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Paleontologia e Justiça Ambiental: tecendo conexões através da Ecologia Política

Resumo

Longe de tratar apenas de seres pretéritos, a Paleontologia é uma ciência atual, que pode situar a existência humana no contexto da crise ambiental global, frente a desigualdades e conflitos socioambientais que ocorrem nos sítios paleontológicos brasileiros. Objetivando discutir possíveis tessituras entre Paleontologia e Justiça Ambiental, este ensaio parte de um levantamento sobre os conflitos ambientais existentes nos sítios paleontológicos de Minas Gerais. A partir das questões encontradas, e com o aporte do referencial teórico da Ecologia Política, discutem-se a luta pelo território e pela decolonialidade, enquanto dimensões cruciais para um olhar que busque restituir às populações o direito aos seus (paleo)territórios. As conexões entre os campos são aqui situadas como referenciais para a luta contra a desigualdade social encontrada em sítios paleontológicos, a exemplo dos de Minas Gerais, e pela inclusão de suas comunidades em uma gestão participativa.

Palavras-chave:
Conflitos Ambientais; Sítios Paleontológicos; Ecologia Política

Abstract

Far from studying only beings from the past, Paleontology is a current science which can situate human existence in the context of the global environmental crisis before inequalities and socio-environmental conflicts which occur in Brazilian paleontological sites. Aiming to discuss possible connections between Paleontology and Environmental Justice, this essay arises from a survey on environmental conflicts existing in the paleontological sites in Minas Gerais. Stemming from the issues found and the contribution of the Political Ecology theoretical framework, the struggle for territory and decoloniality is discussed as crucial dimensions for a view that seeks to restore the populations’ right to their (paleo) territories. The connections between these fields are presented here as references for the fight against the social inequalities found in paleontological sites, such as those in Minas Gerais, and for the inclusion of their communities in participatory management.

Keywords:
Environmental Conflicts; Paleontological Sites; Political Ecology

Resumen

En lugar de solo lidiar con seres pasados, la Paleontología es una ciencia actual, que puede situar la existencia humana en el contexto de la crisis ambiental global, frente a las desigualdades y los conflictos socioambientales que ocurren en sitios paleontológicos brasileños. Para discutir posibles conexiones entre Paleontología y Justicia Ambiental, este ensayo parte de una investigacion sobre los conflictos ambientales existentes em sitios paleontológicos de Minas Gerais. Con base en los problemas encontrados, y con la contribución del marco teórico de la Ecología Política, se discute la lucha por el territorio y la descolonialidad para buscar restaurar a las poblaciones el derecho a sus (paleo)territórios. Las conexiones entre los campos son aquí referenciales para la lucha contra la desigualdad social en sitios paleontológicos, como los de Minas Gerais, y para la inclusión de sus comunidades en la gestión participativa

Palabras-clave:
Conflictos Ambientales; Sitios Paleontológicos; Ecologia Política

Introdução

Este estudo consiste em um ensaio teórico que busca discutir possíveis relações entre a Paleontologia e a Justiça Ambiental por meio do campo da Ecologia Política. Na tentativa de compreender questões-chave ligadas a conflitos ambientais nos sítios paleontológicos de Minas Gerais, partimos das vulnerabilidades existentes nesses locais para tecer conexões que acreditamos serem essenciais à superação de uma possível neutralidade no campo da Paleontologia, bem como uma estratégia de resistência e enfrentamento à mercantilização desses sítios e a desigualdade socioambiental neles encontrada.

Irrompendo em meados do séc. XX, a crise ambiental surgiu enquanto crise ecológica originada pelo modo insustentável de vida em que a racionalidade da modernidade enxerga (e trata) o meio ambiente como obstáculo ao desenvolvimento (GODINHO et al., 2016GODINHO, C.P. et al. Conflitos Ambientais e as contradições do desenvolvimento sustentável: o caso da mineração em Conceição do Mato Dentro - MG e suas consequências. In: XX Encontro Nacional de Estudo Populacionais, 1016, Foz do Iguaçu, Paraná. Anais... Associação Brasileira de Estudo Populacionais - ABEP, 2016.; LEFF, 2016LEFF, E. A aposta pela vida: Imaginação sociológica e imaginários sociais nos territórios ambientais do sul. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.). Degradações ambientais multiplicam-se, trazendo a necessidade de se repensar o modo de vida das sociedades humanas em relação à natureza, relações de poder, ações sociais e valores éticos (LEFF, 2016). Junto à degradação ambiental, acentuam-se problemas sociais em escala planetária, com recursos naturais e seres humanos sendo vistos como mercadorias necessárias à acumulação dos lucros. A crise ecológica atrela-se, assim, a uma crise capitalista, com a qual compartilha a mesma dinâmica, em uma crise de um modo de vida (LÖWY, 2013LÖWY, M. Crise Ecológica, Crise Capitalista, Crise de Civilização: a alternativa ecossocialista. Caderno CRH, Salvador, v. 26, n. 67, p. 79-86, 2013.).

Nesse contexto de degradação, seu caráter global faz com que se torne também uma crise civilizatória, crise do conhecimento, como defende Leff (2016LEFF, E. A aposta pela vida: Imaginação sociológica e imaginários sociais nos territórios ambientais do sul. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.). Para o autor, mais do que identificar suas causas, é preciso uma mudança de pensamento para construir uma nova racionalidade social, uma nova ordem ecológica capaz de interligar processos naturais à complexidade socioambiental, em uma união entre Ciências Naturais e Ciências Sociais. Neste ensaio discutimos como a Paleontologia pode tomar parte desse processo.

Considerando sua etimologia, a Paleontologia, como estudo dos seres antigos/as (do grego palaios = “antigo”; onto = “ser”; logos = estudo), ocupa-se da história dos fósseis (do latim fossilis = extraído da terra), através de restos ou vestígios de seres pretéritos, geralmente preservados em rochas (CARVALHO, 2004CARVALHO, I.S.(Ed.). Paleontologia. Ed. Interciência, v.1, p. 833-861, 2004.). A busca constante do registro desses seres, que podem ser usados para datar os estratos rochosos onde estão contidos, permite a reconstituição da história geológica da Terra, o entendimento da evolução e dos processos de surgimento e extinção das espécies, e ainda a percepção das mudanças ocorridas ao longo do tempo no planeta. Mas essa ciência vai mais além, ao possibilitar entender eventos, como alterações climáticas e movimentações de placas tectônicas, que continuam se processando ainda hoje (CARVALHO, 2004).

Por tratar também da indústria emergente do turismo sustentável1 1 - Esse segmento do mercado turístico engloba, segundo Moura-Fé (2015), o turismo de aventura, o turismo rural, ecoturismo e, o mais recentemente criado, geoturismo, um ramo relacionado ao ecoturismo, mas com ênfase no meio físico/abiótico. (incluindo o geoturismo), de estudos associados à indústria dos hidrocarbonetos, dentre outros assuntos, a Paleontologia é uma ciência localizada na interface entre Geociências e Biologia, podendo ser considerada uma ciência interdisciplinar, que conecta as Ciências da Natureza às Ciências Humanas (CARVALHO, 2004CARVALHO, I.S.(Ed.). Paleontologia. Ed. Interciência, v.1, p. 833-861, 2004.). Ademais, está também inserida na vida de muitos/as brasileiros/as que residem em áreas fossilíferas, para os/as quais esses mesmos fósseis podem contribuir com sua noção de pertencimento ao meio e com a constituição de possibilidades para o turismo de base comunitária (SCHOBBENHAUS, 2002SCHOBBENHAUS, C. et al. Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil. DNPM/CPRM - Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológicos (SIGEP) - Brasília, 2002.).

