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Fronteiras entre desigualdade e diferença na governança das águas1 1. A realização deste estudo contou com suportes da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (FAPESP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Resumos

O objetivo do artigo é discutir os temas da desigualdade e da diferença na governança das águas no Brasil. O trabalho problematiza a produção de hierarquias nas arenas de governança, sustentando a hipótese de que a passagem da diferença à desigualdade resulta das práticas de justificação que naturalizam a soberania da competência técnica na gestão ambiental. Para tanto, serão tomados como referência resultados significativos de estudos feitos sobre a estruturação e o funcionamento dos Comitês de Bacia em diferentes regiões do país. Com base nestes resultados, discute-se a produção discursiva nos Comitês, a autoridade dos agentes que corporificam os novos princípios de gestão e as implicações do processo de cientifização da política. O texto conclui indicando a importância da diversidade na construção de uma nova narrativa da governança ambiental.

Governança da água; Comitês de Bacia Hidrográfica; Participação; Justiça ambiental


This article addresses the themes of inequality and difference in water governance in Brazil. The production of hierarchies in the arenas of governance is discussed, defending the hypothesis that the shift from difference to inequality is the result of practices of justification that consolidate the sovereignty of technical competence in environmental management. Some of the more significant findings of studies about the structure and functioning of River Basin Committees in different regions of the country are taken as reference for this discussion. Based on these findings, we discuss the discursive production of the Committees, the authority of the agents that embody the new principles of management, and the implications of the process of scientification of the politics. The article concludes by pointing out the importance of diversity in the construction of a new narrative of environmental governance.

Water Governance; River basin Committees; Participation; Environmental Justice


El objetivo del texto es discutir los temas de la desigualdad y la diferencia en la gobernabilidad del agua en Brasil. El trabajo problematiza la producción de jerarquías en las arenas de la gobernanza, sosteniendo la hipótesis de que el paso de la diferencia a la desigualdad resulta de las prácticas de la justificación que naturalizan la soberanía de la competencia técnica en la gestión ambiental. Para ello, se tomarán como referencia los hallazgos significativos de estudios realizados sobre la estructuración y el funcionamiento de los Comités de Cuentas de diferentes regiones del país. Basándose en estos resultados, discutimos la producción discursiva en los Comités, la autoridad de los agentes que encarnan los nuevos principios de gestión y las implicaciones del proceso de cientifización de la política. El texto concluye planteando la importancia de la diversidad en la construcción de una nueva narrativa de gobernanza ambiental.

Gobernanza del agua; Comités de Cuencas; Participación; Justicia ambiental


Introdução

O debate internacional sobre governança ambiental tem mantido fortes laços com os pressupostos políticos concernentes aos estudos sobre democracia. Trabalhos voltados aos arranjos políticos dedicados à ampliação da participação e à construção de distintas esferas de democracia deliberativa têm influenciado sobremaneira o debate em torno da legitimidade e da eficiência das arenas de governança socioambiental ( BABER; BARTLETT, 2005 BABER, W.F.; BARTLETT, R.V Deliberative environmental politics: democracy and ecological rationality. Cambridge: The MIT Press, 2005. .).

No caso do recurso água, a atenção para a reforma dos aparatos gestores nacionais e regionais data de meados da década de 1980. Neste período de quase três décadas, instituições acadêmicas dedicadas aos estudos quantitativos e qualitativos do recurso, associações profissionais, instituições ambientais nacionais e multilaterais e movimentos sociais contribuíram de modo decisivo para o alargamento das fronteiras do debate sobre o que seria classificado como moderna governança da água. Dentre os principais temas envolvidos nestes novos arranjos de governança estão a confecção de instrumentos de gestão (sobretudo os instrumentos econômicos, voltados à precificação do recurso, redução de subsídios e instauração de mercados) e, principalmente, a descentralização administrativa somada à ampliação da participação cidadã ( INGRAM et al., 2008 INGRAM, H; WHITELEY, J.; PERRY, R.The importance of equity and the limits of efficiency in water resources. In: WHITELEY, John; INGRAM, Helen; PERRY, Richard (edts). Water, place, and equity.The MIT Press:Cambridge, 2008, p.01-32.).

No Brasil, o movimento que se tem nomeado por governança da água passa justamente pelos processos de descentralização administrativa e pela participação de distintos setores sociais nas práticas gestoras.

Nesta modalidade de governança, os Comitês de Bacias Hidrográficas assumem um papel central. Regulados pela legislação federal (para os rios de domínio da União) ou pelas legislações estaduais, os Comitês variam na forma de denominação dos segmentos partícipes e nos percentuais de representação destes segmentos. Mas, a despeito das fórmulas de classificação, todos integram representantes de governos (federal, estaduais e municipais), dos chamados grandes usuários do recurso e da sociedade civil organizada (OnG's, movimentos sociais, instituições de pesquisa, associações profissionais e sindicatos, dentre outros).

Nos últimos anos tornou-se possível relacionar um número significativo de estudos sobre o funcionamento dos Comitês de Bacia no Brasil. Partindo de objetos e matrizes teóricas distintas, estes estudos têm destacado impasses importantes relativos tanto à efetiva descentralização da gestão das águas no país, quanto à participação de diferentes setores e grupos sociais nas arenas de governança. Temas como governabilidade, subsidiariedade, empoderamento, capital social e accountability, dentre outros, vêm balizando o debate acadêmico em torno dos avanços e limites da experiência nacional de constituição dos "parlamentos regionais das águas".

Este artigo busca contribuir com tal debate através do lançamento de uma perspectiva voltada à pluralidade de saberes nas práticas de governança. Isto é, para além dos impasses relativos à garantia dos usos múltiplos do recurso, pretende-se aqui problematizar os impasses à inscrição de saberes múltiplos na construção cotidiana dos Comitês de Bacia. O artigo tem como objetivo, assim, propor alguns elementos de reflexão sobre as inovações na governança da água que tangenciam os temas da participação e da diversidade na experiência gestora. Para tanto, serão tomadas como referências conclusões significativas de estudos feitos sobre os Comitês de Bacia em diferentes regiões do país.

