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Chico Mendes Vive: Amazônidas em defesa da vida

Resumo

Este relato é resultado da roda de conversa “Chico Mendes Vive”, realizada durante o III Congresso Latino-Americano de Ecologia Política. É uma escrevivência de quatro mulheres Amazônidas, Angela Mendes, Claudelice Santos, Edel Moraes e Sônia Guajajara, cujas falas emergem da experiência de indígenas, pretas, caboclas, agroextrativistas, que fazem de suas vidas uma luta em defesa da Mãe Terra e do “bem comum”, que agrega, acolhe e alimenta todas as demais formas de ser e estar no universo. Essa narrativa expressa a continuidade da re-existência de povos originários e indígenas, a reconexão dos povos da floresta, das águas e do campo, através do legado deixado por Chico Mendes, um filho da Amazônia, que foi assassinado por defender e lutar pela vida.

Palavras-chave:
Chico Mendes; Am azônia; resistência; violência; comum

Abstract

This narrative is the result of the round of talks “Chico Mendes Vive”, held during the III Latin American Congress of Political Ecology. It is a living experience of four Amazonian women, Angela Mendes, Claudelice Santos, Edel Moraes and Sônia Guajajara, whose speeches emerge from the experience of indigenous, black, cabocla, agro-extractivist women, who make of their lives a struggle in defense of Mother Earth and of the “common good”, which aggregates, welcomes and feeds all the other forms of being in the universe. This narrative expresses the continuity of the re-existence of native and indigenous peoples, the reconnection of the peoples of the forest, water and countryside, through the legacy left by Chico Mendes, a son of the Amazon, who was assassinated for defending and fighting for life.

Keywords:
Chico Mendes; Amazon; resistance; violence; common

Resumen

Esta narración es el resultado de la ronda de charlas “Chico Mendes Vive”, celebrada durante el III Congreso Latinoamericano de Ecología Política. Es una experiencia viva de cuatro mujeres amazónicas, Angela Mendes, Claudelice Santos, Edel Moraes y Sônia Guajajara, cuyos discursos surgen de la experiencia de las mujeres indígenas, negras, caboclo, agroextractivistas, que hacen de su vida una lucha en defensa de la Madre Tierra y del “bien común”, que agrega, acoge y alimenta todas las demás formas de ser del universo. Esta narración expresa la continuidad de la reexistencia de los pueblos nativos e indígenas, la reconexión de los pueblos de la selva, el agua y el campo, a través del legado que dejó Chico Mendes, un hijo de la Amazonia, que fue asesinado por defender y luchar por la vida.

Palabras-clave:
Chico Mendes; Amazonía; resistencia; violencia; común

Este relato é resultado da roda de conversa “Chico Mendes Vive”, realizada em 22 de março de 2019, durante o III Congresso Latino-Americano de Ecologia Política. O que segue é uma escrevivência de quatro mulheres Amazônidas, cujas falas emergem da experiência de indígenas, pretas, caboclas, agroextrativistas, que fazem de suas vidas uma luta em defesa da Mãe Terra, “bem comum” que agrega, acolhe e alimenta todas as demais formas de ser e estar no universo. Este registro exprime mais do que pensamentos, são histórias reais de quem é da Amazônia. O que nos une é a dor da perda de entes queridos; a angústia e medo transformados em coragem para levantar nossos corpos, doar e fazer ecoar nossas vozes; o clamor em defesa de todo o meio ambiente (do qual somos apenas uma pequena partícula); a força do caminhar com esperança, de compartilhar sonhos e utopias, sem jamais calar ou deixar de denunciar as violações contra povos e comunidades tradicionais do Brasil. É a continuidade da re-existência como povos originários e indígenas, a reconexão dos povos da floresta, das águas e do campo, através do legado deixado por Chico Mendes, um filho da Amazônia, que foi assassinado por defender e lutar pela vida.