Ao relacionar-se às Ciências Ambientais, a Paleontologia não pode ser vista apartada do debate ecológico. Isso porque, enquanto ocorrem mudanças positivas nas relações entre sítios paleontológicos e as comunidades de seu entorno, também há possíveis mudanças negativas, a exemplo da exclusão dessas comunidades em relação ao lucro da atividade turística (órgãos gestores e empresas são o destino da maior parte do capital), ou distanciamento de suas práticas tradicionais, havendo também danos físicos/ambientais, pelo fluxo de visitantes, e perda do sentimento de pertencimento por parte dos/as moradores/as locais (LOPES, 2008LOPES, L.A.M. Os impactos socioculturais e o desenvolvimento do turismo paleontológico em Peirópolis - MG. Dissertação (Mestrado em Turismo e Meio Ambiente) - Centro Universitário UMA, Belo Horizonte, 2008.).

Embora o pertencimento possua muitas definições possíveis, consideramos aqui esse termo segundo o viés da geografia cultural, para a qual ele envolve, em primeira instância, o lugar, mas também a esfera comunitária e o sentimento de apego, mantendo a coesão de uma comunidade (CARDOSO et al., 2017CARDOSO, D. et al. Espacialidades e Ressonâncias do patrimônio cultural: reflexões sobre identidade e pertencimento. Revista de Geografia e Ordenamento do Território (GOT), n.11. p. 83-98, 2017.). O sentimento de pertencimento é o “olhar e reconhecer-se” enquanto parte de uma sociedade com características culturais próprias, incluindo símbolos, valores morais e éticos (CARDOSO et al., 2017, p.89). Por estar relacionado à cultura e às singularidades vividas em determinado lugar, o pertencimento pode envolver também relações conflituosas, quando há destruição dos elementos que ligam determinada comunidade ao seu lugar, seu enraizamento (CARDOSO et al., 2017).

Outra questão de importância social que se dá nos sítios paleontológicos consiste na atividade mineradora, comumente associada a essas áreas pelo fato de as mesmas rochas onde se encontram os fósseis, em geral, possuírem valor comercial. Impactos ambientais oriundos das técnicas mecanizadas de extração incluem assoreamento e lançamento de resíduos nos corpos d’água, destruição dos fósseis, conflitos com atividades locais e áreas de proteção ambiental e acabam gerando degradações e problemas de ordem social como remoção e insatisfação dos/as moradores/as locais (SINTONINI et al., 1994 apud SANTOS; CARVALHO; FERNANDES, 2010SANTOS, W.F.S.; CARVALHO, I.S.; FERNANDES, A.C.S. Mineração versus Paleontologia: Uso e Ocupação da Serra do Veadinho em Peirópolis - Uberaba, Estado de Minas Gerais (Brasil). Anuário do Instituto de Geociências - UFRJ, Rio de Janeiro, 2010.). Esses podem, ainda, vivenciar destruição de seus modos de vida, em um processo que, segundo Cardoso et al. (2017CARDOSO, D. et al. Espacialidades e Ressonâncias do patrimônio cultural: reflexões sobre identidade e pertencimento. Revista de Geografia e Ordenamento do Território (GOT), n.11. p. 83-98, 2017.) pode ser denominado desterritorialização, e que promove uma ruptura do sentimento de pertencimento com o lugar (discutiremos outras implicações do termo mais à frente). Instalam-se, assim, conflitos nessas áreas (SANTOS; CARVALHO; FERNANDES, 2010)

Ademais, áreas de interesse paleontológico estão susceptíveis a problemas sociais gerados pela coleta e comercialização ilegais de seus fósseis, o que alimenta o contrabando e os riscos a ele associados (SANTOS; CARVALHO; FERNANDES, 2010SANTOS, W.F.S.; CARVALHO, I.S.; FERNANDES, A.C.S. Mineração versus Paleontologia: Uso e Ocupação da Serra do Veadinho em Peirópolis - Uberaba, Estado de Minas Gerais (Brasil). Anuário do Instituto de Geociências - UFRJ, Rio de Janeiro, 2010.). No Brasil, não há legislação específica para proteger esse patrimônio (MARTINS, 2016MARTINS, F.S.P. A Arqueologia no Brasil - Direito e Aplicabilidade. O Estudo de Caso do Sítio Arqueológico de Bisnau. Trabalho de Conclusão de Curso (Pós-Graduação Lato Sensu em Análise Ambiental e Desenvolvimento Sustentável) Centro Universitário de Brasília - UNICEUB/IOPD, Brasília, 2016.), embora o comércio de fósseis seja proibido desde 1942 (BRASIL, 1942), quando as extrações passaram a ser permitidas apenas pelo Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM, hoje Agência Nacional de Mineração - ANM (BRASIL, 2017). Desde a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 216 (BRASIL, 1988), os fósseis são considerados Patrimônio Cultural, Educacional e Científico, mas contam com o apoio de leis ou decretos ainda frágeis.

Os conflitos ambientais nessas áreas se dão, portanto, a partir da denúncia de uma desigualdade ambiental por sujeitos sociais co-presentes, com percepção ambiental e exposição a riscos distintos. Questões de origem nos campos da Justiça Ambiental e da Ecologia Política ajudam a pensar em como esse cenário é representativo em uma conjuntura na qual a crise ambiental contemporânea está ligada a danos relacionados ao modelo hegemônico de sociedade, anunciando injustiças ambientais (SANTOS, 2006SANTOS, B.S. Conocer desde El Sur: Para una cultura política emancipatória. Lima, Peru: Fondo Editorial de la Facultad de Ciencias Sociales - UNMSM, 2006.; LEFF, 2016LEFF, E. A aposta pela vida: Imaginação sociológica e imaginários sociais nos territórios ambientais do sul. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.).

Quando pensamos em injustiça ambiental, é inevitável nos remetermos ao movimento por justiça ambiental. Iniciado nos Estados Unidos, ele trouxe à tona discussões sobre a inseparabilidade entre sociedade e ambiente, problematizando disputas em meio a situações de vulnerabilidade associadas a riscos ambientais (BULLARD, 2005BULLARD, R. Ética e racismo ambiental. Revista Eco 21, 2005.). O movimento, que se firma na década de 1980, traz reflexões quanto aos modos de se elaborar as políticas e tomar decisões na questão ambiental, visto que essas são um reflexo das relações hegemônicas que se dão na sociedade predominante e em suas instituições, conferindo privilégios a alguns e prejudicando grupos socialmente vulnerabilizados (BULLARD, 2005), a exemplo do que ocorre em sítios paleontológicos nos quais se fazem presentes disputas desiguais envolvendo o uso e ocupação do território.

