Acessibilidade / Reportar erro

Horizontes Ecofeministas

Resumo

As ecologias políticas decoloniais têm como alguns de seus dilemas centrais conseguir avançar e articular, além do apontamento das críticas e identificação dos problemas, propostas transformadoras, reflexões acerca das práticas emancipatórias e, sobretudo, imaginar cenários e horizontes possíveis. As ideias destes horizontes estão articuladas nessa narrativa por três mulheres ambientalistas e feministas que atuam em diferentes contextos sociais: Bernadete Souza Ferreira Santos, camponesa, ialorixá, educadora popular que atua na região de Ilhéus, no sul da Bahia, e especialista em Educação do Campo e Agroecologia pela USP; Ivonne Yanez, ativista ambiental do Equador e uma das fundadora da organização Accíon Ecologica; e, Stefania Barca, italiana de Nápoles, pesquisadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Elas juntas nos mostram que os caminhos para horizontes emancipatórios têm como um de seus pontos centrais a intersecção entre a Ecologia Política e os feminismos.

Palavras-chave:
Ecofeminismo; ecologia política; antropoceno; alternativas; agroecologia; justiça ambiental

Abstract

Decolonial political ecology embodies far more than mere critique. Rather, decolonial political ecologies allow us to advance transformative proposals, to articulate sophisticated reflections on emancipatory practices, and, above all, to re-imagine future scenarios and horizons. These imagined horizons were articulated by three women from different social contexts: Bernadete Souza Ferreira Santos, a ialorixá peasant and specialist in Rural Education and Agroecology from USP, who works as a ‘popular educator’ in the region of Ilhéus (southern Bahia); Ivonne Yanez, an environmental activist from Ecuador and one of the founders of the organization Acción Ecologica; and Stefania Barca, a scholar in feminist political ecology, originally from Naples (Italy), and currently working at the Centre for Social Studies at the University of Coimbra (Portugal). Together, they show us the paths towards emancipatory horizons that can be found at the intersection between Political Ecology and feminism.

Keywords:
Ecofeminism; political ecology; anthropocene; alternatives; agroecology; environmental justice

Resumen

Las ecologías políticas decoloniales tienen como algunos de sus dilemas centrales poder avanzar y articular, además de señalar críticas e identificar problemas, propuestas transformadoras, reflexiones sobre prácticas emancipatorias y, sobre todo, imaginar escenarios y horizontes posibles. Las ideas de estos horizontes son articuladas en esta narrativa por tres mujeres ambientalistas y feministas que actúan en diferentes contextos sociales: Bernadete Souza Ferreira Santos, campesina, ialorixá, educadora popular que trabaja en la región de Ilheus, sur de Bahía, y especialista en educación rural y agroecología de la USP; Ivonne Yanez, activista ambiental de Ecuador y una de las fundadoras de la organización Accíon Ecologica; y, Stefania Barca, italiana de Nápoles, investigadora del Centro de Estudios Sociales de la Universidad de Coimbra. Juntos nos muestran que los caminos hacia horizontes emancipatorios tienen como uno de sus puntos centrales la intersección entre la ecología política y los feminismos.

Palabras-clave:
Diversidad Biológica; Evaluación de Impacto Ambiental; Uso de la Tierra

As ecologias políticas decoloniais têm como alguns de seus dilemas centrais conseguir avançar e articular, além do apontamento das críticas e identificação dos problemas, propostas transformadoras, reflexões acerca das práticas emancipatórias e, sobretudo, imaginar cenários e horizontes possíveis. Nesse sentido, o encerramento do III Congresso Latino-Americano de Ecologia Política - “Horizontes Emancipatórios” - foi organizado de forma a proporcionar uma reflexão coletiva, sobre ações passadas e presentes, bem como sobre possibilidades para caminhos futuros e para a realização de um objetivo comum de emancipação entendida como justiça socioambiental.

As ideias destes horizontes foram articuladas por três mulheres ambientalistas e feministas que atuam em diferentes contextos sociais: Bernadete Souza Ferreira Santos, camponesa, ialorixá, educadora popular que atua na região de Ilhéus, no sul da Bahia, e especialista em Educação do Campo e Agroecologia pela USP; Ivonne Yanez, ativista ambiental do Equador e uma das fundadora da organização Accíon Ecologica; e, Stefania Barca, italiana de Nápoles, pesquisadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Elas juntas nos mostram que os caminhos para horizontes emancipatórios têm como um de seus pontos centrais a intersecção entre a ecologia política e os feminismos.