Denunciamos as ameaças e mortes, defendemos nossos territórios, anunciamos nossas conquistas, socializamos nossos conhecimentos, partilhamos sonhos e utopias. Alegra-nos estarmos juntas em uma roda de conversa. Isso nos faz pensar e acreditar que não estamos sozinhas neste enfrentamento que a vida nos impõe e nos dá esperança de alcançarmos muitos/as outros/as para se juntarem a nós. Boa leitura e reflexão para todas e todos.

A dor da denúncia nas falas e o esperançar nos atos em defesa do bem comum

No início de 2019, Ricardo Salles foi nomeado Ministro do Meio Ambiente do Brasil. Em uma entrevista, ao ser questionado sobre Chico Mendes, respondeu: “O que importa quem é Chico Mendes agora?”. Chico Mendes, um filho da Amazônia, conhecido no mundo todo, foi assassinado por lutar e defender a floresta e os trabalhadores seringueiros no Estado do Acre-BR. Seu legado ultrapassou os seringais do Acre, lançou-se como semente e brotou em diversos biomas do Brasil.

Em uma de suas frases mais famosas, diz: “No começo eu pensei que lutava para salvar a seringueira, depois eu pensei que lutava para salvar a Amazônia, agora eu sei que luto por todos do planeta”. Foi com esta frase que eu, Edel Moraes, na época vice-presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativista, convidei para a roda de conversa Sônia Guajajara, primeira mulher indígena a colocar seu nome à disposição para vice-presidência do Brasil em 2018, Angela Mendes, Secretária da Mulher do Conselho Nacional dos Povos Tradicionais Extrativistas (antigo Conselho Nacional dos Seringueiros) e Claudelice Santos, irmã de José Cláudio e Maria do Espirito Santos, ambos também assassinados por defenderem um território coletivo.

Para iniciarmos o diálogo, fizemos uma leitura coletiva da letra da música de Vital Farias, “A Saga da Amazônia”:

Era uma vez na Amazônia a mais bonita floresta (...) Veio caipora de fora para a mata definhar E trouxe dragão-de-ferro, prá comer muita madeira E trouxe em estilo gigante, prá acabar com a capoeira Fizeram logo o projeto sem ninguém testemunhar Prá o dragão cortar madeira e toda mata derrubar Se a floresta meu amigo, tivesse pé prá andar Eu garanto, meu amigo, com o perigo não tinha ficado lá O que se corta em segundos gasta tempo prá vingar E o fruto que dá no cacho pra gente se alimentar? (...)

Na sequência, questionamos: Como podemos pensar que Chico Mendes continua vivo? Qual seu legado ao povo brasileiro? Passamos então a palavra à Angela Mendes, herdeira não só do sobrenome, mas também da luta de seu pai, que faz da vida re-existência:

No ano passado (2018), em dezembro, reunimos em Xapuri cerca de 500 pessoas entre companheiros e companheiras das reservas extrativistas florestais e marinhas da Amazônia e outros biomas brasileiros, admiradores e apoiadores de luta de Chico Mendes, gente dos vários lugares desse planeta por onde Chico conquistou importantes parcerias para fortalecer a luta dos extrativistas. O ato fez parte da programação anual da Semana Chico Mendes, coordenada pelo Comitê Chico Mendes e teve como tema: “Chico Mendes, uma memória a honrar um legado a defender”.

Mas de que legado estamos falando mesmo? Estamos falando de educação e território, conquistas que foram fundamentais na consolidação deste modelo revolucionário de reforma agrária da Amazônia. O “Projeto Seringueiro”, cuja metodologia adotada foi a de Paulo Freire, foi criado em 1981 por Chico Mendes e Mary Allegretti com objetivo de formar monitores para alfabetizar os seringueiros, que, na época, eram mantidos na condição de semi-escravidão pelo patrão seringalista, que, abusando do fato deles não conhecerem números, os mantinha sempre com débitos gigantescos (os donos dos seringais também eram os fornecedores de víveres e mantimentos nos barracões), fazendo assim com que trabalhassem dia e noite na produção de borracha pra sanar a dívida que nunca acabava. A primeira escola foi construída no Seringal Nazaré e era uma casinha de pau-a-pique, muito simples e rústica. A área de abrangência do projeto era a região de Xapuri e Epitaciolândia. Em 2007, quando foi entregue para gestão do sistema público de educação, já contava com 100 escolas com estrutura moderna e com quase 2000 alunos e alunas alfabetizados, alguns já formados pela Universidade Federal do Acre (UFAC), inclusive. Destes, alguns voltaram pra sua comunidade para contribuir e aplicar lá seus conhecimentos, principalmente na área de educação como gestores e professores rurais. Esse projeto foi reconhecido e recebeu vários prêmios, inclusive do UNICEF-Brasil. Este foi o legado de Chico Mendes na educação.