No contexto das injustiças, a dominação e o controle da natureza vêm levando à objetificação das comunidades dos arredores dos sítios paleontológicos. Como a crise ambiental está inserida em um contexto de crise civilizatória, é importante pensar na defesa do que Escobar (2017ESCOBAR, A. Desde abajo, por la izquierda, y con la tierra: la diferencia de Abya Yala/ Afro/ Latino/ America. In: ALIMONDA, H.; PÉREZ, C.T.; MARTÍN, F. (Coords.). Ecología política latino-americana: pensamiento crítico, diferencia latinoamericana y rearticulación epistémica. 1ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2017, v.1.) denomina como “decolonialidade”, no sentido da necessidade de uma libertação real da colonização intelectual (do saber) e do poder de um sistema-mundo moderno-colonial (legado epistemológico do eurocentrismo), por meio da busca de novas alternativas, outros modos de conhecimento (contra-hegemônico) e poder.

Desconstruir o poder e o conhecimento, provocando um posicionamento contínuo por meio do diálogo crítico, é um dos objetivos da Ecologia Política, campo que para Alimonda (2017ALIMONDA, H.; PÉREZ, C.T.; MARTÍN, F. (Coords.). Ecologia política latinoamericana: pensamento crítico, diferencia latino-americana y rearticulación espistémica. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2017. v.2.), embora seja recente e ramificado, tem características próprias, partindo de um olhar da América Latina na busca por uma identidade. Tal olhar parte da multiplicidade de nações que lutam pela decolonização, pelo fim da dominação de uma episteme eurocêntrica, reducionista, que traz a Europa enquanto lugar ativo e lugares do Sul Global, como a América, como passivos (LANDER, 2005LANDER, E. (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2005.; SANTOS, 2006SANTOS, B.S. Conocer desde El Sur: Para una cultura política emancipatória. Lima, Peru: Fondo Editorial de la Facultad de Ciencias Sociales - UNMSM, 2006.). É também um giro eco-político, ao estudar conflitos socioambientais e a contribuição de movimentos sociais pela justiça ambiental (MARTÍNEZ-ALIER, 2015MARTÍNEZ-ALIER, J.M. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2015.).

Como muitos sítios paleontológicos encontram-se em situações de conflitos ambientais, principalmente devido à disputa (desigual) por território, que se dá entre diferentes atores (SILVA; COSENZA, 2019bSILVA, C.N.; COSENZA, A. Paleontologia e Educação Ambiental: Possibilidades e desafios para o ensino e a justiça ambiental. In: X Encontro Pesquisa em Educação Ambiental - EPEA. Anais... UFJF, MG; UFF, RJ; FFCLRP/USP, SP; 2017. Universidade Federal de Sergipe, São Crisóvão, SE. Anais... Universidade Federal de Sergipe, São Crisóvão, SE, 2019b.), é importante apontar os riscos aos quais essas populações estão submetidas, mesmo que muitas vezes o sentimento de pertencimento a territórios caracterizados pela presença de fósseis esteja apartado dessas populações (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, R.R. Saberes tradicionais e a história da paisagem. In: SANTOS, M.G.; QUINTEIRO, M. (Org.). Saberes Tradicionais e locais: reflexões etnobiológicas. Rio de Janeiro: UERJ, 2018.). Assim, defendemos pensar a Paleontologia a partir de questões socioambientais locais, em conexão com os campos mencionados.

Para tal, partimos da discussão sobre dados produzidos em um levantamento dos sítios paleontológicos de Minas Gerais - MG (SILVA; COSENZA, 2019aSILVA, C.N.; COSENZA, A. A Paleontologia em Minas Gerais: turismo, conflitos socioambientais e Educação Ambiental. In: X XII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências - XII ENPEC, 2019, Natal, RN. Anais... Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências - ABRAPEC, 2019a.) e das relações que se dão nesses locais, além da busca pela fonte dos artigos utilizados para o referido levantamento. A escolha pelo estado mineiro deu-se pela grande visibilidade de alguns desses locais tanto no cenário científico quanto no cenário turístico, bem como pela quantidade de sítios paleontológicos existentes no estado, pois dos 42 sítios reconhecidos e tombados pela Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológicos (SIGEP), 4 estão localizados em MG. Tal levantamento foi fundamental para que pudessem vir à tona relações conflitivas, de pertencimento ou de valorização dos sítios paleontológicos.

A ressignificação desse olhar tem também, como objetivo, agir em contraponto às interpretações hegemônicas que a Paleontologia recebe quando associada à questão ambiental. Nesse aspecto, têm sido crescentes as discussões sobre o Antropoceno, como base para explicar as mudanças pelas quais o planeta vem passando, com uma espécie (Homo sapiens) sendo, pela primeira vez, responsável ativamente por uma nova época na escala do tempo geológico. Cunhado na década de 1980, o termo surgiu para designar uma nova época, em que um novo humano (anthropo- = “humano” e -ceno = “novo”), produz alterações climáticas, geológicas, e altas taxas de extinção (HARAWAY, 2016HARAWAY, D. Staying with the Trouble. Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.).

Mas o termo, e sua definição, vêm recebendo críticas (HARAWAY, 2016HARAWAY, D. Staying with the Trouble. Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.; IGLESIAS-RÍOS, 2019IGLESIAS-RÍOS, R. Capitaloceno: a era da barbárie. 1 ed. Rio de Janeiro: Yellow Carbo Design e Publishing, 2019.). Por expor melhor as relações de poder, as relações entre o global e o local, e as relações de conflito, Capitaloceno poderia ser um termo mais adequado (HARAWAY, 2016; IGLESIAS-RÍOS, 2019). Esse termo surgiu para apontar que colocar a culpa e a responsabilidade pelas mudanças ambientais na espécie humana, ou nas ações individuais, está longe de ser a solução, porque é preciso considerar que as forças são desiguais e diversificadas, demandando uma compreensão mais crítica do problema (IGLESIAS-RÍOS, 2019).

Colocamo-nos, assim, ao exercício reflexivo de analisar criticamente as possíveis (e necessárias) relações entre Paleontologia, Justiça Ambiental e Ecologia Política. Esperamos que tal tessitura contribua para um novo olhar, voltado a modos alternativos de pensar a Paleontologia, bem como as relações que se estabelecem em sítios paleontológicos, contribuindo para a visibilidade de seus conflitos, vulnerabilidades e injustiças ambientais, além do direito de suas comunidades aos territórios, aliado à conservação da natureza. Vejamos como essas relações podem ser feitas.

