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Expandindo a concepção de atingidos por UHE: Assentamentos Vila Jirau e Vila da Penha - Rondônia

Resumo

Este trabalho tem por objetivo discutir a concepção de atingidos e a da reconfiguração do território e das vidas sociais com a observação e análise de duas comunidades não consideradas afetadas pela UHE Jirau: a do pequeno vilarejo Jirau e Vila da Penha. A pesquisa se caracteriza como teórico-descritiva, a partir das questões relacionadas ao território de ocorrência de impactos da construção e da operação das hidrelétricas, e fora realizado trabalho de campo com observação não participante, os dados foram compilados a partir da percepção dos pesquisadores e possibilitam concluir que os danos da construção da UHE, nessas comunidades colocam-nas em condição de atingidos, o impacto acontece no território como resultado da influência e da confluência das redes de vida vivida, compreendendo o rio e o que o relaciona, as estradas de conexão, as redes de moradia, além dos espaços de fuga ou refúgio.

Palavras-chave:
Assentamentos; Atingidos; Hidrelétricas; Complexo do Madeira

Abstract

This work seeks to discuss the conception of affected and the reconfiguration of the territory and social lives with the observation and analysis of two communities not considered affected by the Jirau HPP: that of the small Village Jirau and Village of the Penha. The research is characterized as theoretical-descriptive, based on the issues related to the territory of occurrence of impacts of the construction and operation of hydroelectric plants, and fieldwork was performed with non-participant observation, the data were compiled from the perception of the researchers and allow us to conclude that the damage of the construction of the HPP, in these communities, put them in a condition of being affected , the impact happens in the territory as a result of the influence and confluence of the networks of life lived, comprising the river and what relates it, the connecting roads, the networks of housing.

Keywords:
Settlements; Affected; Hydroelectric plants; Madeira Complex

Resumen

Este trabajo tiene como objetivo discutir la concepción de los afectados por hidroeléctricas, y la reconfiguración de su territorio y vida social por medio de la observación y análisis de dos comunidades consideradas no afectadas por el Complejo Hidroeléctrico (CH) de Jirau: la pequeña aldea Jirau y Vila da Penha. Esta investigación se define como teórico-descriptiva y se basa en las cuestiones relacionadas al territorio de ocurrencia de impactos de la construcción y operación de planos hidroeléctricos. El trabajo de campo se realizó con observación no participante. Los datos fueron compilados desde la percepción de los investigadores y nos permiten concluir que el daño de la construcción del CH en estas comunidades de hecho las puso en condición de afectadas. El impacto en el territorio es resultado de la influencia y confluencia de las redes de vida vivida, que comprenden el río y todo lo que se relaciona con él, como los caminos de conexión, las redes de viviendas, bien como los espacios de fuga o refugio.

Palabras-clave:
Asentamientos; Afectados; Planos hidroeléctricos; Complejo Madeira

Introdução

Desde 1950, em nome do desenvolvimento, grandes projetos econômicos que buscam fontes energéticas por meio da hidroeletricidade vêm se apropriando de territórios já ocupados em detrimento das populações locais. Comunidades inteiras são deslocadas, reorientadas, e as famílias sofrem perdas materiais, além de quebrarem laços afetivos irreparáveis (BORTOLETO, 2001BORTOLETO, E. M. A implantação de grandes hidrelétricas: Desenvolvimento, Discurso e Impactos. Geografares: Vitória. n. 2. Jun, 2001.).

Os grandes empreendimentos que visam à obtenção do lucro sob a lógica exploratória dos recursos naturais, beneficiam a economia eliminando a realidade das populações que possuem vínculos materiais e imateriais com o Território vivido, sendo muito superficial a atenção dispensada àquelas populações (SILVA; SILVA, 2011SILVA, R. G. S.; SILVA, V. P. Os atingidos por barragens: reflexões e discussões teóricas e os atingidos do assentamento Olhos D’água em Uberlândia-MG. Soc. nat., Uberlândia , v. 23, n. 3, p. 397-407, Dez. 2011.). Este Território é composto por vivências e vida vivida, em que as relações econômicas, sociais e ambientais se completam com as questões simbólicas e culturas interconectadas ao espaço (de vivência) que é o Rio e seu funcionamento, suas margens, seus barrancos, seus peixes, seus alagamentos e suas vazantes. Os impactos relacionados aos empreendimentos hidrelétricos produzem transformações radicais no Território, entretanto, se for incluída a reflexão de que a parcela mais impactada negativamente é aquela que pertence ao Circuito Inferior da Economia (MORET, 2018MORET, A. S. Estudo dos impactos sociais, ambientais e econômicos em assentamento de UHE’s e a intervenção no circuito inferior da economia. Relatório Científico de Pós-Doc. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional- UFRJ. Antônio Calos Brandão- Sup. Rio de Janeiro, 2018.) torna-se mais complexo ainda o estudo dos impactos (MORET; SILVA, 2010).

O chamado “projeto de desenvolvimento” por esses grandes empreendimentos é objeto de estudo de diversos grupos que buscam entender e dimensionar o tamanho das transformações ambientais, sociais e subjetivas geradas pelas intervenções realizadas e motivadas por eles, os grupos. Segundos os estudos de Araújo e Moret (2016), Ribeiro e Moret (2014RIBEIRO, A. M.; MORET, A. S. A Construção da hidrelétrica de Santo Antônio e os impactos na sociedade e no ambiente. Interfaces Científicas - Humanas e Sociais. v. 2, p. 81-92, 2014.) e, Ribeiro, Andrade e Moret (2015) os impactos socioambientais provocam reflexos negativos e tomam dimensões gigantes para os cidadãos e cidadãs que habitam os locais dos empreendimentos pelo fato de serem compulsoriamente deslocadas, pois os modos de vida nos novos locais são distintos daqueles originários. A esse processo de deslocamento compulsório Sassen Saskia (2016SASSEN, S. Expulsões: brutalidade e complexidade na economia global. Rio de Janeiro/São Paulo, Paz e Terra. 2016., p.19) nomeia como expulsões, e afirma que “[...] hoje, os oprimidos, em sua maioria, foram expulsos e sobrevivem a uma grande distância de seus opressores. Além do mais, o “opressor” é cada vez mais um sistema complexo que combina pessoas, redes e máquinas, sem ter um centro visível.”.