De início, convém destacar que não se pretende aqui apresentar uma revisão sistemática dos diversos estudos já empreendidos sobre a temática. E, mesmo considerando as especificidades de cada Comitê e de sua respectiva região de inserção (o que implica também em especificidades normativas), não se adotará a estratégia de discussão pormenorizada dos casos. Serão destacados processos relativamente recorrentes no funcionamento desta instância de governança e que podem ser interpretados à luz dos temas da participação e da diversidade.

A fim de desenvolver tal problemática, o artigo encontra-se dividido em sete tópicos. Após esta breve introdução, no tópico dois serão traçadas as características formais gerais das instâncias de governança da água no Brasil.

No terceiro tópico serão apresentados resultados de estudos recentes sobre a participação política em Comitês e colegiados gestores em diferentes regiões do país.

O tópico quatro abordará as implicações da hierarquização de discursos e saberes nestas esferas gestoras, abrindo caminho para que, no tópico cinco, os dilemas da participação sejam discutidos sob a perspectiva da autoridade socialmente construída dos agentes que corporificam os novos princípios de gestão.

O tópico seis visa contribuir para a classificação deste primeiro ciclo de experiência da governança da água no país através da noção de cientifização da política, tal como já desenvolvida em Martins (2013a) MARTINS, R.C. La scientifisation de la politique dans la gestion de l'eau au Brésil.Autrepart: Revue des Sciences Sociales au Sud, n65, v.2, p. 85-105, 2013a..

Por fim, no sétimo tópico será apresentada uma síntese das principais implicações das discussões empreendidas ao longo do texto, com destaque para o diagnóstico da necessária busca de diversidade na construção de uma nova narrativa da governança ambiental.

A governança da água

Nas políticas voltadas ao meio ambiente no Brasil, a participação social foi fortalecida na década de 1990 com a criação de vários conselhos consultivos e deliberativos em todos os níveis governamentais, com a participação regulamentada da sociedade civil organizada. Os Conselhos de Meio Ambiente, os Comitês de Bacias Hidrográficas e os conselhos gestores de Áreas de Proteção Ambiental observam a participação de diversos segmentos da sociedade em sua composição, tais como associações profissionais, associações de bairro, sindicatos, OnG's e movimentos sociais. Como bem aponta a literatura, esta forma de organização das instâncias representa a politização da gestão ambiental como forma participativa de resolução de problemas e conflitos entre grupos e setores envolvidos ( JACOBI, 2003 JACOBI, P. Espaços públicos e práticas participativas na gestão do meio ambiente no Brasil. Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 18, n. 1/2, p. 315-318, 2003.; SORRENTINO, 2002 SORRENTINO, M. (org). Ambientalismo e participação na contemporaneidade. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2002. .).

No caso da gestão das águas, o modelo adotado no Brasil nos anos 1990 sofreu influência direta do debate internacional sobre o tema. As diversas conferências sobre o meio ambiente realizadas desde os anos 1970 reconheceram os problemas de disponibilidade dos recursos naturais e pautaram diretrizes gerais a serem aplicadas pelos Estados nacionais para minimizar os impactos da ação antrópica sobre a natureza.

A preocupação central desde este período girou em torno das projeções dos níveis de escassez relativa do recurso. Desde a Conferência das Nações Unidas sobre a Água em Mar Del Plata (1977), passando pela Década Internacional de Abastecimento de Água Potável e Saneamento (1981-1990), pela Conferência Internacional sobre Água e Meio Ambiente em Dublin (1992) e pela formação do Conselho Mundial da Água (1996), o tema consolidou-se na agenda política internacional, e novos modos de regulação das formas de uso e acesso ao recurso passaram a ser debatidas por governos e diferentes setores da sociedade civil organizada.

O Estado brasileiro foi fortemente influenciado por estes debates e pelas experiências de outros países para realizar a reforma de sua própria estrutura gestora. Dos resultados mais significativos desta reforma, está a adoção da bacia hidrográfica como unidade de gerenciamento dos recursos hídricos. Ademais, a nova estrutura gestora avançou ainda na descentralização política e administrativa do sistema. Beneficiado pelo contexto da Constituição de 1988 - paradigmaticamente apoiada na ampliação da participação da sociedade civil nas esferas públicas ( DAGNINO, 2002 DAGNINO, E. Sociedade civil, espaços públicos e a construção democrática no Brasil: limites e possibilidades. In: DAGNINO, Evelina (org).Sociedade civil e espaços públicos no Brasil.São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 279-301.) -, o novo modelo buscaria garantir a participação de grupos sociais distintos na instância de decisão correspondente à bacia hidrográfica.

Assim, os Comitês de Bacia Hidrográfica, para além de esferas administrativas, deveriam tornar-se também arenas políticas responsáveis pela governança da água em nível local, articulando em sua composição a participação de usuários, da sociedade civil organizada e de todas as esferas de governo envolvidas. O funcionamento de cada comitê deveria constituir-se regionalmente em um efetivo parlamento das águas.

Implantado no país nas duas últimas décadas, este modelo encontra-se em fase de consolidação institucional. A estrutura gestora dos rios de domínio da União se ampara nos termos da lei 9.433 de 1997. Esta legislação federal instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Este sistema atribuiu aos Comitês papel central na estrutura gestora, definindo-os como fóruns privilegiados de decisão no âmbito de cada bacia hidrográfica. Sua composição necessariamente reuniria representantes dos usuários de recursos hídricos, da sociedade civil organizada e dos três níveis de governo (federal, estadual e municipal).