Sítios paleontológicos em Minas Gerais: vulnerabilidades socioambientais

Há grande diversidade de sítios paleontológicos no estado de Minas Gerais, em diferentes condições. Um sítio paleontológico é uma localidade fossilífera que reúne características que merecem ações de salvaguarda, em geral pelo poder público (SCHOBBENHAUS et al., 2002SCHOBBENHAUS, C. et al. Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil. DNPM/CPRM - Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológicos (SIGEP) - Brasília, 2002.). O fato de uma região se constituir em um sítio não significa que ela está automaticamente protegida, mas que merece ser preservada, pois a salvaguarda só se dá por uma lei específica (municipal, estadual ou federal). Para geoparques2 2 - Segundo Brilha (2009), geoparque é um território com limite geográfico bem delimitado, e estratégia de desenvolvimento baseada na conservação do patrimônio geológico, incluindo os demais elementos do patrimônio natural e cultural. , o status é dado pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

O levantamento realizado por Silva e Cosenza (2019aSILVA, C.N.; COSENZA, A. A Paleontologia em Minas Gerais: turismo, conflitos socioambientais e Educação Ambiental. In: X XII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências - XII ENPEC, 2019, Natal, RN. Anais... Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências - ABRAPEC, 2019a.) sobre a ocorrência de fósseis em Minas Gerais revelou quatro sítios paleontológicos, um sítio paleoambiental, sedimentar e estratigráfico, além de um sítio espeleológico de importância paleontológica, já tombados e publicados pela Comissão Brasileira de Sítios Paleontológicos - SIGEP. Vale ressaltar que um dos sítios, localizado na Bacia do Gandarela (município de Rio Acima), ainda não se encontra tombado, mas foi inserido na análise das autoras por estar protegido por lei municipal e por estar incluído na área do Geoparque Quadrilátero Ferrífero, candidato da UNESCO a Geopark Global.

Os sítios levantados foram: 1) Bacia do Gandarela; 2) Geossítio Fonseca, na Bacia de Fonseca; 3) Conophyton de Cabeludo, na Formação Vazante; 4) Sítio Sumidouro do Córrego do Carrapato; 5) Peirópolis e Serra da Galga, na Formação Marília (Bacia Bauru); e 6) Sítio Espeleológico Carste de Lagoa Santa, na Formação Sete Lagoas (Grupo Bambuí). Enquanto alguns são pontos turísticos, como os dois últimos, também associados a centros de ensino e pesquisa, outro, como o sítio Paleontológico de Fonseca, também conta com a possibilidade de se tornar um ponto de interesse turístico devido à proposta de criação do Geoparque do Quadrilátero Ferrífero, ainda não aprovada. Dos sítios analisados, 4 encontram-se em área de mineração: Bacia do Gandarela, Conophyton de Cabeludo, Sumidouro do Córrego do Carrapato e Carste de Lagoa Santa (Figura 1). Todos os seis sítios são de interesse para a comunidade científica enquanto locais de coleta de material geológico e paleontológico.

Há questões em comum entre os dados levantados, como descaracterização das tradições locais após os sítios de Peirópolis e o Carste de Lagoa Santa terem sido abertos ao turismo, infraestrutura deficiente para a própria comunidade do entorno (pavimentação e iluminação de estradas, transporte coletivo, fossas sépticas mal planejadas e áreas irregulares de disposição de resíduos) e disputa entre mineradoras, moradores/as locais e gestores/as de unidades de conservação - UCs (as quais podem ser visualizadas na Figura 1). Também há problemas relativos ao desemprego e êxodo de jovens, contaminação de águas e solo e moradia em áreas de risco (DEUS et al., 1997DEUS, J.A.S. de; FERREIRA, C.C.D.; RODRIGUES, R. S. Preservação da área cárstica de Lagoa Santa, MG, através da Educação Ambiental. Revista Geonomos, 1997.; LOPES, 2008LOPES, L.A.M. Os impactos socioculturais e o desenvolvimento do turismo paleontológico em Peirópolis - MG. Dissertação (Mestrado em Turismo e Meio Ambiente) - Centro Universitário UMA, Belo Horizonte, 2008.; SANTOS; CARVALHO; FERNANDES, 2010SANTOS, W.F.S.; CARVALHO, I.S.; FERNANDES, A.C.S. Mineração versus Paleontologia: Uso e Ocupação da Serra do Veadinho em Peirópolis - Uberaba, Estado de Minas Gerais (Brasil). Anuário do Instituto de Geociências - UFRJ, Rio de Janeiro, 2010.; PADOAN; SOUZA, 2013PADOAN, L. de L.F.; SOUZA, L.V. de. Contexto Socioambiental do Parque Estadual do Sumidouro, APA Carste de Lagoa Santa, MG. Uso Público em Unidades de Conservação, v.1, n.1, 2013. apud SILVA; COSENZA, 2019aSILVA, C.N.; COSENZA, A. A Paleontologia em Minas Gerais: turismo, conflitos socioambientais e Educação Ambiental. In: X XII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências - XII ENPEC, 2019, Natal, RN. Anais... Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências - ABRAPEC, 2019a.).

Figura 1:
Sítios de importância paleontológica de Minas Gerais em proximidade a áreas de mineração e unidades de conservação - UCs

A Bacia do Gandarela, no município de Rio Acima, cujos principais fósseis são vegetais e estromatólitos com idades entre 53 a 23 milhões de anos - m.a., vive conflitos resultantes da divergência de interesses de uso e apropriação do ambiente natural entre mineração, sociedade e UCs. Enquanto isso, o sítio de Peirópolis, em Uberaba (Triângulo Mineiro), onde podem ser encontrados dinossauros, crocodilomorfos, peixes, invertebrados, dentre outros, com idades em torno de 90 a 70 m.a., após longa disputa judicial pelo uso e ocupação do território entre mineração, população e cientistas, está hoje em uma estável situação em que não há mais mineradoras em atividade. Entretanto, Peirópolis enfrenta questões como a carência de infraestrutura em urbanização, saneamento, limpeza, segurança, e profissionais da saúde, além de mudanças na cultura local, hoje essencialmente voltada ao turismo paleontológico (LOPES, 2008LOPES, L.A.M. Os impactos socioculturais e o desenvolvimento do turismo paleontológico em Peirópolis - MG. Dissertação (Mestrado em Turismo e Meio Ambiente) - Centro Universitário UMA, Belo Horizonte, 2008.; SANTOS; CARVALHO; FERNANDES, 2010SANTOS, W.F.S.; CARVALHO, I.S.; FERNANDES, A.C.S. Mineração versus Paleontologia: Uso e Ocupação da Serra do Veadinho em Peirópolis - Uberaba, Estado de Minas Gerais (Brasil). Anuário do Instituto de Geociências - UFRJ, Rio de Janeiro, 2010.).

A Formação Vazante, onde se encontra o sítio Conophyton de Cabeludo, no noroeste do estado, com idade entre 1,6 bilhões de anos - b.a. e 950 m.a., é importante para o estudo dos estromatólitos Conophyton em escala mundial. O município de Vazante vivencia diretamente questões de ordem física causadas pela exploração mineral, tais como rachaduras nas casas, abertura de crateras, destruição das grutas pela contaminação das águas, contaminação por metais pesados, desertificação dos solos e poluição em geral. Problemas similares são os de Lagamar (vizinho ao município de Vazante), onde se encontra o sítio Sumidouro do Córrego do Carrapato, com estromatólitos da mesma idade de Vazante (SILVA; COSENZA, 2019aSILVA, C.N.; COSENZA, A. A Paleontologia em Minas Gerais: turismo, conflitos socioambientais e Educação Ambiental. In: X XII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências - XII ENPEC, 2019, Natal, RN. Anais... Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências - ABRAPEC, 2019a.) e também em área de mineração.

