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O Ensino da Avaliação de Impacto Ambiental no Brasil: será só um ‘Faz de Conta’?

Resumo

O ensino da Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) é fundamental para sua prática efetiva. Entretanto, o tema ainda não foi suficientemente estudado. Nesse contexto, este artigo analisa o ensino da AIA no Brasil a partir dos planos de ensino de disciplinas que abordam AIA em cursos de Engenharia Ambiental, tendo como referência princípios de boas práticas, e propõe-se um protocolo de análise, categorizando o ensino da AIA em nove perfis. Os resultados mostram que o ensino da AIA está presente em todos os cursos avaliados. Porém, os perfis de ensino predominantes revelam uma visão limitada, não abordando o mínimo necessário para a compreensão da AIA como um instrumento de política ambiental. As fragilidades evidenciadas indicam que o ensino da AIA pode estar influenciando negativamente sua prática e vice-versa, criando um ciclo vicioso. Ressalta-se, assim, a urgência de melhoria no ensino da AIA no Brasil para contribuir para sua prática.

Palavras-chave:
Perfil de ensino; plano de ensino; Engenharia Ambiental; Licenciamento Ambiental

Abstract

Teaching Environmental Impact Assessment (EIA) is fundamental for EIA effective practice. Nevertheless, this topic has not been addressed sufficiently, yet. In this context, this paper analyzes EIA teaching in Brazil based on the curriculum of EIA courses within Environmental Engineering programs, considering best practice principles. In addition, we proposed an analytical framework that categorizes nine EIA teaching profiles. The results show that EIA teaching is present in all the programs assessed. However, the prevailing teaching profiles reveal a limited perspective of EIA, not addressing the minimum necessary for understanding EIA as an environmental policy instrument. The weaknesses highlighted indicate that EIA teaching may be negatively influencing EIA practice and vice versa, creating a vicious cycle. Thus, this highlights the urgency for improving EIA teaching in Brazil, which should contribute to Brazilian EIA practice.

Keywords:
Teaching profile; teaching curriculum; Environmental Engineering; Environmental Licensing

Resumen

La enseñanza de Evaluación de Impacto Ambiental (EIA) es fundamental para su práctica efectiva. Pero, el tema aún no ha sido suficientemente estudiado. Este artículo analiza la enseñanza brasileña de EIA a partir de los planes de enseñanza de disciplinas que abordan la EIA en las carreras de Ingeniería Ambiental, teniendo como referencia principios de buenas prácticas y propone un protocolo de análisis, categorizando la enseñanza en nueve perfiles. Los resultados muestran que la enseñanza de EIA está presente en todos cursos evaluados. Entretanto, los perfiles de enseñanza predominantes revelan una visión limitada, que no aborda el mínimo para la comprensión de EIA como herramienta de política ambiental. Las debilidades resaltadas indican que la enseñanza de EIA puede estar influyendo negativamente en la práctica de EIA y viceversa, creando un círculo vicioso. Esto pone de manifiesto la urgente necesidad de mejorar la enseñanza de EIA en Brasil para contribuir con su práctica.

Palabras-clave:
Perfil de enseñanza; plan de enseñanza; Ingeniería Ambiental; Licencia Ambiental

Introdução

Ensinar Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) não é uma tarefa trivial e ensiná-la para alunos de graduação pode ser um trabalho sisifiano, mais desafiador do que lidar com outros públicos, exigindo métodos e abordagens cuidadosamente elaborados (SÁNCHEZ, 2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.). Em parte, esse desafio está relacionado às habilidades necessárias para trabalhar com AIA, pois seu campo requer profissionais capazes de integrar as contribuições de uma equipe multidisciplinar (SÁNCHEZ, 2020). A alta qualidade das avaliações ambientais, por sua vez, requer praticantes especializados, com formação e treinamento adequados, além de experiência profissional (ENRÍQUEZ-DE-SALAMANCA, 2019ENRÍQUEZ-DE-SALAMANCA, Á. Environmental assessment: a third division subject at the university. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 37, n. 5, p. 452-454, 3 set. 2019.; SÁNCHEZ; MITCHELL, 2017). Alunos bem-preparados provavelmente serão capazes de desenvolver mais cedo e em maior profundidade as habilidades exigidas do que aqueles que têm deficiências de formação. Assim, espera-se que, ao formar bons profissionais de AIA, se evite a perpetuação de práticas ruins (SÁNCHEZ, 2010).