Em diferentes perspectivas, as contribuições expressam como o patriarcado, o capitalismo e o colonialismo articulam a perpetuação de desigualdades e os sistemas de dominação da sociedade moderna/colonial. A masculinidade patriarcal está no centro da separação dos seres humanos da natureza, bem como do processo de objetificação da natureza como forma de possibilitar o seu domínio e conversão em matéria-prima para exploração industrial, processo essencial para a perpetuação do colonialismo e para o avanço do capitalismo. Neste sentido, ao longo do tempo, “o pensamento e a práxis ecofeminista revelaram as conexões da desigualdade entre os sexos, o sexismo, o racismo, o classismo, a divisão Norte-Sul e a deterioração ambiental” (PULEO, 2020PULEO, Alicia H. Ecofeminismo: a perspectiva de gênero na consciência ecológica. QG Feminista, 2020. Disponível em: https://medium.com/qg-feminista/ecofeminismoa-perspectiva-de-g%C3%AAnero-na-consci%C3%AAncia-ecol%C3%B3gica432a34535e69. Acesso em 3 de maio de 2021.
https://medium.com/qg-feminista/ecofemin...
, s/p). Foi esse encontro de pautas e inquietações comuns entre o feminismo e a ecologia que gerou o movimento Ecofeminista. E, apesar de o movimento ter emergido na Europa nos anos 1970, sobretudo enquanto forma de denúncia das desigualdades na distribuição dos custos da degradação ambiental que atingiam particularmente as mulheres, o mesmo vem ganhando cada vez mais uma dimensão de expressão do protagonismo dessas mulheres nas lutas ambientais e populares ao redor do mundo. Essas lutas se articulam a partir da valorização da ética do cuidado como forma de combate do profundo colapso ambiental que vivemos.

A centralidade da luta das mulheres e da perspectiva de gênero na consciência ecológica incorpora necessariamente a pluralidade dos feminismos que é bem refletida nesta mesa através das falas de uma feminista brasileira negra e liderança no Candomblé, religião de Matriz Africana, uma ativista ambiental feminista equatoriana e uma pesquisadora ecofeminista italiana que atua em uma instituição portuguesa reconhecida pela construção de reflexões acadêmicas críticas. A contribuição coletiva dessas mulheres para pensar a ecologia política nos mostra que os horizontes emancipatórios são Ecofeministas.

Bernadete Souza Ferreira Santos:

Eu sou camponesa, assentada no Tear Dom Helder Câmara em Ilhéus, um assentamento da reforma agrária. Também faço parte da Central Estadual de Associações das Comunidades da Agricultura Familiar e Campesina do Estado da Bahia (CECAF) e há três dias passei a participar da direção da Intersindical da Secretaria Rural à nível nacional.

Gostaria de fazer uma saudação a duas mulheres guerreiras que tanto lutaram pela questão ambiental e preservação da tradição das religiões de matriz africana que nos deixaram esse ano: Mãe Stella de Oxóssi e Makota Valdina, que partiu anteontem.

Neste momento, fazermos essa discussão aqui nesse espaço é muito interessante para nós, enquanto camponesas e camponeses, devido ao que está acontecendo em nosso país: retrocesso e perda dos nossos direitos, onde homens e mulheres estão morrendo de todas as formas e o meio ambiente e a biodiversidade estão sendo leiloados para aqueles que de fato querem ver a destruição desse planeta. Eu acho que não tem como apontarmos para o futuro sem que façamos esses debates, sem que nos organizemos enquanto povo brasileiro. Os países que estão aí, os países da América Latina, são os que estão sofrendo esse momento onde, como costumamos dizer, “o rolo compressor”, a política mundial está querendo acabar com eles, principalmente quando a questão é em relação ao meio ambiente.

Historicamente aqui no nosso país temos o meio rural como lugar considerado, por aqueles governos que já passaram e continuam agora de forma muito mais forte, como espaço de carência. É um local do atraso, de ordem econômica, política e cultural. Isso só fortalece o agronegócio e o latifundiário. Sabemos que todos os dias homens e mulheres são expulsos do campo e o resultado disso está nas grandes cidades com inchamentos de camponeses e camponesas que são expulsos da terra pelo agronegócio. O latifúndio e o agronegócio estão envolvidos com a concentração de renda, da terra, a devastação das florestas e dos bens comuns, a privatização e o controle pelo mercado das águas e da biodiversidade e a exploração dos trabalhadores e das trabalhadoras. Vimos esse resultado agora nas eleições, onde militares estão aí à frente de departamentos como os de meio ambiente e o INCRA.

