1986)HINTIKKA, M.; HINTIKKA, J. Investigating Wittgenstein. Oxford: Basil Blackwell, 1986., a multiplicidade dos objetos a serem definidos é também muito mais complexa do que aquela dos objetos de experiência imediata, como em “laje”, “bloco”, “viga” etc. Ou seja, a estabilidade da relação entre palavra e objeto não está, de forma alguma, garantida pelas palavras ou pelos objetos em questão.

Assim, Wittgenstein critica a premissa básica da ontologia logicista de que o nome estabeleceria uma relação de identidade representativa com seu objeto, justamente porque um ponto central desta tese seria que “a palavra não tem significado algum quando nada lhe corresponde” (WITTGENSTEIN, 2014, §40, p.37WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.). Pautar-se pelo monismo objeto-designação seria assim apenas “confundir o significado de um nome com o portador do nome” (WITTGENSTEIN, 2014, §40, p.37WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.) – grande fantasma “metafísico” contra o qual se bate a lógica positivista. Um de seus exemplos é cirúrgico: “Se morre o sr. N.N., costuma-se dizer, morre o portador do nome e não o significado do nome. E seria absurdo falar assim, pois, se o nome deixasse de ter significado, não teria sentido dizer ‘o sr. N.N. morreu’” (WITTGENSTEIN, 2014, §40, p.37WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.).

Lamentavelmente, a situação vivida no Brasil em virtude da pandemia global da covid-19 associada ao completo descaso governamental com a doença permite exemplificar com certo empirismo esta ressalva de Wittgenstein. Até o momento em que escrevo este texto, mais de 660 mil pessoas perderam suas vidas por conta do vírus. Em uma perspectiva ostensiva, visto que não há como aferir suas condições de verdade ou falseabilidade (sua “existência concreta”), todos estes nomes seriam, por assim dizer, nomes “desprovidos de sentido” (cf. Ouelbani, 2009, p.18OUELBANI, M. O Círculo de Viena. Trad. de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2009.). Ora, defender a identidade representativa dos nomes seria ignorar, por exemplo, que o nome de cada uma dessas pessoas seja ainda capaz de produzir efeitos de sentido. Como se verá mais à frente, diversas manifestações populares são indícios de que não é este o caso; ao contrário, o fato de que estas pessoas morreram atribui aos seus nomes outros significados, precisamente em virtude do descaso refletido nas condições evitáveis de sua morte - o que ressignifica, portanto, não apenas estes nomes, mas consequentemente toda a conjuntura política e social brasileira.

Ora, se se tomar por base esse fato, não há como defender que estas designações não têm sentido (“seria absurdo falar assim”), afinal, foi o próprio acontecimento da morte do “objeto” que incitou estas múltiplas designações e os novos sentidos evocados a partir delas. O ponto crítico da posição ostensiva, portanto, é que, mesmo que haja a possibilidade de uma relação monística objeto-designação, ela está ainda submetida a outro tipo de determinação: “a definição ostensiva explica o uso - o significado - da palavra, caso já esteja claro que papel a palavra tem que desempenhar na linguagem” (WITTGENSTEIN, 2014, §30, p.31WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.).

Frente a esta limitação, portanto, Wittgenstein (2014, §546, p. 197)WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014. alerta para o fato de que as “[p]alavras são também atos”, e que, portanto, “[o] significado de uma palavra é seu uso na linguagem” (WITTGENSTEIN, 2014, §43, p.38WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.). Entender e produzir sentenças seria dominar um diagrama de ação (uma práxis): “não é decifrar um algo que a sentença isolada representa, mas ter algum domínio sobre os lances que ela pode desempenhar no jogo da linguagem como um todo” (MARTINS, 2000, p.33-34MARTINS, H. Sobre a estabilidade do significado em Wittgenstein. Veredas: Revista de Estudos Linguísticos, Juiz de Fora, v. 4, n. 2, p.19-42, dez. 2000. Disponível em: https://www.ufjf.br/revistaveredas/files/2009/12/artigo29.pdf. Acesso em: 05 nov. 2021.
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). Em outras palavras, “[c]ompreender uma frase significa compreender uma língua. Compreender uma língua significa dominar uma técnica” (WITTGENSTEIN, 2014, §199, p.113WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.). O que ele argumenta, enfim, é que, ao aprendermos uma língua, não somos ensinados a estabelecer relações designativas monísticas, como supunha o modelo clássico agostiniano, mas, sim, que somos treinados a executar atividades, a usar as palavras em atividades reguladas e regulares, e a responder de certa maneira ao que nos é dito (WITTGENSTEIN, 2014, §6, p. 17WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.) - enfim a jogar jogos de linguagem (WITTGENSTEIN, 2014, §7, p. 19WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.).

Esse talvez seja o aspecto mais importante para esta reflexão. Assim, proponho explorá-la um pouco mais, novamente através da problemática da pandemia e da morte, mas agora através das práticas de luto, especificamente do Memorial Inumeráveis7 7 Como alertado em parecer, apesar de bem conduzida, esta inflexão levaria mais a enturvar do que a elucidar o problema teórico aqui enfrentado. Contudo, esta confusão em potencial não me parece negativa em ao menos dois aspectos. O primeiro é que o incerto ocupa um espaço crucial na reflexão tanto de Wittgenstein quanto de Certeau, como pretendo demonstrar aqui. Em segundo lugar, que parte fundamental do fazer do Analista do Discurso é confrontar a teoria (da linguagem, do discurso, da história) com o “fato da língua” em sua existência política e social – é somente nas análises, e através delas, que a teoria ganha corpo ou legitimidade interpretativa. Por essas razões, agradeço às pareceristas e assumo os riscos alertados, na esperança de estar confundindo para esclarecer. . Nas sociedades ocidentalizadas, os rituais de luto - como os obituários, os memoriais, os velórios etc. - conformam uma política de memória, “são práticas para lembrar aos vivos de amanhã a existência dos mortos de ontem e de hoje” (RODRIGUES, 2021, p.81RODRIGUES, C. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.). Assim, como prática, o luto se entretece por uma dupla organização da vida social: por um lado, o luto exerce a função comunitária de “construir um laço social a partir da experiência da morte” (RODRIGUES, 2021, p.75RODRIGUES, C. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.); por outro, ele exerce a função terapêutica de dar concretude à morte “como mecanismo de elaboração de todas as perdas que nos constituem” (RODRIGUES, 2021, p.70RODRIGUES, C. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.). Resumidamente, um processo no qual os sujeitos enlutados se engajam na tentativa de preencher o vazio (pessoal e social) deixado pela perda do objeto desejado, mas que ainda é desejado8 8 Para uma apresentação mais detalhada, ver Carla Rodrigues (2021) e Baldini e Nascimento (2021). - uma tentativa, portanto, de nomear o inominável.

Dessa forma, a impossibilidade de velar os mortos interdita o trabalho de luto, conformando-se em um obstáculo ao reconhecimento da perda - entrave agravado quando o interdito é irrestrito, como aconteceu durante a pandemia, em que os rituais comunitários foram proibidos para conter o avanço do contágio da doença. É nesse contexto que o Memorial Inumeráveis aparece, fornecendo uma alternativa ao construir uma política de memória que “toma a forma do ato de escrita de uma perda e circulação pública destas palavras no espaço virtual” (BALDINI; NASCIMENTO, 2021, p.76BALDINI, L.; NASCIMENTO, E. M. “Esse verso é um pouquinho de uma vida inteira...”: os inumeráveis e a morte inominável. Linguasagem, São Carlos, v. 37, n. temático, p.67-90, jan. 2021. https://www.linguasagem.ufscar.br/index.php/linguasagem/article/view/857. Acesso em: 05 nov. 2021.
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). Como explicam Baldini e Nascimento (2021)BALDINI, L.; NASCIMENTO, E. M. “Esse verso é um pouquinho de uma vida inteira...”: os inumeráveis e a morte inominável. Linguasagem, São Carlos, v. 37, n. temático, p.67-90, jan. 2021. https://www.linguasagem.ufscar.br/index.php/linguasagem/article/view/857. Acesso em: 05 nov. 2021.
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, suas homenagens são compostas de duas formas: por uma prosa poética escrita a partir do relato enviado por quem deseja homenagear a pessoa falecida, elaborada por uma “testemunha” integrante da equipe do Memorial; e por uma versão resumida, publicada como uma postagem em uma página dedicada no Instagram. Em umas destas postagens, cujo homenageado se chama Wanderson Rêgo da Silva, encontram-se os seguintes enunciados9 9 Disponível em: https://www.instagram.com/p/CS9NTogr0Ac/. Acesso: 27 ago. 2021, 14:52. :

  • (1) “Uanda era pura alegria, transformava o cotidiano em piada. Era impossível se zangar com ele”.

  • (2) Wanderson Rêgo da Silva, 43 anos, vítima do novo coronavírus em Imperatriz (MA).

  • (3) Não é um número.