A origem da sistematização da AIA ocorreu nos Estados Unidos da América (EUA) por meio da aprovação da política de meio ambiente americana em 1969. Naquela época, a AIA não nasceu como um instrumento pronto, mas como uma ideia a ser desenvolvida (SÁNCHEZ, 2020SÁNCHEZ, L. E. Avaliação de Impacto Ambiental: conceitos e métodos. 3. ed. São Paulo: Oficina de Textos, 2020.). Desde então, foi institucionalizada em várias jurisdições, evoluindo conjuntamente com a preocupação com as questões ambientais, sendo internacionalmente estabelecida como um instrumento fundamental para a gestão ambiental (MORGAN, 2012ORGAN, R. K. Environmental impact assessment: the state of the art. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 30, n. 1, p. 5-14, mar. 2012.). O ensino de AIA seguiu um caminho similar: sua primeira menção ocorreu em 1972, também nos EUA, sendo que, em 1973, a AIA era ensinada no Canadá, Itália e África do Sul (SÁNCHEZ; MORRISON-SAUNDERS, 2010).

Pesquisas sobre o ensino de AIA foram realizadas em diferentes contextos, a exemplo dos trabalhos de Stelmack, Sinclair e Fitzpatrick (2005STELMACK, C. M.; SINCLAIR, A. J.; FITZPATRICK, P. An overview of the state of environmental assessment education at Canadian universities. International Journal of Sustainability in Higher Education, v. 6, n. 1, p. 36-53, mar. 2005.) no Canadá, Ramos, Cecílio e Melo (2008RAMOS, T. B.; CECÍLIO, T.; MELO, J. J. DE. Environmental Impact Assessment in higher education and training in Portugal. Journal of Cleaner Production, v. 16, n. 5, p. 639-645, mar. 2008.) em Portugal, Sánchez (2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.) no Brasil, Weiland (2012WEILAND, U. Teaching on Environmental Impact Assessment in geography reflecting demands on the working practice: a German case study. Journal of Environmental Assessment Policy and Management, v. 14, n. 03, p. 1250019, 30 set. 2012.) na Alemanha, Kabera (2017KABERA, T. Environmental impact assessment in higher education institutions in East Africa: the case of Rwanda. Environmental Science and Pollution Research, v. 24, n. 8, p. 7852-7864, 8 mar. 2017.) em Ruanda e Fischer et al. (2013FISCHER, T. B.; JHA-THAKUR, U. Environmental Assessment and Management related Master level degree programmes in the EU: baseline, trends, challenges and opportunities. Journal of Environmental Assessment Policy and Management, v. 15, n. 04, p. 1350020, 2 dez. 2013.) no Paquistão. Outros trabalhos avaliaram contextos mais amplos, como o de Sánchez e Morrison-Saunders (2010), que analisaram o ensino de AIA na graduação e pós-graduação em 18 países, os de Gazzola (2008GAZZOLA, P. Trends in education in environmental assessment: a comparative analysis of European EA-related Master programmes. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 26, n. 2, p. 148-158, jun. 2008.) e Fischer e Jha-Thakur (2013), que pesquisaram o ensino de AIA na Europa, e o trabalho de Ramos et al. (2015), que estudou o ensino de Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) no Brasil e em Portugal.

Não há, porém, um padrão metodológico dentre as diferentes pesquisas, dificultando uma comparação mais específica dos resultados. Nesse sentido, o estabelecimento dos princípios internacionais de boas práticas de ensino de AIA é uma discussão recente na literatura internacional (MORRISON-SAUNDERS; POPE; JONES, 2020MORRISON-SAUNDERS, A.; POPE, J.; JONES, M. Establishing international best practice principles for impact assessment teaching and training. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 38, n. 4, p. 336-353, 3 jul. 2020.). Tais princípios podem ser sistematicamente aplicados na prática do ensino de AIA (ALMEIDA; MALVESTIO; VERONEZ, 2021ALMEIDA, M. R. R.; MALVESTIO, A. C.; VERONEZ, F. A. Teaching impact assessment: applying indicators of best practice principles to Brazil. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 39, p. 1-11, 2021.), além de direcionar o procedimento metodológico de pesquisas futuras, permitindo a comparação e o fortalecimento do ensino de AIA.

