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Conflitos Socioambientais: um Estudo Sobre o Centro Logístico em Paranapiacaba e as Representações Sociais Envolvidas

Resumo

Os conflitos socioambientais vêm se intensificando no século XXI, de maneira que novas abordagens têm sido utilizadas para estudá-los, buscando identificar sua origem e enriquecer suas análises. O presente estudo objetivou acompanhar o licenciamento ambiental do Centro Logístico Campo Grande, em Paranapiacaba, município de Santo André (SP), identificando as representações sociais de meio ambiente dos atores envolvidos e discutindo sua interferência no conflito estabelecido. O estudo de caso foi baseado em método misto, levantando dados por observação participante, entrevista estruturada e análise documental. Foi realizada uma análise prototípica segundo teoria das representações sociais de Moscovici, Abric e classificação de Reigota para meio ambiente. As representações sociais encontradas foram globalizantes, para a sociedade civil, e antropocêntrica, para o empreendedor, relacionando a origem do conflito às diferentes apropriações materiais e simbólicas dos recursos ambientais, no caso, o território.

Palavras-chave:
Conflito Socioambiental; Representações Sociais; Paranapiacaba; Participação Pública; Licenciamento ambiental

Abstract

Socio-environmental conflicts have been intensifying in the 21st century, which has prompted new approaches seeking to identify the origin of these conflicts and enrich their analyses. This study monitored the environmental licensing of the Campo Grande Logistic Center, in Paranapiacaba, a district in Santo André (SP), in order to identify the social representations of the environment for different actors involved in the licensing process and discuss the interference of the social representations in the established conflict. The case study employed multiple methods of data collection, including participant observation, semi-structured interviews, and document analysis. A prototypical analysis was carried out in line with the theory of social representations by Moscovici, Abric, and Reigota’s environment classification. The social representations found were globalizing for civil society and anthropocentric for the entrepreneur, relating the origin of the conflict to different material and symbolic appropriations of environmental resources, in this case, the territory itself.

Keywords:
Socio-environmental Conflict; Social Representations; Paranapiacaba; Public Participation; Environmental Licensing

Resumen

Los conflictos socioambientales se han ido intensificando en el siglo XXI, por lo que se han utilizado nuevos enfoques que buscan identificar el origen de estos conflictos y enriquecer sus análisis. El presente estudio tuvo como objetivo monitorear el licenciamiento ambiental del Centro Logístico Campo Grande, en Paranapiacaba, municipio de Santo André (SP), para identificar las representaciones sociales del medio ambiente de los actores involucrados y evaluar como las representaciones interfirieron en el conflicto establecido. El estudio de caso se basó en un método mixto, mediante el cual se recopilaron datos a través de la observación participante, la entrevista estructurada y el análisis de documentos. Se realizó un análisis prototípico acorde con la teoría de las representaciones sociales de Moscovici, Abric y la clasificación de Reigota para el medio ambiente. Las representaciones sociales encontradas fueron globalizadoras para la sociedad civil y antropocéntricas para el emprendedor, lo cual relaciona el origen del conflicto con diferentes apropiaciones materiales y simbólicas de los recursos ambientales, en este caso, el territorio.

Palabras-clave:
Conflicto socioambiental; Representaciones sociales; Paranapiacaba; Participación pública; Licenciamiento Ambiental

Introdução

O licenciamento ambiental constitui um dos principais instrumentos de planejamento ambiental no país, envolvendo tomadas de decisões sobre empreendimentos com potencial de causar significativo impacto ambiental. Esses processos decisórios envolvem uma série de questões complexas a serem levadas em consideração, unindo um grande conjunto de fatores e atores sociais, cada um com seu peso imensurável e incomparável. Nesse sentido, a participação pública no licenciamento ambiental apresenta uma função não apenas relacionada à melhor tomada de decisões, mas como um direito essencial às sociedades democráticas (GLUNCKER et al., 2013GLUNCKER, A. N.; DRILSSEN, P. P. J.; KOLHOFF, A.; RUNHAAR, H. A. C. Public participation in environmental impact assessment: why, who and how? Environmental Impact Assessment Review, n. 43, 2013.).

É fundamental estudar como ocorre o processo de um licenciamento ambiental, compreendendo os objetivos de cada ator social envolvido, quem são esses atores e quais as representações sociais de “meio ambiente” e de “sustentabilidade” estão permeando o território em questão (SANTOS & CHESS, 2003SANTOS, S. L.; CHESS, C. Evaluating citizen advisory boards: the importance of theory and participant-based criteria and practical implications. Risk Analysis, v. 23, n. 2, 2003.). Por se tratar de um processo de decisão sobre recursos ambientais, o licenciamento ambiental pode aflorar distintos conflitos socioambientais ou trazer à tona conflitos pré-existentes (BERNARDELLI JÚNIOR; RUIZ; GALLARDO, 2017BERNARDELLI JÚNIOR, J. M.; RUIZ, M. S.; GALLARDO, A. M. C. F. Conflitos socioambientais na APA Bororé-Colônia: dos preexistentes aos novos associados ao licenciamento ambiental do trecho Sul do Rodoanel de São Paulo. Desenvolvimento em questão, v. 15, n. 40, p. 104-139. 2017.; SOARES; OLIVEIRA; FONSECA, 2015; TORRES; RAMOS; GONÇALVES, 2019TORRES, P. H. C.; RAMOS, R. F.; GONÇALVES, L. S. Conflitos ambientais na Macrometrópole Paulista: Paranapiacaba e São Sebastião. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. 22, 2019.), pois eles se originam de diferentes projetos de uso e significação de recursos ambientais (ACSELRAD, 2004ACSELRAD, H. (Org.). Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Böll. 167 p. 2004.). Por outro lado, estudos vêm mostrando que, frequentemente, os conflitos podem ser influenciados por processos de comunicação eficientes (GHOZ et al., 2020GHOZ, N. C. C. E.; PIRES, P. T. L.; FEILSTRECKER, M. Ferramenta de programação neurolinguística para intermediação de conflitos ambientais. Revista Ibero-Americana de Ciências Ambientais, v.11, n.4, 2020.), mas para que a comunicação se faça efetiva, é essencial ter conhecimento prévio a respeito das origens do conflito e do que está em disputa. É necessário, portanto, para buscar compreender com profundidade essas questões, perguntar-se qual sentido cada parte envolvida atribui ao “meio ambiente”.