As novas localidades dos reassentados, geralmente são distantes de rios, ou quando estão próximos, não têm permissão de pesca em qualquer lugar, há interrupção do uso do rio e, inclusive, perda de biodiversidade culminando com diminuição da quantidade e da diversidade de peixes. Cavalcante e Santos (2012) explicam que a (re)estruturação territorial que a promove no local de suas implantações permite exibir, na área, tensões diante dos diferentes interesses sobre o uso do território e de seus recursos.

A discussão sobre impactos ambientais e sociais - resultado da implantação de usinas hidrelétricas (UHE) é crescente e tem atuação importante da Ciência. Entretanto, ainda há uma lacuna importante a ser superada que é a definição e determinação da abrangência desses impactos, sobretudo, quanto ao quantitativo e quem são os que sofrem os impactos das UHE.

As empresas definem claramente quais serão os atingidos: aqueles que moram à beira do Rio barrado e também os que moram em áreas próximas aos canteiros de obra. Essa definição é conflituosa para os diversos movimentos organizados por aqueles que sofrem os impactos, como o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), e para os Ministério Público Estadual (MPE) e Federal (MPF). Esta definição, que emerge das vertentes hídrica/patrimonialista é falha, pois os impactos são sentidos por todos aqueles que sofrem os efeitos e, portanto, exclui muitos dos que são atingidos que estão em Territórios que tem diversas influências, próximas ou não, do rio barrado.

O artigo pretende discutir a concepção de atingidos a partir da reconfiguração do Território que é influência do Rio através do estudo em duas comunidades não consideradas afetadas pela UHE Jirau: a comunidade do pequeno vilarejo Jirau e Vila da Penha. Dessa forma configurará o conceito de atingido pelos empreendimentos hidrelétricos.

PERSPECTIVAS SOBRE TERRITÓRIO E ESPAÇO TERRITORIAL

Santos (1999SANTOS, M. O dinheiro e o território. GEOgraphia, v. 1, n. 1, p. 7-13, 1999. Disponível em < http://www.geographia.uff.br/index.php/geographia/article/viewFile/2/2> Acesso em: 27 mar. 2019.
http://www.geographia.uff.br/index.php/g...
, p. 8) entende que o território ultrapassa a questão meramente geográfica e espacial, em que se pensa como o “lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência”.

O território não é somente a união dos recursos naturais em um espaço geográfico definido, é preciso ser concebido como o local onde as características de um povo são formadas e conformadas. Deve-se considerá-lo como formador da identidade, para se sentir parte daquele chão e, que a este se está vinculado. Nele, pauta-se a razão de ser, pode-se modificá-lo segundo as necessidades, é o local onde se estabelecem raízes, trocam-se experiências e vivências sociais e espirituais (CAVALCANTE; SANTOS, 2012).

É de fundamental importância salientar os pontos de tensão que existem no contexto das lutas pelos Territórios em todo o planeta, com destaque para os deslocamentos compulsórios em função da construção de Hidrelétricas, a extração mineral e biocombustíveis que no entendimento de Escobar (2014ESCOBAR, A. Territorios de diferencia: lugar, movimientos, vida, redes. Editorial Universidad del Cauca, 2014., p. 77) podem

ser vistos como uma verdadeira guerra contra os mundos relacionais e uma tentativa adicional de desmantelar o coletivo. Dentro dessa situação complexa, as lutas pelos territórios se tornam lutas pela defesa dos muitos mundos que habitam o planeta.

No território, encontra-se uma perspectiva de sobrevivência, projeto de vida e futuro, que no entender de Escobar (2014ESCOBAR, A. Territorios de diferencia: lugar, movimientos, vida, redes. Editorial Universidad del Cauca, 2014., p. 88), seria o “espaço coletivo, composto por todo o lugar necessário e indispensável em que homens e mulheres, jovens e adultos, criam e recriam suas vidas”.

A partir dessa concepção de Território, é possível compreender a complexidade das dimensões e dos relacionamentos que se interconectam formando uma teia invisível de contatos individuais e coletivos e, quando estes são destruídos, cria-se uma ruptura com os elos simbólicos do espaço social. Assim, no tocante à circunscrição de espaço territorial para atingidos não existe, em nenhum caso, qualquer definição à priori de circunscrições territoriais afetadas ou de influência, cabendo aos estudos e ao diálogo com as populações interessadas a identificação dos impactos e daqueles que são negativamente atingidos. A definição mais próxima de território, com todas as limitações possíveis, foi produzida pela Eletrobrás sugerindo que os estudos socioambientais devam ter uma abrangência espacial que permita a adoção de um conceito ampliado e com cortes analíticos, entre eles, “as áreas representativas da espacialização de fluxos e relações socioeconômicas e culturais afetadas” (BRASIL, MINFRA, 1990, p. 28).

O espaço territorial que envolve os empreendimentos remete ao contexto do deslocamento dos grandes projetos hidrelétricos que passam a romper os laços já definidos pelos territórios em sua forma de vida e de existência, o que obriga aos atingidos a se deslocarem de uma área para outra - isso significa deixar para trás as suas casas, seu modo de vida social, e econômica (JACOBI, 2003JACOBI, P. Movimento ambientalista no Brasil. Representação social e complexidade da articulação de práticas coletivas. In: RIBEIRO, W. (org.) Patrimônio Ambiental EDUSP, 2003.).