Neste exemplo, o “objeto” nomeado “Wanderson Rêgo da Silva” evoca pelo menos quatro designações: as mais genéricas são as (2) e (3), de estrutura regular entre as postagens e que, respectivamente, indicam o nome e a proveniência da pessoa falecida e contestam a estatística sanitária. Ademais, “Wanderson” recebe também sentidos mais singulares, típicos de obituários elogiosos (como é o caso do Memorial), ao ser descrito em (1) a partir de suas qualidades notáveis, mas também ao ser reescrito como “Uanda”, um apelido afetuoso. Assim, por meio de designações elogiosas e informativas (cada uma delas compondo um outro jogo em si mesmas10 10 A identificação da pessoa falecida, por exemplo, participa de um jogo de linguagem diferente (segue outras regras e engendra outras relações) daqueles que a sua descrição elogiosa ou as formas de sua nomeação (tal como “Uanda”) participam. Em certo sentido, os jogos de linguagem pressupõem uma espécie de recursividade. ), compartilhadas em redes sociais e no site do projeto, reivindica-se coletivamente aquele nome como uma vida vivida, ao mesmo tempo singular e integrante de uma comunidade que, por sua vez, permanece. No que diz respeito a este exemplo, as designações do nome “Wanderson Rêgo da Silva” são entretecidas através da política lutuosa: frente à impossibilidade irrestrita de ritualizar todas/qualquer uma das mortes perdidas para a covid-19, sua vida (bem como todas as homenageadas) é celebrada. É o rito de luto assim praticado - e não uma “essência perdida” - que dá sentido a este nome.

Assim, quando Wittgenstein propõe que os atos linguísticos acontecem como jogos de linguagem, muito mais do que seguir normas ou padrões linguísticos predefinidos, ele busca salientar “que falar uma língua é parte de uma atividade ou de uma forma de vida” (WITTGENSTEIN, 2014, §23, p.27WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.). Fala-se em jogos de linguagem não apenas como um conjunto de regras, mas como práticas elaboradas em comunidades nas quais serão avaliadas a performance dessas regras a partir de sua consonância com critérios sociais de realização (WITTGENSTEIN, 2014, §242, p. 123; §261, p. 128; §269, p.130WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.). Nesse sentido, propõe-se que os jogos compõem, por um lado, “esquemas” de regras que dotam as palavras de seus significados, isto é, que atribuem os papéis que devem cumprir (WITTGENSTEIN, 2014, §197, p. 112; §563, p.202WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.); por outro, que estes jogos são o resultado da prática linguística perfilada pelas instituições humanas e sedimentadas no tempo através do seu exercício contínuo, habitual e costumeiro (WITTGENSTEIN, 2014, §198, p.112WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.). Em suma, ao inserir a práxis no seio da produção linguística, o corte de Wittgenstein faz do “comum” e do “social” partes integrantes e fundamentais da realização língua, e não sua exterioridade acessória. O apelo para “[v]er o comum” (WITTGENSTEIN, 2014, §72, p.55WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.), assim, remete tanto ao compartilhado quanto ao corriqueiro.

Contudo, alerta Balthazar Barbosa Filho (2008 [1973])BARBOSA FILHO, B. Nota sobre o conceito de jogos-de-linguagem nas Investigações [1973]. In: DALL'AGNOL, D. (org.). Wittgenstein no Brasil. São Paulo: Escuta, 2008. p.163-190., é preciso ter em mente que muito mais do que o slogan de que “o significado de uma palavra é seu uso”, a mudança de paradigma proposta por Wittgenstein com o primado dos jogos de linguagem incide sobre todo seu funcionamento: se o papel da palavra é definido pela sua prática, não se pode mais conceber a linguagem como o liame entre a experiência do sujeito, as coisas do mundo e suas essências, uma vez que haveria necessariamente sentidos (usos) que não são referenciais ou ostensivos. Em vez disso, é preciso concebê-la como o fundamento que nos possibilita agir no mundo por meio das palavras, sendo composta também pelo conjunto total destes diagramas de ação - isto é, dos jogos de linguagem (WITTGENSTEIN, 2014, §7, p. 19WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.). Dessa forma, o corte operado por Wittgenstein ao formular o modelo da linguagem ordinária provoca alterações epistemológicas e ontológicas que são, elas também, constitutivas do que seria uma posição antipositivista da linguagem ordinária.

A proposição do primado dos jogos de linguagem dá a ver que o desejo lógico em normalizar os enunciados ou de construir uma linguagem de “pureza cristalina” (WITTGENSTEIN, 2014, §107-108, p.70WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.) não deve ser apenas recusado, mas abandonado: “Acreditamos que o ideal tem que estar metido na realidade, pois acreditamos já vê-lo nela” (WITTGENSTEIN, 2014, §101, p.69WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.). Nesse sentido, à filosofia da linguagem não caberia resolver as imperfeições da linguagem ou desvelar o sentido oculto das palavras, mas apenas observar como se lhe pratica (WITTGENSTEIN, 2014, §81, p.60WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.). Com isso, Wittgenstein (2014, §208, p.115)WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014. afirma que a escrita lógica não resiste à independência do mundo concreto, uma vez que o sujeito não é um ente lógico, mas prático. Ao recusar o primado ostensivo, portanto, a filosofia não poderia mais se pautar pela experiência do sujeito fenomenológico, recusa expressa na nova epistemologia proposta por Wittgenstein: “não pense, mas olhe!” (WITTGENSTEIN, 2014, §66, p.51WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.) – isto é, não calcule o sentido a partir dos dados sensíveis apreensíveis pelo sujeito, mas o observe em ação através de suas práticas linguísticas. Enfim, pensar o “ordinário” não seria tanto circunscrevê-lo ao banal ou ao mundano, mas opor-se à idealização, abordar o uso tal qual ele se nos aparece.

Esta proposição, como se verá, satisfaz as três exigências de Pêcheux (2015, p.49)PÊCHEUX, M. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. In: PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. p.269-282. Anexo III. para a aproximação das técnicas de leitura de arquivo com a análise ordinária (ou qualquer outra abordagem das circulações cotidianas): (a) que a descrição tenha primazia sobre a interpretação, isto é, que se suponha “o reconhecimento de um real específico sobre o qual ela se instala: o real da língua” (PÊCHEUX, 2015, p.50PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2015.); (b) consequentemente, que toda descrição está aberta ao equívoco, sendo assim, todo enunciado é uma série linguística de “pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação” (PÊCHEUX, 2015, p.53PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2015.); (c) por fim, que todo discurso está sujeito à desestruturação-reestruturação de suas condições de produção (PÊCHEUX, 2015, p.56PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2015.).

Ora, através do primado dos jogos de linguagem, Wittgenstein (2014, §66, p.51)WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014. adota uma postura descritiva, e não elaborativa, da linguagem, uma vez que as regras estão em ordem desde que cumpram sua finalidade (WITTGENSTEIN, 2014, §87, p.63WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.): “‘Inexato’ é, na verdade, uma censura e ‘exato’ é um elogio. E isto quer dizer: o inexato atinge o algo tão perfeitamente como o mais exato. Depende, pois, do que chamamos ‘o alvo’” (WITTGENSTEIN, 2014, §88, p.64WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.)11 11 Escrito com outras palavras, reencontramos aqui a proposta de um encontro negativo com a regra, conforme discutido pode Françoise Gadet e Michel Pêcheux (2004). . Além disso, se o exato e o inexato (o “certo” e o “errado”) igualmente atingem o alvo – isto é, ambas são realizações concretas e efetivas de um determinado jogo de linguagem –, não se pode supor, também, que os jogos sejam jogados sempre da mesma maneira – isso seria apenas deslocar a essência da coisa-objeto para a coisa-jogo. Quanto a isso, o ângulo wittgensteiniano é irredutível: a essência, agora, não é algo que se pode encontrar num objeto (uma coisa), mas nos atos de enunciação (uma ação) (cf. Wittgenstein, 2014, §371, p.158WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.) – “E uma ação, aos olhos de Wittgenstein, não é, justamente, uma coisa” (BARBOSA FILHO, 2008 [1973], p.179BARBOSA FILHO, B. Nota sobre o conceito de jogos-de-linguagem nas Investigações [1973]. In: DALL'AGNOL, D. (org.). Wittgenstein no Brasil. São Paulo: Escuta, 2008. p.163-190.). Abordar a significação pelas vias da análise ordinária, portanto, seria atentar-se também para o fato de que “o jogo de linguagem é, por assim dizer, imprevisível. Quero dizer: não se baseia em fundamentos. Não é razoável (ou irrazoável). Está aí – tal como a nossa vida” (WITTGENSTEIN, 1990 [1969], §559, p.157WITTGENSTEIN, L. Da certeza. Trad. Maria Elisa Costa. Rio de Janeiro: Edições 70, 1990.).

Com seu primado, Wittgenstein escancara a tautologia lógico-positivista entre a escrita lógica e o uso concreto da linguagem: não há mais ideal a que comparar os usos da linguagem; é o próprio desejo de normalização da língua – “de chegar a um universo de enunciados ‘fixos e unívocos’ que recubram o conjunto da realidade” (PÊCHEUX, 2014, p.64PÊCHEUX, M. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. In: PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. p.269-282. Anexo III.) – que não passaria de uma ilusão, “uma satisfação imaginária calcada no ‘como se’” (PÊCHEUX, 2014, p.64PÊCHEUX, M. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. In: PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. p.269-282. Anexo III.). Portanto, na esteira de Balthazar Barbosa Filho (2008)BARBOSA FILHO, B. Nota sobre o conceito de jogos-de-linguagem nas Investigações [1973]. In: DALL'AGNOL, D. (org.). Wittgenstein no Brasil. São Paulo: Escuta, 2008. p.163-190., Helena Martins (2000, p.39)MARTINS, H. Sobre a estabilidade do significado em Wittgenstein. Veredas: Revista de Estudos Linguísticos, Juiz de Fora, v. 4, n. 2, p.19-42, dez. 2000. Disponível em: https://www.ufjf.br/revistaveredas/files/2009/12/artigo29.pdf. Acesso em: 05 nov. 2021.
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defende que “o tipo de estabilidade atribuível ao significado [no primado dos jogos de linguagem] não é maior nem menor do que aquele que podemos atribuir às formas de vida humanas com que a linguagem mantém laços mutuamente constitutivos”. Nesse sentido, a concordância em relação aos jogos não se reduz a uma espécie de contratualismo do sentido ou da sociedade: como lembra, as pessoas estão “concordes na linguagem” não em suas opiniões, mas em suas formas de vida (WITTGENSTEIN, 2014, § 241, p.123WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.).