Mesmo na área acadêmica, não há um consenso para o significado do termo “meio ambiente”, que pode considerar aspectos físicos e biológicos, incluir questões socioculturais ou, ainda, constituir visões ingênuas e naturalistas (REIGOTA, 2002REIGOTA, M. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 5ª ed., 2002.). Por isso, estudos utilizando o conceito teórico das representações sociais vêm despontando como um recurso importante no entendimento de conflitos socioambientais (BACIC et al., 2017BACIC, M. C.; OGAWA, N. R.; VIDAL, M. P. Estado da arte da pesquisa sobre conflitos ambientais - dissertações e teses do banco EArte. Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências, 11, 2017. Florianópolis. Anais... Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, v. 6, 2017.; FLEURY; ALMEIDA, 2009FLEURY, L. C.; ALMEIDA, J. P. A conservação ambiental como critério de relações entre grupos e valores: representações e conflitos no entorno do Parque Nacional das Emas, Goiás. Ambiente & Sociedade, v. 12, n. 2, p. 357-372, 2009.; ROSA, 2014ROSA, R.E. Os conflitos socioambientais à luz de uma articulação teórica entre Pierre Bourdieu e Serge Moscovici. Àskesis, v. 3, n. 2, 2014.), e buscam, na maioria das vezes, compreender qual o sentido de “meio ambiente” que está sendo utilizado e refletir no que ele implica (REIGOTA, 2002). Essa nova perspectiva traz luz sobre aspectos ainda pouco observados em estudos de caso de licenciamentos ambientais.

Nesse sentido, esse referencial teórico pode constituir uma ferramenta importante em estudos de licenciamento ambiental devido ao fato do conceito de meio ambiente caracterizar-se como uma representação social, ou seja, uma representação do senso comum, que possui preconceitos, ideologias e sentidos pessoais atribuídos pelo indivíduo (JODELET, 2001JODELET, D. Representações sociais: um domínio em expansão. As representações sociais, v. 17, p. 14-44, 2001.; MOSCOVICI, 1978MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.). Assim, a análise foi pautada no estudo da representação social de meio ambiente como fator essencial ao entendimento dos conflitos socioambientais existentes no local de pesquisa.

Cabe destacar que, a partir da teoria inicial de Moscovici, surgiram três correntes para o estudo das representações sociais, dentre as quais a abordagem estrutural de Abric (1993ABRIC, J.C. (1993) Central system, peripheral system: their functions and roles in the dynamics of social representations. Papers on Social Representations, v. 2, n. 2, p. 75-78. 1993.), também conhecida como Teoria do Núcleo Central. Nesta corrente, as representações sociais podem ser divididas em dois sistemas: o núcleo central, responsável por dar um significado básico à representação dentro de um grupo, refletindo suas condições sócio-históricas, valores, e sendo mais estável, e o sistema periférico, responsável por realizar a conexão entre o núcleo central e a realidade concreta, abrangendo histórias individuais, heterogeneidades do grupo e, portanto, sendo mais mutável (SÁ, 1996SÁ, C. P. Representações sociais: teoria e pesquisa do núcleo central. Temas em Psicologia, Rio de Janeiro, n.3, p. 19-31, 1996.). Essa abordagem vem ganhando grande destaque em estudos das mais diversas áreas do conhecimento, ficando conhecida por análise prototípica (WOLTER et al., 2009WOLTER, R. P.; GURRIERI, C.; SORRIBAS, E. Empirical illustration of the hierarchical organisation of social thought: a domino effect? Interamerican Journal of Psychology, v. 43, n. 1, 2009.).

Dentro dessa perspectiva, o presente estudo objetivou acompanhar o processo de licenciamento ambiental referente ao Centro Logístico Campo Grande, no distrito de Paranapiacaba, no município de Santo André (SP), buscando identificar a representação social em relação ao meio ambiente dos diferentes atores envolvidos e avaliar possíveis interferências no conflito socioambiental observado neste estudo, no período de 2018 a 2019.

Área de Estudo

Paranapiacaba é um distrito do município de Santo André, no qual está localizada a Vila de Paranapiacaba, que teve sua origem relacionada à Estrada de Ferro Santos-Jundiaí e ainda hoje é responsável pela ligação entre a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e o Porto de Santos. O local apresenta um extenso remanescente de Mata Atlântica com diversas Unidades de Conservação, sendo declarado pela UNESCO como Reserva da Biosfera do Cinturão Verde (TORRES; RAMOS; GONÇALVES, 2019TORRES, P. H. C.; RAMOS, R. F.; GONÇALVES, L. S. Conflitos ambientais na Macrometrópole Paulista: Paranapiacaba e São Sebastião. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. 22, 2019.), e está inserido na Macrozona de Proteção Ambiental do município (que pertence à RMSP), na região da Serra do Mar.