Nesse contexto, o espaço possui diferentes perspectivas que envolvem a materialidade do mundo e da sociedade em que os seres humanos se constroem mediante sua luta pelas relações sociais e percepções em que se encontram. Essas relações construídas dependem dos acervos culturais e da sobrevivência física que envolve os fatos relacionados às práticas sociais. Diante dessa compreensão destacamos a estrutura do espaço que corresponde as concepções das práticas materiais com as quais as pessoas convivem no seu cotidiano, da mesma forma que Arturo Escobar (2014ESCOBAR, A. Territorios de diferencia: lugar, movimientos, vida, redes. Editorial Universidad del Cauca, 2014.) descreve a relação do ribeirinho e sua família com os rios, com suas margens e suas diferenças de compreensão e relação territorial, é possível estender para compreender os espaços ocupados pelos atingidos deste estudo.

As Usinas Hidrelétricas do Rio Madeira evidenciam a construção de aportes energéticos em que se trataram as questões sociais com descaso, além da negligência frente às ações de políticas públicas em que envolvem a transformação das identidades decorrente das modificações dos modos de produção rural, extrativismo natural que provocaram uma ruptura na coesão social diante dos impactos.

Os estudos relacionados aos impactos ambientais e sociais demonstraram que as hidrelétricas do rio Madeira impuseram impactos de alta complexidade, e como tal tinham a necessidade da realização de novos estudos, o que não foi realizado na fase da elaboração do Projeto Básico relacionado aos empreendimentos, porque havia uma compreensão por parte do governo da necessidade de implantação do empreendimento. Por causa dessa lacuna o caráter da sustentabilidade face aos impactos ambientais, sociais e econômicos para o município de Porto Velho, ficou relegado a segundo plano (GARZON, 2009GARZON, L.F.N. O significado da privatização do rio Madeira: o cercamento das bacias hidrográficas da Amazônia. In: ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de, FARIAS JÚNIOR, Emmanuel de Almeida. (org.) Conflitos sociais no Complexo Madeira. Manaus: PNCSA/UEA Edições, 2009.; MORET; SILVA, 2010MORET, A. S.; SILVA, L. L. C. O Rio Madeira, uma Sociedade e a Indústria de Energia: a construção das usinas hidrelétricas e os impactos e intervenções na sociedade. Boletim do Observatório Ambiental Alberto Ribeiro Lamego, Campos dos Goytacazes/RJ, v. 4, n. 2, p. 11-31, jul. / dez. 2010.).

Os sistemas sociais possuem redes de significados intrínsecos e conectados que ao sofrerem influências externas, readaptam-se, a partir de um núcleo cultural mais rígido (GEERTZ, 2008GEERTZ, C. A interpretação das culturas. 13. reimpr. Rio de Janeiro: LTC, v. 4, 2008.) e, no contexto das UHE no Rio Madeira tais impactos foram variados e relatados em diversos documentos, dentre os quais destacamos: o não aumento da infraestrutura de atendimento da população durante a explosão demográfica no período das construções, o aumento da violência nas regiões da construção (44% a mais de homicídios e 208% mais de estupros) entre 2008 e 2010 (MARQUES, 2017MARQUES, W. R. A expansão das fronteiras amazônicas: o legado das Usinas Hidrelétricas (UHEs) Santo Antônio e Jirau no estado de Rondônia (RO). Revista Mutações, Manaus, vol. 08, n. 15, Julho, p. 91-105, 2017.), deslocamentos compulsórios para lugares de difícil manutenção dos seus modos de viver (por exemplo, assentamentos distantes dos leitos dos rios) ou já ocupados por outras comunidades de extrativistas (DHESCA, 2011). Todos estes impactos em diversas escalas espaciais remontam diretamente à necessidade de transformação de modos de viver e de identidades para que os sujeitos continuem a viver a partir de uma memória identitária preservada - ser ribeirinho apesar de estar em cenário urbano, ser pescador mesmo estando longe do rio, dentre outras possibilidades e narrativas.

Desse modo, os impactos analisados a respeito das grandes barragens evidenciam as ameaças para a sobrevivência econômica e ao modo de vida dos camponeses que tinham uma cultura específica e diferente do processo de industrialização, que se evidencia com o avanço do processo capitalista para a localidade. Nesse sentido, a realidade das comunidades impactadas está na contramão das questões teóricas e práticas relacionadas ao processo do desenvolvimento econômico e sustentável frente às relações entre o homem, sociedade e natureza (JACOBI, 2003JACOBI, P. Movimento ambientalista no Brasil. Representação social e complexidade da articulação de práticas coletivas. In: RIBEIRO, W. (org.) Patrimônio Ambiental EDUSP, 2003.).

Observa-se, pois, que os atingidos não podem estar circunscritos ao espaço do alagamento da UHE Jirau, mas a todo o Território de influência, englobando: a) a perspectiva social - relações entre pessoas, relações de vizinhança, bioma, cultos, culturas, cosmologias e étnicas; b) territorial - florestas, rios, lagos, relações com o espaço de bem viver da sociedade, posse histórica e política de espaços; c) econômica - sobrevivência, uso do espaço econômico; d) política -comunhão organizativa, modelos de gestão econômica, social e ambiental; e por fim, e) ética - equilíbrio e harmonia com o meio (JACOBI, 2003JACOBI, P. Movimento ambientalista no Brasil. Representação social e complexidade da articulação de práticas coletivas. In: RIBEIRO, W. (org.) Patrimônio Ambiental EDUSP, 2003.).