O modelo de desenvolvimento rural que temos aqui em nosso país é o desenvolvimento da monocultura. Então, vemos os grandes latifúndios com a soja, com o gado, com as grandes plantações de milho, com as plantações de transgênicos. As sementes crioulas não sendo valorizadas em nosso país, já que são os camponeses e camponesas que fazem essa preservação. (...) E esse modelo que está aí precisa imediatamente ser rompido por nós, porque sabemos que esse governo só vai fortalecer esse modelo de desenvolvimento e a grande perversidade que está fazendo com os camponeses e camponesas de nosso país.

Então, é um modelo da perversidade porque é o desenvolvimento para um grupo, não é para nós, camponesas e camponeses. Os grandes agrotóxicos que são jogados na terra e no planeta, só trazem a morte, não trazem vida pra ninguém. Vemos, por exemplo, um discurso de uma ministra de outros governos, mesmo sendo governos de esquerda quando houve também um grande desenvolvimento do agronegócio no nosso país, que dizia assim: se a população brasileira quer comer mais, então tem que comer veneno, porque a população brasileira não tem condição de comer produtos orgânicos.

Mas, quando falamos de agroecologia, falamos de um modelo de desenvolvimento que se contrapõe a esse modelo perverso que está aí. E, nós, camponesas e camponeses, nós fazemos agroecologia sim! Não são só os produtos orgânicos que hoje viraram “moda”, mas não digo isso no sentido negativo, até em um sentido positivo. O problema é que, os agricultores e as agricultoras que produzem esse produto orgânico e levam pro mercado, onde o preço é tão absurdo que, de fato, a classe trabalhadora, acaba não consumindo e vai comer os enlatados e empacotados do agronegócio. Então, quando damos para o nosso filho, para os nossos netos, por exemplo, a farinha láctea, de onde vem esse produto? Como foi que ele foi produzido? Será que a gente já parou pra pensar no feijão que a gente come? A quantidade de venenos que são colocados nesse produto? Na soja e nos alimentos que nós consumimos hoje, o grau de veneno é tão alto que inclusive tem pesquisas que dizem que cada brasileiro consome 7 litros de veneno por ano. Então, como é que nós queremos fazer “um desenvolvimento sustentável” dentro desse modelo capitalista, nesse modelo que está aí? Precisamos de fato defender uma nova forma de desenvolvimento sustentável para o nosso planeta. E quando se fala de desenvolvimento sustentável e da agroecologia é muito mais amplo do que simplesmente os produtos orgânicos. Porque a agroecologia está em torno de todos nós, desde a casa da gente, os animais, a fauna e a flora. Ou seja, no geral da vida das pessoas.

De forma geral, precisamos de um modelo sustentável com equilíbrio social, onde devemos superar a matriz de acumulação do capital. E, não dá pra pensar em um modelo sustentável, em um modelo que se contrapõe ao agronegócio, que é a agroecologia, se não fizermos esse debate, por exemplo, quando se fala da questão da diversidade. O debate acontece inclusive no campo, considerado por esse modelo que está aí como local do atraso, mas nós estamos no campo e estamos fazendo debates da questão do machismo, da homofobia, da intolerância, do patriarcalismo, do racismo, da homofobia, da xenofobia, porque é isso que a gente entende como modelo sustentável. A agroecologia se coloca também dentro desses fatores, a gente precisa discutir isso no campo e, é claro, na cidade porque se a cidade e o campo não estiverem juntos, não há desenvolvimento, nem agroecológico, nem social, pelo menos para o nosso povo, que é o povo do campo e a classe trabalhadora, que está dentro do campo e na cidade.

Uma outra coisa que a gente não pode e não deve deixar passar é a questão das águas, porque a gente está vendo que a questão das águas no mundo todo está sendo levada de uma forma tão perversa e tão gananciosa que infelizmente o nosso planeta e nosso povo estão morrendo por conta das privatizações que o agronegócio está fazendo com as águas. Isso inclui desde o roubo dos lençóis freáticos, as grandes represas, as grandes invasões das empresas dentro desses espaços e a Amazônia.