A região da Vila e a ferrovia são tombadas em instâncias federal, estadual e municipal, devido à sua importância histórica e turística. Em 2002, a prefeitura comprou a Vila de Paranapiacaba com a intenção de desenvolver o turismo sustentável na região e propiciar seu desenvolvimento socioeconômico (NETO, 2005NETO, M. M. Protagonismo comunitário em Paranapiacaba: o impacto das ações governamentais no desenvolvimento socioeconômico-comunitário da Vila de Paranapiacaba no período de 2001 a 2004. 2005. Dissertação (Mestrado em Administração). Universidade Municipal de São Caetano Do Sul, São Caetano do Sul.). Apesar de ter conseguido melhorias, principalmente pelo desenvolvimento do turismo, ainda hoje a população local possui baixa renda e enfrenta uma série de precariedades na saúde, na educação e na infraestrutura, levando à redução populacional ano após ano (COLANTUONO; CESTARO, 2017COLANTUONO, A. C. S.; CESTARO, N. G. Paranapiacaba: dinâmica econômica em função de seus eventos. Revista Grifos, n. 42, p. 130-163. 2017.).

O conflito socioambiental estudado no presente trabalho está relacionado ao planejamento de uso do solo da região, materializado pelo licenciamento ambiental do empreendimento Centro Logístico Campo Grande, iniciado em 2016. Ao tornar-se de conhecimento público em 2018, após ser agendada uma audiência pública, o projeto gerou mobilização de grupos contrários ao empreendimento, tanto pelo alto impacto ambiental previsto quanto por suspeitas de irregularidades no processo de licenciamento (TORRES; RAMOS; GONÇALVES, 2019TORRES, P. H. C.; RAMOS, R. F.; GONÇALVES, L. S. Conflitos ambientais na Macrometrópole Paulista: Paranapiacaba e São Sebastião. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. 22, 2019.). Atualmente em fase de análise para obtenção da Licença Prévia pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB), o empreendimento proposto consiste em um “condomínio destinado a abrigar atividades de redistribuição de cargas, utilizando como meios de transporte a ferrovia e a rodovia adjacentes à propriedade” (CPEA, 2017b, p. 6), distribuindo-se em três glebas localizadas à margem da ferrovia Santos-Jundiaí, no bairro Campo Grande, distrito de Paranapiacaba. A área total das glebas soma 468,26 ha, sendo que no projeto original, descrito no EIA/RIMA, 91 hectares deste total seriam efetivamente ocupados. A partir da Figura 1 é possível perceber a proximidade entre o empreendimento e a Vila de Paranapiacaba.

Figura 1
Delimitação da área do Centro Logístico Campo Grande.

METODOLOGIA

Esta pesquisa consistiu em um estudo de caso de caráter misto (qualitativo e quantitativo) (CRESWELL, 2010CRESWELL, J. W. Projetos de pesquisa: método qualitativo, quantitativo e misto. Porto Alegre: Artmed, 2010.). O uso da metodologia de estudo de caso foi justificado pelo objetivo estar relacionado à melhor compreensão de um processo de licenciamento de alta complexidade e relevância para o estudo do licenciamento ambiental no estado de São Paulo, gerando mobilizações populares, envolvimento da mídia local e do Ministério Público (MELO, 2019MELO, A. Centro logístico ignora Justiça e segue processo de licenciamento. Diário do Grande ABC, 18 out. 2019. Setecidades. Disponível em: https://www.dgabc.com.br/Noticia/3147589/centro-logistico-ignora-justica-e-segue-processo-de-licenciamento. Access on April 7th, 2021.
https://www.dgabc.com.br/Noticia/3147589...
; TOSSATO, 2021TOSSATO, D. TJ-SP libera construção do porto seco em Paranapiacaba. Diário do Grande ABC. 20 fev. 2021. Política. Disponível em: https://www.dgabc.com.br/Noticia/3681263/tj-sp-libera-construcao-do-porto-seco-em-paranapiacaba. Access on April 7th, 2021.
https://www.dgabc.com.br/Noticia/3681263...
). A coleta de dados deste trabalho foi feita por meio da triangulação dos dados (CRESWELL, 2010), utilizando como métodos a observação participante, a análise documental e entrevistas estruturadas.

A observação participante foi realizada no período de março de 2018 a fevereiro de 2019, facilitada por um ex-morador da Vila de Paranapiacaba que informou sobre a ocorrência dos primeiros eventos, e teve como principal objetivo caracterizar os atores envolvidos e estabelecer os principais pontos do conflito. A observação participante ocorreu por meio do acompanhamento de 25 encontros - audiências públicas, reuniões entre diferentes atores, workshops acadêmicos e manifestações públicas - relacionados à participação pública no processo de licenciamento ambiental, utilizando-se como meio de registro a gravação de áudios e anotações em diário de campo.

Para a análise documental, os documentos sobre o processo de licenciamento foram obtidos por meio da consulta ao sistema da CETESB, no portal e-ambiente (https://e.ambiente.sp.gov.br/atendimento/), enquanto manifestos e flyers foram fornecidos pelo movimento SOS Paranapiacaba. Os documentos foram analisados utilizando as categorias estabelecidas por Reigota (2002REIGOTA, M. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 5ª ed., 2002.) para representações sociais do termo “meio ambiente”.