Assim, o aspecto mais acentuadamente antipositivista da “escrita lógica” que Wittgenstein propõe seja tomar, na mesma medida que o regular e o repetido, a ausência, o imprevisível e o indefinido12 12 Em seus comentários, Paul Henry (2016 [1981]) explica o “efeito Wittgenstein” pela mudança de uma escrita geométrica (representacional) para uma escrita algébrica, em que se possa efetivamente escrever a ausência. Por exemplo, seria impossível representar geometricamente um quadrado com três lados, mas algebricamente, não. “Pode-se mesmo sustentar”, Henry (2016, p.174); grifos nossos) conclui, “que é a escritura da ausência que regula a escritura algébrica”. . Isto é, na linguagem ordinária, o lapso (WITTGENSTEIN, 2014, §54, p.45WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.) e o sem-sentido (WITTGENSTEIN, 2014, §282, p.133WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.) também desempenham seus papéis: não são mais empecilhos a serem eliminados, mas uma consequência da diferença dos jogos e das formas de vida, que se constituem por sua vez pela atividade de um sentido retirado de circulação (WITTGENSTEIN, 2014, §500, p.187WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.) – uma posição patentemente materialista da linguagem.

Em contrapartida, se Wittgenstein fornece uma compreensão da linguagem que pode se entretecer com a Análise do Discurso, me parece que essa aproximação teria de passar necessariamente por uma reelaboração de como a disciplina compreendeu o acontecimento enunciativo. Para Pêcheux e Fuchs (2010 [1975], p.175)PÊCHEUX, M.; FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualizações e perspectivas [1975]. In: GADET, F.; HAK, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethania S. Mariani et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2010. p.159-250., “os processos de enunciação consistem em uma série de determinações sucessivas pelas quais o enunciador se constitui pouco a pouco e que tem por característica colocar o ‘dito’ e em consequência rejeitar o ‘não dito’”. Sucintamente, portanto, se uma formação discursiva “determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc.)” (PÊCHEUX, 2014, p.147PÊCHEUX, M. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. In: PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. p.269-282. Anexo III.; grifo no original), os processos em que o dito/não-dito se articulam (as séries de determinações que aparecem como uma arenga etc.) deveriam ser considerados não como meros suportes, inertes, mas como os diagramas pelos quais uma prática linguística pôde ser realizada – práticas transversais relativas a uma forma de vida compartilhada. Seria preciso, enfim, dar conta do aspecto performativo da enunciação – indo além, é claro, do que a preocupação com sua felicidade: dar conta da ordem própria dos diferentes diagramas de ação nos quais a língua pode se encontrar com a história. É algo nesse sentido que se pode encontrar nas “circulações cotidianas”.

2 As práticas cotidianas e os usos da língua

Como a de muitos outros, a reflexão de Michel de Certeau (1998)CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998. se desenvolve em volta da configuração da “sociedade de formigas”, consequência moderna do surgimento das “massas”, “as primeiras a serem submetidas ao enquadramento das racionalidades niveladoras” (CERTEAU, 1998, p.59CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.). No entanto, a singularidade de suas investigações está na proposta de cartografar a cultura popular a partir daquilo que chamou de “antidisciplinas”: dirigindo-se especialmente a Michel Foucault e à analítica do dispositivo disciplinar13 13 Posição expressa por Foucault principalmente em Vigiar e Punir (2020 [1975]) e em escritos da década de 1970, reunidos na obra Microfísica do poder (2015). , Certeau sustenta que é preciso ir além da análise dos aparelhos de vigilância, reivindicando a atenção aos “dispositivos de astúcias que jogam com todos os seus procedimentos e os desviam” (CERTEAU, 1979, p.26CERTEAU, M. Pratiques quotidiennes. In: POUJOL, G.; LABOURIE, R. (ed.). Les cultures populaires: permanence et émergences des cultures minoritaires locales, ethniques, sociales et religieuses. Toulouse: Edouard Privat, 1979. p.23-30.)14 14 Tradução nossa. No original, em francês: “Car, aux dispositifs de surveillance, répondent les dispositifs de ruses jouant avec toutes ces procédures et les déjouant”. .

De forma bastante inusitada, portanto, Certeau encontra o problema que Wittgenstein havia formulado a partir da lógica e da língua, mas agora confrontada com a forma de vida própria às sociedades capitalistas-ocidentais-modernas: encontrar, naquilo que a ordem disciplinar científica esconde como insignificante, equivocado ou “pura” mimese, a poética transversal “praticada, em sua vida cotidiana, em suas maneiras de fazer, pelas pessoas comuns” (CERTEAU, 1979, p.24CERTEAU, M. Pratiques quotidiennes. In: POUJOL, G.; LABOURIE, R. (ed.). Les cultures populaires: permanence et émergences des cultures minoritaires locales, ethniques, sociales et religieuses. Toulouse: Edouard Privat, 1979. p.23-30.)15 15 Tradução nossa. No original, em francês: “la circulation transversale que pratiquent, dans leur vie quotidienne, dans leurs manières de faire, les gens ordinaires”. . Assim, A invenção do cotidiano pode – eventualmente deve – ser lida enquanto uma crítica inapelável ao tratamento homogeneizante da cultura por uma leitura social que, autorizada apenas aos poucos peritos legítimos a realizá-la, reduziria o indivíduo aos ditames da racionalidade técnica.

Para abordar estas astúcias, no entanto, foi preciso primeiro se distanciar da premissa segundo a qual os consumidores – ao que se poderia substituir por “sujeitos” sem muita dificuldade –, organizados pelos mapeamentos expansionistas da cultura, assumiriam, assim como o gado nas pradarias, “a figura de uma atividade de arrebanhamento”: “Às massas só restaria a liberdade de pastar a ração de simulacros que o sistema distribui a cada um/a” (CERTEAU, 1998, p.260CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.). Para Certeau (1998, p.260-261)CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998., esta posição hegemônica dos estudos culturais é insustentável – até mesmo insuportável –, pois se orientaria por um engano fundamental: “Supõe-se que ‘assimilar’ significa necessariamente ‘tornar-se semelhante’ àquilo que se absorve, e não ‘torná-lo semelhante’ ao que se é, fazê-lo próprio, apropriar-se ou reapropriar-se dele”. Corresponderia a esse enquadramento a figura do “perito”, um especialista que traria luz às práticas cotidianas e as reorientaria para formas de vida menos “alienantes” e mais “emancipatórias” – analogamente, mesmo que com outros valores em mente, a como faziam (e ainda fazem) os filósofos da linguagem através de seu preconceito da “pureza cristalina”.

Trocando em miúdos, Certeau também enfrenta o enquadramento teórico que encerra a oscilação do sentido “no inferno da ideologia dominante e do empirismo prático, considerados como ponto-cego, lugar de pura reprodução do sentido” (PÊCHEUX, 2015, p.52PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2015.). Que Certeau (1998, p.67)CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998. recorra a Wittgenstein como um “modelo”, enfim, não tem nada de acidental: “[r]aras vezes”, reconhece, “a realidade da linguagem foi tão rigorosamente levada a sério, isto é, o fato de ela definir a nossa historicidade, de nos superar e envolver sob o modo do ordinário” (CERTEAU, 1998, p.69CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.). Tal como “exato/inexato” – bem como “sério/poético”16 16 Françoise Gadet e Michel Pêcheux (2004, p.58) defendem que “[d]iante das teorias que isolam o poético do conjunto da linguagem, como lugar de efeitos especiais, o trabalho de Saussure (...) faz do poético um deslizamento inerente a toda linguagem”. Não haveria, pois, uma linguagem poética, mas apenas trabalho sobre a língua. –, o que separaria “trabalho” e “lazer” não seria uma distinção qualitativa marcada de um lado pelas ocupações laborais ditadas pelo regime capitalista e, de outro, pelas práticas ociosas que marcariam assim uma espécie de “domingo do pensamento”17 17 Sobre este debate, sugiro as críticas de Michel Pêcheux (1998); 2015). . O que há, no entanto, é a divisão de um trabalho sobre a língua e sobre as coisas, marcada pelas cisões próprias às sociedades capitalistas – divisão na qual as práticas cotidianas da “cultura popular” seriam hegemonicamente concebidas como fenômenos triviais, reproduções da ordem vigente.

Por esse ângulo, o recurso à linguagem ordinária permitiu a Michel de Certeau deslocar sua investigação desta divisão axiológica: ordinariamente, em contrapartida, na vida cotidiana não haveria imperfeições a se consertar ou funcionamentos ocultos a se revelar – isto é, não haveria nada em que um perito-especialista pudesse aperfeiçoar ou aprimorar a cultura, para qualquer fim que fosse. As práticas culturais estão “em ordem” como estão; assim sendo, deve-se, ao invés de tentar consertá-las, observar como as praticam18 18 Mesmo marcando sua diferença frente ao privilégio que Foucault cede aos aparelhos de produção em sua “microfísica do poder”, Michel de Certeau (1979; 1980) também se aproxima da proposta de uma genealogia do poder, principalmente naquilo que ela busca defender os saberes locais, combatendo, assim, “os efeitos de poder próprios a um discurso considerado como científico” (FOUCAULT, 2015 [1976], p.268). . Apoiar-se na proposta de Wittgenstein, portanto, seria uma forma de reafirmar que somos estrangeiros em nossa própria casa: estamos, assim, submetidos, mesmo que não identificados, à linguagem e à cultura ordinária.