Em nível estadual, São Paulo foi o ente federado pioneiro na estruturação de um sistema gestor para os recursos hídricos efetivamente descentralizado e de proposta participativa, chegando mesmo a influenciar a legislação federal posterior. A lei estadual 7.633 de 1991, considerada por especialistas e ativistas ambientais um marco na história da governança das águas no país, definiu os termos da nova gestão do recurso, estabelecendo a divisão do estado em unidades de gerenciamento hidrográfico e determinando a criação de um Comitê de Bacia para cada unidade. Os Comitês seriam constituídos por representação paritária e tripartite entre o governo estadual, prefeituras municipais e sociedade civil.

Desde meados da década de 1990, outros estados investiram na criação de uma legislação própria para estruturar a gestão sobre os recursos hídricos de seu domínio. Seguindo os princípios gerais da Legislação Federal, os estados têm avançado na promoção de marcos jurídicos que garantam a gestão descentralizada e participativa. A despeito dos diferentes modos de classificação do que seria a representação do segmento sociedade civil (em alguns casos fracionada em sociedade civil e usuários) e da variação nos percentuais de representação de cada segmento, é notório que o princípio da participação vem marcando a experiência de criação dos Comitês de Bacia no país.

Notadamente, estes marcos jurídicos reservam à sociedade civil um papel central na condução da política e da gestão das águas. Conforme destacam Jacobi e Fracalanza (2005) JACOBI, P.; FRACALANZA, A.P. Comitês de bacias hidrográficas no Brasil: desafios de fortalecimento da gestão compartilhada e participativa.Desenvolvimento e Meio Ambiente, Curitiba, n.11-12, p.41-49, 2005., os grupos sociais e, principalmente, os grandes usuários terão de se organizar politicamente para participar do Comitê, visando defender seus interesses específicos quanto à precificação da água, à aplicação dos recursos arrecadados e às modalidades de concessão das outorgas dos direitos de uso. Ou seja, a expressão destes interesses setoriais e dos grupos sociais organizados implicará necessariamente na contraposição de estratégias políticas e visões de mundo, situação que pode fortalecer os Comitês de Bacia como importante arena de debate socioambiental.

Todavia, se é pouco questionável o avanço representado por este novo modelo de governança no que diz respeito ao acesso da sociedade às decisões relacionadas ao meio ambiente, estudos recentes sobre diferentes experiências de funcionamento destes Comitês no país vêm revelando impasses que escapam à ordem institucional preconizada pelos marcos jurídicos.

A seguir, serão apresentados alguns resultados significativos destes estudos, que acentuam processos recorrentes relativos ao funcionamento da governança e apontam impasses importantes para a construção de um real "parlamento das águas".

As disputas na governança ambiental

Com base em um survey realizado em 2004 junto a membros de dezoito organismos de bacia (catorze Comitês de Bacia e quatro consórcios intermunicipais) de diferentes regiões do Brasil, Abers (2010) ABERS, R. (org). Água e política: atores, instituições e poder nos organismos colegiados de bacia hidrográfica no Brasil. São Paulo: Annablume, 2010. .identificou a percepção dos partícipes destas arenas de governança acerca das desigualdades presentes em seu processo deliberativo. De acordo com a autora, para 67% destes partícipes, as diferenças de conhecimento técnico se constituiriam no principal fator de desigualdade; 51% apontaram a desigualdade de poder político e 31% a desigualdade resultante do poder econômico. Para estes partícipes, estas modalidades de desigualdade afetariam indubitavelmente a lógica representativa dos setores e grupos sociais presentes nas instâncias de governança.

Tratando os dados do referido survey por bacia hidrográfica, Lemos et al. (2010) LEMOS, C.M. et al. Informação técnica e gestão participativa de bacias hidrográficas no Brasil. In: ABERS, Rebecca. (org). Água e política: atores, instituições e poder nos organismos colegiados de bacia hidrográfica no Brasil. São Paulo: Annablume, 2010, 191-211 . mostram que este diagnóstico sobre as desigualdades no interior destes colegiados não revela concentrações estaduais ou regionais. O uso estratégico da informação técnica é reconhecido como principal fonte de desigualdade pela maioria dos membros dos Comitês do Santa Maria e do Gravataí (Rio Grande do Sul), Comitê do Itajaí (Santa Cataria), Comitês do Alto Tietê e do Litoral Norte (estado de São Paulo), Comitê do Pirapama (Pernambuco), Comitê do Baixo Jaguaribe (Ceará) e Comitês do Rio das Velhas, do Araçuaí e do Pará (estado de Minas Gerais). Nestes colegiados, a percepção desta modalidade de desigualdade é maior entre os representantes da sociedade civil.

Os dados do estudo ainda revelam que o domínio da informação técnica também desempenha papel no ordenamento das relações de gênero na governança participativa das águas. Ao debruçar-se sobre tais informações, Empinotti (2010) EMPINOTTI, V. Gênero, recursos hídricos e tomada de decisão: o papel das mulheres nos organismos de bacia brasileiros. In: ABERS, Rebecca. (org). Água e política: atores, instituições e poder nos organismos colegiados de bacia hidrográfica no Brasil. São Paulo: Annablume, 2010, 159-189 . demonstra que as mulheres partícipes destes organismos de bacia pertencem às classes média e média-alta, tiveram acesso à educação superior e trabalham em sua maioria como funcionárias públicas ligadas à burocracia ambiental - sendo, por isso, portadoras da expertise supostamente necessária à gestão. Entretanto, a autora ressalta que geralmente as mulheres assumem nestas arenas posições de subordinação e suporte nas estruturas internas de tomada de decisão - situação que reforçaria a condição androcêntrica no exercício do poder.

Quando alvos da profundidade dos estudos de caso, as desigualdades identificadas nas experiências de organização e funcionamento dos organismos de bacias no país ganham cores mais fortes. Em estudo sobre o Consórcio Intermunicipal das Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Consórcio PCJ), Castellano (2007) CASTELLANO, M. Relações entre poder público e sociedade na gestão dos recursos hídricos: o caso do Consórcio Intermunicipal das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. São Paulo: Tese deDoutorado, Procam/USP, 2007. aponta para impasses nos níveis de sinergia das interações entre poder público e sociedade civil.