Enquanto Ialorixá e religiosa de matriz africana, eu não posso deixar de falar um pouco, independente de que aqui tenham pessoas de religiões diferentes ou pessoas que também não tenham religião porque o nosso país é uma diversidade, porque pra gente orixá é a essência da natureza. Orixá é a água, é a terra, as matas, as pedras, o vento, tudo que está aqui ao nosso redor, isso é a essência dos orixás. E a gente cultua, e cultua de forma tradicional, onde nós fazemos essa preservação ambiental. Temos a obrigação de preservar o meio ambiente, porque preservando o meio ambiente nós estamos respeitando a nossa religião, estamos respeitando aos orixás. É uma religião que cultua a natureza, que cultua o meio ambiente. E estamos passando por um momento muito sério e muito difícil que é a questão da intolerância religiosa, principalmente em relação a nós, da religião de matriz africana.

Para finalizar minha fala, eu gostaria também que todos e todas aqui nesse momento gritassem comigo. Porque eu sou uma mulher negra, sou uma mulher feminista, sou da religião de matriz africana e dia 14 de março fez um ano da execução de uma mulher negra, uma mulher da religião de matriz africana, uma mulher lésbica, uma mulher socialista que foi Marielle Franco. Um grito de ordem que é “Marielle Presente”, “Marielle Presente”, “Marielle Presente”.

Ivonne Yanez:

Equador é um país pequeno, com algumas grandes ideias. Mas, no Equador, o que gostamos sobretudo é provocar. Provocamos os presidentes para que se vão. Gostamos de provocar. Creio que é porque somos pequenos, que gostamos de incomodar um pouco. Então eu vou incomodar um pouco hoje e vou falar de um tema que para muitas e muitos de nós pode ser uma boa ideia quando pensamos em horizontes. Mas, na realidade, eu creio que às vezes pode ser também uma armadilha na qual nós caímos. Esse é o tema das alternativas. Existem muitos grupos de trabalho, inclusive de que nós fazemos parte, que são “alternativas de desenvolvimento”. Sempre se fala das energias alternativas. Isso é como dizer que alternativa é uma coisa que tem que se inventar, quando na realidade as alternativas existem em todos os territórios. As alternativas culturais que são a prática do Candomblé, as alternativas reconhecidas que são a agricultura, a pesca. Existem todas essas práticas culturais, de vida, mas lhes chamam agora de alternativas. E por que?

Vou fazer uma comparação entre o extrativismo e a violência contra as mulheres ao redor do tema das alternativas e vocês vão ver porque. A coisa é que quando uma comunidade diz: “não queremos mineração”. O que ocorre? Chega o estado, as empresas, as ONGs intermediárias e lhes dizem: “Bom, não querem mineração, então qual é a alternativa de vocês?”. E, claro. As comunidades dizem: “Nós já vivíamos como vivíamos, essa é a nossa alternativa. A única alternativa é que não haja mineração”. Mas, com isso não se conformam o estado, nem as empresas, nem nada. Então exigem que lhes deem uma alternativa. E por que quero comparar com a violência contra as mulheres? Assumo que essa é uma alternativa em contexto de resistência. Se uma mulher diz “eu não quero que toquem o meu corpo sem o meu consentimento”, imaginem o cenário em que o homem abusador lhes diz: “Não quer que eu toque, então qual a alternativa?”. Não? Qual é a alternativa? Isso é tão ridículo, tão absurdo que creio que é isso que estão provocando as empresas e o estado quando querem colocar no mesmo nível a opção pela mineração (quando não é nenhuma opção), com a opção de vida dos povos a que lhes chamam alternativa.

Outra coisa que queria mencionar com respeito também à violência contra as mulheres e ao tema das alternativas é a consulta. Claro que é um direito que os povos têm de serem consultados. Mas, desde que se escute e se tome em conta a decisão do povo ao ser consultado de não querer atividades mineradoras, ou petrolíferas, etc. Porque se não, a consulta se converte em um teste e em uma farsa. O que se passa quando uma comunidade diz: “Não queremos mineração”? Eles dizem: “Bom, não importa, igual nós vamos consultá-los”. Mas, consultamos sem que seja uma decisão legalmente vinculante. O que ocorre? É permitida a consulta, como está concedida nas normas, nas leis, etc., mas violam os direitos das comunidades à sua livre determinação de não querer mineração. Se a uma mulher um homem lhe diz: “Posso te tocar”? Está consultando, é justo. Mas, se uma mulher diz “Não quero”, [e ele diz] “Agora não importa”. Então, o que se passa? Igual, é uma agressão sexual, sem que haja consentimento, no caso dos territórios por parte das comunidades e no caso das mulheres por parte de uma agressão sexual. Então a consulta nesse caso se converte em uma farsa. Obviamente, como com as alternativas.