Já a conquista das reservas extrativistas foi um processo longo e difícil de mobilização, organização sindical e articulação política, liderado por Chico Mendes, e que resultou no I Encontro Nacional dos Seringueiros, realizado em 1985, em Brasília. O resultado de todo esforço para mobilizar cerca de 150 seringueiros e seringueiras do Acre, Amazonas, Rondônia, Pará e Amapá foi a definição das reservas extrativistas como o modelo ideal de reforma agrária ecológica coletiva para a Amazônia, considerando suas particularidades e a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), hoje Conselho Nacional das Populações Extrativistas. As primeiras reservas extrativistas (Resex) foram criadas em 1990. Eu sempre digo que meu pai concebeu as filhas, mas não as viu nascer.

Com o mesmo objetivo de uso sustentável e tendo como modelo as Resex, foram sendo criados outros territórios como Reservas Extrativistas Marinhas, Reservas de Desenvolvimento Sustentável e Projetos de Assentamentos Diferenciados, que, somados, contribuem para a proteção de mais de 60 milhões de hectares de floresta e manguezais e milhares de famílias. Não é qualquer legado, é legado de vida. Essa força que movia essas pessoas lá atrás é a força que nos impulsiona a continuar na luta, porque ainda hoje a Amazônia só é valorizada por ativos econômicos mercadológicos como a madeira, o gado, a soja, a mineração, a energia, sem considerar os aspectos culturais, históricos e ancestrais dos conhecimentos tradicionais. Isso não tem preço.

Mas a luta é de todos nós, por isso estamos aqui, porque não podemos resistir sozinhas, é preciso que nos juntemos numa grande frente de resistência pela Amazônia, incluindo os diversos movimentos e segmentos que seguem ameaçados tanto quanto nós, incluindo principalmente a academia, e é isso que estamos fazendo aqui agora, chamando para o embate em defesa das florestas e das águas.

Com a palavra, Claudelice Santos:

Os corpos desaparecem, mas a história permanece e por isso que nós estamos aqui para contá-la. Por isso que vocês estão ouvindo, para continuar a contar essa história, para não deixar essa história morrer. Meu nome é Claudelice Santos e eu morava em um assentamento extrativista chamado Praia Alta Piranheira em Nova Ipixuna-PA. E desde o ano de 2011, eu tive que sair do meu assentamento porque mataram meu irmão e minha cunhada, em uma emboscada, em uma ponte, onde eles não tinham pra onde fugir. Eles não tiveram a menor chance de defesa, ele teve a orelha cortada. Foram tirados da estrada, arrastados, da beira da floresta e lá eles terminaram de executar os dois.

Por que que mataram o Zé Cláudio e a Maria? Porque eles também são legados de Chico, porque quando moravam no meio da floresta, com uma outra perspectiva e quase sem esperança, foi desse legado, foi da luta do Chico Mendes que eles tiraram forças para entrar dentro do movimento ambientalista e lutar pela legalização da terra, lutar para que aquele assentamento fosse criado de uma outra forma: com uma perspectiva de conservação e não como na região Sul e Sudeste do Pará, dividido em lotes. [É] uma outra perspectiva de olhar pra terra, um outro olhar para aquelas pessoas, levando em consideração a forma de vida de cada um, levando em consideração o meio produtivo que era o uso sustentável da terra.