Outra característica das pesquisas anteriormente citadas é que, em geral, se baseiam em percepções - coletadas por meio de questionários ou entrevistas - ou na descrição de cursos. Destaca-se, assim, uma lacuna relacionada à necessidade de conhecer, de forma mais aprofundada, o que os cursos de AIA estabelecem em seus planos de ensino. O ensino de AIA ainda é, então, um tema que não foi suficientemente abordado (FISCHER; JHA-THAKUR, 2013FISCHER, T. B.; JHA-THAKUR, U. Environmental Assessment and Management related Master level degree programmes in the EU: baseline, trends, challenges and opportunities. Journal of Environmental Assessment Policy and Management, v. 15, n. 04, p. 1350020, 2 dez. 2013.; KABERA, 2017KABERA, T. Environmental impact assessment in higher education institutions in East Africa: the case of Rwanda. Environmental Science and Pollution Research, v. 24, n. 8, p. 7852-7864, 8 mar. 2017.).

Neste contexto, esta pesquisa contribui para preencher essa lacuna analisando o ensino de AIA no Brasil por meio dos planos de ensino dos cursos de Engenharia Ambiental do país, tendo como referência os princípios internacionais de boas práticas para o conteúdo do ensino de AIA (MORRISON-SAUNDERS; POPE; JONES, 2020MORRISON-SAUNDERS, A.; POPE, J.; JONES, M. Establishing international best practice principles for impact assessment teaching and training. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 38, n. 4, p. 336-353, 3 jul. 2020.). O foco nesses cursos se deu pelo fato de os profissionais graduados nessa área desempenharem papel relevante na prática da AIA no Brasil e no mundo, frequentemente atuando como elaboradores e até coordenando as avaliações (RAMOS; CECÍLIO; MELO, 2008RAMOS, T. B.; CECÍLIO, T.; MELO, J. J. DE. Environmental Impact Assessment in higher education and training in Portugal. Journal of Cleaner Production, v. 16, n. 5, p. 639-645, mar. 2008.; SÁNCHEZ, 2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.; SÁNCHEZ; MORRISON-SAUNDERS, 2010).

Além disso, existe uma orientação do Ministério da Educação (MEC) de se contemplar o ensino de AIA nesses cursos (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 1994). Destaca-se, porém, que embora haja uma justificativa para o foco desta pesquisa em cursos de graduação em Engenharia Ambiental, o ensino de AIA não é exclusivo a esse curso, podendo estar presente em outros que compõem o vasto campo da AIA, como, por exemplo, Engenharia Florestal, Geografia, Gestão Ambiental e Biologia. No entanto, um levantamento ou uma lista completa e oficial dos cursos de graduação e pós-graduação que ensinam AIA não é conhecida.

O artigo é dividido em cinco seções. Após a introdução, a segunda seção apresenta a metodologia, indicando como foram realizados o levantamento, a seleção e a análise dos documentos. A seguir, apresenta-se o protocolo de análise de conteúdo dos planos de ensino. Por fim, os resultados e discussão e as conclusões são apresentados.

Metodologia

Este trabalho envolveu análise documental e de conteúdo, além de proposição e aplicação de um protocolo de análise do ensino de AIA nos cursos de Engenharia Ambiental no Brasil.

As análises documental e de conteúdo tiveram como foco os Projetos Pedagógicos do Curso (PPC) de cursos de graduação em Engenharia Ambiental em funcionamento no Brasil. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2017), o PPC é um documento orientador de um curso, que traduz as políticas acadêmicas institucionais com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais. No PPC estão reunidas as ementas e demais informações de todas as disciplinas oferecidas pelo curso, o que possibilitou identificar aquelas que, de alguma forma, ensinam AIA e o modo como o fazem. A partir dos PPC analisados, o protocolo de análise foi desenvolvido com o objetivo de identificar e classificar os diferentes perfis de ensino de AIA.