E, vou terminar dizendo por que me referi tanto a isso. Porque eu creio que muitas vezes nos distraímos, as organizações, as comunidades, pensando que o horizonte é um horizonte distante que quase não podemos ver. Que coloquemos um horizonte aqui pertinho, na primeira fileira. Consulta. Este é o horizonte de nossas organizações e comunidades. Com isso será possível cumprir o direito dos povos de não ter mineração e viver em um ambiente são, e como decidirem viver. As alternativas estão um pouco mais além, mas dizem “Vamos vos apresentar todas as alternativas que nos pedem”, quando na realidade a única alternativa é que a empresa não entre.

Posicionando-me desde uma organização ecologista, andina, no Equador, e com a experiência de 30 anos trabalhando defendendo a natureza, o direito da natureza, acompanhando os povos e lutando juntos pelo direito dos povos, os direitos coletivos, etc., e, por isso, toda a comparação que eu disse antes da violência contra as mulheres, creio que um horizonte assim por onde temos que caminhar, é a união das lutas ecológicas com as lutas feministas. O ecofeminismo. Sim, o futuro e o horizonte têm que ser ecofeministas, porque se não, não seria horizonte para onde temos que caminhar. Inclusive, eu gosto mais de uma palavra inventada que não é o ecofeminismo, mas o femi-ecologismo. Porque eu sou ecologista, mas incorporo o feminismo. Assim como as feministas incorporam as lutas ecológicas. Então desde o femi-ecologismo, eu creio que nós podemos encontrar realmente saídas e esse horizonte que todas e todos queremos caminhar.

Stefania Barca:

A minha contribuição é pensar como o trabalho acadêmico de investigação pode contribuir nesse sentido de criar e possibilitar horizontes emancipatórios. E eu vou fazer isso falando do antropoceno. (...) Essa palavra antropoceno, parece assim uma palavra bastante esquisita, uma palavra de critério científico que tem muito pouco haver com as lutas. De fato, esse é um termo com uma dimensão política muito importante porque esse é o nome como a comunidade científica a nível global, uma comunidade científica que vem sendo reconhecida pelo poder nos últimos anos, está chamando a nossa época: a época das mudanças climáticas, a época da destruição de vida. Felizmente, porque de fato isso é ainda melhor do que negar as mudanças climáticas.

Nomear é um ato político, é apropriar-se de algo. E, quando estamos dando nome a uma época geológica que abrange não só a gente, mas todos os seres vivos, este torna-se um ato de colonização. Todo mundo está sendo abrangido por esta significação, o antropoceno. E o antropoceno enquadra-se assim na casa grande, na casa do patrão. Como a poeta e ativista Audre Lorde disse, “a casa grande tem que ser desmantelada para todo mundo poder ser livre. Só que este desmantelamento nunca vai acontecer com as ferramentas do patrão”. Precisamos de novas ferramentas para desmantelar o antropoceno e nos libertar dessa narrativa opressiva que constrange as possibilidades de re-existência. Esta é a minha tese.

O vídeo “Benvindos ao Antropoceno” foi transmitido na abertura da Rio + 20 1 1 - O vídeo, com legendas em português, está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WPcyCIQciJk. Acesso em 26 de abril de 2021. . O encontro mundial sobre o clima, no qual todo mundo estava lá para discutir as políticas do clima, foi aberto por esse vídeo que explicava que havia o antropoceno, que dava a versão científica, portanto, o consenso científico, o que era considerado ponto de partida. Ninguém poderia discutir. Esse vídeo tem várias coisas para discutirmos. A primeira, é o uso da palavra “humanidade”, o uso da palavra “nós”. O que o vídeo descreve é uma humanidade homogênea. O que a voz diz é: “Vocês e eu, todos fazemos parte desse antropoceno. Bem-vindos ao antropoceno”. Então qual a ideia? De que nós todos estamos envolvidos da mesma forma, e nós todos somos responsáveis enquanto humanidade por essas alterações que causaram o antropoceno. Outra questão para questionar é a ciência e a tecnologia como forças que levaram a humanidade para o nível das forças geológicas. A humanidade, com a ciência e a tecnologia, conseguiu transformar o clima, a geologia. Isso é uma celebração de poder, porquê ao mesmo tempo em que esse poder pode ser destruidor, o poder da ciência e da tecnologia é também a salvação, o que nos permitirá sair dessa crise da mesma forma como entramos nela. E a terceira coisa é essa celebração do progresso da humanidade, em que são canceladas todas as violências, as diferenciações e o fato de se apresentar essa época dos últimos cinquenta anos como uma época em que 7 bilhões de pessoas atingiram um nível de vida maravilhoso. Apenas 1 bilhão de pessoas estão malnutridas, mas pronto. Valeu a pena, essa é a mensagem que nós ouvimos.