Para evitar esta redução das práticas cotidianas ao consumo assimilativo e ao mito da mimese, portanto, a saída que Michel de Certeau elabora está em voltar a atenção, é claro, aos diagramas de ação: dar a ver aquilo que os indivíduos fazem com os signos que lhes dispõem a linguagem e a história. Frente à política das “racionalidades niveladoras” (tais como o direito penal, a medicina, a lógica, a bioestatística etc.) – e aos “peritos” que nelas buscam seu poder e legitimidade –, o ponto seria “questionar quais minúsculas práticas populares, quais maneiras de fazer respondem do lado dos praticantes aos procedimentos mudos da ordenação sociopolítica da ‘disciplina’” (CERTEAU, 1979, p.26CERTEAU, M. Pratiques quotidiennes. In: POUJOL, G.; LABOURIE, R. (ed.). Les cultures populaires: permanence et émergences des cultures minoritaires locales, ethniques, sociales et religieuses. Toulouse: Edouard Privat, 1979. p.23-30.)19 19 Tradução nossa. No original, em francês: “se demander quelles minuscules pratiques populaires, quelles manières de faire répondent du côté des pratiquants aux procédés muets de la mise en ordre socio-politique par la ‘discipline’”. . Ver como, por meio e através dessas práticas minúsculas, o poder se desdobra e se ramifica por toda parte, mas sem, no entanto, conquistar tudo por onde passa.

A distinção que se impõe às circulações cotidianas, portanto, se refere assim “às formalidades das práticas”, sendo preciso, portanto, “especificar esquemas de ações” (CERTEAU, 1998, p.92CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.; grifos no original). Seguindo um espírito wittgensteiniano, seria preciso dar a ver como o cotidiano se constitui como o espaço de relação de “duas lógicas de ação” (CERTEAU, 1998, p.48CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.): de um lado estariam as estratégias da razão técnica, enraizadas e legitimadas pelas instituições, construtoras dos saberes disciplinares e normalizadora da sociedade. As estratégias visam estabelecer lugares “próprios”, sendo capazes “de produzir, mapear e impor” (CERTEAU, 1998, p.92CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.); são ações de vigília, de (bio)metrificação, de colonização etc., cujos exemplos podem ser encontrados nas disciplinas do saber, evidentemente, mas também em todas as formas políticas de controle e regulação da vida.

De outro, estariam as ações táticas, que, não dispondo desse lugar próprio (ou da potência para produzir um), são astuciosas, “apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder” (CERTEAU, 1998, p.102CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.). São efêmeras e silenciosas, “pois não se faz[em] notar com produtos próprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante” (CERTEAU, 1998, p.39CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.). Elas são artes do desvio, da manipulação, da transformação e seus exemplos são mais fugazes: as táticas agem sobre um espaço pré-existente, conformando-se em todo tipo de gesto furtivo que faz gambiarra20 20 Originalmente, Certeau (1980, p.70) emprega “la perruque”, aludindo à expressão francesa “faire la perruque” [fazer a peruca] (que conta ainda com uma versão alternativa, “travail en perruque” [trabalhar na peruca]). Assim, ele alude diretamente à prática em que o trabalhador se utiliza do tempo e/ou das ferramentas do seu local de trabalho para fazer outras coisas que não aquelas pelas quais seria pago. Na edição brasileira, optou-se por traduzi-la por “sucata” (CERTEAU, 1998, p.86), mas acredito que a prática da sucata, mesmo que análoga, não representa devidamente a inventividade desviante das “artes de fazer”. Assim, sigo a tradição de se referir a elas como “gambiarras” (cf. ASSUNÇÃO; MENDONÇA, 2016). com os produtos do poder: “Trata-se”, esclarece, “de combates ou de jogos entre o forte e o fraco, e das ‘ações’ que o fraco pode empreender” (CERTEAU, 1998, p.97CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.). A cultura ordinária, ou ainda, o cotidiano, é o campo de batalha entretecido por esse combate.

Ilustrativamente, essas duas formas de ação podem ser observadas no enunciado (3), discutido acima. Ao declarar que “Wanderson Rêgo da Silva” não é um número, evocam-se as políticas de biometria social, que, mesmo auxiliando no combate à doença ao medir os fenômenos de população, também planificam as diferenças e desigualdades sociais: pautando-se numa relação puramente estatística (uma vida é igual/equivale a um número), se apagam as subjetividades reguladas e esquadrinhadas por elas21 21 Por exemplo, ao reduzir cada morte a um número a ser calculado estatisticamente, apaga-se, dentre outras cisões, que a mortalidade entre os povos indígenas, historicamente marginalizados pelo Estado brasileiro, é 150% maior do que se comparada ao do restante da população (cf. Fellows et al., 2020). . Ao mesmo tempo, no entanto, essa redução estatística, apesar de reconhecida, é recusada: mesmo que seja possível calcular os contágios e as vítimas, os corpos não se reduzem a esse cálculo - uma forma de lembrar enfim que não se trata de números, mas de vidas. Eis aí muito sucintamente o que estaria em jogo nesta simples recusa: a agonística entre inscrever o corpo num aparelho nivelador e em contrapartida aproveitar os inevitáveis vestígios dessa inscrição para desviá-la para outros fins.

Legislar, educar, moldar, regrar, medir, nivelar, normalizar - por excelência, as práticas colonizadoras de um poder calcado nas racionalidades técnicas. Eis aí, também, uma consideração central para Michel de Certeau: o que subjaz à tensão entre poder e astúcia é, enfim, um trabalho indefinido sobre o corpo, “volume em perpétua pulverização” (FOUCAULT, 2015, p.65FOUCAULT, M. Genealogia e poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. p.262-277.). Àquelas práticas estratégicas corresponderiam inúmeras outras, “consumos” efêmeros e fugazes que tomariam partido daquilo que se produz como resto, ruídos indesejáveis da inscrição do corpo num sistema produtivo logofílico. Pôr-se na escuta do “rumor oceânico do ordinário” (CERTEAU, 1998, p.64CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.), portanto, tem algo a ver com liberar os “vestígios do corpo” dos mecanismos técnicos que os silenciam.

Dentre esses mecanismos, o de maior interesse é com certeza o dos “usos da língua”. Para Michel de Certeau (1998)CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998., a divisão específica do trabalho sobre a língua, marcada pela relação entre a atividade escriturística (produtiva e ativa) e a leitura (silenciosa e passiva), mais do que uma entre outras, se traduziria como o acontecimento estruturante do e estruturado pelo capitalismo, seu mito fundador22 22 Como proposto por Barthes (1978, p. 131), “o mito é uma fala” que não se define pelo seu conteúdo, sendo antes “um modo de significação, uma forma” - não tem, assim, limites substanciais, mas formais. Nesse mesmo espírito, Certeau (1998, p.224) define um “mito” como “um discurso fragmentado que se articula sobre as práticas heterogêneas de uma sociedade e que as articula simbolicamente”. : “nos últimos três séculos aprender a escrever define a iniciação por excelência em uma sociedade capitalista e conquistadora” (CERTEAU, 1998, p.227CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.). A atividade escriturística, na qual um sujeito de “querer e poder” (o Autor) institui e isola um “próprio” (a página em branco) e nele fabrica seu produto (o Texto) a fim de modificar e controlar o exterior a que foi previamente isolado (o leitor/o sentido/a sociedade/o indivíduo), se configura, assim, como o diagrama de captura e colonização que se metaforiza em todas as ações estratégicas de imposição de um poder nas sociedades ocidentais modernas - em outros termos, o binômio “produção-consumo” teria como equivalente geral “escritura-leitura”.

A instauração da escriturística, assim organizada neste “novo” modo de usar a linguagem - cindido pela dupla existência entre aquilo que pode ser medido e capturado e aquilo que é fugaz e, portanto, deve ser silenciado -, está umbilicalmente relacionado “com o trabalho, quase imemorial, que se esforça por colocar o corpo (social e/ou individual) sob a lei de uma escritura” (CERTEAU, 1998, p.230CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.)23 23 Há uma longa discussão sobre como a política escriturística moderna produz o corpo em que irá inscrever seus códigos e leis, de forma que o corpo não preexiste a ela. Infelizmente, não cabe remontar a essa discussão aqui. No entanto, deixo a indicação para consultas futuras (cf. Certeau, 1998, p.230-258). . A prática que funda as sociedades modernas capitalistas ocidentalizadas é “a atividade multiforme e murmurante de [produzir textos]24 24 Chamo atenção para um equívoco de tradução (“produtos do texto”) que pode causar confusão sobre os sentidos da passagem. Conforme o original em francês: “l’activité multiforme et murmurante de produire du texte et de produire la société comme texte” (CERTEAU, 1980, p.235; grifo nosso). e de produzir a sociedade como texto” (CERTEAU, 1998, p.224CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.): isolar um “próprio” retirando-lhe tudo que remete ao “corpo” e àquilo que marca sua inscrição na história. Ela configura, assim, o gesto cartesiano basilar no qual se institui a ontologia do sujeito cognoscente e que, em nome da razão (técnica), excluem todos os vestígios do corpo vivido - matéria da inscrição do sujeito na história e, portanto, um risco inoportuno para a atividade predatória do poder moderno25 25 O exame crítico que Michel de Certeau elaborou sobre as políticas linguísticas à época da Revolução Francesa deixam ver essa dupla exclusão do corpo social e individual – no caso, em nome do absoluto “francês nacional”. Por um lado, tentou-se capturar e silenciar o patoá (grupo de dialetos rurais do francês) tendo em vista que ele varia, “escapa às regularidades e às fixações da ‘língua’. Ele é a voz móvel por onde se evanescem as estabilidades da escritura” (CERTEAU; JULIA; REVEL, 1975, p.110; no original, em francês: “Il échappe aux régularités et aux fixations de la ‘langue’. Il est la voix mobile par où s’évanouissent les stabilités de l’écriture”). Por outro, a descrição linguística do francês deu preferência às consoantes, uma vez que as vogais – produzidas pelo sopro e, portanto, elusivas – “marca[m] na linguagem a singularidade do solo e do corpo” (CERTEAU; JULIA; REVEL, 1975, p.114; no original, em francês: “marque dans le langage la singularité du sol et du corps”). .