2. CONCEPÇÃO ATUAL DE ATINGIDO NO CONTEXTO DAS HIDRELÉTRICAS

Os cidadãos e cidadãs impactados por empreendimentos hidrelétricos são denominados por atingidos, cujo conceito varia de acordo com o contexto político e cultural. Segundo Vainer (2008VAINER, C. B. Conceito de “atingido”: Uma revisão do debate e diretrizes. In: ROTHMAN, Franklin Daniel (ed.). Vidas Alagadas - Conflitos Socioambientais - Licenciamento e Barragens, Viçosa, MG: Ed. UFV. 2008, p. 39-63.), as discussões a respeito dos atingidos podem ser analisadas em duas vertentes: a territorial-patrimonialista, a qual a ação do empreendedor é determinada pela aquisição do domínio (propriedade da terra), em que a população é um obstáculo que precisa ser removido para que a obra seja viabilizada; e a vertente hídrica, a qual o atingido é o inundado. A esse respeito, Vainer (2008, p. 7), destaca:

Ora, em muitas ocasiões tem ficado evidente que municípios sem qualquer área inundada podem sofrer mais severamente as consequências da implantação de uma hidrelétrica que municípios com áreas tomadas pelas águas do reservatório, mas isso não é contemplado pela legislação, em virtude da concepção hídrica.

Para compreender, o que e como, é estar na condição de atingido, é necessário extrapolar as dimensões estritamente pecuniárias ou materiais. O empreendimento é considerado por Vainer (2008VAINER, C. B. Conceito de “atingido”: Uma revisão do debate e diretrizes. In: ROTHMAN, Franklin Daniel (ed.). Vidas Alagadas - Conflitos Socioambientais - Licenciamento e Barragens, Viçosa, MG: Ed. UFV. 2008, p. 39-63.) um deflagrador de mudanças sociais irreversíveis e impostas pelo processo de transformação sem que siga um fluxo natural das mudanças que ocorreriam caso não houvesse intervenção.

O entendimento sobre atingido pelos empreendimentos hidrelétricos está relacionado às pessoas que devem ser deslocadas, está conectado ao espaço direto de interferência (canteiro de obras, linhas de transmissão) ou ao alagamento da UHE. Compreende-se, pois, que o impacto é maior do que apenas uma questão de espaço geográfico direto de interferência, porque a influência é maior do que apenas no espaço alagado. Ela ocorre também no imaterial, nas condições de vida vivida e na sobrevivência. Há um alargamento da influência das UHE, que não está vinculado estritamente ao espaço geográfico, mas há interferência em um Território de vida vivida relacionadas às redes de influência e confluência da vida vivida no entorno do Rio.

A definição de atingido está centrada exatamente no conflito entre o que é praticado pelos empreendedores e o alargamento da influência e confluência da vida vivida. Assim, o ser atingido se constitui no campo de disputa entre os diversos atores: empreendedores, movimentos organizados de impactados, Ministério Público e justiça, agências licenciadoras (SILVA; SILVA, 2011SILVA, R. G. S.; SILVA, V. P. Os atingidos por barragens: reflexões e discussões teóricas e os atingidos do assentamento Olhos D’água em Uberlândia-MG. Soc. nat., Uberlândia , v. 23, n. 3, p. 397-407, Dez. 2011.), e esse campo de disputa não se resume ao reconhecimento como tal, abrange espaço de vida, de sobrevivência, de relações, de influência e confluência de vida vivida.

Embora o termo apareça em documentos técnicos e remeta a dimensões econômico-financeiras, a noção não é nem meramente técnica, nem estritamente econômica. É um conceito em disputa, a noção de atingido diz respeito, de fato, ao reconhecimento, ou seja, legitimação de direitos e de seus detentores. Em outras palavras, estabelecer que determinado grupo social, família ou indivíduo é, ou foi, atingido por determinado empreendimento significa reconhecer como legítimo - e, em alguns casos, como legal - seu direito a algum tipo de ressarcimento ou indenização, reabilitação ou reparação não pecuniária. Isto explica que a abrangência do conceito seja, ela mesma, objeto de uma disputa e que desencadeia em um conflito.

Para abordar a discussão a respeito do conceito de atingido é necessário compreender que se está discutindo o reconhecimento e a legitimação de direitos, e parece consensual entre as agências multilaterais que a noção de atingido remete ao conjunto de processos econômicos e sociais deflagrados pelo empreendimento e que possam vir a ter efeitos perversos sobre os meios e modos de vida da população (SILVA; SILVA, 2011SILVA, R. G. S.; SILVA, V. P. Os atingidos por barragens: reflexões e discussões teóricas e os atingidos do assentamento Olhos D’água em Uberlândia-MG. Soc. nat., Uberlândia , v. 23, n. 3, p. 397-407, Dez. 2011.).

Depreende-se que os efeitos produzidos pelas UHE são interferências nas vidas vividas daqueles que foram deslocados (assumidos pelas empresas como impactados) e também em uma parcela que foi negligenciada pela UHE e tiveram suas vidas alteradas porque estavam no entorno e sob influência direta da construção do empreendimento. Os estudos de Owusu et al. (2017OWUSU, K. et al.; Resource utilization conflict in downstream non‐resettled communities of the Bui Dam in Ghana. Natural Resources Forum. vol. 41 (4), pp. 234-243, 2017.), Siciliano et al. (2015SICILIANO, G. et al.; Hydropower, social priorities and the rural-urban development divide: The case of large dams in Cambodia. Energy Policy. Vol. 86, pp. 273-285, 2015.) revelam os prejuízos causados a jusante das barragens, ou seja, em regiões que não são compreendidas como área de impacto das usinas, além de constatar que os relatórios de EIA não compreendem medidas sociais específicas sobre os diversos impactos que atingem as populações locais. Tajziehchi et al. (2012TAJZIEHCH, S. MONAVARI, S. M. KARBASSI, A. An Effective Participatory-Based Method for Dam Social Impact Assessment. Pol. J. Environ. Stud. v. 21, n. 6, p. 1841-1848, 2012., p. 1841) mostram que os impactos negativos na fase de construção são bem maiores (66,2%) do que aqueles positivos (33,7%).