Isso nos mostra como esse conceito científico tem sido usado como nome, título de uma narrativa que é eco-modernizadora, mas também neocolonial e hegemônica, que representa a humanidade como uma força geológica. Mas essa narrativa não é fundamentalmente nova. Esse é só um novo capítulo de um discurso hegemônico, o discurso do crescimento econômico moderno que é a religião da nossa era. E essa narrativa do crescimento econômico moderno já existia e celebrava a ciência e tecnologia sem calcular os custos ambientais. Então a novidade deste capítulo é: temos custos ambientais, mas podemos resolver. Isso vai ser resolvido. Então esse conceito de antropoceno não questiona essa celebração do crescimento da produção material, produção de valor acrescentado, para além dos limites biofísicos dos recursos não renováveis, enquanto uma conquista indiscutível do engenho europeu, do homem branco, em nome da humanidade, para a vantagem da humanidade toda. Por isso é um discurso neocolonial. Em última análise essa conquista indiscutível, essa conquista histórica do homem branco se traduz em uma supremacia planetária, em uma justificativa da supremacia planetária do homem branco. Essa narrativa é agora rearticulada nesse novo mantra do crescimento verde. O crescimento não precisa ser questionado para se tornar verde.

Na perspectiva da Ecologia política, o antropoceno representa muito bem a ideologia do chamado pós-político. Essa perspectiva permite visibilizar como os fenômenos chamados de naturais são socialmente construídos e refletem assimetrias de poder. Nesse caso, chamar o antropoceno como tal significa invisibilizar o fato que não foi a humanidade toda a causadora das alterações climáticas, mas sim o sistema capitalista, racista, colonial, patriarcal, e especista (ou seja, assente na falta de respeito para as outras espécies vivas).

Qual a perspectiva da ecologia política feminista? O que o feminismo acrescenta para a ecologia política? A ideia é que é necessário desfazer esse conceito de antropoceno, mostrando como ele apresenta a narrativa do homem branco, uma narrativa machista e racista. Ou seja, essa narrativa é a história contada pelo patrão no sentido colonial, patriarcal, classista e especista desse termo. O chefe da fazenda, da fábrica, da empresa comercial, o dono de escravos, o detentor de autoridade legal sobre as mulheres, os animais e os sujeitos colonizados. Esse é o sujeito histórico que nos conta aquela história.

E será preciso, portanto, desconstruir essa narrativa e construir, ou melhor, deixar emergir, uma contra-narrativa, uma narrativa anti-patrão dessa época histórica. A história daqueles que não se identificam com o homem branco, nem com a ciência e a tecnologia da modernidade colonial capitalista. Essa outra narrativa, essa é a minha tese, será sempre na perspectiva do trabalho de reprodução e de cuidado, o que eu chamo de as “forças de reprodução”. Ou seja, apontando para a agência histórica daqueles sujeitos que através tanto das práticas cotidianas, quanto dos conhecimentos e da ação organizada, da ação política, cuidam das condições biofísicas para a reprodução humana e não humana e assim fazendo eles mantêm o mundo vivo.

Na sequência, vou falar sobre histórias do mundo do trabalho sobretudo do Século XX. São histórias que nos falam que o trabalho, tanto chamado de reprodução, o trabalho doméstico ou de subsistência, quanto o trabalho de produção (essa distinção entre produção e reprodução é, aliás, parte do problema), tem contribuído de forma organizada (porque todas essas imagens representam movimentos políticos) para a revolução ecológica. É o que a companheira estava dizendo, que as alternativas não estão no futuro, elas já fazem parte da nossa história, fazem parte da história que não é a do patrão, é essa outra história.