Na bacia de Fonseca há diversas angiospermas fósseis com idades entre 65 a 33 m.a. No município de Alvinópolis, no Geossítio Fonseca, centro-leste do estado, os impactos da expansão agrícola e da urbanização desordenada podem ser exemplificados pelas frequentes enchentes e o extrativismo predatório de madeira. Há interesse econômico pela área devido aos depósitos de canga e linhito (SILVA; COSENZA, 2019aSILVA, C.N.; COSENZA, A. A Paleontologia em Minas Gerais: turismo, conflitos socioambientais e Educação Ambiental. In: X XII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências - XII ENPEC, 2019, Natal, RN. Anais... Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências - ABRAPEC, 2019a.).

Já o sítio espeleológico inserido na APA Carste de Lagoa Santa, no centro-sul de Minas, apresenta problemas muito semelhantes aos descritos acima, nos municípios nos quais suas grutas estão inseridas: Lagoa Santa, Pedro Leopoldo, Matozinhos e Cordisburgo, conhecidos pelos inúmeros fósseis encontrados na região (como mamíferos da megafauna brasileira, com pelo menos 10 mil anos) incluindo hominídeos, como Luzia.

Em Lagoa Santa, o problema é semelhante ao da Bacia do Gandarela, com conflitos entre a UC e as comunidades do entorno, cujo livre acesso foi proibido (PADOAN; SOUZA, 2013PADOAN, L. de L.F.; SOUZA, L.V. de. Contexto Socioambiental do Parque Estadual do Sumidouro, APA Carste de Lagoa Santa, MG. Uso Público em Unidades de Conservação, v.1, n.1, 2013. apud SILVA; COSENZA, 2019aSILVA, C.N.; COSENZA, A. A Paleontologia em Minas Gerais: turismo, conflitos socioambientais e Educação Ambiental. In: X XII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências - XII ENPEC, 2019, Natal, RN. Anais... Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências - ABRAPEC, 2019a.), havendo também conflitos gerados pela ocupação desordenada do solo, com destruição de locais de interesse arqueológico e paleontológico. Assim como também acontece em Cordisburgo, há a migração de jovens pelo fato de os pontos turísticos não favorecerem o emprego da população local em suas atividades (SILVA; COSENZA, 2019a).

Em Pedro Leopoldo e Matozinhos, por sua vez, os principais problemas consistem na poluição e contaminação, no primeiro município, devido à mineração e, no segundo, pela atividade siderúrgica. Há disposição irregular de lixo e conflitos entre fazendeiros/as e quilombolas como os de Pedro Leopoldo, que pedem há anos o seu reconhecimento, a implementação de infraestrutura urbana básica, e serviços básicos de saúde, conforme encontrado por Silva e Cosenza (2019aSILVA, C.N.; COSENZA, A. A Paleontologia em Minas Gerais: turismo, conflitos socioambientais e Educação Ambiental. In: X XII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências - XII ENPEC, 2019, Natal, RN. Anais... Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências - ABRAPEC, 2019a.) no Mapa dos Conflitos Ambientais no Estado de Minas Gerais (GESTA/UFMG).

Os conflitos ambientais evidenciados ajudam a compreender como se dão o uso e a apropriação dos recursos naturais em regiões de importância paleontológica, nas quais as relações sociais são protagonistas, trazendo a urgência por uma democracia participativa, processo distante do que tem se dado nesses sítios. É o que ocorre, por exemplo, no Parque Estadual do Sumidouro, na APA Carste de Lagoa Santa, onde os interesses da conservação por parte dos/as gestores/as do parque são diferentes das dinâmicas sociais e da percepção da comunidade sobre essa gestão (PADOAN; SOUZA, 2013PADOAN, L. de L.F.; SOUZA, L.V. de. Contexto Socioambiental do Parque Estadual do Sumidouro, APA Carste de Lagoa Santa, MG. Uso Público em Unidades de Conservação, v.1, n.1, 2013.). Há a proibição do uso e livre acesso à área da UC pelos/as moradores/as locais, que antes utilizavam-na para lazer, manifestações religiosas e coleta de lenha, mas que não foram consultados quanto à sua criação, revelando a ineficácia do processo de gestão que comumente ocorre em ambientes naturais (PADOAN; SOUZA, 2013).

Para que possamos discutir mais acuradamente as relações envolvidas nos sítios paleontológicos em questão, precisamos entender melhor a abrangência de termos como território e conflito ambiental, aqui recorrentes.

Território, Paleoterritório e Conflito Ambiental: um olhar para as especificidades dos sítios paleontológicos de Minas Gerais

Definindo-se por meio de uma abordagem sobre o espaço, o termo território envolve relações de poder, sendo resultado de identidades compartilhadas e relações de pertencimento, únicas desse espaço. Segundo a definição de território defendida por Rogério Haesbaert (2003HAESBAERT, R. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia, v. 29, p.11-24, 2003.), a integração de dimensões diversas do território possibilita uma perspectiva integradora desse conceito, tais como as dimensões política, cultural, econômica e naturalista, a qual parte das relações (e não do dualismo) entre sociedade e natureza. Para Haesbaert (2003), ao definir o território, é importante que o consideremos como um instrumento de poder e um valor que também perpassa o simbólico, em uma valorização identitário-existencial.

Pode-se dizer, entretanto, que as relações (inclusive as conflitivas) concernentes a um mesmo território não se dão de modo uniforme para as sociedades humanas que ocupam/ocuparam esses espaços. Em Paleoterritórios, por exemplo, encontramos características distintas de uso e ocupação do mesmo território em momentos diferentes ao longo do tempo (SOLÓRZANO; OLIVEIRA; GUEDES-BRUNI, 2009SOLÓRZANO, A; OLIVEIRA, R.R. de, GUEDES-BRUNI, R.R. Geografia, história e ecologia: criando pontes para a interpretação da paisagem. Ambiente & Sociedade. Campinas, v.12, n.1, p.49-66, 2009.). A investigação dos processos de transformação ocasionados por usos sobrepostos do território, e de sua utilização por populações pretéritas permite compreender impactos e o efeito desses na paisagem atual (SOLÓRZANO; OLIVEIRA; GUEDES-BRUNI, 2009).

A análise dos Paleoterritórios possibilita entender o contexto social em que as alterações no território ocorreram e compreender a importância dos saberes de populações pretéritas sobre determinado ambiente, em busca de sua sobrevivência (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, R.R. Saberes tradicionais e a história da paisagem. In: SANTOS, M.G.; QUINTEIRO, M. (Org.). Saberes Tradicionais e locais: reflexões etnobiológicas. Rio de Janeiro: UERJ, 2018.), em diferentes escalas de tempo e espaço. Os paleoterritórios, assim, sobrepõem-se, formando uma realidade única e, ao mesmo tempo, múltipla (OLIVEIRA, 2018).

As comunidades que vivem em sítios paleontológicos ocupam, assim, territórios não neutros, configurados por elementos históricos, naturais, econômicos, culturais e políticos. Assim, ligada à assimilação de múltiplas práticas que afirmem o lugar, a concepção de territórios envolve significados com base em tais elementos, ainda que os sentidos atribuídos possam ser alterados pela globalização, com grupos sendo invisibilizados por modelos capitalistas (GODINHO et al., 2016GODINHO, C.P. et al. Conflitos Ambientais e as contradições do desenvolvimento sustentável: o caso da mineração em Conceição do Mato Dentro - MG e suas consequências. In: XX Encontro Nacional de Estudo Populacionais, 1016, Foz do Iguaçu, Paraná. Anais... Associação Brasileira de Estudo Populacionais - ABEP, 2016.). E é justamente nessa defesa do lugar enquanto questão social, política e ecológica, que a luta pelo direito de existir encontra-se ligada à noção de conflitos.