De acordo com a autora, a despeito dos reconhecidos avanços que envolvem a descentralização da gestão das águas naquela região, dificuldades importantes ainda limitam o alcance de maior heterogeneidade na participação social dos grupos e entidades representadas no Consórcio. Em particular, a sobrevalorização do conhecimento técnico aparece no estudo como barreira central para a identificação da diversidade de interesses envolvidos na questão hídrica regionali.

A desigualdade relativa às diferenças de conhecimento técnico também é uma das importantes conclusões do estudo desenvolvido por Jacobi e Monteiro (2009) JACOBI, P.; MONTEIRO,F. Capital Social e desempenho institucional na bacia do Alto Tietê: resultados de pesquisa. In:JACOBI, Pedro (org.) Atores e processos na governança da água no estado de São Paulo.São Paulo: Annablume, 2009, p. 35-60. para o caso do Comitê de Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, que abrange a região metropolitana do estado de São Paulo.

Lançando mão da noção de capital social para o estudo de desempenhos institucionais, os autores destacam que as assimetrias de capital entre os partícipes do Comitê influenciam de modo importante a capacidade de negociação dos agentes e o potencial individual de estabelecimento de pactos.

A forte prevalência do componente técnico como referencial de controle do processo decisório - através dos conhecimentos sobre hidrologia, climatologia, ecologia e hidráulica, dentre outros - acaba por manter um espaço estritamente sociotecnico de negociação, marginalizando (ou mesmo mascarando) eventuais divergências políticas de natureza diversa. Não por outra razão os autores sublinham que, no caso do Comitê Alto Tietê, o aprimoramento da arena de governança rumo às práticas de gestão participativa também passa por uma alteração de paradigma dialógico.

Esta força do paradigma técnico-científico nas disputas estabelecidas no interior dos Comitês de Bacia também foi verificada no estudo de Martins (2012) MARTINS, R.C. De bem comum a ouro azul: a crença na gestão racional da água. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, v.2, n.2, p. 465-488, 2012. sobre a concepção de gestão racional da água no Brasil. O autor explica que a crença na racionalidade científica para o planejamento das práticas de governança da água no estado de São Paulo também tem raízes no perfil da equipe de especialistas envolvidos nos estudos de proposição do novo sistema gestor descentralizado e participativo.

Baseado em análise de trajetórias dos especialistas influentes no desenho e na execução da governança das águas no estado, o estudo destrincha a formação de um campo discursivo que sacraliza os princípios científicos de gestão, com destacada influência de associações profissionais ligadas às áreas de engenharia - tais como a Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRH), a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária (ABES) e a Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (ABAS). Deste arranjo de agentes e instituições, resultou uma espécie de economia moral em torno da gestão técnico-racional da água, exercendo forte pressão sobre a composição e o funcionamento dos Comitês de Bacia.

Particularmente no caso da ABRH, Ravena (2012) RAVENA, N. Os caminhos da regulação da água no Brasil:demiurgia institucional ou criação burocrática?. Curitiba: Editora Appris, 2012.. ressalta o importante papel de seus associados na estruturação de interesses corporativos contrários à histórica hegemonia do setor elétrico na gestão centralizada das águas no país. Em estudo sobre a construção política dos novos marcos legais para a governança descentralizada e participativa da água em nível federal, a autora revela que, em diferentes regiões do país, os integrantes da ABRH disponibilizavam aos agentes dos órgãos governamentais locais conhecimentos técnicos para a delimitação dos contornos da política que estava se formando. Profundos conhecedores de grande parte das ferramentas de aferição da quantidade e qualidade dos recursos hídricos, estes agentes conseguiram tornar sua associação profissional uma instituição fundamental para os novos caminhos da regulação do uso e acesso à água no país, contribuindo para fazer da informação técnica um decisivo recurso de poder nas novas arenas de governança.

A concretude desta economia moral em torno da crença técnico-racional e sua hegemonia nas arenas de governança ambiental também podem ser identificadas no estudo de caso realizado por Martins (2013a) MARTINS, R.C. La scientifisation de la politique dans la gestion de l'eau au Brésil.Autrepart: Revue des Sciences Sociales au Sud, n65, v.2, p. 85-105, 2013a. sobre o Comitê Tietê-Jacaré, situado na região central do estado de São Paulo. O estudo resgata a história de preferência pelo recrutamento de técnicos de associações profissionais e de institutos de pesquisa para a representação da sociedade civil na instância de governança. Dentre as áreas de especialidade, estavam a geologia, a hidrologia e hidráulica, sempre identificadas com a suposta neutralidade que a ciência exerceria sobre as decisões que envolvem uma coletividade com interesses variados. Esta "sociedade civil profissionalizada", tal como registra o estudo, não deixou de fazer repercutir sobre as pautas e debates nas assembleias do Comitê suas categorias de classificação do meio ambiente e das relações sociais concernentes, influindo decisivamente na agenda político-ambiental regional.

As hierarquias discursivas

Com efeito, os apontamentos destes estudos para as desigualdades relativas às diferenças de conhecimento técnico no interior das instâncias de governança das águas repercutem sobre os princípios de participação com os quais os Comitês de Bacias são comumente associados.

O amplo predomínio dos conhecimentos e da terminologia técnica nas plenárias dos Comitês responde por um efeito colateral significativo para a gestão participativa. Isso por que a desigualdade social se cria e se reproduz não apenas materialmente. A classe social, como fenômeno classificatório, também se estende ao gosto e ao discurso. Ou seja, a posição de classe de um indivíduo não se revela apenas através de aspectos econômicos, mas também através de dimensões simbólicas que levam a uma diferenciação em termos de linguagem, informação e mesmo de afinidades eletivas ( BOURDIEU, 1979 BOURDIEU, P. La distinction: critique sociale du jugement. Paris : Les Editions de Minuit, 1979..). Isto significa que a linguagem também constitui-se inevitavelmente em um exercício de dominação. E isso independentemente da vontade daquele que lança mão do discurso técnico, posto que a dominação, como bem delineou Weber (1999) WEBER, M. Economia y sociedad. 2ª ed. México: Foundode Cultura Económica, 1999. ., encontra sua legitimidade justamente naquele que se submete ao discurso, e não propriamente em seu emissor.