Minha primeira história é a do movimento do Green Belt (Cinto Verde) no Quênia que foi liderado pela cientista Wangari Maathai e recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Ela era uma cientista agrária que vinha de uma comunidade rural e que foi a primeira mulher da sua comunidade a ter acesso à educação e conseguir educação superior na ciência agrária. E ela entendeu que o empobrecimento da sua comunidade que estava acontecendo nos anos 1980 no Quênia tinha tudo a ver com a deflorestação do país e a degradação do solo que estavam sendo feitas pelas empresas multinacionais. Então ela iniciou esse movimento do Green Belt com mulheres de sua própria comunidade, mulheres que já não sabiam como alimentar suas famílias, seus filhos, porque a terra já não tinha capacidade para produzir os alimentos que elas tradicionalmente costumavam produzir. Então surgiu esse movimento de reflorestamento do solo que foi organizado pelas mulheres contra os poderes. Elas ocupavam o solo do seu próprio país com a plantação de árvores e foram perseguidas por todos os meios, foram agredidas pela polícia, foram encarceradas. Elas eram muitas e eram determinadas porque entenderam que as árvores e a floresta em pé eram a única forma de continuar sustentando as suas próprias comunidades. Elas faziam isso também em nome de seu país. E, afinal, essa luta ganhou e elas foram reconhecidas e conseguiram reflorestar muitas áreas. Tem florestas hoje no Quênia que foram plantadas nos anos 1980 por elas.

Minha segunda história é do movimento pela justiça ambiental nos EUA que começou com mulheres negras e latinas que lutavam pela saúde das próprias comunidades que estavam sendo ameaçadas pela toxicidade industrial. Porque essas comunidades, como acontece por todo o lado, tinham sido escolhidas para a localização de lixo tóxico e muitas outras coisas, que danificavam a saúde das pessoas e também que destruíam os solos e os recursos locais. Então elas é que começaram a se mobilizar contra isso apontando a gestão do lixo como forma de discriminação racial. E esta é uma luta que continua ainda, mas que conseguiu algumas reformas legislativas que foram importantes porque possibilitaram efetivamente outras comunidades fazerem esse questionamento contra empresas e estados. Isso nem sempre conduziu a uma vitória, mas foi muito importante, por exemplo, conseguir avançar a legislação do Super Fundo.

Minha terceira história é do Zé Cláudio Ribeiro da Silva e a Maria do Espírito Santo, no PAE Praialta Piranheira do Sul do Pará. Para mim, eles representam o movimento extrativista no Brasil que foi também uma luta muito importante e que tem possibilitado essas formas diferentes de produção e reprodução, essas formas autônomas do sistema capitalista. E de todas as dificuldades e violências das quais Zé Cláudio e Maria foram vítimas também. É uma história que começou nos anos 1980 e ainda é muito importante para esse país e para o mundo todo. Eu quando falo em outros contextos, vocês já conhecem muito bem essa história e eu não vou repeti-la aqui, mas quando falo na Europa e em outros países, eu sempre conto essa história para dizer: “Olha nós não precisamos inventar nada, outras formas de coexistir com a natureza e produzir e viver bem com a natureza já estão lá. Essas lutas já foram feitas, nós temos exemplos. O que precisamos é conhecer essas histórias”. E as pessoas ficam muito abertas em conhecer isso, porque essas histórias vocês não acham nos livros de textos, na educação formal, nas escolas e nas universidades. Então as pessoas crescem com a ideia de que não existem alternativas, que as alternativas teriam que ser inventadas.

A minha tese, o que eu estou tentando defender é que para a revolução ecológica, nós precisamos da união entre as forças de produção e de reprodução. E essa união tem que conduzir para mudar as relações, não só as relações de produção, mas também as relações de reprodução.

Para concluir, o problema com o conceito do antropoceno, é que ele não apenas invisibiliza as assimetrias, as diferenças de poder que estão bem enraizadas dentro da humanidade. Ele não só invisibiliza a violência escondida dentro do progresso e da modernidade, mas ele também invisibiliza a riqueza da diversidade e as potencialidades que estão incluídas dentro da humanidade. E, portanto, ao invisibilizar essas potencialidades diferentes e diversas, ele impossibilita os mundos possíveis, os ainda não da humanidade. A revolução ecológica não está apenas no futuro, mas sim no presente e na história vivenciada por inúmeros sujeitos de produção e reprodução que têm caminhado alternativas e que têm lutado por defender e avançá-las. Às vezes conseguindo, às vezes não. Sempre sendo alvo de opressão, silenciamento e violência pela mão do patrão. O papel da ecologia política enquanto prática de investigação militante é o de suportar e possibilitar a revolução ecológica. Isso começa por desfazer essa narrativa mestre do antropoceno e de possibilitar uma aliança, eu diria unidade, entre as forças de produção e de reprodução em um Horizonte de emancipação sociecológica.