Para as entrevistas, foi utilizado o teste de evocação livre de palavras, por permitir a identificação de representações sociais que nem sempre aparecem em descrições e relatos pessoais, e por ser um teste muito utilizado na Psicologia Social devido à sua espontaneidade, além de facilitar a análise prototípica e a identificação do núcleo central da representação (SÁ, 1996). No teste, que foi aplicado a 42 participantes, era solicitado ao entrevistado que citasse cinco palavras que viessem à mente quando ouve o termo indutor (“meio ambiente” e “sustentabilidade”, escolhidos por serem termos polissêmicos relacionados ao licenciamento), e em seguida elaborasse uma frase com as palavras citadas. Também foram coletados dados como gênero, idade, profissão, escolaridade, média salarial e local de residência. Todas as entrevistas tiveram o áudio gravado, com consentimento dos entrevistados, que assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Parecer CEP/UNIFESP 2.795.790), sendo posteriormente transcritas em sua totalidade e categorizadas segundo Reigota (2002REIGOTA, M. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 5ª ed., 2002.).

As palavras evocadas a partir do termo indutor foram agrupadas por critérios semânticos e analisadas por meio de um programa de Excel adaptado do software EVOC 2000, criado por Pierre Vergé, que categoriza as palavras evocadas, calcula a frequência e a ordem média das evocações, e investiga a centralidade dos elementos das representações por meio do quadro de quatro quadrantes: núcleo central, zona de contraste, primeiro e segundo sistema periférico (PEREZ, 2008PEREZ, M. Grandezas e medidas: representações sociais de professores do ensino fundamental. 2008. 201 f. Curitiba. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, 2008.). Com isso, foram analisadas as entrevistas aplicadas, comparados os resultados obtidos para os diferentes grupos e discutida a centralidade das representações sociais.

As categorias representativas escolhidas para análise de conteúdo (tanto da análise documental quanto das entrevistas) foram pré-selecionadas com base nas categorias elaboradas por Reigota (2002REIGOTA, M. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 5ª ed., 2002.) por ser uma importante referência na área, permitindo sua comparação com outros estudos. As categorias são: naturalista, em que o meio ambiente é visto pelos seus aspectos naturais, como aspectos físico-químicos e biológicos, mas não inclui aspectos sociais, sendo o ser humano apenas um observador externo; antropocêntrica, em que o meio ambiente é visto apenas como recurso para sustentar o ser humano, sendo a sociedade também um agente externo; e globalizante, em que o meio ambiente é caracterizado pelas relações entre natureza e sociedade, incluindo aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais, além dos naturais.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O conflito socioambiental estudado tem como alvo principal o licenciamento ambiental do Centro Logístico Campo Grande. Para compreendê-lo, na primeira etapa do estudo foi realizada a Observação Participante, que objetivou conhecer os atores sociais envolvidos e estabelecer os principais pontos implicados na questão. Para tanto, foi necessária a participação em vários eventos relacionados ao licenciamento. Foi constatado três grupos principais: empreendedor, poder público e sociedade civil, conforme destacado no Quadro 1.

Quadro 1
Caracterização dos principais atores sociais.

Cabe ressaltar que, com exceção do grupo do empreendedor, os diferentes atores de cada grupo não possuem necessariamente as mesmas visões ou interesses sobre o empreendimento. Por exemplo, alguns atores do poder público manifestaram-se claramente contra o empreendimento, como o Ministério Público, que emitiu um parecer contrário à emissão da licença, enquanto outros, como a CETESB, procuraram não manifestar um posicionamento, apenas aguardando a conclusão do rito processual do licenciamento e solicitando eventuais complementações aos estudos.

O grupo que atuou mais fortemente na participação pública do empreendimento foi o SOS Paranapiacaba, que consiste em um movimento com organização horizontal e sem uma liderança oficial. O grupo mobilizava-se por meio de reuniões presenciais e mídias sociais como Facebook e Whatsapp. Sua composição era heterogênea, possuindo pessoas de diferentes idades, classes sociais, municípios, escolaridades e formações, o que permite uma riqueza de olhares e pontos de vista. Com tantas pessoas, visões e experiências diferentes, torna-se relevante analisar as representações sociais dos membros do movimento em torno de dois temais centrais no conflito: o “meio ambiente” e a “sustentabilidade”.

Representações sociais da sociedade civil atuante no processo de licenciamento

Foram entrevistadas 42 pessoas divididas em dois grupos: 25 ambientalistas do SOS Paranapiacaba, que não residiam na região, e 17 pessoas da região de Paranapiacaba (sendo alguns deles parte do grupo de ambientalistas e outros não), dentre os quais 14 moradores da região e três entrevistados que residiam em outro local, mas já residiram e/ou trabalham na Vila de Paranapiacaba e possuíam uma relação estreita com o lugar.

A distribuição entre os gêneros foi equilibrada em ambos os grupos, e a distribuição da faixa etária concentrou, na maior parte, indivíduos entre as faixas de 40 a 59 anos de idade, com menor quantidade de jovens e idosos. O grupo de ambientalistas apresentou maior escolaridade do que o grupo de moradores de Paranapiacaba, mas de uma forma geral a maioria dos participantes tinha curso superior completo ou incompleto.

A partir do teste de evocação livre de palavras, foram obtidas 200 evocações para cada termo, sendo que, após a realização da análise semântica, foram obtidas 105 palavras diferentes para “meio ambiente” e 139 palavras para “sustentabilidade”. A partir de sua análise, foram obtidos os diagramas de representações sociais. No Quadro 2, encontram-se os diagramas para as representações sociais obtidas para os termos indutores “meio ambiente” e “sustentabilidade” para o grupo de ambientalistas.

Quadro 2
Diagrama das estruturas de representações sociais dos ambientalistas (n=25).