Trata-se, portanto, de uma relação na qual formas legítimas, "oficiais" de visão e divisão do mundo social vão sendo incorporadas e naturalizadas por aqueles que têm poucos recursos para contestá-las. E o incorporar, neste contexto, tem a ver também com a inscrição das desigualdades nos corpos. Na governança ambiental praticada nos Comitês de Bacia, isso pode ser percebido pela disposição a falar, pela linguagem corporal, pela disposição física dos agentes nas plenárias e mesmo pela classificação de gênero que posiciona homens e mulheres neste espaço de tomada de decisõesii.

Na medida em que no espaço parlamentar a ordem discursiva é um alvo decisivo de disputas, o uso deste instrumental técnico tornou-se um recurso de dominação e hierarquização. O tratamento dado à gestão dos recursos hídricos faz uso de uma linguagem técnica que limita a participação dos grupos locais que não dominam certos códigos simbólicos. Os agentes que compartilham do discurso técnico empregado neste espaço fazem uso de um habitus linguístico, adquirido de acordo com formação escolar distinta, não acessível a todos. Observa-se, então, uma relação de dominação simbólica, em que somente aqueles sujeitos portadores de um capital simbólico específico podem fazer uso de um discurso que é aceito por todos como válido e autorizado.

O que convém aqui enfatizar é que o capital cultural necessário ao domínio dos códigos técnicos e discursivos envolvidos no cotidiano dos Comitês confere ao seu portador posição de destaque no processo gestor.

A verdade/diagnóstico da situação ambiental da bacia hidrográfica e o planejamento de sua gestão (ambos elaborados com a gramática técnica própria dos chamados Planos de Bacia) tornaram-se, contraditoriamente, expressões de uma gestão pouco participativa, na medida em que, mesmo entre os partícipes do Comitê, poucos são os que conseguem retirar destes documentos uma adequada leitura para a prática gestora. Desta feita, no espaço da governança ambiental, a referência à técnica e à ciência não correspondem apenas ao apelo para um método, à sistematização e a algum grau de universalidade. Significa também referir-se a uma retórica: a produção de um discurso e seu regime retórico e gramatical, dominado por círculos específicos.

Neste ponto, cumpre observar aquilo que pode ser denominado como verdade ambiental da bacia hidrográfica. Notadamente, a justificativa aceita amplamente sobre o domínio do saber especializado dentro deste espaço se refere à suposta neutralidade que a ciência e a técnica exerceriam sobre decisões que envolvem uma coletividade com interesses variados.

A tecnociência é lançada, nesta ordem discursiva, como instrumento imparcial e capaz de se impor sobre interesses políticos e econômicos particulares, que não contribuiriam para os interesses gerais (ou para o bem comum) da sociedade como um todo. Tal visão não deixa de se confrontar com o princípio de que a governança das águas, ao envolver necessariamente interesses variados, deve supor que o emprego extenso do discurso codificado pode afetar o espaço democrático e parlamentar que os Comitês de Bacia se supõem. Isso implica considerar que a ordem do discurso disciplinar não pode ser despolitizada, sob pena de naturalizar as desigualdades dela decorrentes e/ou que a mesma ajuda a reproduzir.

Os dilemas da participação

É certo que a participação é um dos elementos fundamentais para a governança democrática da água. Mas não se trata de um dado passível de ser identificado de modo estático, a partir do número de assentos ou segmentos representados dentro de um Comitê de Bacia. A participação é cotidianamente construída, e, por isso mesmo, diz respeito a um processo. E não necessariamente um processo linear. Avanços e retrocessos podem ser identificados através dos perfis dos segmentos partícipes, da frequência às plenárias e do envolvimento prático com as diversas tarefas que demandam um Comitê.

Emancipando a participação do dado estático e problematizando-a como processo, alguns dos entraves ao seu melhor desenvolvimento também adquirem novos significados. Isso porque sua realização - ou conquista - deixa de ser observada pontualmente, permitindo sua interpretação como negociação permanente, resultado de disputas sociais ora declaradas, ora veladas, e que em certa medida expressam conflitos de visões de mundo.

Um exemplo disso é o fenômeno da não-participação. Pouco estudado pela recente literatura sobre os Comitês, e em grande medida em razão da dificuldade de recorte do tema (afinal, quem deve participar?), este fenômeno pode ser pensado para além do desconhecimento da instância gestora e/ou do desinteresse.

A não participação no Comitê de Bacia pode referir-se ao que alguns autores das ciências sociais chamam de discurso oculto de resistência ( SCOTT, 2003 SCOTT, J. Los dominados y el arte de la resistência. Mexico: Editores Independientes, 2003 .). Isto é, não há formulação discursiva crítica explícita sobre determinado estado de coisas, mas a negativa de interação e/ou participação pode relacionar-se diretamente com as regras de recrutamento dos participantes, com o formato da participação, o desenho institucional ou a falta de crença na efetividade do espaço institucional.