Os horizontes são ecofeministas

Bernadete Ferreira nos fala sobre a vigência de um modelo de desenvolvimento que privilegia a monocultura e o agronegócio em contraponto ao modelo agroecológico das e dos camponeses que lutam, sem qualquer tipo de apoio, para preservar sementes crioulas, por maneiras de produção sem agrotóxicos, e pelo que ela chama de uma nova forma de desenvolvimento sustentável. E esse modelo sustentável incorpora e se constitui através da diversidade, através de uma concepção holística de que falar sobre meio ambiente é também falar das discussões que acontecem no campo sobre machismo, homofobia, intolerância, patriarcado, racismo, homofobia e xenofobia. Enquanto parte de uma religião de matriz africana, ela ressalta a conexão dessa forma de fé com a preservação ambiental para reafirmar a importância do respeito à diversidade socioambiental e à tolerância religiosa. Bernadete propicia uma homenagem coletiva à Makota Valdina, que, como ela, era também Ialorixá e ambientalista. Para Makota,

O Povo de Santo tem muito a contribuir com a humanidade. Quando lutamos para preservar o espaço do mato, aquele mato não vai servir só para quem é de Candomblé. Quando cuidamos da água, não cuidamos só para quem é de Candomblé. Quando a gente luta pelo ambiente e considerando o ambiente por uma forma muito mais ampla, não somente o ambiente natural mas, as relações, as interações entre as pessoas, a gente está lutando por uma paz no mundo. (...) Racismo e preconceito são problemas ambientais. Por que causam problemas nas interações humanas. (...) Como ter paz em uma sociedade racista, injusta, desigual, cheia de preconceitos, homofobia e fome? Isso, para mim, é falar de meio ambiente também.” (Makota Valdina, no documentário Jardim das Folhas Sagrada).

As práticas do Candomblé são uma “alternativa” que já existe no presente, como ressaltado por Ivonne Yanez. A partir da sua experiência em uma organização ecologista andina no Equador, ela diz que caímos comumente em algumas armadilhas quando discutimos as alternativas ao desenvolvimento, uma vez que há uma ideia muito forte de que alternativas são algo que precisamos inventar, quando na realidade elas já existem em todos os territórios: são as alternativas culturais de práticas como as do Candomblé, da pesca ou da agricultura. Fazendo um paralelo entre o extrativismo e violência contra as mulheres, Ivonne defende que a união das lutas ecologistas com as lutas feministas, articuladas em torno da ideia do direito de as comunidades dizerem não aos megaprojetos extrativistas, são um horizonte para onde temos que caminhar.

Stefania Barca chama nossa atenção para o fato de que precisamos de novas ferramentas para nos libertarmos da narrativa hegemônica, opressiva, eco-modernizadora, neocolonial, machista e racista do antropoceno que nos restringe as possibilidades de existência e resistência. A perspectiva da ecologia política feminista e uma nova visão do trabalho enquanto sujeito político de uma revolução ecológica global deixa emergir uma contra-narrativa na perspectiva de apontar para a agência histórica dos sujeitos que cuidam das condições biofísicas para a condição da reprodução humana e não humana. Sendo assim, lutas como as de Zé Cláudio e Maria, da classe trabalhadora e do ecofeminismo, pela autonomia e pelo bem comum constituem uma revolução ecológica por alternativas que estão presentes hoje e, apesar de serem alvo de opressão e silenciamento, devem ser ressaltadas. Stefania defende a ecologia política enquanto prática de investigação militante para possibilitar a revolução ecológica. Isso começa por desfazer a narrativa do antropoceno e por possibilitar a aliança entre as forças de produção e reprodução, a partir de uma centralidade da luta das mulheres, em um horizonte emancipatório.

A luta por condições de vida digna para todas e todos passa pela ética do cuidado, dos seres humanos e da natureza que fazemos parte. Em conjunto, a fala dessas três mulheres mostram que as experiências presentes e o horizonte de luta coletiva emancipatória pela defesa dos comuns e do meio ambiente possuem no movimento Ecofeminista uma de suas dimensões centrais.

Agradecimentos

A realização desta mesa de encerramento do III Congresso Latino-Americano de Ecologia Política contou com apoio de Capes e CNPQ. As editoras e o editor gostariam de agradecer à estudante Júlia Mota de Brito pela transcrição de parte do conteúdo da mesa e Giulia Armiero (giulia.armiero@gmail.com) pela tradução.

References

  • 1
    - O vídeo, com legendas em português, está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WPcyCIQciJk. Acesso em 26 de abril de 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2021
  • Aceito
    06 Set 2021
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaambienteesociedade@gmail.com