Levantamento dos cursos

O levantamento dos cursos de Engenharia Ambiental do país foi realizado na página eletrônica do MEC, onde é disponibilizado o Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior (http://emec.mec.gov.br/). O levantamento ocorreu em 04/02/2020, incluindo apenas os cursos iniciados e em atividade. Para abranger as variações de nomes para o curso, a busca utilizou três arranjos: ‘engenharia ambiental’, ‘engenharia sanitária e ambiental’ e ‘engenharia sanitaria e ambiental’ (sem acento). Assim, na etapa de levantamento, foram identificados 383 cursos de graduação em atividade, presenciais ou à distância.

A busca pelos PPC dos cursos identificados no levantamento ocorreu entre 04/02 e 03/03/2020 e foi realizada em 2 passos: na ferramenta de busca do Google (https://www.google.com/) utilizando os termos ‘Engenharia Ambiental’ e ‘Projeto Pedagógico do Curso’; e nos websites das Instituições de Ensino Superior responsáveis pelo oferecimento dos cursos. Quando existia mais de um PPC para o mesmo curso, foi selecionado o mais atual. Dos 383 cursos identificados, apenas 105 possuíam o PPC disponível na Internet. Vale ressaltar que a busca exclusivamente por meio da Internet tem limitações, visto que depende da existência de websites que contenham as informações dos cursos, do tipo de informação publicada e da frequência com que as informações são atualizadas (GAZZOLA, 2008GAZZOLA, P. Trends in education in environmental assessment: a comparative analysis of European EA-related Master programmes. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 26, n. 2, p. 148-158, jun. 2008.). No entanto, essa forma de busca permitiu o alcance de cursos de todas as regiões do país.

Durante a análise dos documentos, 17 PPC foram descartados por não apresentarem o detalhamento das disciplinas do curso, impossibilitando uma análise de seu conteúdo. Assim, os PPC de 88 cursos seguiram para análises documental e de conteúdo.

Análise documental e de conteúdo

A partir dos PPC, levantou-se as seguintes informações: nome do curso, ano do PPC, nome(s) da(s) disciplina(s) que ensina(m) AIA, caráter obrigatório ou optativo da(s) disciplina(s), período em que a(s) disciplina(s) é(são) oferecida(s) e carga horária (total, teórica e prática). Estes dados, além de serem usados para avaliação das disciplinas que ensinam AIA, também permitiram uma caracterização geral dos cursos envolvidos nesta pesquisa.

A identificação das disciplinas que ensinam AIA foi feita por meio da análise das matrizes curriculares dos cursos e de busca pelos termos ‘impacto’ e ‘licenciamento’. O uso do segundo termo tem relação com o contexto brasileiro, visto que a prática da AIA é integrada ao Licenciamento Ambiental (LA), sendo a AIA requerida nos processos de LA de projetos com potencial de causar significativa degradação ambiental (CONAMA, 1988; 1997).

Para cada disciplina que ensina AIA, foi realizada a identificação e a leitura do conteúdo referente a: objetivo, ementa, conteúdo programático e bibliografia. Optou-se por realizar essa análise apenas para as disciplinas de caráter obrigatório por se entender que são elas que representam a formação de todos os alunos do curso. Cabe destacar também que, em alguns casos, os PPC não continham todos os itens nas fichas das disciplinas. Mas, em todos os casos, havia parte dessas informações, sendo a análise baseada nos conteúdos disponíveis.

A partir da leitura do conteúdo desses itens, foram identificadas categorias e subcategorias para a análise de conteúdo. Essa identificação se deu posteriormente à leitura das informações analisadas e foi feita a partir da observação de características e elementos recorrentes nos PPC, bem como a partir da ausência de elementos importantes, tendo como referência os princípios de boas práticas para o ensino de AIA propostos por Morrison-Saunders, Pope e Jones (2020). Esse processo permitiu uma visão geral do ensino de AIA no Brasil e a proposição de um protocolo de análise, com uma combinação de categorias e subcategorias, resultando na classificação dos cursos em perfis de ensino de AIA, conforme apresentado na próxima seção.