3. OS CONFLITOS NA AMAZÔNIA: RESULTADO DE UMA OCUPAÇÃO HISTÓRICA

A discussão sobre conflitos na Amazônia pode ser feita por vários enfoques teóricos, entretanto as disciplinas que mais investimento têm dispendido no tema são a Antropologia, a Sociologia e a teoria do desenvolvimento regional de forma interdisciplinar. As discussões sobre desenvolvimento, crescimento e sustentabilidade, na perspectiva de cada ciência, se reforçam-se entre as décadas de 60 e 70 do século XX com as análises do Clube de Roma e da I Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, também chamada de Conferência de Estocolmo realizada em 1972.

Por sua vez, em 1987, a Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1987 do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente-PNUMA, constituiu o “Relatório Brundtland”, também conhecido como “Nosso Futuro Comum” que apresentou resultados significativos para os termos desenvolvimento sustentável e sustentabilidade no contexto ambiental. A partir dele, criaram-se discussões a respeito de três principais eixos: o ambiental, o social e o econômico permitindo assim a formulação das políticas públicas de âmbito global envolvendo a preservação e a conservação de todo o planeta (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE O MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991).

Esses eventos marcaram a inserção das análises dos conflitos socioambientais no discurso de grandes agentes nacionais e internacionais, como o Banco Mundial. Isso não quer dizer que, de forma paralela e contínua, agentes resistentes não tenham debatido a questão da relação ambiental e humana na Amazônia e outros espaços, como por exemplo, os trabalhos indigenistas que antecederam a Constituição de 1988.

A partir dessas discussões, unidas a grandes catástrofes, torna-se indispensável a necessidade de pensar uma nova postura da economia que alie a questão ambiental à sustentabilidade. Pensando novas formas de exploração dos recursos humanos de forma mais equilibrada, se pensa o desenvolvimento sustentável que historicamente representa a tentativa de mediação da humanidade com questões fundamentais para sua existência. Assim, podemos pensar conflitos - com delimitação espacial da Amazônia enquanto rompimentos entre interesses da expansão do capital com as necessidades de sustentabilidade dos indivíduos situados na região (LIBISZWESKI, 1992).

Libiszweski (1992) considera que o conflito é causado pela escassez do produto, levando indivíduos de um território a ocupar outro devido à menor taxa de regeneração ou escassez total de certo recurso, o que explicaria, de forma particular, a expansão da cultura do gado e invasões em unidades de conservação e terras indígenas na Amazônia por agentes privados e estatais.

Becker (2001BECKER, B. K. Revisão das políticas de ocupação da Amazônia: é possível identificar modelos para projetar cenários? Parcerias Estratégicas. nº 12, set. 2001.) relaciona assim os conflitos socioambientais aos desequilíbrios ambientais ou econômicos, como as migrações de nordestinos/sulistas para Rondônia nas primeiras décadas do século XX para buscar um recurso em escassez, quer seja a terra, água, caça, dentre outros. Desses movimentos migratórios temos ações antrópicas que causam impactos variados e sistêmicos sobre o território amazônico.

Os conflitos ocorrem quando, em disputa pelos recursos ambientais, sociais e seus usos, os grupos se entrechocam com estratégias para alcançar a hegemonia do uso desses recursos - uso este que pode variar de acordo com as noções culturais da relação natureza/cultura e prioridades econômicas. Na Amazônia, os conflitos se expressam entre interesses coletivos versus interesses privados, utilização dos espaços públicos por agentes privados e apropriação de espaços públicos por agentes (BECKER, 2001BECKER, B. K. Revisão das políticas de ocupação da Amazônia: é possível identificar modelos para projetar cenários? Parcerias Estratégicas. nº 12, set. 2001.), que se expressam por desmatamento ilegal, invasão de áreas protegidas e indígenas, extrativismo mineral ilegal.

Esses conflitos podem ser claros ou subjetivos. Alguns possuem pouca visualização pela sociedade (invasão de áreas protegidas e indígenas, extrativismo mineral ilegal) e tendem a não ser associados à degradação ambiental - como, por exemplo, os movimentos endógenos em defesa de grandes hidrelétricas, que relacionam o empreendimento ao desenvolvimento e não sabem, ou desejam, medir de forma consciente os impactos e conflitos decorrentes dessas ações.

4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

A pesquisa se caracteriza como teórico-descritiva, a partir das questões relacionadas ao território de ocorrência de impactos da construção e da operação das hidrelétricas, evidenciando os espaços geográfico de intervenção direta composto pelo alagamento, pelo canteiro de obras e pela linha de transmissão. Ela foi realizada em espaço distinto daquele preconizados pela UHE como diretamente impactado, produzindo a construção analítica de que o impactado pelas Usinas pertencem a um Território que é resultado das redes de confluência e influência da vida vivida baseada no Rio e no seu entorno.

O objeto de estudo foi o constructo de impactado pelas hidrelétricas do Madeira, constituído por pessoas e espaços que sofreram impactos diretos e indiretos das Usinas.

Utilizou-se como referência teórica os conceitos de conflito de acordo com os estudos de Libiszweski, (1992) sobre atingidos, das definições de Vainer (2008VAINER, C. B. Conceito de “atingido”: Uma revisão do debate e diretrizes. In: ROTHMAN, Franklin Daniel (ed.). Vidas Alagadas - Conflitos Socioambientais - Licenciamento e Barragens, Viçosa, MG: Ed. UFV. 2008, p. 39-63.), do Relatório da Comissão Mundial de Barragens (2000) e da compreensão de territórios conforme os entendimentos de Santos (1999SANTOS, M. O dinheiro e o território. GEOgraphia, v. 1, n. 1, p. 7-13, 1999. Disponível em < http://www.geographia.uff.br/index.php/geographia/article/viewFile/2/2> Acesso em: 27 mar. 2019.
http://www.geographia.uff.br/index.php/g...
) e Escobar (2014ESCOBAR, A. Territorios de diferencia: lugar, movimientos, vida, redes. Editorial Universidad del Cauca, 2014.).