Ao longo desses anos, até eles serem assassinados, serem tirados de nós, eles lutaram para que o assentamento todo fosse finalmente liberto e que as pessoas que precisassem de terra, floresta e lugar pra trabalhar, tivessem. Então eles começaram a fazer as denúncias das extrações de madeira, porque quando começou a regularizar a área, os “donos” fazendeiros começaram a permitir que os madeireiros retirassem a madeira, porque eles sabiam que tinha um grupo de resistência que não ia deixar aquela terra pública, de domínio público, na mão de poucos enquanto tinha muitos precisando.

Observem que quando existe alguém fazendo uma denúncia, ela tá gritando por socorro numa situação. A floresta, ela não tem boca pra gritar, mas ela tem a nós para protegê-la. Então cabe a nós fazer isso e era isso que eles faziam. O grito que vem dos guetos, o grito que vem dos terreiros.

Chico Mendes vive quando cada um de nós fala dele, da luta dele, para manter a memória dele viva, [as de] Zé Claudio, Maria e Marielle também. E que a luta, a dor que a gente passa lá, eu sei que a maioria de vocês também sente quando a gente fala, quando a gente revive toda a dor, todos os dias, todas as vezes que a gente lembra dos nossos mártires. E pelos mártires nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta.

A nossa maior riqueza é a mãe terra

Convidada para continuar, Sônia Guajajara inicia denunciando:

Não mata só quando mata fisicamente, mas mata também quando nos tira o direito de exercer os nossos modos de vida. Estamos cansados é de ver o nosso povo apanhar, de ver o nosso povo morrer, de ver os nossos parentes todo dia sendo sacrificados, sendo excluídos, sendo dizimados. Então é por isso que a gente está aqui, é por isso que a gente está sempre circulando.

O Estado brasileiro foi o maior instrumento de roubo de territórios indígenas. Essa luta é muito violenta, não é uma luta individual, não é uma luta de pessoas, é sempre uma luta coletiva em defesa dos bens comuns. O chão do estado da Bahia (Brasil), tem todo esse significado histórico para nós. Foi aqui que começou esse primeiro processo de extermínio e isso não aconteceu de forma aleatória, foi um extermínio planejado: primeiro pelos europeus e (...) pelo próprio Estado brasileiro. Então essa história de crescimento econômico, de progresso, desenvolvimento, a origem disso, a matriz desse crescimento sempre se deu com base no extermínio, no genocídio e no sangue de nossos povos. Quais foram os primeiros atacados? Os povos indígenas e a população de origem africana. Hoje nós estamos vendo isso se refletindo na Amazônia, estamos vivendo todo esse processo violento (...).

Os povos indígenas quase acabaram. Durante muito tempo também foi negado a nós a identidade. Hoje estamos num processo de buscar as nossas origens de autodeterminação, de autoconhecimento. Nos calaram, mas agora as pessoas se levantam assumindo as suas raízes. Tentaram tirar nossa identidade, pois quando tira o território você também tira a identidade. É quando a gente não pode exercer o nosso modo de vida, e a gente deixa de ser o que é. O Estado Brasileiro roubou territórios indígenas para entregar para os fazendeiros. Quando a gente faz a luta pela retomada, a gente é dito como invasor. E, hoje, no Brasil, isso é muito dito pelos ruralistas. 13% do território nacional é território indígena, mas se você for fazer a conta ao inverso, você vê que 1% dos grandes ruralistas detêm 46% das propriedades privadas. Por que esse número não é dito também? Quando a gente faz essa luta, é uma luta coletiva, é pra todo mundo. São exatamente essas terras que a gente defende, que a gente protege, que estão garantindo a vida no planeta. Então nós precisamos não só pensar a importância dos territórios indígenas, o que [são] as unidades de conservação, o que é que as populações tradicionais extrativistas estão garantindo lá, mas a gente tem que começar a pensar também essas questões de conceitos, o que é que a universidade está fazendo para mudar esse entendimento, essa compreensão do que é importante e essencial para garantir a vida.