Protocolo da análise de conteúdo

A partir da análise do conteúdo das disciplinas obrigatórias que ensinam AIA e tendo como objetivo compreender de que forma a AIA é ensinada nos cursos de graduação de Engenharia Ambiental do Brasil, foi possível classificá-los em relação a três categorias: escopo, abordagem e relação carga horária/conteúdo (Quadro 1). Essas categorias e as subcategorias associadas foram pensadas de modo a propiciar uma melhor organização e entendimento das informações que estavam presentes nas descrições das disciplinas que ensinam AIA nos cursos analisados.

Em relação à categoria escopo, avaliou-se se de fato o foco das disciplinas é no ensino da AIA. Ou seja, se o ensino compreende a AIA como um conteúdo específico. Nos cursos classificados como de escopo difuso não há disciplina específica que ensina AIA (mesmo que recebam esse nome). A AIA aparece apenas como um tópico de disciplinas que abrangem uma variedade de instrumentos, ou em uma disciplina com objetivos e conteúdo genéricos ou, ainda, é mencionada no nome ou na descrição da disciplina, mas o conteúdo não é correspondente a este instrumento de acordo com suas boas práticas.

Dentre os cursos avaliados como de escopo focado na AIA, além de disciplinas específicas de AIA, também houve casos em que uma mesma disciplina aborda outros instrumentos, porém, o conteúdo de AIA é claramente apresentado e individualizado, evidenciando-se que a disciplina proporciona o ensino da AIA como um conteúdo específico.

A segunda categoria analisada se refere à abordagem adotada. Inicialmente, três subcategorias foram identificadas: reducionista, essencialista e ampla. Na abordagem reducionista, o ensino é direcionado à aplicação e elaboração do Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) e/ou focado no LA, sem abordar todo o conteúdo essencial para a compreensão da AIA como um processo e como um instrumento de política ambiental. Nessa abordagem, a disciplina geralmente inclui o ensino de metodologias de avaliação de impactos, o conteúdo do EIA/Rima e a legislação, mas não contempla o ensino do processo de AIA ou, ainda, o ensino de todas as etapas desse processo. Portanto, apresentando uma visão parcial da AIA.

Quadro 1
Categorias e subcategorias da análise de conteúdo dos PPC e suas descrições

Na abordagem essencialista, as disciplinas tratam do conteúdo essencial para a compreensão da AIA como um processo e instrumento de política ambiental. Como essencial, entendeu-se que seria necessário abordar o ensino das etapas da AIA e/ou evidenciar que ela é compreendida e ensinada como um processo (MORRISON-SAUNDERS; POPE; JONES, 2020MORRISON-SAUNDERS, A.; POPE, J.; JONES, M. Establishing international best practice principles for impact assessment teaching and training. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 38, n. 4, p. 336-353, 3 jul. 2020.). Porém, vale destacar que este conteúdo essencial não representa um ‘conteúdo ideal’, mas apenas o mínimo necessário, considerando o conceito e fundamentos da AIA (IAIA; IEA, 1999).

A terceira abordagem identificada é a ampla, em que, além do conteúdo essencial para a compreensão do instrumento, também inclui elementos de boas práticas, como a relação entre AIA e sustentabilidade, o estudo de impactos cumulativos, o estudo de alternativas e a AAE. Apesar de a avaliação de alternativas e de impactos cumulativos fazerem parte do conteúdo obrigatório do EIA segundo a legislação brasileira (CONAMA, 1986), essas avaliações não são geralmente apresentadas pela literatura como uma etapa da AIA (GLASSON; THERIVEL; CHADWICK, 2012GLASSON, J.; THERIVEL, R.; CHADWICK, A. Introduction to Environmental Impact Assessment. 4th ed. London, Routledge, 2012.; IAIA; IEA, 1999). Por este motivo, a menção específica a esses tópicos nos PPC foi entendida como elemento de boa prática e não como parte do conteúdo essencial da AIA. Ressalta-se que a literatura de AIA menciona uma série de outros elementos de boas práticas (ver as publicações da série Princípios de Boas práticas Internacionais da IAIA - https://www.iaia.org/publications.php). Portanto, para a aplicação deste protocolo em outros contextos, outros elementos podem ser considerados. Similar à abordagem essencialista, a ampla também não reflete o ‘conteúdo ideal’ para o ensino da AIA, mas sim representa um avanço em relação à abordagem essencialista.