O método aplicado na pesquisa foi proposto por Libault (1971LIBAULT, A. Os quatro níveis da pesquisa geográfica. Métodos em Questão. Instituto de Geografia (USP), São Paulo, n. 1, 1971, p. 1-14.) organizado em quatro etapas: 1. Compilatório - fase de coleta de dados para compilação e levantamento de dados por meio de entrevistas; 2. Correlativo - fase de correlação de dados, interpretação e agrupamentos dos dados coletados; 3. Semântico - triagem dos pontos importantes a serem analisados que atendam aos objetivos da pesquisa; e, 4. Normativo: formatação de um modelo para análise dos dados. No modelo para a análise dos dados utilizou-se Riscos e Vulnerabilidade propostos por Cardona (2001) e Wisner et. al (2003WISNER, B. et. al. At Risk. Natural Hazards, People’s Vulnerability and Disasters, Routledge. 2003.).

As análises foram construídas a partir de estudos teóricos e exploratórios diante da construção analítica, evidenciada pela pergunta norteadora a respeito de “qual é o território de ocorrência de impactos da construção e da operação das hidrelétricas?”. A questão reflete os pressupostos, que é a fase Semântica, de que os impactados não são apenas aqueles circunscritos ao espaço geográfico de intervenção direta composto pelo alagamento, pelo canteiro de obras e pela linha de transmissão.

As questões exploratórias foram construídas também a partir de definições dos conceitos teóricos desta pesquisa de conflito (território versus atingido) e Riscos e Vulnerabilidade, que é a fase Normativa, formando descritores que possibilitaram a compreensão analítica, sendo que os descritores cotejados analiticamente nas duas comunidades permitiram compor a definição do que é Território de influência de uma hidrelétrica.

O estudo de prospecção de dados, que é a fase compilatória, foi realizado em duas comunidades denominadas Jirau e Vila da Penha, que estão no entorno da UHE Jirau e que não tiveram nenhum tipo de indenização ou outras compensações das hidrelétricas porque não estavam nos espaços geográficos de intervenção definidos no setor elétrico, que é a fase Correlativa. O levantamento de dados foi parte da pesquisa de pós-doutoramento intitulada “Estudos dos impactos sociais, ambientais e econômicos em um assentamento em Rondônia: a construção de UHE e a intervenção no circuito inferior da economia” do professor Artur de Souza Moret, com levantamento de dados, a partir de entrevistas semiestruturadas, em três Usinas: UHE Jirau-RO, nos Assentamento Nova Mutum Paraná (07 entrevistas), Vila Jirau e Vila da Penha (54 entrevistas). Na UHE Lajeado-TO (11 entrevistas) na Quadra 604 Norte. Na UHE Chixoy - Município Rabinal na Guatemala (15 entrevistas) nas Comunidades Chitomax, Narango, Pacux.

Na prospecção de dados foi utilizada a ferramenta de questionário semiestruturado, aplicado a 54 (cinquenta e quatro) participantes dos assentamentos de Vila Jirau e Vila da Penha e observação local, numa amostra aleatória de entrevistados que se dispuseram a responder os questionamentos dos motivos, quando e como chegaram ou estão na comunidade.

Figura 1
Localização do estudo

A Vila Jirau é uma comunidade que ocupa as duas margens da BR 364 e se originou em função da criação de uma das paradas da estação ferroviária da Estrada de Ferro Madeira Mamoré inaugurada em 1912 e desativada em 1972. Desativada a ferrovia, a localidade foi mantida como ponto de paradas de pessoas e diversos transportes terrestres que trafegam entre Porto Velho e Rio Branco (AC), bem como para chegar a Guajará Mirim e, consequentemente à fronteira Brasil-Bolívia. Esta é uma das comunidades mais próximas da UHE Jirau.

A Vila da Penha localiza-se às margens da BR 425 e os moradores mais antigos contam que há cerca de mais de 10 anos um Senhor abriu um pequeno comércio e as pessoas foram se instalando aos poucos e denominaram o local de Vila da Penha - em função de uma antiga estrada que liga o Distrito de Abunã (também uma estação ferroviária da EFMM), à BR 425. Pequenos proprietários de terra, chácaras ou sítios, foram desmembrando suas propriedades em pequenos lotes e vendendo aos novos moradores e assim a comunidade foi se tornando um ponto comercial favorável para os pequenos produtores dos arredores que também concentraram ali a coleta e distribuição da produção de leite - assim declararam os moradores de Vila da Penha durante as entrevistas para este trabalho.

A distância entre Vila da Penha e Abunã é de 16,42 km, pela estrada Velha da Penha, diferente da distância entre os dois locais pela BR 425 no sentido da Br. 364 (16,66km) até Abunã (28,13 km) totalizando 44,79km. Foi a BR 425 que serviu de referência para a locomoção entre Abunã e Vila da Penha principalmente porque acessava também o Garimpo da Penha.

5. CONFIGURAÇÃO DO TERRITÓRIO NAS COMUNIDADES AFETADAS PELA UHE JIRAU: RESULTADOS E DISCUSSÕES

5.1 Vila Jirau e influência das UHE.

Após a construção da hidrelétrica de Jirau a comunidade que fica às margens do Rio Jirau tornou-se um ponto de abrigo à família e pessoas por diversos fatores: a) facilidade de acesso pela BR 364; b) características de uma comunidade rural e ribeirinha e, portanto, recebe imigrantes de outras áreas similares; c) a localidade mais próxima da hidrelétrica depois que o lago inundou a comunidade de Mutum Paraná. Portanto, Jirau substitui, hoje, as paradas de ônibus e outras atividades necessárias para quem está em trânsito na BR 364 - antes realizadas em Mutum Paraná. Mas foi a busca de trabalho e emprego que mais movimentou a migração de Jirau motivadas pela construção da hidrelétrica.