Então tem o tempo todo essa intenção de fora de [nos] colocar ali no lugar dos atrasados. Nós somos os atrasados porque estamos na roça, porque estamos no campo, porque estamos na floresta. Então lá não chegou ainda a civilização, é assim que tratam a gente. A ideia do crescimento, do desenvolvimento, do progresso que está na cidade, de quem destrói os rios, de quem coloca cimento em cima de tudo, que corta as árvores, isso que é chamado de progresso. Está muito invertido. (...) Precisamos inverter isso e começar a fazer as pessoas pensarem e entenderem, para acabar com essa dualidade que há entre o que é o atraso e o que é o crescimento.

Então as pessoas também que dizem [nos] apoiar, que estão preocupadas, que se dizem do nosso lado, vamos começar também a ter essa compreensão e colocar isso em prática? A gente não vai mudar nunca, não vai, porque fica o tempo todo na fala, e nós não temos mais tempo pra ficar falando, pensando. Nós temos que agir, conjuntamente.

Nossa aliança dos povos da floresta com as comunidades tradicionais extrativistas (...) nunca se rompeu, porque o entendimento que a gente tem do uso da terra é um só. E hoje, no Brasil, a maior disputa que existe é essa disputa pela terra, porque tá todo mundo, as forças econômicas e políticas, o que elas querem é colocar as mãos nesses territórios, o que elas querem é flexibilizar a legislação ambiental para poder implantar cada vez mais empreendimentos, mudar a legislação (...) e facilitar o acesso e a exploração (...).

Então a gente tem que também pensar hoje, principalmente em um ambiente que tem tanta gente diferente de vários segmentos, (...) com esse Congresso maravilhoso que está com várias conexões de vários países, (...) nessas coisas que nos unem. (...) E nós ficamos falando aqui, contando o que foi tudo isso que está sendo, mas a gente não quer de jeito nenhum que as pessoas olhem pra gente como os coitadinhos. Não, de jeito nenhum. A gente quer que o povo reconheça a gente pela potência que nós somos, pelo que fazemos para proteger e defender a vida de tanta gente. Nós precisamos pensar em um projeto político de país. (...) Não adianta ficar nas redes falando: “eu não quero isso”.

Nós temos que juntar e pensar um projeto político de bem viver, qual o projeto que a gente quer, o que é que a gente pensa sobre a nossa vida, o que é que a gente pensa como projeto de desenvolvimento. (...) Coloca várias palavras que a gente conhece que começam com “des” aí e, quando a gente chega no desenvolvimento, você deixa de envolver (...). É ao contrário. Então nós não queremos mesmo o “desenvolvimento”. Nós queremos é um projeto de bem viver baseado no envolvimento das pessoas, com uma preocupação de cuidar, de proteger, de preservar o meio ambiente. É a mãe natureza, que é a Mãe Terra, que nos promete a vida, que está em jogo (...). Então quando a gente pensa que tudo isso está indo rumo ao caos, como é que a gente faz pra romper com esse modelo? Como é que a gente faz pra fazer com que haja uma compreensão maior da sociedade para que a vida que a gente tenha na cidade conecte com a vida que a gente tem lá no campo? Porque está sendo muito caro pra nós, porque a luta política que a gente faz pra garantir a vida de todo mundo está custando a vida do nosso povo. Já custou a vida do pai da Angela, já custou a vida do irmão e da cunhada de Claudelice e assim está custando a vida de muita gente.

Perguntas a gente já tem demais, sangue a gente já tem demais.

Chico Mendes Vive

O diálogo aconteceu narrando atos e fatos da história que conectam os povos indígenas e as comunidades tradicionais do Brasil. Tal história inicia com a usurpação dos territórios das populações originárias brasileiras - os indígenas - aliada ao genocídio de povos, incluindo os povos trazidos forçados e escravizados no Brasil. Ela continua com o processo de miscigenação do povo, marcado por violências, formando as comunidades tradicionais, intencionalmente invisibilizadas no Brasil, mas que insistem no direito de viver com dignidade e respeito aos seus modos de vida.