Mesmo que o termo conflito possa ter diferentes significados, os conflitos ambientais consistem em uma luta contra o que Acselrad (2010ACSELRAD, H. Ambientalização das lutas sociais - o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos Avançados. São Paulo, SP: Universidade de São Paulo, p. 24-68, 2010.) define como modernização ecológica imposta pelo capitalismo. Projetos desenvolvimentistas geradores de conflitos ambientais envolvem expropriação ou impactos ambientais que impedem a manutenção de aspectos socioculturais e socioambientais, no caso das comunidades excluídas dos projetos (GODINHO et al., 2016GODINHO, C.P. et al. Conflitos Ambientais e as contradições do desenvolvimento sustentável: o caso da mineração em Conceição do Mato Dentro - MG e suas consequências. In: XX Encontro Nacional de Estudo Populacionais, 1016, Foz do Iguaçu, Paraná. Anais... Associação Brasileira de Estudo Populacionais - ABEP, 2016.). Os conflitos evidenciam situações de injustiça ambiental, tendo o conflito ambiental como um elemento impulsionador para a defesa do lugar (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. Desenvolvimento e Conflitos Ambientais: um novo campo de investigação. In: ________ (Org.). Desenvolvimento e Conflitos Ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, p.11-34, 2010.).

Embora haja uma tendência de que diferentes tipos de conflitos sejam unificados quando se discute a problemática ambiental, Zhouri e Laschefski (2010ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. Desenvolvimento e Conflitos Ambientais: um novo campo de investigação. In: ________ (Org.). Desenvolvimento e Conflitos Ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, p.11-34, 2010.) propõem três modalidades sob as quais esses conflitos podem ser investigados. São elas: 1) conflitos distributivos, que surgem a partir de desigualdades sociais tanto no acesso quanto no uso de bens ambientais, como água e energia; 2) conflitos espaciais, que se dão pelos impactos ambientais e seus efeitos, quando esses ultrapassam os limites entre territórios de agentes ou grupos sociais distintos, sendo conflitos que não necessariamente surgem associados a disputas territoriais (por exemplo, emissão de poluentes); e 3) conflitos territoriais, que ocorrem pela apropriação capitalista da base territorial de grupos sociais e caracterizam-se por envolver grupos com distintos modos de produção de seus territórios. Muitas vezes esse tipo de conflito dá-se pela divergência de interesses entre a sociedade urbano-industrial-capitalista-hegemônica e as comunidades locais, as quais têm no território sua identidade e a garantia de produção e reprodução dos seus modos de vida.

Tal categorização dos conflitos ajuda-nos a olhar para os conflitos que se dão pelas vulnerabilidades socioambientais destacadas para os sítios paleontológicos mineiros. Certamente, esse tipo de classificação tem seus limites, como destacado por Zhouri e Laschefski (2010ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. Desenvolvimento e Conflitos Ambientais: um novo campo de investigação. In: ________ (Org.). Desenvolvimento e Conflitos Ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, p.11-34, 2010.), mas permite visualizar as melhores estratégias de enfrentamento e resolução desses conflitos. Além disso, há também a possibilidade de vários tipos de conflito estarem acontecendo ao mesmo tempo, em determinada localidade, o que parece ser comum para nossos sítios paleontológicos. Vejamos, a seguir, uma possibilidade de categorização dos conflitos que trouxemos neste ensaio.

Por estarem em áreas onde ocorre a disputa entre mineração e sociedade, a Bacia do Gandarela e o Sítio Espeleológico Carste de Lagoa Santa podem ser agrupados na modalidade de conflitos territoriais. Ambos também apresentam relações conflitivas entre UCs e moradores/as do entorno. Não se pode esquecer, entretanto, que na APA Carste de Lagoa Santa, os municípios de Pedro Leopoldo e Matozinhos, ao serem alvos de problemas como poluição e contaminação de solo, água e ar, podem ser também atribuídos à categoria de conflitos espaciais.

Pedro Leopoldo, ainda, devido às desigualdades sociais no acesso e no uso de recursos naturais por parte dos/das quilombolas, pode também fazer parte da categoria de conflitos distributivos. Isso porque, além da luta pelo reconhecimento do Quilombo de Pimentel, seus/suas moradores/as defendem a conservação dos mananciais de sua área, o acesso à energia e pavimentação, e a efetivação das Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial no município.

O Geossítio de Fonseca, por sua vez, devido a expansão agrícola e urbana desordenadas, sofre com as enchentes, que se dão não necessariamente diretamente na área de lançamento de resíduos. Desse modo, optamos aqui por atribuir esse conflito à modalidade dos conflitos espaciais. Também podem ser espaciais os conflitos em Conophyton de Cabeludo e no Sítio Sumidouro do Córrego do Carrapato, que, vizinhos um do outro, têm problemas em comum, como poluição e contaminação de águas, solo e ar. Por estarem em áreas onde ocorre a disputa pelo território entre sociedade e mineradoras, podem ser ainda enquadrados na categoria de conflitos territoriais.

Por fim, Peirópolis não tem, hoje, problemas com a atividade mineradora, mas faltam infraestrutura urbana e serviços básicos de saúde, o que nos leva a classificar a área dentro de conflitos distributivos, embora a memória e a identidade locais possam ter sido prejudicadas pelos conflitos territoriais pretéritos.

Percebemos, aqui, que embora tenham as singularidades descritas, os conflitos territoriais nesses sítios paleontológicos em geral envolvem processos de desterritorialização e reterritorialização, comuns a conflitos territoriais. Segundo Zhouri e Laschefski (2010ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. Desenvolvimento e Conflitos Ambientais: um novo campo de investigação. In: ________ (Org.). Desenvolvimento e Conflitos Ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, p.11-34, 2010.), o processo de desterritorialização diz respeito ao deslocamento ou remoção de grupos, havendo perda da terra, o que desestrutura a comunidade, prejudicando, dentre outros aspectos, sua memória e identidade. Para Haesbaert (2003HAESBAERT, R. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia, v. 29, p.11-24, 2003.), essa desterritorialização, que deve ser considerada em seu sentido social, na verdade pode ser vista como um processo de intensificação da territorialização, pois o ato de territorializar é, primeiramente, criar mediações espaciais que confiram poder em relação a determinados indivíduos e grupos sociais. Ou seja, o processo envolve criação e destruição de territórios em suas várias escalas, podendo prejudicar ou mesmo impedir a retomada dos modos de vida (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. Desenvolvimento e Conflitos Ambientais: um novo campo de investigação. In: ________ (Org.). Desenvolvimento e Conflitos Ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, p.11-34, 2010.).