Sendo assim, a nossa pesquisa registrou uma imigração econômica que cresceu 80% nos últimos cinco anos, sendo que 65.4% são de pessoas em idade Economicamente Ativa, com menos de 50 anos. Os registros mostram também que 62% das pessoas que vieram para Jirau são de dentro do Estado de Rondônia, vieram em busca de trabalho, pois estavam em locais onde o trabalho, emprego e a remuneração eram ruins. Parte dessas pessoas (24%) afirmaram que onde estavam não tinham nenhuma opção de trabalho.

Apesar de se tornar um importante espaço de apoio e necessário, principalmente para quem está em trânsito, Vila Jirau não recebeu nenhuma reorganização de infraestrutura ou melhoria, exceto a construção de uma pequena escola, como corroboram as conclusões de impactos nos Territórios de Vainer (2008VAINER, C. B. Conceito de “atingido”: Uma revisão do debate e diretrizes. In: ROTHMAN, Franklin Daniel (ed.). Vidas Alagadas - Conflitos Socioambientais - Licenciamento e Barragens, Viçosa, MG: Ed. UFV. 2008, p. 39-63.), Silva e Silva (2011SILVA, R. G. S.; SILVA, V. P. Os atingidos por barragens: reflexões e discussões teóricas e os atingidos do assentamento Olhos D’água em Uberlândia-MG. Soc. nat., Uberlândia , v. 23, n. 3, p. 397-407, Dez. 2011.), Sassen (2018), Owusu (2017OWUSU, K. et al.; Resource utilization conflict in downstream non‐resettled communities of the Bui Dam in Ghana. Natural Resources Forum. vol. 41 (4), pp. 234-243, 2017.) e Moret (2018MORET, A. S. Estudo dos impactos sociais, ambientais e econômicos em assentamento de UHE’s e a intervenção no circuito inferior da economia. Relatório Científico de Pós-Doc. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional- UFRJ. Antônio Calos Brandão- Sup. Rio de Janeiro, 2018.).

Aparentemente, Vila Jirau não parece ter alguma perspectiva de trabalho, entretanto as pessoas que vieram principalmente de zonas rurais e que já conhecem a dinâmica de uma pequena comunidade como Vila Jirau, ou seja, é um espaço que abriga famílias que ficam na expectativa de trabalhos diversificados como aqueles desenvolvidos em fazendas, garimpo, pequenas diárias em sítios e é claro, uma expectativa de trabalho formal nas empreiteiras ou empresas terceirizadas pela Energia Sustentável do Brasil em função da construção e funcionamento da Hidrelétrica de Jirau. Esta última é o fator que influenciou a maioria dos migrantes nestes últimos anos, conforme dados levantados pela nossa pesquisa.

Uma imigração inesperada e elevada em uma comunidade rural pode provocar vários impactos negativos uma vez que não possui infraestrutura adequada de saneamento, segurança, educação entre outros. Os pequenos problemas sociais começam a surgir tais como: tráfico e uso de drogas, o que tem deixado crianças, adolescentes e jovens em uma situação de vulnerabilidade. Outra situação que ficou registrada em nossas entrevistas foi o estado de depressão que a pessoas começaram a vivenciar pela falta de perspectiva de trabalho, renda e frustrações de uma melhoria de vida. Registramos também a ausência do poder público no serviço social e o desespero de mães em busca de informações ou atividades educacionais e socioculturais que evitem jovens e crianças a se tornarem dependentes químicos.

Ao que tudo indica, o crescimento e não o desenvolvimento, chegou à Vila Jirau com a ampliação de problemas sociais e está longe de se tornar um ambiente próspero, ou melhor, conforme os discursos dos empreendedores de hidrelétricas, à época de sua instalação.

5.2 Vila da Penha, Rio Madeira e o entorno.

Após a construção do lago da hidrelétrica de Jirau e as inundações ocorridas em Abunã e Araras fez com que as pessoas dessas localidades se mudassem para Vila da Penha por ser o local seguro (terra firme) mais próximo dessas duas localidades. A migração começou a ser ampliada desde uma forte inundação ocorrida em 2014 provocada principalmente pelos impactos ambientais ocorridos após a construção da hidrelétrica, os mesmos parâmetros demonstrados por Sassen (2016SASSEN, S. Expulsões: brutalidade e complexidade na economia global. Rio de Janeiro/São Paulo, Paz e Terra. 2016.), onde as intempéries climáticas produzem oportunidades para a elite econômica.

Assim como a comunidade de Jirau, Vila da Penha conta com possibilidade de crescimento, porque está ao lado da BR 425, com facilidade de acesso para à fronteira com a Bolívia e BR 364, rodovia que acessa Porto Velho (RO) e Rio Branco (AC). Além disso, há muitos assentamentos de agricultores nas proximidades e torna possível o escoamento e comercialização da produção.

Vila da Penha é uma localidade isolada das ações do poder público para atendimentos básicos de saúde, educação e outros serviços sociais. Os conflitos se efetivam também pelo crescimento elevado nas épocas de alagações e no esvaziamento nos outros períodos sem, contudo, ter atendimento diferenciado do poder público, visto que é um local de refúgio para os moradores de outras comunidades que também sofrem com alagações como Araras e Abunã. Há conflitos de gestão administrativa, pois Araras pertence ao município de Nova Mamoré, enquanto Vila da Penha e Abunã pertencem ao município de Porto Velho.