Em um dos raros estudos sobre o fenômeno no Brasil, Empinotti (2011) EMPINOTTI, V.E se eu não quiser participar? O caso da não participação nas eleições do Comitê de Bacia do Rio São Francisco. Ambiente e Sociedade, Campinas, v.14, n.1, p.195-211, 2011. sugere que a não-participação também pode resultar de escolhas pragmáticas de setores da sociedade civil, que racionalizam as investidas de ordem política antecipando as possibilidades de conquistas pontuais ou de ganho de influência direta na gestão pública. Amparada no caso do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, a autora discute como a desistência de organizações da sociedade civil em participar do Comitê resulta tanto das estratégias promovidas pelo Estado para enfraquecimento da instância gestora (tomando-a em situações de conflito como instância consultiva e não deliberativa), como também de impasses na representação da própria sociedade civil. Dentre estes impasses estariam o distanciamento dos eleitos pela sociedade civil de suas instituições base; a ausência de diálogo entre as organizações partícipes, sobretudo entre titulares e suplentes, e; a centralização das demandas da sociedade civil pelos representantes titulares. Conforme destaca a autora, estas práticas políticas excludentes ilustrariam como as dificuldades do processo de descentralização e participação não são exclusividade do segmento Estado, mas estendem-se aos próprios setores que demandam novas aberturas para a gestão pública.

Tratando especificamente daqueles que integram os Comitês, cumpre enfatizar algumas especificidades desta participação. Conforme relacionado anteriormente, vários estudos têm apontado que a gramática das práticas gestoras dos Comitês apresenta implicações significativas para o acesso à informação sobre os temas que compõem as agendas de gestão. No geral, são os representantes da burocracia estatal (das áreas de meio ambiente, saneamento, energia e, nos Comitês de áreas rurais, agricultura) e os representantes de entidades de pesquisa e associações profissionais os portadores do discurso técnico-científico que, por sua vez, encontra respaldo nos documentos de apoio às atividades gestoras (tais como os Relatórios de Situação de Recursos Hídricos e os Planos de Bacia). A despeito de sua inquestionável importância no planejamento das atividades gestoras, os Comitês não somam ao debate socioambiental tornando-se instâncias essencialmente técnicas. Somam, sem dúvida, quando objetivam a meta de tornarem-se verdadeiros "parlamentos das águas". Para a base técnica de gestão, podem lançar mão (assim como já o fazem) de câmaras técnicas. Mas para seus objetivos de parlamento - isto é, de assembléia política - a terminologia técnica pode comprometer a pretendida ampliação da participação.

A cientifização da política

Os representantes que buscam amparar seus discursos nos instrumentos peritos não deixam de recorrer, neste movimento de cientifização da gestão, a uma modalidade de legitimação de seu discurso ante aqueles que não dominam os códigos desta perícia. Isso não significa que os que não dominam estes saberes estejam excluídos da prática gestora. Ao contrário disso, a participação destes não peritos e, principalmente, sua aceitação das descrições e prescrições desta perícia, são fundamentais para a legitimidade da posição dos especialistas na instância de governança. Sem embargo, a razão técnica aplicada às questões sociais não abandona seu conteúdo político. Na medida em que a ciência e a técnica são lançadas recursivamente pelos agentes partícipes da governança como instrumentos maiores da regularização das práticas gestoras, tem-se aqui a recorrência ao imperativo de justificação baseado nas grandezas da racionalidade e da eficiência no embate político. É justamente este imperativo que legitima o monopólio de saberes de certos agentes em detrimento de outros, de modo a justificar que a política se valha da técnica e da ciência para orientar e julgar as condutas sociaisiii.

Tomando como premissa a necessidade de imperativos de justificação sobre o regime de verdade da experiência gestora, pode-se desmistificar a aparente oposição entre gestão política e gestão técnica dos recursos hídricos.

Em muitas ocasiões, esta oposição surge na fala dos partícipes dos Comitês como se representasse a superação da política em favor técnica, supostamente descarnada e desenraizada das contradições sociais. Há de se sublinhar que este mito apenas dificulta o necessário delineamento da face social dos Comitês. Ao se pretenderem legítimos parlamentos das águas, os Comitês devem ser discutidos como palco de interlocução e composição de interesses. Ademais, subjulgar a dimensão política das decisões favorece a construção de versões que encantam certas experiências gestoras. Neste campo, o caso mais emblemático parece ser o mito da bacia hidrográfica como unidade eminentemente técnica de gestão no sistema francês de governança das águas - notadamente referência internacional de modalidade descentralizada e participativa de gestão ambiental.

Conforme já analisado em outra ocasião ( MARTINS, 2008) MARTINS, R.C. Sociologia da governança francesa das águas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 23, n.67, p. 83-100, 2008., a conhecida legislação francesa de 1964, que desenhou o atual modelo gestor naquele país, articulou, através do recorte fisiográfico das bacias, o que foi classificado como dominação territorial dos saberes politécnicos do período. Ao contrário do que por vezes se supõe, naquele momento a divisão do território francês em seis bacias hidrográficas não resultou de uma decisão eminentemente técnica, com base em recortes de bacias perfeitas ou grupos de bacias delimitados por critérios estritamente fisiográficos. A rigor, havia essa intenção inicial por parte dos membros especialistas, dividindo o território com base nos cursos dos grandes rios nacionais e da cisão dos rios parcialmente franceses. Essa divisão corresponderia à criação de oito bacias hidrográficas. Contudo, as disputas dos três corpos de politécnicos no interior das comissões envolvidas na formulação da nova legislação - a saber, os corpos de engenharia de minas, de engenharia de pontes e de engenharia rural - conduziram a decisão sobre a partilha do território em bacias hidrográficas para o campo do equilíbrio relativo das forças profissionais envolvidas. Como resultado, o território que inicialmente seria repartido em oito bacias hidrográficas foi dividido em seis bacias, sendo equitativamente distribuído entre os três corpos politécnicos - cada um assumindo a direção de duas Agências de Bacia.

O corpo de engenharia de minas assumiu a direção das Agências de Bacias do norte e do leste, regiões mais industrializadas e com maior diversidade de recursos minerais; o corpo de engenheiros de pontes assumiu as agências do Seine e do Rhône em razão de sua importância para a navegação e da localização das grandes cidades, e, o corpo de engenharia rural assumiu as agências das zonas agrícolas de Loire e de Garonne.