No entanto, se as práticas colonizadoras da escritura se estendem por toda parte investindo na normalização dos corpos, a sociedade não se resume a elas: às práticas da escritura de um poder, correspondem atividades multiformes de leitura de desviá-lo, “trajetórias, não indeterminadas, mas inesperadas, que alteram, correm e mudam pouco a pouco os equilíbrios das constelações sociais” (CERTEAU, 1995, p.250CERTEAU, M. A cultura no plural. Trad. Enid Abreu Dobránszky. Papirus: Campinas, 1995.). Entre escritura e leitura, enfim, não haveria uma diferença qualitativa, mas um prolongamento: “não há a diferença que separa passividade e a atividade, mas que distingue maneiras diferentes de marcar socialmente o desvio feito em um dado por uma prática” (CERTEAU, 1995, p.248-249CERTEAU, M. A cultura no plural. Trad. Enid Abreu Dobránszky. Papirus: Campinas, 1995.; grifo no original). A leitura, prática em geral de produção silenciosa, é a forma tática de assimilar os produtos do poder, de desviá-los e de transformá-los, eventualmente manifesta em produções efêmeras, investidas no e sobre o espaço postulado por um poder - denunciando assim que o “público” não é moldado pela escritura, mas que “faz com” ela: "ler é peregrinar por um sistema imposto” (CERTEAU, 1998, p.264CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.). Em suma, se a escritura estratégica busca ensurdecer-nos aos ruídos do corpo, as leituras táticas permitem escutá-los, reinscrevendo-os nas e transformando as dinâmicas sociais. Escrever-produzir os corpos; ler-consumir seus vestígios.

Retomo uma última vez a postagem do Memorial Inumeráveis. Como discutido acima, subjaz ao enunciado (3) um pré-construído de características logicamente estabilizadas - “uma vida é sempre igual a um número”. No entanto, a agonística entre a escritura bioestatística e a leitura do Memorial vai além. A estatística dos fenômenos de população tem outras razões que apenas planificar as subjetividades que esquadrinha: como forma de inscrição de uma lei sobre o corpo social, as políticas sanitárias de controle do contágio da covid-19 se pautam pela lógica capitalista de fazer viver os “produtivos”, deixar morrer os “improducentes”, também impedindo e dificultando o luto. A morte, relegada aos ambientes hospitalares, pudorizada, perde seu valor de fato social vivenciado pelos sujeitos, respondendo agora à lógica racional da eficiência/eficácia: “a vida precisa continuar, apesar de tudo. E, no Brasil, denunciar a própria morte passa a ser obsceno, já que, no final das contas, a economia precisa continuar, apesar de todos” (BALDINI; NASCIMENTO, 2021, p.69BALDINI, L.; NASCIMENTO, E. M. “Esse verso é um pouquinho de uma vida inteira...”: os inumeráveis e a morte inominável. Linguasagem, São Carlos, v. 37, n. temático, p.67-90, jan. 2021. https://www.linguasagem.ufscar.br/index.php/linguasagem/article/view/857. Acesso em: 05 nov. 2021.
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). Lubrificar ao máximo as engrenagens sociais para que funcionem sem se deixar perturbar pelos conflitos abrigados pela memória daqueles que se foram e dos que ficaram.

No entanto, como salientam Baldini e Nascimento (2021)BALDINI, L.; NASCIMENTO, E. M. “Esse verso é um pouquinho de uma vida inteira...”: os inumeráveis e a morte inominável. Linguasagem, São Carlos, v. 37, n. temático, p.67-90, jan. 2021. https://www.linguasagem.ufscar.br/index.php/linguasagem/article/view/857. Acesso em: 05 nov. 2021.
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, apesar de submetidos à racionalidade técnica, diversas iniciativas análogas, do âmbito civil, dão a ver que as formas biopolíticas de tratar a morte (como as cerimônias vazias de minutos de silêncio, hasteamento da bandeira a meio mastro etc.) são insuficientes, ou, mais simplesmente, “uma violência a respeito da qual se deve fazer alguma coisa” (BALDINI; NASCIMENTO, 2021, p.75BALDINI, L.; NASCIMENTO, E. M. “Esse verso é um pouquinho de uma vida inteira...”: os inumeráveis e a morte inominável. Linguasagem, São Carlos, v. 37, n. temático, p.67-90, jan. 2021. https://www.linguasagem.ufscar.br/index.php/linguasagem/article/view/857. Acesso em: 05 nov. 2021.
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; grifo nosso). Frente à austeridade da morte, urge construir caminhos para que o luto se realize e para que a terapêutica dos corpos individuais e social se concretize: entre o cálculo de um óbito e outro, o Memorial busca reinscrever aquilo que foi expurgado, isto é, que a esses números correspondem subjetividades singulares.

Por exemplo, esta fabricação está materializada linguisticamente no lema do projeto, “não há quem goste de ser número, gente merece existir em prosa”26 26 Disponível em: https://inumeraveis.com.br/. Acesso em: 9 nov. 2021, 13:51. , mas também no enunciado (3), que acompanha todas as postagens do Memorial. Como a máxima indica, a leitura tática não se identifica com a simples recusa do cálculo. Resgatando elementos da racionalidade técnica, como os dados de aparência jurídica dos homenageados (“Wanderson Rêgo da Silva, 43 anos, vítima do novo coronavírus em Imperatriz (MA)”), o Memorial fabrica a ocasião de restituir aos “números” seus nomes, trazendo consigo um pouco da prosa do mundo que os constitui: poeticamente, narramse suas relações afetivas (o apelido “Uanda”, por exemplo) e algumas de suas experiências de vida (“Uanda era pura alegria, transformava o cotidiano em piada. Era impossível se zangar com ele”), construindo, assim, formas alternativas de partilhar a dor da perda, individual e coletiva, e de realizar os rituais de luto por outras vias. Insistindo nos limites que o próprio poder moderno criou para si, isto é, o fato de que “a dados mensuráveis corresponda um risco não mensurável – o de existir” (CERTEAU, 1995, p.251CERTEAU, M. A cultura no plural. Trad. Enid Abreu Dobránszky. Papirus: Campinas, 1995.), o Memorial assimila (lê, interpreta...) os dados da biometria social da pandemia como o repertório para suas próprias fabricações.

Nas astúcias cotidianas, portanto, os “fatos não são mais os dados de nossos cálculos, mas o léxico de suas práticas” (CERTEAU, 1998, p.93CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.). Estas “artes do fraco” constituem um movimento, um gesto, que mesmo marcado pela ausência de um poder próprio é consequência dele: “Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as ‘ocasiões’ e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas (...). É astúcia” (CERTEAU, 1998, p.100-101CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.). O fraco, não dispondo da potência de se afirmar sozinho, “tem que ‘fazer com’” (CERTEAU, 1998, p.79CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.) os produtos de um poder nas latitudes que, por sua vez, ele mesmo oferece.

A radicalidade de seu pensamento, portanto, está em dar a ver, no átimo da interpelação – em seu sentido filosófico e ordinário –, as astúcias de um sujeito prático que fabrica, que “(se) faz com”: “gestos hábeis do ‘fraco’ na ordem estabelecida pelo ‘forte’, arte de dar golpes no campo do outro, astúcia de caçadores, mobilidades nas manobras, operações polimórficas, achados alegres, poéticos e bélicos” (CERTEAU, 1998, p.103-104CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.); em mostrar que a toda estratégia correspondem inúmeras (e efêmeras) táticas de desvio, transformação e alteração – talvez até “formas de aparição fugidias de alguma coisa ‘de uma outra ordem’, vitórias ínfimas que, no tempo de um relâmpago, colocam em xeque a ideologia dominante tirando partido de seu desequilíbrio” (PÊCHEUX, 2014, p.278PÊCHEUX, M. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. In: PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. p.269-282. Anexo III.). O cotidiano das sociedades de formigas, antes de marcado por uma passividade generalizada, é o espaço de combate em que os fracos inscrevem “[m]il maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro” (CERTEAU, 1998, p.79CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.; grifo no original). Assim, se a sociedade capitalista moderna se produz como escritura, as irrupções inesperadas de uma voz recalcada ou a produção silenciosa da leitura – ligadas ao sujeito pelo seu corpo historicamente produzido – configuram as ocasiões em que, nos usos da língua, os indivíduos fazem algo27 27 Aqui, acredito, fica claro como as ações táticas ou as artes do desvio podem ser comparadas às formas de resistência discursiva elencadas por Michel Pêcheux (1990, p.17), conforme argumenta Ferreira (2020a, p.9); (2020b, p.327). .