Tais apontamentos ajudam a problematizar as relações existentes entre esses territórios e os saberes que neles tomam parte, fazendo emergir novas epistemologias a partir das diferenças (PORTO GONÇALVES, 2008PORTO-GONÇALVES, C.W. De Saberes e de Territórios: Diversidade e Emancipação a partir da experiência latinoamericana. In: CECEÑA, A.E. (coord.). De los saberes de la emancipación y de la dominación 1 ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales: CLACSO, 2008.). Os conflitos ambientais servem como fonte de inspiração para teorizar sobre modos de superar problemas socioambientais, o que Santos (2006SANTOS, B.S. Conocer desde El Sur: Para una cultura política emancipatória. Lima, Peru: Fondo Editorial de la Facultad de Ciencias Sociales - UNMSM, 2006.) considera um desafio em um quadro de crise ambiental. É por isso que, no sentido de permitir outras significações, a Ecologia Política constitui-se como campo que tensiona a discursividade sobre a questão ambiental (LEFF, 2016LEFF, E. A aposta pela vida: Imaginação sociológica e imaginários sociais nos territórios ambientais do sul. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.), como discutiremos a seguir.

Pensando os Conflitos Ambientais nos sítios paleontológicos de MG: caminhos através da Ecologia Política e da Justiça Ambiental

Muitas vezes, sob a ótica conservacionista, o uso público em áreas protegidas pode restringir a conservação a uma perspectiva mercadológica, que considera como público apenas os/as visitantes, excluindo as comunidades locais (VALLEJO, 2013VALLEJO, L.R. Uso público em áreas protegidas: atores, impactos, diretrizes de planejamento e gestão. Revista Eletrônica Uso Público em Unidades de Conservação. Niterói, RJ. v.1, n.1, 2013.). Mas uma área protegida, como um sítio paleontológico, não é apenas um espaço delimitado geograficamente, que inclui visitantes, gestores/as e prestadores/as de serviço, pois é preciso tratar a territorialidade enquanto construção social, considerando o conflito como tema central (VALLEJO, 2013).

É necessário que haja mais incentivo à participação popular na salvaguarda das riquezas naturais. Para Vallejo (2013VALLEJO, L.R. Uso público em áreas protegidas: atores, impactos, diretrizes de planejamento e gestão. Revista Eletrônica Uso Público em Unidades de Conservação. Niterói, RJ. v.1, n.1, 2013.), um dos impactos negativos mais marcantes nessas áreas consiste em limitações de acesso que se impõem sobre moradores/as antigos pelos órgãos ambientais, enquanto muitas vezes tais sujeitos necessitam dessas áreas para sua subsistência, que pode estar ligada ao extrativismo da pequena agricultura, dentro e fora de seus limites legais em Unidades de Conservação. Para as áreas levantadas neste trabalho que se encontram associadas a UCs, nem mesmo o uso para lazer dos/as moradores/as locais fica permitido (PADOAN; SOUSA, 2013PADOAN, L. de L.F.; SOUZA, L.V. de. Contexto Socioambiental do Parque Estadual do Sumidouro, APA Carste de Lagoa Santa, MG. Uso Público em Unidades de Conservação, v.1, n.1, 2013.; SILVA; COSENZA, 2019aSILVA, C.N.; COSENZA, A. A Paleontologia em Minas Gerais: turismo, conflitos socioambientais e Educação Ambiental. In: X XII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências - XII ENPEC, 2019, Natal, RN. Anais... Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências - ABRAPEC, 2019a.).

Há um desafio em conciliar a conservação de riquezas naturais e a geração de renda e melhoria de vida, com baixo impacto ambiental, para elaboração de políticas públicas. Vallejo (2013VALLEJO, L.R. Uso público em áreas protegidas: atores, impactos, diretrizes de planejamento e gestão. Revista Eletrônica Uso Público em Unidades de Conservação. Niterói, RJ. v.1, n.1, 2013.) ressalta que desde o início do histórico de visitação de áreas naturais para atividades recreativas, os/as moradores/as dessas áreas vêm sendo excluídos/as. A organização comunitária é, entretanto, um fator determinante para a permanência e resistência dos grupos em seus territórios, sobre os quais detêm o conhecimento autóctone (LEFF, 2016LEFF, E. A aposta pela vida: Imaginação sociológica e imaginários sociais nos territórios ambientais do sul. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.).

A própria noção de pertencimento ao meio deveria estar intimamente ligada à Paleontologia. Ao despertar memórias e saberes, ela pode contribuir para uma participação mais reflexiva, que estimule o sentimento de pertencimento ao patrimônio natural e cultural, através da sucessão de (paleo)territórios que formam uma realidade única, com mecanismos, estratégias e ações de enfrentamento, rebeldia, insurgência, ruptura e transgressão ante condições que Walsh (2017WALSH, C. (Ed.). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo II. Quito, Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2017.) chama de silenciamento. Esses silêncios, impostos ou estratégicos, advindos do sistema capitalista hegemônico, que destrói e expropria a natureza, reprime, criminaliza e violenta sujeitos e saberes, também estão contidos nos gritos, os quais apontam para rachaduras e rupturas nos padrões de poder, trazendo a possibilidade da decolonização, ou, ao menos, apontando para ela (WALSH, 2017WALSH, C. (Ed.). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo II. Quito, Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2017.).

Assim, pensamos que os conflitos evidenciados aqui consistem em relações mais complexas do que em um primeiro momento aparentam. É importante, portanto, pensar esses lugares como espaços de memória que permitem a reflexão sobre a experiência humana no tempo. O que é legitimado nesses locais (em museus, centros de pesquisa, escolas, etc.) é o que as comunidades locais realmente desejam legitimar sobre seu passado? Há, nesses locais, políticas que objetivem enriquecer a relação da sociedade com seus bens culturais, sua memória coletiva e seu patrimônio?

Para Santos (2002SANTOS, B.S. (Org.). A Globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 2002), o patrimônio comum da comunidade acaba fazendo parte de uma globalização contra-hegemônica, por permitir que novas identidades locais, regionais e nacionais surjam, clamando pelo direito às suas raízes, envolvendo relações sociais e de poder produtoras de conhecimentos locais e situados. É preciso, então, desviar o olhar daquilo que se entende por Paleontologia. Se hoje os problemas das Ciências Sociais são compartilhados com as Ciências Naturais (SANTOS, 2006SANTOS, B.S. Conocer desde El Sur: Para una cultura política emancipatória. Lima, Peru: Fondo Editorial de la Facultad de Ciencias Sociales - UNMSM, 2006.), é necessário reverter a mercantilização e a objetificação das populações nos sítios paleontológicos. Em que medida podemos, de fato, compreender a Paleontologia de um modo atual e contextualizado, se mantivermos um olhar apartado das questões socioambientais a ela relacionadas?

Nesse sentido, propomos pensar a Paleontologia por meio de questionamentos e reflexões que fomentem ações coletivas nesses espaços, que não podem ser vistos apenas como espaços de contemplação da beleza e dos registros fósseis de um passado distante, apartado das comunidades e de suas manifestações culturais. Os movimentos sociais locais podem contribuir para a gestão desses sítios, em uma luta pelo fortalecimento da gestão participativa e integrada da população e do uso de sua terra, contra o processo de desterritorialização e reterritorialização. Luta ambiental como luta pelo bem comum.