Para o termo “meio ambiente”, o grupo de ambientalistas apresentou como provável núcleo central da representação termos como Natureza e Desenvolvimento Sustentável, sendo os elementos mais prontamente citados e com maior frequência. A presença de ambos os termos indica uma visão abrangente do tema, não se limitando a aspectos naturais e considerando aspectos socioambientais. A zona de contraste representa termos evocados com menos frequência e normalmente opostos ao primeiro quadrante, sendo considerados muito importantes por representar um possível subgrupo com uma representação social diferente. No caso, apareceram termos como Cidadania, Integração e Elementos Culturais, que podem estar relacionados a indivíduos que possuem uma noção de meio ambiente como patrimônio e parte de uma sociedade democrática.

A primeira e segunda periferia representam elementos ainda não incorporados ao núcleo central, mas que vêm sendo mais recentemente incorporados à representação social como um todo. São os mais suscetíveis à mudança após intervenções ou palestras, por exemplo. Os termos Qualidade de Vida, Recursos, Educação e Conservação também indicam uma visão mais complexa de meio ambiente, abrangendo aspectos naturais e sociais. A presença do elemento Degradação pode estar relacionado à maneira como o grupo vê o meio ambiente constantemente ameaçado, relacionado à sua motivação para participar do processo de licenciamento.

Para o termo “sustentabilidade”, o provável núcleo central também correlacionou elementos naturais (como Meio Ambiente e Equilíbrio Ecológico) com elementos sociais (como Desenvolvimento Sustentável e Resíduos). Alguns elementos nas zonas periféricas e na zona de contraste indicaram uma visão negativa sobre o conceito de “sustentabilidade”, considerada por alguns entrevistados como “falso” pela maneira com que o termo vem sendo utilizado no meio empresarial (LOUREIRO; LIMA, 2012LOUREIRO, C. F. B.; LIMA, M. J. G. S. A hegemonia do discurso empresarial de sustentabilidade nos projetos de educação ambiental no contexto escolar: nova estratégia do capital. Revista Contemporânea de Educação, v. 7, n. 14. 2012.). No entanto, também houve visões positivas, colocando a sociedade como elemento transformador por meio da educação e a necessidade de conservar o meio ambiente e seus recursos.

No Quadro 3 encontram-se os diagramas para as representações sociais obtidas para os termos indutores “meio ambiente” e “sustentabilidade” para o grupo de moradores de Paranapiacaba.

Quadro 3
Diagrama das estruturas de representações sociais dos moradores de Paranapiacaba (n=17).

Para o termo “meio ambiente”, os moradores de Paranapiacaba também apresentaram Natureza como provável componente do núcleo central, enquanto Desenvolvimento Sustentável faz parte da primeira periferia, sendo um termo incorporado mais recentemente à representação deste grupo, provavelmente pelo desenvolvimento recente da região. Na zona de contraste, os termos Integração e Conservação podem estar relacionados à presença de alguns indivíduos que consideram a conservação como prioridade por fazer parte de seu trabalho (como no caso de monitores ambientais) e que possuem uma visão mais integrada de meio ambiente e humanidade. A representação de meio ambiente deste grupo também apresentou um conjunto de elementos naturais e socioambientais, sendo os elementos sociais mais presentes na segunda periferia (Qualidade de Vida e Elementos Culturais).

Para o termo “sustentabilidade”, o único elemento identificado para o provável núcleo central, Trabalho, estava relacionado à forma como estes indivíduos veem seu estilo de vida, pois muitos moradores da Vila trabalham com turismo sustentável, valorizando o patrimônio histórico e ambiental da região. Nas zonas periféricas, temos elementos relacionados à comunidade local e ao patrimônio histórico e aos elementos naturais da região.

Ambos os grupos apresentaram um conjunto de elementos naturais e sociais em sua representação, indicando uma visão em que o ser humano faz parte do meio ambiente e dele depende. A presença dos elementos sociais mais deslocados do núcleo central no grupo de moradores de Paranapiacaba pode representar uma visão mais naturalista, que vem passando por uma mudança e incluindo elementos humanos em um período mais recente. Ainda assim, ambos os grupos apresentam uma visão que poderia ser considerada globalizante, dentro das categorias de Reigota (2002REIGOTA, M. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 5ª ed., 2002.). É possível notar que há diferentes visões dentro do grupo (o que era esperado por sua heterogeneidade), algumas valorizando mais os aspectos naturais e outras os sociais, algumas mais críticas e outras mais superficiais, mas em geral com uma compreensão dos diferentes componentes ambientais interagindo entre si, com a inclusão do ser humano na natureza como ente capaz de realizar e sofrer mudanças. Essa riqueza de visões pode ter contribuído para a mobilização popular em relação ao empreendimento, pois se complementam e convergem em um objetivo comum, que é impedir seu licenciamento ambiental.

Comparando os resultados obtidos com outros estudos de representações sociais de meio ambiente, percebe-se que há em comum um discurso relacionado ao cuidado e proteção da natureza (NASCIMENTO-SCHÜLZE, 2000NASCIMENTO-SCHÜLZE, C. M. Representações sociais da natureza e do meio ambiente. Revista de Ciências Humanas, Edição Especial Temática, p. 67-81, 2000.; POLLI; KUHNEN, 2011POLLI, G. M.; KUHNEN, A. Possibilidades de uso da teoria das representações sociais para os estudos pessoa-ambiente. Estud. psicol., Natal, v.16, n.1, 2011.). Silva (2009SILVA, S. N. Concepções e representações sociais de Meio Ambiente: Uma revisão crítica da literatura. Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências, Florianópolis, v. 7, 2009.) identificou que as visões predominantes encontradas em artigos da área no Brasil são a naturalista e a antropocêntrica. Os resultados aqui encontrados para ambos os grupos, ambientalistas e moradores de Paranapiacaba, diferenciou-se do cenário identificado pelo autor, pois foi identificada uma visão que inclui o ser humano como parte integrante do meio ambiente e considera sua complexidade, ou seja, uma visão globalizante.