Na condição de referência internacional, principalmente em razão da adoção da bacia hidrográfica como unidade de planejamento e gestão, o modelo francês tem recebido leituras abstratas quanto ao seu significado efetivo em termos de política ambiental. O sentido dessa abstração reside justamente nas interpretações de seu desenvolvimento exclusivamente baseadas em suas características técnicas mais evidentes, desprezando que sua estruturação também resultou de uma solução política para os interesses estabelecidos entre diferentes grupos profissionais.

Essa modalidade de cientifização do processo político, ao abstrair as relações de poder envolvidas no recorte das bacias hidrográficas desta referência internacional, contribui sobremaneira para a reafirmação de certos monopólios de competências.

No caso dos Comitês de Bacia brasileiros, de modo geral, a relação entre peritos e não-peritos deixa de expressar a diferença entre pontos de vista - fato que seria muito salutar para a governança ambiental - para constituir-se em desigualdade no plano das práticas políticas. Tal passagem, da diferença à desigualdade, resulta justamente das práticas de justificação que naturalizam a soberania da competência perita, desvalorizando (inclusive através de práticas de estigmatização) o senso comum que poderia lhe ser concorrente. Todavia, a diferença não produz necessariamente a desigualdade: esta passagem é contingente. Tal como bem sugere Brah (2006, p. 374) BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação.Cadernos Pagu, n.26, p.329-376, 2006.:

(...) a diferença não é sempre um marcador de hierarquia e opressão. Portanto, é uma questão contextualmente contingente saber se a diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão ou em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política.

Ao propor esta problemática para o caso da participação democrática nos Comitês de Bacia do país, quer-se aqui destacar que quando a razão técnico-instrumental adquire a autoridade de único instrumento válido e legítimo para a governança, o outro é construído contingencialmente não como diferente, mas como desigual. Ou seja, não é tomado como um diferente-interlocutor, mas como um desigual-subalterno que, para participar da gestão, deve ser capacitado. Sob a luz do racionalismo moderno, este outro é classificado como inapto à interlocução por conceber o recurso água no simples plano dos sentidos - distante, portanto, do sujeito cartesiano, autônomo, metódico e estritamente amparado na razão científicaiv. O enquadramento deste outro, através dos já tradicionais cursos de capacitação em gerenciamento de recursos hídricos, poderia lhe permitir a compreensão racional dos instrumentos de gestão, empoderando-o neste permanente arranjo desigual de governança ambiental.

Esta cientifização da política pode reforçar o que Acselrad, Mello e Bezerra (2009) ACSELRAD, H.; MELLO, C.; BEZERRA, G. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.. indicam como importante causa de injustiça ambiental, a saber, a concentração da informação. No caso dos Comitês de Bacia, esta concentração tem a importante peculiaridade de eleger as categorias legítimas tanto de descrição dos problemas ambientais quanto de prescrição das ferramentas para seu enfrentamento. Aos representantes que não possuem condições de mobilização destas categoriais abstratas, cumprirá o reconhecimento tácito daquela modalidade de saber como único critério legítimo de poder e de construção de informações para o exercício deste poder.

A eficácia prática deste reconhecimento, por sua vez, será tanto maior quanto mais improvável parecer ser a possibilidade de integração de saberes externos à ciência para a descrição da realidade ambiental da bacia.

A título de ilustração, uma expressão importante do impacto da concentração da informação somada à autoridade discursiva da tecnociência refere-se ao encaminhamento do instrumento de cobrança pelo uso da água em diferentes Comitês de Bacia no país.

No mais das vezes, os debates em torno da implantação desta estratégia de valoração ambiental dedicam-se exclusivamente ao seu suposto mecanismo de estímulo econômico à mudança nos padrões de uso do recurso. Isto é, suas implicações políticas são subsumidas ante seu caráter instrumental e disciplinador. Sem dúvidas, esta ênfase se relaciona (não exclusivamente) com a ausência - também nestas instâncias de governança - de integrantes de grupos e classes sociais historicamente excluídos das arenas de tomadas de decisão na sociedade brasileira, que poderiam até mesmo questionar o princípio da precificação do recurso sob outras bases epistêmicas e até mesmo outros interesses sociais.

Afinal, como bem destacam Fracalanza, Jacob e Eça (2013) FRACALANZA, A.P.; JACOB, A. M.; EÇA, R. F. Justiça ambiental e práticas de governança da água: (re)introduzindo questões de igualdade na agenda. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v.16, n.1, p. 19-38, 2013., a gestão das águas também interfere no ciclo de vulnerabilidade social e ambiental a que certas populações são expostasv.

Entretanto, a cobrança pelo uso da água é um instrumento de gestão e, também, uma prescrição produzida pelo olhar legítimo e autorizado sobre os recursos - ou "bens" - ambientais. Este olhar, tributário da lógica de classificação do marginalismo econômico (MARTINS, 2013bMARTINS, R.C. A construção social da economia política da água. Sociologia Lisboa, n.73, p. 111-130, 2013b.), traz consigo a suposição de uma racionalidade universal, produto da busca unívoca de cada agente para maximizar seus ganhos e minimizar seus custos. Sua força reside tanto no arranjo político que lhe beneficia quanto na crença de que não seria este um discurso sobre a realidade. Cristalizado, o discurso é apresentado como a própria realidade, como fato universal descrito e prescrito pelos instrumentos da ciência.

Conclusão: pela diversidade na narrativa gestora

De acordo com Castro (2007) CASTRO, E. Water governance in the twentieth-first century.Ambiente e Sociedade, Campinas, v.10, n.2, p.97-118, 2007., conflitos sociais e confrontos de projetos políticos estão no cerne do que se denomina internacionalmente por governança da água no século XXI. Os contornos destes conflitos se definem como resultado de um complexo arranjo de variáveis, que envolvem desde a disponibilidade hídrica e as projeções de comprometimento dos recursos, chegando aos confrontos políticos em torno das formas de uso e acesso aos recursos socioterritoriais. Evidentemente, estes conflitos têm impactos específicos sobre as diferentes classes sociais, e manifestam formas de materialidade também específicas. Neste artigo, buscou-se discutir a produção destas hierarquias e desigualdades sustentando o argumento de que, no contexto brasileiro, uma das dimensões decisivas dos conflitos em torno da governança da água diz respeito à forma de construção dos olhares legítimos e autorizados sobre o que deve ser - e como deve ser feita - a gestão deste recurso natural.