5.3 Perspectiva analítica de Território, conflito e atingidos pela construção de UHE na Amazônia.

Os conflitos constituídos com delimitação espacial da Amazônia - enquanto desestruturação e rompimentos entre interesses da expansão do capital, contrapõem-se a vida vivida de cidadãos e cidadãs na região.

Se por Território compreende-se a composição de uma complexa rede de dimensões e relacionamentos que se interconectam, formando uma teia invisível de contatos individuais e coletivos, quando estes são destruídos, cria-se uma ruptura com os elos simbólicos do espaço social.

Para compreender o atingido, numa concepção ampla, é necessário extrapolar o conceito de interferência estrita pecuniária e material que é propugnado pelo setor elétrico, ou mesmo pelo capital, portanto este conecta-se às influências materiais e imateriais, bem como às condições (dignas) de vida cotidiana.

Na Vila Jirau houve impactos com a chegada de pessoas que não tinham opção de trabalho, ou estavam em situação economicamente difícil, ou ainda, buscavam lugares mais tranquilos, bem como porque o Território era próximo do empreendimento e que permitia acesso mais fácil aos empregos e oportunidades oferecidas. Diante disso, onde se enquadrariam os moradores antigos e os migrantes da última década da Vila Jirau em relação às compensações dispensadas pelos investidores da Energia Sustentável do Brasil?

A Vila da Penha se constitui em Território de fuga para as intempéries das cheias e que são agudizadas pelo barramento do rio, tornando-se um espaço transitório desses períodos, e suas dinâmicas são influenciadas diretamente pelo funcionamento e operação da UHE.

Portanto, a partir desta reflexão analítica, propõe-se que no território de impactados estejam aqueles que serão atingidos por Usinas compreendendo que há influência e confluência das redes de vida vivida, consubstanciadas pelos seguintes fatores:

  • a) o rio e o que o relaciona (pesca, pescadores, deslocamento, garimpeiros, ribeirinhos);

  • b) as estradas de conexão entre o empreendimento e o espaço de interferência, que delineia e delimita o Território;

  • c) as redes de moradia que se qualificam como espaço onde os trabalhadores, ou os pretendentes de trabalho, estão, próximos ao empreendimento ou às atividades econômicas decorrentes do evento econômico; e,

  • d) os espaços de fuga ou de refúgio a que as pessoas se colocam e se conectam para absorver os impactos causados ou mesmo para fugir deles.

Conclusões

A única maneira de superar de forma consistente as concepções que têm como núcleo o direito do empreendedor, e não os direitos das populações afetadas, é entender a natureza do processo social deflagrado pelo empreendimento hidrelétrico, e do processo simultaneamente econômico, político, cultural e ambiental. Trata-se, com efeito, de um processo de mudança social que interfere em várias dimensões e escalas, espaciais e temporais. Nesse processo de mudança, além de alterações patrimoniais (novos proprietários) e morfológicas (nova geomorfologia, novo regime hídrico, etc.), instauram-se novas dinâmicas socioeconômicas, novos grupos sociais emergem na região de implantação, novos interesses e problemas se manifestam.

Sugere-se que novos estudos sejam realizados com vistas a ampliar o conceito de atingido, de modo que as populações deslocadas compulsoriamente deixem de ser tratadas apenas como entrave ao desenvolvimento (insustentável). É necessário e urgente que o tema continue avançando para que os aspectos sociais, ambientais, culturais, políticos e econômicos sejam reconhecidos pelo Judiciário, que as populações atingidas tenham voz e poder, se fortaleçam e tais garantias surtam seus efeitos legais.

A implantação de UHE desestrutura relações sociais constituídas e reinstalam outras distintas daquelas balizadas por relações harmônicas com o bioma, resultando numa vida vivida em equilíbrio. Recorrendo à Física e à Termodinâmica, entende-se que as intervenções abruptas alteram a energia e, por consequência, a entropia, rapidamente produzindo a não reversibilidade e colocando o sistema noutro patamar entrópico. Essa distinção das relações sociais ambientais e econômicas com o meio, portanto noutro patamar entrópico, colocam a sociedade em situação pior do que anteriormente e que já foi demonstrado em distintos trabalhos de Ribeiro e Moret (2014RIBEIRO, A. M.; MORET, A. S. A Construção da hidrelétrica de Santo Antônio e os impactos na sociedade e no ambiente. Interfaces Científicas - Humanas e Sociais. v. 2, p. 81-92, 2014.), Ribeiro, Andrade e Moret (2015), Araujo e Moret (2016ARAUJO, N. C.; MORET, A. S. Direitos Humanos e Hidrelétricas: uma análise dos impactos socioambientais e econômicos gerados em Rondônia. Veredas do Direito. v. 13, p. 167-194, 2016.). Tal situação fere a legislação atual, pois a mesma exige que as alterações deixem as pessoas, pelo menos, na mesma situação anterior.

É importante destacar o espaço de interferência que se conecta com as duas localidades envolvidas, porque este (espaço de interferência) não pode ser apenas o lago ou o que os empreendedores chamam de território atingido, e que Vainer (2008VAINER, C. B. Conceito de “atingido”: Uma revisão do debate e diretrizes. In: ROTHMAN, Franklin Daniel (ed.). Vidas Alagadas - Conflitos Socioambientais - Licenciamento e Barragens, Viçosa, MG: Ed. UFV. 2008, p. 39-63.) chama de Território Patrimonialista, circunscrito apenas nas dimensões do empreendimento. O impacto acontece no Território, como definido aqui no texto, como resultado da influência e da confluência das redes de vida vivida, compreendendo: o rio e o que o relaciona, as estradas de conexão entre o empreendimento e o espaço de interferência, as redes de moradia, além dos espaços de fuga ou de refúgio.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2020
  • Aceito
    03 Mar 2021
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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