A Vila de Paranapiacaba passou por um período de gestão participativa entre 2001 e 2008, com a criação da Subprefeitura de Paranapiacaba e Parque Andreense (extinta após esse período), que desenvolveu uma série de ações, políticas e programas voltados ao desenvolvimento da comunidade local por meio do turismo sustentável, educação, conservação do patrimônio cultural e natural (FIGUEIREDO, 2011). Apesar dessa gestão não existir mais, as representações sociais obtidas podem ser um indicativo dos resultados positivos deixados por suas ações, sendo uma forma de explicar os resultados alcançados para este grupo.

Souza Filho e Durandegui (2002), ao avaliarem representações de meio ambiente entre ecologistas de ONGs no Brasil, apesar de identificarem uma diversidade de pensamentos, encontraram uma idealização da natureza que desconsidera a inclusão da sociedade, vista como elemento negativo. Também foi identificada uma dificuldade em dialogar socialmente, não reconhecendo a validade de outros grupos e culturas.

Os ambientalistas aqui estudados apresentaram uma visão distinta, pois apesar do elemento Degradação aparecer com uma conotação negativa de atividades humanas sobre a natureza, outros elementos sociais também estão inclusos na representação de meio ambiente, como Elementos Culturais, Cidadania e Educação, além do próprio Desenvolvimento Sustentável, presente no provável núcleo central, que abrange a esfera social.

Já o termo “sustentabilidade”, por si só, possui um caráter polissêmico, abrangendo diferentes significados e variáveis, unificando questões ambientais, econômicas e sociais, entre outras. Talvez por isso, sua representação social ainda não tenha sido muito estudada na literatura, e sua abordagem é mais voltada a grupos de estudantes do ensino superior (MATOS et al., 2012MATOS, F. R. N.; IPIRANGA, A. S. R.; MACHADO, D. Q.; ROLIM, G. F.; ALVARENGA, R. A. M. Representações sociais e sustentabilidade: o significado do termo para alunos do curso de administração. Administração: Ensino e Pesquisa, Rio de Janeiro, v. 13, n. 4, p. 707-734, 2012.; RAMOS; KAWAMURA, 2009RAMOS, F. A.; KAWAMURA, M. R. D. Representações sobre sustentabilidade: contribuições para a abordagem de questões ambientais. Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências, Florianópolis, v. 7, 2009.; TECHIO et al., 2016TECHIO, E. M.; GONÇALVES, J. P.; COSTA, P. N. Representação social da sustentabilidade na construção civil: a visão de estudantes universitários. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 187-204, jun. 2016.). Dentre esses estudos, diferentes resultados foram obtidos, desde visões antropocêntricas (RAMOS; KAWAMURA, 2009), visões naturalistas (MATOS et al., 2012) e, mais recentemente, representações de sustentabilidade alicerçada na questão ambiental, mas que contempla dimensões socioeconômicas em zonas mais periféricas (TECHIO et al., 2016), o que se encontra mais próximo dos resultados obtidos para este estudo de caso.

Representações sociais obtidas na análise documental

Para a obtenção de dados sobre a representação social de meio ambiente de dois dos principais grupos de atores sociais envolvidos no conflito (sociedade civil e empreendedor), foram avaliados documentos por eles elaborados.

1. Documentos elaborados pela sociedade civil

a) Carta de Paranapiacaba: elaborada pelo movimento ambientalista para ser lida em um ato em defesa do patrimônio de Paranapiacaba, a carta aborda diferentes temas relacionados ao local, tais como sua história e a importância do patrimônio ambiental e cultural da região. Também são citados povos tradicionais, valorizando seu conhecimento e estilo de vida, e a Terra é idealizada como uma “mãe provedora”. São citados trechos da Carta da Terra, defendendo a conservação dos recursos ambientais e a promoção de sociedades sustentáveis. O Centro Logístico é citado em vários momentos, sendo chamado de “Porto Seco” e considerado uma ameaça à região, citando impactos previstos com a sua construção, em especial a alta circulação de caminhões. O texto é finalizado com um chamado para a formação de uma aliança de proteção à Terra.

Dentro das categorias de Reigota (2002REIGOTA, M. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 5ª ed., 2002.), a carta apresenta trechos com representação globalizante, correlacionando o impacto ao patrimônio natural e cultural de maneira integrada e complexa, apresentando o meio ambiente historicamente construído na interação com o ser humano, como no exemplo a seguir:

Na Mata Atlântica (Floresta Ombrófila Densa), onde se insere Campo Grande e Paranapiacaba, ocorre uma íntima relação entre florestas, chuvas, produção de água, biodiversidade e turismo sustentável. [...]

Há trechos em que é apresentada uma visão naturalista, evidenciando o meio ambiente como uma mãe provedora que deve ser protegida da ganância do ser humano, em uma aparente tentativa de sensibilizar o interlocutor, como no trecho a seguir:

[...] Somos filhos da terra, não os mais antigos nem os melhores, apenas mais uma espécie dessa Terra-Mãe, que generosamente nos abriga em suas entranhas. Portanto, a proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é nosso dever sagrado.

b) Manifesto dos monitores ambientais: documento assinado pela Associação de Monitores Ambientais (AMA) da Vila, com a intenção de manifestar-se contra o empreendimento. Inicialmente são expostos dados sobre a Vila de Paranapiacaba e sua trajetória nos últimos 20 anos, apresentando uma valorização ao turismo sustentável por meio da monitoria ambiental. Em seguida, o Centro Logístico Campo Grande é apontado como uma ameaça a tudo que vem sendo desenvolvido nesse sentido. São listados os impactos esperados a partir de sua construção e criticado o EIA/RIMA, tanto por omissões quanto por seus resultados. Fica clara a visão de que o empreendimento não reflete a real vocação da região, que seria o turismo sustentável e a conservação, como demonstrado pelo trecho:

Nós afirmamos que o Centro Logístico Campo Grande não é atividade convergente com a política de desenvolvimento de Paranapiacaba; [...] A monitoria ambiental é atividade plenamente compatível com o patrimônio histórico, cultural, natural e humano de Paranapiacaba.