O primeiro ciclo das experiências de governança descentralizada e participativa das águas no Brasil caracterizou-se pela consolidação de uma narrativa fortemente voltada à instrumentalização técnica da gestão, com iniciativas importantes de estruturação de sistemas de informação e gerenciamento das informações sobre os recursos hídricos ao nível da bacia hidrográfica.

Longe de sugerir o encerramento deste ciclo, até mesmo em razão das disparidades de momentos que esta nova institucionalidade gestora experimenta nas diferentes regiões e estados do país, o que se procurou enfatizar neste artigo são os desafios relativos à participação e à política no contexto de estruturação dos Comitês de Bacia.

Em qualquer arena democrática, a ação política tende a tornar-se mais complexa e inventiva quanto mais amplo for o espectro social de sua composição. Por isso, tanto melhor será a qualidade dos debates travados nos Comitês de Bacia quanto maior for a diversidade na construção da narrativa gestora. É possível, portanto, chegar à hipótese de que, mantendo o olhar técnico, mas quebrando seu absolutismo, pode-se superar a trajetória de desigualdade em prol da ênfase na riqueza da diferença. Isto é, se poderá atingir níveis mais complexos de real compreensão dos diferentes significados da água em uma dada localidade, abrangendo suas dimensões econômica, política e cultural.

Outrossim, para um novo ciclo de governança é preciso considerar que a gestão descentralizada das águas representa não apenas a governança em nível local, compreendida em uma escala vertical de organização e distribuição das instituições e do poder. Até o momento, este é o modo dominante de interpretação de sua importância. Contudo, cumpre ainda a realização de sua extensão horizontal, ampliando suas fronteiras para incorporar os mais diferentes grupos e as mais diferentes racionalidades que operam na construção dos significados sociais da água. Isso faz-se também através de transformações no repertório de termos utilizados no aparato gestor.

A fala técnica, hegemônica e tomada como legítima e autorizada nestes espaços de governança, também é um recurso de poder, lançado como instrumento de autoridade nas deliberações do Comitê. Ou seja, faz-se necessária uma transformação da narrativa gestora, para que o comitê progressivamente deixe de lado o discurso ingênuo e abstrato da "gestão técnica" dos recursos hídricos para aproximar-se paulatinamente da efetiva noção de parlamento das águas, focando os usos e os saberes múltiplos.

Desta feita, a transformação da atual narrativa gestora demanda que os partícipes se formem para a diversidade. Ou seja, sejam capacitados para o diálogo com os distintos setores sociais. A despeito da relevância da formação disciplinar de grande parte dos representantes, é preciso que os integrantes dos Comitês desenvolvam habilidades para pensar a diversidade, o que significa relacionar mesmo o saber perito e disciplinar com o que comumente é classificado como conhecimento leigo.

E, neste processo, a diversidade tem a ver não simplesmente com o respeito às diferentes matrizes de concepção da relação sociedade-natureza, mas também - e, sobretudo - com a reciprocidade entre estas diferentes matrizes.

A diversidade relaciona-se não com a preservação de nichos de conhecimento, mas com a influência mútua entre os que produzem e reproduzem estes conhecimentos. E isso, em um espaço como o Comitê de Bacia, parece fundamental.

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Notas

  • i É importante ressaltar que o surgimento do Consórcio PCJ está intimamente ligado a resistência da sociedade local à reversão das águas de suas bacias para o abastecimento da região Metropolitana de São Paula, através do Sistema Cantareira. Para um histórico deste conflito, ver Castellano (2007) CASTELLANO, M. Relações entre poder público e sociedade na gestão dos recursos hídricos: o caso do Consórcio Intermunicipal das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. São Paulo: Tese deDoutorado, Procam/USP, 2007..
  • ii No caso das desigualdades de gênero, mesmo quando atenuadas nos Comitês de Bacia pela formação profissional, o ingresso das mulheres nas arenas de governança mantém-se hierarquizado entre os segmentos partícipes. A propósito, ver Moraes e Perkins (2007) MORAES, A.; PERKINS, P. Women, equity and participatory water management in Brazil. International Feminist Journal of Politics, v.9, n.4, p.485-493, 2007..
  • iii Sobre os modos de justificação e as grandezas envolvidas na legitimação dos regimes de ação, ver Boltanski e Thévenot (1991) BOLTANSKI, L. ; THÉVENOT, L. De la justification: les économies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991... Para a discussão sobre a construção de uma grandeza "ecológica" como modo de justificação na contemporaneidade, ver Lafaye e Thévenot (1993) LAFAYE, C. ; THÉVENOT, L. Une justification écologique? Conflits dans l'aménagement de la nature. Revue Française de Sociologie, n° 34, p. 495-524, 1993..
  • iv Para uma crítica radical ao chamado "momento cartesiano" na construção do conhecimento, ver Foucault (2001) FOUCAULT, M. L'Herméneutique du sujet - Cours au Collège de France, 1981-1982. Paris: Gallimard, 2001. ..
  • v Do ponto de vista analítico, a articulaçãode diferentes níveis de desigualdade social com dimensões de vulnerabilidade ambiental pode ser enfrentada a partir da noção de hiperperiferia, tal como cunhada por Torres e Marques (2001) TORRES, H.; MARQUES,E. Reflexões sobre a hiperperiferia : novas e velhas faces da pobreza no entorno municipal. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n.4, p.49-70, 2001..
  • 1. A realização deste estudo contou com suportes da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (FAPESP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2014
  • Aceito
    03 Set 2014
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