O que trazemos em comum: a luta e a defesa da Mãe Terra, a defesa dos territórios coletivos, que são o nosso maior bem comum. Esses são espaços territoriais como as terras indígenas, as unidades de conservação ou os assentamentos agroextrativistas. As histórias entrelaçadas e reconectadas das três falas nos apontam que o processo histórico de colonização e implantação do “desenvolvimento” deixou marcas profundas e ainda evidentes. Elas mostram também que a principal disputa está relacionada ao domínio da terra pela exploração, seja ela mineral ou madeireira, ou pela implantação de mega-empreendimentos de infraestrutura, como hidrelétricas e ferrovias. Com isso, vivemos a ameaça e a continuidade de genocídios e etnocídios, como citado por Sônia Guajajara.

Chico Mendes, defensor da Amazônia e dos seringueiros e seringueiras, viu no modo de organização territorial indígena uma possibilidade de construir uma proposta de regularização fundiária, em um formato de territórios coletivos. Isso resultou nas Reservas Extrativistas, que são um dos principais legados deixados por Chico. Muitas comunidades tradicionais para além da Amazônia se beneficiam desta conquista, reafirmando uma forma de viver, ser e estar nos territórios que é similar à dos povos indígenas. Dessa maneira, pode-se afirmar que a instituição das reservas extrativistas e as iniciativas delas derivadas constituem o legado principal de Chico Mendes, sendo defendido, ampliado e consolidado por mais de 600 (seiscentos) territórios coletivos e por centenas de associações e cooperativas, grandes e pequenas, que têm a responsabilidade de gerenciar, juntamente com os órgãos governamentais, esse patrimônio: o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em nível federal, as secretarias de meio ambiente em nível estadual e o Incra para os assentamentos. A ideia das unidades de conservação, ou reservas extrativistas, tem conexão com a aliança dos povos da floresta desde a década de 1980.

Todas as falas denunciam também ameaças e violações dos direitos de viver e o avanço da exploração predatória. Portanto, as nossas proposições se pautam na urgência das conexões, dos povos da floresta, do campo e da cidade, e que esta ligação, como alerta Sônia, aconteça para além das mídias sociais, em um pensar coletivo sobre qual projeto de mundo queremos. Propomos um projeto com envolvimento das pessoas e todo o meio ambiente, em uma visão de que somos parte dele e, somente com ele vivo e saudável, iremos salvar as nossas vidas. A dor, a luta que nos junta em rodas de conversas ou mesas de diálogos, nos diversos espaços, também nos traz força e faz brotar em nós coragem e determinação de acreditar que outro mundo é possível.

Angela Mendes reforça o processo inicial de Chico Mendes pautado na educação para a liberdade. Isso está em sinergia com a fala de Sônia, quando ela avalia que a universidade tem que ser parceira e que devemos repensar os conceitos discutidos na academia, alertando que esta é uma luta coletiva e que envolve campo, das águas, da cidade e periferias. Além disso, ela reafirma que a violência, as ameaças e as mortes acontecem também quando se tira ou nega o território e como isso leva também à negação das identidades dos povos, indígenas, quilombolas ou comunidades tradicionais.

Portanto, Chico Mendes vive em cada ato e ação que damos em continuidade à defesa da terra, dos territórios e da educação para a liberdade de um povo.

Agradecimentos

A realização desta roda de conversa contou com apoio de Capes e CNPQ. As editoras e o editor gostariam de agradecer à estudante Júlia Mota de Brito pela transcrição desta roda de conversa. A tradução deste documento foi apoiada pelo projeto de pesquisa financiado pela Academia Britânica (SDP2\100278) “’Desenvolvimento sustentável’ e atmosferas de violência: experiências de defensores ambientais” e pela Universidade de Sussex/ Research England/Global Challenges Research Fund (IDCF1- G262626-08), como parte do projeto “Outro Céu”: mapeamento de violência contra os povos indígenas no Brasil” uma colaboração entre a Universidade Federal da Bahia (UFBA) - Professor adjunto no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC) Felipe Milanez Pereira, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e a Universidade de Sussex e executado pela Fapex.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2021
  • Aceito
    06 Set 2021
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