Ao citar os impactos que ocorreriam com a implantação do empreendimento, são correlacionados diferentes aspectos ambientais e sua interação, o que reflete o entendimento do grupo sobre a complexidade ambiental. Segundo as categorias de Reigota (2002REIGOTA, M. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 5ª ed., 2002.), a representação globalizante é predominante, o que pode estar relacionado à formação e atuação profissional dos monitores, bem como ao fato de residirem em um local valorizado por seu patrimônio ambiental.

c) Flyer SOS Paranapiacaba: panfleto elaborado pelo movimento para ser distribuído nas ações contra o Centro Logístico, a partir do Festival de Inverno, importante evento turístico que ocorre em julho na Vila. Tem o objetivo de informar o público sobre o empreendimento e seus impactos, além de divulgar o movimento contrário. Apresenta imagens da Vila de Paranapiacaba e de atos promovidos pelo movimento, e seu texto possui um resumo do que seria o Centro Logístico, seus principais impactos, e informações sobre o turismo de Paranapiacaba. Por fim, há um link para o abaixo assinado contra o empreendimento e para o Facebook do movimento. Há um trecho do folheto que destaca a importância da participação social, convidando o público a se mobilizar contra o empreendimento, posicionar-se nas redes sociais, acompanhar seu andamento e participar das audiências públicas.

Quanto às representações sociais de meio ambiente (REIGOTA, 2002REIGOTA, M. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 5ª ed., 2002.), foi identificada a representação globalizante, integrando o turismo, patrimônio natural e cultural e a importância da conservação de Paranapiacaba para a região, simbolizado por uma foto integrando patrimônio histórico, turismo e a Serra do Mar.

2. Documentos elaborados pelo empreendedor

a) Flyer com resumo do projeto do Centro Logístico Campo Grande: panfleto entregue no início da campanha de divulgação do empreendimento, no formato de uma revista, com as informações consideradas mais relevantes. O panfleto se resume a uma descrição do projeto do Centro Logístico, com justificativas para sua construção, onde será, quais seus benefícios e programas ambientais, não havendo qualquer menção a impactos negativos. A questão ambiental é pouco citada, mais restrita à localização do empreendimento e aos programas ambientais. Nesses momentos, o meio ambiente é representado apenas em seus aspectos físicos e biológicos, não sendo incluído o ser humano, o que é identificado como uma representação antropocêntrica (REIGOTA, 2002REIGOTA, M. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 5ª ed., 2002.).

b) Flyer distribuído nas audiências públicas: em geral, o panfleto apresenta um resumo de várias informações sobre o Centro Logístico, como o que seria, sua localização, seu objetivo e impactos positivos, tendo dados divergentes do EIA/RIMA e do panfleto entregue anteriormente. Apesar de se definir como uma plataforma intermodal, ligando ferrovia e rodovia, há um discurso alegando o empreendimento como ferroviário, devido à crítica do movimento ambientalista quanto à circulação de caminhões. São citadas as datas e locais das audiências públicas em um pequeno trecho, entendidas como um espaço para se conhecer o projeto, e não para debate ou contestação (“venha e descubra mais sobre o projeto”).

Foi identificada a representação antropocêntrica (REIGOTA, 2002REIGOTA, M. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 5ª ed., 2002.), por não incluir o ser humano como parte do meio ambiente e possuir um enfoque maior na necessidade de transformação da área do que nos possíveis impactos negativos que serão causados, que não são nem mesmo citados. O documento também dá a entender que áreas que não terão construção do empreendimento não sofrerão “intervenções” (termo utilizado para substituir “impactos”), demonstrando a falta de visão integrada entre diferentes aspectos (naturais, sociais, econômicos etc.). Além disso, o termo “meio ambiente”, quando usado, aparece com “preservação”, o que demonstra a presença de erros conceituais, pois o termo é inadequado para o caso, sendo “conservação” mais apropriado, pois a construção do empreendimento necessariamente implica uma alteração no local.

c) EIA/RIMA: foi escolhido analisar o RIMA, justamente por ser um resumo elaborado para acesso da população, o que estaria representando o que a consultoria considera mais relevante para compreensão do público. Apesar de seu caráter técnico, foram identificados vieses na abordagem das questões ambientais pela forma que retrata o local como uma fonte de recursos a ser explorada. Os impactos ambientais são abordados de maneira superficial, não sendo considerados impactos cumulativos e desconsiderando os impactos sociais negativos. É dado enfoque aos impactos socioeconômicos considerados positivos, como forma de justificar a necessidade de instalação do empreendimento. Nos principais impactos, não há nenhum relacionado à população local, sendo o único relacionado ao meio socioeconômico a “consolidação da vocação logística intermodal”, que é considerada positiva. Assim, o documento apresenta noções reducionistas de meio ambiente, não abordando de maneira satisfatória a dimensão social e as interações entre aspectos biológicos e físico-químicos, o que caracteriza uma representação antropocêntrica (REIGOTA, 2002REIGOTA, M. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 5ª ed., 2002.).