Salta aos olhos, enfim, que o problema enfrentado por Michel de Certeau, e que o levou à linguagem ordinária, não é estranho à Análise do Discurso – ao contrário, ambos estão às voltas com um dos dilemas fundamentais desta disciplina: o sujeito e as práticas de sua subjetivação. Nesse sentido, orientada por uma espécie de máxima ordinária – o que fazemos com as determinações que nos são impostas?, sugere Ferreira (2020a)FERREIRA, A. C. O cotidiano na História das ideias linguísticas. Línguas e instrumentos linguísticos, Campinas, v. 23, n. 46, p.4-30, 3 nov. 2020a.; (2020bFERREIRA, A. C. Saberes linguísticos cotidianos. Porto de Letras, Palmas, v. 6, n. 5, p.325-351, nov. 2020b.) –, a forma como a ontologia prática da análise da linguagem ordinária é reinterpretada por Certeau poderia ir de encontro a algumas leituras discursivas do assujeitamento. Esse dilema não poderá ser resolvido aqui, mas duas considerações se fazem importantes: de um lado, como Ferreira (2020b)FERREIRA, A. C. Saberes linguísticos cotidianos. Porto de Letras, Palmas, v. 6, n. 5, p.325-351, nov. 2020b. adverte, ao propor um sujeito prático, Michel de Certeau (1998)CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998. não supõe uma agência transparente ao sujeito: assimilar, como dito, é tanto “tornar-se semelhante a” quanto “tornar semelhante a si” – uma questão mais de subsistência social do que de uma escolha ou vontade individual, na qual o poder se faz sempre presente como uma necessidade vital, produtiva e condicionante.

Ademais, mesmo que não se acate a tese da fabricação tal como foi formulada, é importante notar que, seja pela filosofia de Wittgenstein, seja por sua releitura em Certeau, o aceno de Pêcheux a estes autores caminha necessariamente no sentido de colocar em xeque cada vez mais uma leitura do assujeitamento que encerraria o sujeito na ideologia dominante como lugar de pura repetição - aspecto apontado por Pêcheux (2015, p.64, nota 26)PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2015. como “um dos pontos fracos da reflexão althusseriana sobre os Aparelhos Ideológicos de Estado, e das primeiras aplicações desta reflexão no domínio da Análise do Discurso na França”. Por vias distintas, portanto, Certeau e Pêcheux se encontram no mesmo lado da querela contra a “velha certeza elitista que pretende que as classes dominadas não inventam jamais nada, porque elas estão muito absorvidas pelas lógicas do cotidiano” (PÊCHEUX, 1998, p.25-26PÊCHEUX, M. Sobre a (des-)construção das teorias linguísticas. Línguas e instrumentos linguísticos, Trad. Faustino Machado da Silva, Campinas, v. 1, n. 2, p.7-32, dez. 1998.). Pensar ordinariamente o sentido é reconhecer nele um sujeito prático e engenhoso frente à linguagem e ao poder, dando a ver como as urgências do cotidiano não sufocam as classes dominadas, mas que elas também têm suas invenções.

Conclusão

Ao cabo deste diálogo com a análise ordinária, o que parece ranger é a teoria, a epistemologia das técnicas de leitura - de arquivo, da linguagem, da cultura. O ordinário não se reduz, como se poderia pensar, apenas aos jogos de linguagem que não se deixam documentar tão facilmente, como o rumor, a “poesia popular”, o humor, a fofoca, a conversa, o bate-boca etc., os típicos dos “registros do cotidiano” (PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Leitura e memória: projeto de pesquisa. In: ORLANDI, E. (ed.). Análise de discurso: Michel Pêcheux. Textos selecionados por Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2011.). Elas estão presente nestas formas de jogos, é claro, mas também naqueles enunciados com que tradicionalmente se construíram arquivos (os discursos políticos, religiosos, científicos, midiáticos etc). A via ordinária do sentido é assim transversal aos espaços “logicamente estabilizados” e “não estabilizados”. O ordinário do sentido não seria, portanto, um fenômeno localizado, mas um paradigma. Assim, me parece seguro dizer que pôr-se na escuta do ordinário do sentido é mais do que aumentar o rol de objetos da Análise do Discurso - o ordinário não seria um aspecto do sentido -, mas retomar como esta disciplina interpretativa os constrói pelo seu olhar.

Não custa reforçar que esta hipótese tem respaldo nas preocupações de Michel Pêcheux (2015, p.49)PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2015., para quem a aproximação com estes autores diz respeito diretamente às “maneiras de trabalhar sobre as materialidades discursivas implicadas em rituais ideológicos, nos discursos filosóficos, em enunciados políticos, nas formas culturais e estéticas, através de suas relações com o cotidiano, com o ordinário do sentido”. Ordinariamente, portanto, dos menos aos mais controlados campos da sociedade, estão presentes as tensões do cotidiano. Nesse sentido, as reflexões de Wittgenstein e Certeau trazem ao menos dois problemas interessantes para a leitura de arquivo da Análise do Discurso.

Em primeiro lugar, tanto um quanto outro enfatizam veementemente que há uma ordem especificamente performática do ato de dizer; ambos assim acenam para uma espessura da enunciação: o plano dos jogos de linguagem e das práticas cotidianas. Muito mais do que mero ritual empírico, talvez seja preciso atentar para as práticas discursivas também em seu aspecto performativo, o que significaria retomar o diálogo com a longa tradição analítica e pragmática dos “atos de fala” – levando em conta, é claro, que “não há identificação plenamente bem-sucedida, isto é, ligação sócio-histórica que não seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma ‘infelicidade’ no sentido performativo do termo” (PÊCHEUX, 2015, p.56PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2015.). São diversos os caminhos possíveis, e alguns já bastante próximos à Análise do Discurso materialista: é o caso do conceito de cenografia, elaborado originalmente por Dominique Maingueneau (2006)MAINGUENEAU, D. Discurso literário. Trad. A. Sobral. São Paulo: Editora Contexto, 2006, que joga com os papéis lúdicos e jurídicos da enunciação28 28 Décio Rocha (2006); (2014) explora essa possibilidade ao debater a diferenciação entre “representar” e “intervir” pela linguagem. .

Em segundo lugar, a análise ordinária propõe um sujeito prático, uma subjetivação que “se fabrica” jogando com os signos do poder. Sucintamente, o problema gira em torno da eficácia ideológica: como questionaram provocativamente Jean-Jacques Courtine e Jean-Marie Marandin (2016, p.44)COURTINE, J.-J.; MARANDIN, J.-M. Que objeto para a análise de discurso? In: CONEIN, B. et al. Materialidades discursivas. Trad. Débora Massmann et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2016, p.33-54., a “interpelação/assujeitamento do indivíduo em sujeito ideológico seria por milagre?”. Retomar o aspecto performativo do discurso é, enfim, atentar ao que acontece na subjetivação quando um indivíduo é interpelado pelo poder. Nesse sentido, a política do performativo proposta por Judith Butler (2021)BUTLER, J. Discurso de ódio: Uma política do performativo. Trad. Roberta Fabbri Viscardi. São Paulo: Editora da Unesp, 2021. se apresenta como outro caminho profícuo, tendo em vista que sua reinterpretação do ato performativo parte de leituras de autores familiares à disciplina, como Althusser e Foucault.

Seja como for, o “ordinário do sentido” convoca a adotar uma postura ética: atentar que ali “onde o aparelho científico (o nosso) é levado a partilhar a ilusão dos poderes de que é necessariamente solidário, (...) é sempre bom recordar que não se devem tomar os outros por idiotas” (CERTEAU, 1998, p.273CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.). Michel Pêcheux abre a conferência em que toca no ordinário do sentido clamando pelo fim dos celibatarismos -seria astucioso fazer algo com isso.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer àqueles que leram diferentes versões deste manuscrito, contribuindo para sua redação final: Ana Cláudia Fernandes Ferreira, Fábio Ramos Barbosa Filho, Lauro Baldini e Sírio Possenti. Agradeço também às pareceristas que avaliaram a publicação e à equipe editorial da revista pela compreensão e atenção.