Nos sítios paleontológicos abertos ao turismo, por exemplo, pensar um turismo de base comunitária, que incorpore o modo de viver e de representar o mundo da comunidade, enraizado na participação e no protagonismo social das populações locais (BURGOS; MERTENS, 2015BURGOS, A.; MERTENS, F.; Os desafios do turismo no contexto da sustentabilidade: as contribuições do turismo de base comunitária. Pasos: Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, v.13, n.1, p. 57-71, 2015.), pode ser uma estratégia frente à perspectiva mercadológica que desestrutura a cultura local, descaracteriza ambientes naturais, eleva as desigualdades sociais e estimula a especulação imobiliária.

A Ecologia Política ajuda a que desconfiemos de modos acalentados de construção e legitimação das ciências convencionais, partindo de uma busca pela identidade do pensamento crítico latinoamericano, que só pode encontrar respostas recorrendo à análise de nosso passado (ALIMONDA, 2017ALIMONDA, H.; PÉREZ, C.T.; MARTÍN, F. (Coords.). Ecologia política latinoamericana: pensamento crítico, diferencia latino-americana y rearticulación espistémica. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2017. v.2.; OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, R.R. Saberes tradicionais e a história da paisagem. In: SANTOS, M.G.; QUINTEIRO, M. (Org.). Saberes Tradicionais e locais: reflexões etnobiológicas. Rio de Janeiro: UERJ, 2018.). Ainda para Alimonda (2017ALIMONDA, H.; PÉREZ, C.T.; MARTÍN, F. (Coords.). Ecologia política latinoamericana: pensamento crítico, diferencia latino-americana y rearticulación espistémica. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2017. v.2.), se temos uma realidade geo-histórica comum, enquanto América Latina, precisamos que o pensamento crítico, anti-positivista, coloque-nos em uma posição fronteiriça em relação aos sistemas de conhecimento estabelecidos.

Em se tratando de realidade geo-histórica, a possibilidade de estarmos em uma nova época geológica, o Antropoceno, traz o aquecimento global como apenas uma das preocupações que devemos ter em relação à crise ambiental, enquanto a ameaça do fascismo e de pandemias são um perigo atual e real. A pandemia da Covid 19, causada pelo novo Coronavírus, SARS-CoV2, evidencia as diferenças quanto ao nível de exposição ao risco e as possibilidades de enfrentamento ao mesmo, expondo a divisão de classes e as vulnerabilidades existentes nesse modelo econômico (HARVEY, 2020HARVEY, D. Política anticapitalista em tempos de COVID-19. In: DAVIS, M. et al: Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020.). É por isso que para HARVEY (2020, p. 15), não existe um verdadeiro desastre natural. “Os vírus mudam o tempo todo. Mas as circunstâncias nas quais uma mutação torna-se uma ameaça à vida, dependem das ações humanas”.

Em meio a essa conjuntura atual e catastrófica, em um encontro entre Terra e Mundo, as Ciências Sociais ajudam a pensar, de forma crítica, no Capitaloceno. Este toma o espaço-tempo constituído por histórias e práticas de convivência de multiespécies que caminham juntas, ainda que em contextos diferentes, em meio a um complexo quadro de processos globais. Em cada sítio, pessoas com culturas distintas, enfrentamentos diferentes para questões socioambientais que se dão na relação entre o meio, turistas, empresários/as, geocientistas, gestores/as e comunidade local. Mas é preciso gritar pelos pequenos espaços, pelas gretas, dando visibilidade às injustiças e lutas (WALSH, 2017WALSH, C. (Ed.). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo II. Quito, Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2017.), semeando novas conexões, novas possibilidades, novas formas alternativas de pensar alternativas.

Considerações Finais

A partir dos conflitos ambientais encontrados nos sítios paleontológicos/espeleológicos de Minas Gerais, foi possível tecer conexões com a Ecologia Política e a Justiça Ambiental, no sentido de contribuir para a visibilidade das questões que se colocam nas comunidades detentoras de um rico patrimônio natural e cultural. Ao trazer à tona relações conflitivas, de pertencimento ou de valorização dos (paleo)territórios, essas conexões são referenciais para a luta contra a desigualdade social nesses sítios e a inclusão de suas comunidades em uma gestão participativa.

Consideramos urgente uma mudança nos modos de se olhar para os sítios paleontológicos/espeleológicos brasileiros e as relações que neles se estabelecem com as comunidades de seu entorno. Essa é também uma tentativa de superar a fragmentação entre as Ciências Naturais e Ciências Sociais (e Humanas), o determinismo tecnológico e a invisibilização das comunidades constituintes desses sítios. Mais do que a superação da neutralidade, é crucial que a Paleontologia seja um espaço de resistência socioambiental, buscando transformar o indivíduo e a sociedade.

Em um contexto de crise ambiental e crise civilizatória, olhar para questões socioambientais é também olhar para a participação comunitária, dar poder à luta das comunidades detentoras desse patrimônio. Tentar compreender os conflitos ambientais que se dão nesses espaços, agrupando-os e mostrando suas singularidades, é um importante caminho no sentido da decolonização de territórios e paleoterritórios que historicamente são palcos de desigualdades sociais e injustiças ambientais.

Nesse sentido, a Ecologia Política e a Justiça Ambiental são necessárias em um Capitaloceno em que questões sem precedentes, como o impacto global do novo coronavírus e o negacionismo da ciência, pedem estratégias urgentes de resistência e enfrentamento. Em meio a fósseis que são provas incontestáveis de um planeta Terra em constante evolução, a contextualização e a crítica permitem que nos coloquemos aptos a analisarmos a correlação de interesses e forças econômicas, políticas e sociais que se vinculam através das relações de poder por trás da negação desses conhecimentos.

Esperamos que a luta por esses territórios possa um dia transcender o recurso que se defende, e que o patrimônio paleontológico seja uma verdadeira força propulsora para a luta por vários direitos. Como diria Ecléa Bosi (2003BOSI, E. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.), que o vínculo com o passado nos ajude a extrair a força para a formação de nossa identidade. Afinal, “o presente é marcado pelo sopro do ar que foi respirado antes e pelos ecos das vozes que emudeceram” (BENJAMIN, 1994BENJAMIN, W. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política, São Paulo: Brasiliense, 1994., p. 223).

Ao mostrar-se atual, nos meios acadêmico e social, a Paleontologia une passado e presente, em espaços onde tempos distintos convivem, e em um tempo onde distintos espaços são disputados. Tudo em um mesmo tempo e em um mesmo espaço, e tudo em um espaço-tempo diferenciado, onde lutas e disputas se colocam. Esperamos que essa nova proposta para a Paleontologia possa ganhar cada vez mais potência, ainda que a caminhada que articula tais áreas esteja apenas começando. Que as pegadas hoje postas aqui deixem suas marcas em caminhadas vindouras.

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  • 1
    - Esse segmento do mercado turístico engloba, segundo Moura-Fé (2015), o turismo de aventura, o turismo rural, ecoturismo e, o mais recentemente criado, geoturismo, um ramo relacionado ao ecoturismo, mas com ênfase no meio físico/abiótico.
  • 2
    - Segundo Brilha (2009), geoparque é um território com limite geográfico bem delimitado, e estratégia de desenvolvimento baseada na conservação do patrimônio geológico, incluindo os demais elementos do patrimônio natural e cultural.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2020
  • Aceito
    16 Mar 2021
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