Em síntese, nos documentos elaborados pelo movimento ambientalista, as representações predominantes foram a globalizante, presente em todos os documentos, seguido pela naturalista, presente em um dos documentos. Nos documentos elaborados pelo empreendedor, foi obtida a representação antropocêntrica.

De forma geral, a principal diferença encontrada entre os atores sociais consiste no fato do empreendedor não considerar o meio ambiente como algo dinâmico, cujos componentes interagem entre si, e não levar em consideração as questões sociais, que são um componente valorizado pelo movimento ambientalista. Ambos os grupos veem potencial na região, mas para o empreendedor o potencial está relacionado à exploração econômica da ferrovia e rodovia, enquanto para o movimento ambientalista o potencial está relacionado à conservação da área e desenvolvimento sustentável do turismo.

Ao relacionar as diferentes representações obtidas com o conflito socioambiental em pauta, nota-se que, apesar de atribuir diferentes sentidos ao meio ambiente, as visões dos atores sociais não foram necessariamente antagônicas, permitindo superar a visão de que o conflito se resume a “preservacionistas” versus “desenvolvimentistas”. O que está em pauta são diferentes visões sobre a apropriação de recursos ambientais - no caso, o recurso seria o território, tanto em sua condição material quanto seu significado simbólico, relacionado à afetividade e subjetividade dos atores (ACSELRAD, 2004ACSELRAD, H. (Org.). Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Böll. 167 p. 2004.). Assim, pode ser considerado um conflito sobre o território. Segundo Westman (1985WESTMAN, W. E. Ecology, impact assessment, and environmental planning. Wiley, 532 p. 1985.), conflitos podem se originar na falta de compreensão adequada dos custos, benefícios e riscos ambientais na proposta de ações, o que se aplica ao caso estudado devido à visão antropocêntrica identificada por parte do empreendedor, que não considera a complexidade resultante dos impactos ambientais gerados por seu empreendimento.

A partir das diferentes visões, que representam diferentes formas de desenvolvimento e apropriação do mundo material, não há certo ou errado. No entanto, é necessário questionar a que interesses cada visão estará atendendo e quem se beneficia de cada modelo (BRONZ, 2016BRONZ, D. Nos bastidores do licenciamento ambiental: uma etnografia das práticas empresariais em grandes empreendimentos. Rio de Janeiro: Contra Capa. 474 p. 2016.). Enquanto o crescimento econômico beneficia um grupo que detém posse da área, o desenvolvimento sustentável do turismo e a conservação da Mata Atlântica beneficia a toda uma coletividade. Somado a isso, acima de qualquer visão possível sobre o potencial da área, é fundamental o respeito à legislação, que estabelece seu uso voltado justamente ao desenvolvimento sustentável e à conservação de recursos ambientais. É necessário que a questão ambiental seja inserida no planejamento regional, que atualmente privilegia grandes projetos de capital privado (TORRES; RAMOS; GONÇALVES, 2019TORRES, P. H. C.; RAMOS, R. F.; GONÇALVES, L. S. Conflitos ambientais na Macrometrópole Paulista: Paranapiacaba e São Sebastião. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. 22, 2019.).

Como o caso estudado se trata de um licenciamento ambiental ainda em andamento, seria possível buscar a resolução do conflito por meio do diálogo entre as partes, e em última instância sua judicialização, como já está ocorrendo (TOSSATO, 2021TOSSATO, D. TJ-SP libera construção do porto seco em Paranapiacaba. Diário do Grande ABC. 20 fev. 2021. Política. Disponível em: https://www.dgabc.com.br/Noticia/3681263/tj-sp-libera-construcao-do-porto-seco-em-paranapiacaba. Access on April 7th, 2021.
https://www.dgabc.com.br/Noticia/3681263...
). Se as divergências entre os atores tivessem sido identificadas no início do processo, o conflito poderia ter sido antecipado e possíveis resoluções poderiam ter sido buscadas (WESTMAN, 1985WESTMAN, W. E. Ecology, impact assessment, and environmental planning. Wiley, 532 p. 1985.). Assim, o estudo das representações sociais mostrou-se como uma ferramenta valiosa para a resolução de conflitos em estágios iniciais, quando acordos entre as partes podem ser atingidos com maior facilidade.

Conclusões

Este estudo de caso revela a existência de um conflito socioambiental, gerado por diferentes visões de meio ambiente e expectativas para o desenvolvimento do local, aflorado a partir da proposta de um empreendimento. Enquanto o empreendedor apresentou uma representação antropocêntrica de meio ambiente, os moradores e os ambientalistas participantes no processo apresentaram uma visão globalizante. O estudo também evidenciou a existência de diferentes visões na sociedade civil, mas que se complementaram e convergiram em uma visão crítica sobre o empreendimento.

Os resultados demonstraram que o estudo das representações sociais envolvidas no conflito pode contribuir para identificar diferentes motivações e objetivos dos atores sociais, enriquecendo a análise do conflito e sendo uma possível abordagem para futuros trabalhos no âmbito de licenciamentos ambientais. Até então, a literatura apresenta o uso desta ferramenta mais aplicada à área de educação (SILVA, 2009SILVA, S. N. Concepções e representações sociais de Meio Ambiente: Uma revisão crítica da literatura. Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências, Florianópolis, v. 7, 2009.), sendo a área de conflitos socioambientais um possível campo para exploração desta abordagem.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Também gostaríamos de agradecer aos moradores de Paranapiacaba e ao SOS Paranapiacaba pela participação na pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    05 Nov 2020
  • Aceito
    07 Jul 2021
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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