  • Pareceres
    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtinina. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
  • 1
    Em uma mesma página, “ordinário das massas” se torna “ordinário do sentido” e, mais à frente, retorna outra vez como “registro [do] ordinário do sentido” (PÊCHEUX, 2015, p.48PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2015., grifos nossos). Em outros textos, a inquietação de Michel Pêcheux com as circulações cotidianas aparece pelo menos duas vezes: como “discursos subterrâneos” (PÊCHEUX, 2009, p.25PÊCHEUX, M. O estranho espelho da Análise do Discurso. In: COURTINE, J.-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. Trad. Christina de Campos Velho Birck et al. São Carlos: EdUFSCar, 2009. p.21-26.) e como a possibilidade de um interdiscurso conversacional dos registros do cotidiano (PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Leitura e memória: projeto de pesquisa. In: ORLANDI, E. (ed.). Análise de discurso: Michel Pêcheux. Textos selecionados por Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2011.).
  • 2
    Segundo Mélika Ouelbani (2009, p.28)OUELBANI, M. O Círculo de Viena. Trad. de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2009., apesar de sua heterogeneidade, o Círculo de Viena, composto por filósofos autoproclamados neopositivistas, tinha por objetivo combater a metafísica por meio de uma purificação da linguagem: “Livrar-se de todos os detritos e talhar os paralelepípedos de tal maneira que eles se encaixem uns nos outros” é a metáfora que a autora escolhe para representar a atuação da “filosofia científica”, definida como “uma atividade mental de esclarecimento da linguagem” (OUELBANI, 2009, p.29OUELBANI, M. O Círculo de Viena. Trad. de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2009.).
  • 3
    Foi assim que Gadet e Pêcheux (2004, p.125)GADET, F.; PÊCHEUX, M. A língua inatingível: O discurso na história da Linguística. Trad. B. Mariani e Maria Elizabeth C. de Mello. Campinas: Pontes, 2004., (nota 3) nomearam a “posteridade contraditória dos dois produtos que a obra de Wittgenstein autoriza”.
  • 4
    Tradução nossa. No original, em inglês: “Wittgenstein's change of his basic language was motivated by the requirement that language must be capable of being compared with reality directly.”
  • 5
    Em assonância com a tradição filosófica, as passagens das IF serão referenciadas pelo número de entrada dos aforismas, ao que também acrescentarei a paginação.
  • 6
    Isto é, uma palavra para um (e apenas um) objeto (e vice-versa). Cf. Barbosa Filho (2008 [1973])BARBOSA FILHO, B. Nota sobre o conceito de jogos-de-linguagem nas Investigações [1973]. In: DALL'AGNOL, D. (org.). Wittgenstein no Brasil. São Paulo: Escuta, 2008. p.163-190..
  • 7
    Como alertado em parecer, apesar de bem conduzida, esta inflexão levaria mais a enturvar do que a elucidar o problema teórico aqui enfrentado. Contudo, esta confusão em potencial não me parece negativa em ao menos dois aspectos. O primeiro é que o incerto ocupa um espaço crucial na reflexão tanto de Wittgenstein quanto de Certeau, como pretendo demonstrar aqui. Em segundo lugar, que parte fundamental do fazer do Analista do Discurso é confrontar a teoria (da linguagem, do discurso, da história) com o “fato da língua” em sua existência política e social – é somente nas análises, e através delas, que a teoria ganha corpo ou legitimidade interpretativa. Por essas razões, agradeço às pareceristas e assumo os riscos alertados, na esperança de estar confundindo para esclarecer.
  • 8
    Para uma apresentação mais detalhada, ver Carla Rodrigues (2021)RODRIGUES, C. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. e Baldini e Nascimento (2021)BALDINI, L.; NASCIMENTO, E. M. “Esse verso é um pouquinho de uma vida inteira...”: os inumeráveis e a morte inominável. Linguasagem, São Carlos, v. 37, n. temático, p.67-90, jan. 2021. https://www.linguasagem.ufscar.br/index.php/linguasagem/article/view/857. Acesso em: 05 nov. 2021.
    https://www.linguasagem.ufscar.br/index....
    .
  • 9
    Disponível em: https://www.instagram.com/p/CS9NTogr0Ac/. Acesso: 27 ago. 2021, 14:52.
  • 10
    A identificação da pessoa falecida, por exemplo, participa de um jogo de linguagem diferente (segue outras regras e engendra outras relações) daqueles que a sua descrição elogiosa ou as formas de sua nomeação (tal como “Uanda”) participam. Em certo sentido, os jogos de linguagem pressupõem uma espécie de recursividade.
  • 11
    Escrito com outras palavras, reencontramos aqui a proposta de um encontro negativo com a regra, conforme discutido pode Françoise Gadet e Michel Pêcheux (2004)GADET, F.; PÊCHEUX, M. A língua inatingível: O discurso na história da Linguística. Trad. B. Mariani e Maria Elizabeth C. de Mello. Campinas: Pontes, 2004..
  • 12
    Em seus comentários, Paul Henry (2016 [1981])HENRY, P. Wittgenstein e a dupla negação. In: CONEIN, B. et al. Materialidades discursivas. Trad. Débora Massmann et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2016. p.167-182. explica o “efeito Wittgenstein” pela mudança de uma escrita geométrica (representacional) para uma escrita algébrica, em que se possa efetivamente escrever a ausência. Por exemplo, seria impossível representar geometricamente um quadrado com três lados, mas algebricamente, não. “Pode-se mesmo sustentar”, Henry (2016, p.174)HENRY, P. Wittgenstein e a dupla negação. In: CONEIN, B. et al. Materialidades discursivas. Trad. Débora Massmann et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2016. p.167-182.; grifos nossos) conclui, “que é a escritura da ausência que regula a escritura algébrica”.
  • 13
    Posição expressa por Foucault principalmente em Vigiar e Punir (2020 [1975])FOUCAULT, M. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2020. e em escritos da década de 1970, reunidos na obra Microfísica do poder (2015).
  • 14
    Tradução nossa. No original, em francês: “Car, aux dispositifs de surveillance, répondent les dispositifs de ruses jouant avec toutes ces procédures et les déjouant”.
  • 15
    Tradução nossa. No original, em francês: “la circulation transversale que pratiquent, dans leur vie quotidienne, dans leurs manières de faire, les gens ordinaires”.
  • 16
    Françoise Gadet e Michel Pêcheux (2004, p.58)GADET, F.; PÊCHEUX, M. A língua inatingível: O discurso na história da Linguística. Trad. B. Mariani e Maria Elizabeth C. de Mello. Campinas: Pontes, 2004. defendem que “[d]iante das teorias que isolam o poético do conjunto da linguagem, como lugar de efeitos especiais, o trabalho de Saussure (...) faz do poético um deslizamento inerente a toda linguagem”. Não haveria, pois, uma linguagem poética, mas apenas trabalho sobre a língua.
  • 17
    Sobre este debate, sugiro as críticas de Michel Pêcheux (1998)PÊCHEUX, M. Sobre a (des-)construção das teorias linguísticas. Línguas e instrumentos linguísticos, Trad. Faustino Machado da Silva, Campinas, v. 1, n. 2, p.7-32, dez. 1998.; 2015PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2015.).
  • 18
    Mesmo marcando sua diferença frente ao privilégio que Foucault cede aos aparelhos de produção em sua “microfísica do poder”, Michel de Certeau (1979; 1980)CERTEAU, M. Pratiques quotidiennes. In: POUJOL, G.; LABOURIE, R. (ed.). Les cultures populaires: permanence et émergences des cultures minoritaires locales, ethniques, sociales et religieuses. Toulouse: Edouard Privat, 1979. p.23-30. também se aproxima da proposta de uma genealogia do poder, principalmente naquilo que ela busca defender os saberes locais, combatendo, assim, “os efeitos de poder próprios a um discurso considerado como científico” (FOUCAULT, 2015 [1976], p.268FOUCAULT, M. Genealogia e poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. p.262-277.).
  • 19
    Tradução nossa. No original, em francês: “se demander quelles minuscules pratiques populaires, quelles manières de faire répondent du côté des pratiquants aux procédés muets de la mise en ordre socio-politique par la ‘discipline’”.
  • 20
    Originalmente, Certeau (1980, p.70)CERTEAU, M. L'invention du quotidien: Arts de faire. Paris: Union Générale d’Édition, 1980. Vol. 1. emprega “la perruque”, aludindo à expressão francesa “faire la perruque” [fazer a peruca] (que conta ainda com uma versão alternativa, “travail en perruque” [trabalhar na peruca]). Assim, ele alude diretamente à prática em que o trabalhador se utiliza do tempo e/ou das ferramentas do seu local de trabalho para fazer outras coisas que não aquelas pelas quais seria pago. Na edição brasileira, optou-se por traduzi-la por “sucata” (CERTEAU, 1998, p.86CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.), mas acredito que a prática da sucata, mesmo que análoga, não representa devidamente a inventividade desviante das “artes de fazer”. Assim, sigo a tradição de se referir a elas como “gambiarras” (cf. ASSUNÇÃO; MENDONÇA, 2016ASSUNÇÃO, H.; MENDONÇA, R. A estética política da gambiarra cotidiana. Cosmopolítica, Rio de Janeiro, v. 6, n.1, p.92-114, jun. 2016. http://www.compolitica.org/revista/index.php/revista/article/view/96. Acesso em: 05 nov. 2021.
    http://www.compolitica.org/revista/index...
    ).
  • 21
    Por exemplo, ao reduzir cada morte a um número a ser calculado estatisticamente, apaga-se, dentre outras cisões, que a mortalidade entre os povos indígenas, historicamente marginalizados pelo Estado brasileiro, é 150% maior do que se comparada ao do restante da população (cf. Fellows et al., 2020FELLOWS, M. et al. Não são números, são vidas! A ameaça da COVID-19 aos povos indígenas da Amazônia brasileira. 19 de junho de 2020. Disponível em: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/nao-sao-numeros-sao-vidas-ameaca-da-covid-19-aos-povos-indigenas-da-amazonia. Acesso em: 05 nov. 2021.
    https://acervo.socioambiental.org/acervo...
    ).
  • 22
    Como proposto por Barthes (1978, p. 131)BARTHES, R. Mitologias. Trad. Rita Buongermino e Pedro Souza. Rio de Janeiro/São Paulo: DIFEL, 1978., “o mito é uma fala” que não se define pelo seu conteúdo, sendo antes “um modo de significação, uma forma” - não tem, assim, limites substanciais, mas formais. Nesse mesmo espírito, Certeau (1998, p.224)CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998. define um “mito” como “um discurso fragmentado que se articula sobre as práticas heterogêneas de uma sociedade e que as articula simbolicamente”.
  • 23
    Há uma longa discussão sobre como a política escriturística moderna produz o corpo em que irá inscrever seus códigos e leis, de forma que o corpo não preexiste a ela. Infelizmente, não cabe remontar a essa discussão aqui. No entanto, deixo a indicação para consultas futuras (cf. Certeau, 1998, p.230-258CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.).
  • 24
    Chamo atenção para um equívoco de tradução (“produtos do texto”) que pode causar confusão sobre os sentidos da passagem. Conforme o original em francês: “l’activité multiforme et murmurante de produire du texte et de produire la société comme texte” (CERTEAU, 1980, p.235CERTEAU, M. L'invention du quotidien: Arts de faire. Paris: Union Générale d’Édition, 1980. Vol. 1.; grifo nosso).
  • 25
    O exame crítico que Michel de Certeau elaborou sobre as políticas linguísticas à época da Revolução Francesa deixam ver essa dupla exclusão do corpo social e individual – no caso, em nome do absoluto “francês nacional”. Por um lado, tentou-se capturar e silenciar o patoá (grupo de dialetos rurais do francês) tendo em vista que ele varia, “escapa às regularidades e às fixações da ‘língua’. Ele é a voz móvel por onde se evanescem as estabilidades da escritura” (CERTEAU; JULIA; REVEL, 1975, p.110CERTEAU, M.; JULIA, D.; REVEL, J. Une politique de la langue. La Révolution française et le patois: L'enquête de Grégoire. Paris: Gallimard, 1975.; no original, em francês: “Il échappe aux régularités et aux fixations de la ‘langue’. Il est la voix mobile par où s’évanouissent les stabilités de l’écriture”). Por outro, a descrição linguística do francês deu preferência às consoantes, uma vez que as vogais – produzidas pelo sopro e, portanto, elusivas – “marca[m] na linguagem a singularidade do solo e do corpo” (CERTEAU; JULIA; REVEL, 1975, p.114CERTEAU, M.; JULIA, D.; REVEL, J. Une politique de la langue. La Révolution française et le patois: L'enquête de Grégoire. Paris: Gallimard, 1975.; no original, em francês: “marque dans le langage la singularité du sol et du corps”).
  • 26
    Disponível em: https://inumeraveis.com.br/. Acesso em: 9 nov. 2021, 13:51.
  • 27
    Aqui, acredito, fica claro como as ações táticas ou as artes do desvio podem ser comparadas às formas de resistência discursiva elencadas por Michel Pêcheux (1990, p.17)PÊCHEUX, M. Delimitações, inversões, deslocamentos. Caderno de Estudos Linguísticos. Trad. José Horta Nunes, Campinas, v. 19, n. 1, p.7-24, dez. 1990. Disponível em: https://www.academia.edu/29711627/Delimita%C3%A7%C3%B5es_Invers%C3%B5e s_Deslocamentos_1_. Acesso em: 22 mar. 2023
    https://www.academia.edu/29711627/Delimi...
    , conforme argumenta Ferreira (2020a, p.9)FERREIRA, A. C. O cotidiano na História das ideias linguísticas. Línguas e instrumentos linguísticos, Campinas, v. 23, n. 46, p.4-30, 3 nov. 2020a.; (2020b, p.327FERREIRA, A. C. Saberes linguísticos cotidianos. Porto de Letras, Palmas, v. 6, n. 5, p.325-351, nov. 2020b.).
  • 28
    Décio Rocha (2006)ROCHA, D. Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem. Gragoatá, Niterói, n. 21, p.355-372, 2. sem. 2006. Disponível em: https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/33231. Acesso em: 05 nov. 2021.
    https://periodicos.uff.br/gragoata/artic...
    ; (2014ROCHA, D. Representar e intervir: linguagem, prática discursiva e performatividade. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 14, n. 3, p.619-632, set./dez. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ld/a/cMYCwn43CZP6wBxmXvRzF5L/?lang=pt. Acesso em: 05 nov. 2021.
    https://www.scielo.br/j/ld/a/cMYCwn43CZP...
    ) explora essa possibilidade ao debater a diferenciação entre “representar” e “intervir” pela linguagem.
  • FAPESP, Proc. 2019/01680-1
  • Declaração de disponibilidade de conteúdo

    Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

REFERÊNCIAS

  • ASSUNÇÃO, H.; MENDONÇA, R. A estética política da gambiarra cotidiana. Cosmopolítica, Rio de Janeiro, v. 6, n.1, p.92-114, jun. 2016. http://www.compolitica.org/revista/index.php/revista/article/view/96 Acesso em: 05 nov. 2021.
    » http://www.compolitica.org/revista/index.php/revista/article/view/96
  • BALDINI, L.; NASCIMENTO, E. M. “Esse verso é um pouquinho de uma vida inteira...”: os inumeráveis e a morte inominável. Linguasagem, São Carlos, v. 37, n. temático, p.67-90, jan. 2021. https://www.linguasagem.ufscar.br/index.php/linguasagem/article/view/857 Acesso em: 05 nov. 2021.
    » https://www.linguasagem.ufscar.br/index.php/linguasagem/article/view/857
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  • CERTEAU, M. A cultura no plural Trad. Enid Abreu Dobránszky. Papirus: Campinas, 1995.
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  • CERTEAU, M. L'invention du quotidien: Arts de faire. Paris: Union Générale d’Édition, 1980. Vol. 1.
  • CERTEAU, M. Pratiques quotidiennes. In: POUJOL, G.; LABOURIE, R. (ed.). Les cultures populaires: permanence et émergences des cultures minoritaires locales, ethniques, sociales et religieuses. Toulouse: Edouard Privat, 1979. p.23-30.
  • CERTEAU, M.; JULIA, D.; REVEL, J. Une politique de la langue La Révolution française et le patois: L'enquête de Grégoire. Paris: Gallimard, 1975.
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    » https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/nao-sao-numeros-sao-vidas-ameaca-da-covid-19-aos-povos-indigenas-da-amazonia
  • FERREIRA, A. C. O cotidiano na História das ideias linguísticas. Línguas e instrumentos linguísticos, Campinas, v. 23, n. 46, p.4-30, 3 nov. 2020a.
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    » https://www.academia.edu/29711627/Delimita%C3%A7%C3%B5es_Invers%C3%B5e s_Deslocamentos_1_
  • PÊCHEUX, M. Leitura e memória: projeto de pesquisa. In: ORLANDI, E. (ed.). Análise de discurso: Michel Pêcheux. Textos selecionados por Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2011.
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  • PÊCHEUX, M. Semântica e discurso Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.
  • PÊCHEUX, M. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação. In: PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. p.269-282. Anexo III.
  • PÊCHEUX, M. Sobre a (des-)construção das teorias linguísticas. Línguas e instrumentos linguísticos, Trad. Faustino Machado da Silva, Campinas, v. 1, n. 2, p.7-32, dez. 1998.
  • PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2015.
  • PÊCHEUX, M.; FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualizações e perspectivas [1975]. In: GADET, F.; HAK, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethania S. Mariani et al Campinas: Editora da Unicamp, 2010. p.159-250.
  • ROCHA, D. Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem. Gragoatá, Niterói, n. 21, p.355-372, 2. sem. 2006. Disponível em: https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/33231 Acesso em: 05 nov. 2021.
    » https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/33231
  • ROCHA, D. Representar e intervir: linguagem, prática discursiva e performatividade. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 14, n. 3, p.619-632, set./dez. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ld/a/cMYCwn43CZP6wBxmXvRzF5L/?lang=pt Acesso em: 05 nov. 2021.
    » https://www.scielo.br/j/ld/a/cMYCwn43CZP6wBxmXvRzF5L/?lang=pt
  • RODRIGUES, C. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
  • WITTGENSTEIN, L. Da certeza Trad. Maria Elisa Costa. Rio de Janeiro: Edições 70, 1990.
  • WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas [1953]. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Vozes, 2014.
  • WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus [1921]. Trad. Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp, 2001.

Parecer I

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer I

O artigo “No rastro do ordinário do sentido: entre jogos de linguagem e práticas cotidianas”, conforme o próprio título indica, é uma investigação do conceito de “ordinário do sentido” proposto por M. Pêcheux, mas não completamente desenvolvido por ele (RESUMO, p.1). Demonstrando grande conhecimento de uma bibliografia riquíssima, o trabalho aqui apresentado é muito bem embasado em suas argumentações. De fato, o autor consegue colocar em diálogo (e em “pé de igualdade”) Pêcheux, Wittgenstein, Michel de Certeau etc. para propor, de modo muito bem fundamentado, uma leitura original - o que já justificaria sua publicação.

Por isso, ao mesmo tempo, entendo que a análise da postagem do “Memorial Inumeráveis” (p. ex., p.18, 19) menos ajuda e mais “embaça” o propósito maior do texto, que é o trabalho conceitual bastante importante não apenas para os estudos do discurso, como também para uma História das Ideias Linguísticas. Enfim, creio que o exame do “Memorial” mais confunde do que contribui para o desenvolvimento do texto. Em termos de redação, sugiro apenas rever o final do artigo logo antes da “Conclusão” (p.21), quando se vai ressaltar “duas considerações”. Sugiro que, depois dessa frase (que terminaria, então, em “mas duas considerações se fazem importantes.”), o texto ficaria mais claro se deixasse as duas considerações mais explícitas.

Feitas essas breves considerações, sublinho a ótima análise empreendida e a grande contribuição que este artigo pode trazer para os estudos da linguagem com sua tese de que “[o] ordinário do sentido não seria assim um fenômeno localizado, mas um paradigma” (p.22), e que “o ‘ordinário do sentido’ convoca a adotar uma postura ética” (p.23). Assim, recomendo a aceitação do artigo para publicação. APROVADO

  • recomendação: revisão

Histórico

  • Parecer recebido em
    17 Jun 2022

Disponibilidade de dados

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2022
  • Aceito
    26 Mar 2023
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