A fim de complementar o protocolo de análise, uma quarta subcategoria foi incluída, referindo-se ao ‘conteúdo ideal’ para o ensino da AIA. Considerou-se como ideal o ensino que contemple todos os princípios de boas práticas para o conteúdo do ensino de AIA propostos por Morrison-Saunders, Pope e Jones (2020).

A terceira categoria de análise trata da relação entre carga horária destinada ao ensino de AIA e o conteúdo abordado e foi avaliada como sendo adequada ou não adequada. Destaca-se que a avaliação dessa relação foi qualitativa e teve como referência a experiência das autoras deste trabalho com o ensino de AIA em cursos de graduação, além das características do conjunto de cursos analisados. Assim, esta categorização teve como principal propósito identificar casos em que a incompatibilidade entre carga horária e conteúdo era evidente, por exemplo, situações em que se pretende ensinar todo o conteúdo essencial em menos de 45 horas.

A fim de alcançar uma avaliação geral dos cursos, as três categorias de avaliação (e subcategorias associadas) foram combinadas conforme a Figura 1, sendo traçados nove possíveis perfis de ensino da AIA:

  • Faz de conta: o ensino não é focado em AIA, ou seja, não há conteúdo específico de AIA. O ensino é associado a uma mixórdia de outros conceitos e, em alguns casos, confundido com o ensino de outros conteúdos.

  • Mecanizado: o ensino é voltado à elaboração de EIA/Rima e aplicação do LA, mas não contempla o conteúdo mínimo necessário (essencial) para o ensino de AIA.

  • Mecanizado fast track: o ensino é similar ao perfil Mecanizado, mas com carga horária incompatível para o conteúdo proposto.

  • Suficiente: o ensino trata a AIA como um conteúdo específico (comumente havendo disciplina específica) e abrange o conteúdo considerado como essencial (conteúdo mínimo que permite entender a AIA como um processo). Geralmente, também se atenta para o caráter multidisciplinar e participativo da AIA.

  • Suficiente express: o ensino é similar ao perfil Suficiente, mas com carga horária incompatível para o conteúdo proposto.

  • Plus: além das características do perfil de ensino Suficiente, também inclui em seu conteúdo um ou mais elementos de boas práticas, como sustentabilidade, impactos cumulativos, estudo de alternativas e AAE.

  • Plus express: o ensino é similar ao perfil Plus, mas com carga horária incompatível para o conteúdo proposto.

  • Power: o ensino contempla todos os princípios de boas práticas para o conteúdo do ensino de AIA propostos por Morrison-Saunders, Pope e Jones (2020).

  • Power express: o ensino é similar ao perfil Power, mas com carga horária incompatível para o conteúdo proposto.

Figura 1
Fluxograma para a categorização dos perfis de ensino a partir das categorias escopo, abordagem e relação carga horária/conteúdo

Resgatando a pluralidade dos cursos que ensinam AIA, destaca-se que, apesar de esses perfis terem sido identificados a partir dos PPC de cursos de Engenharia Ambiental no Brasil, este protocolo também pode ser utilizado para a avaliação do ensino de AIA em outros cursos de graduação, técnicos, pós-graduação ou até de treinamento profissional do país ou em outros países.

Resultados e discussão

Os resultados estão divididos em duas partes: apresentação de uma caracterização geral dos cursos e disciplinas analisados e, em seguida, os resultados da aplicação do protocolo de análise para avaliação do ensino de AIA.

Caracterização geral dos cursos e disciplinas

Foram identificados 383 cursos de Engenharia Ambiental iniciados e em atividade no Brasil no início de 2020. Desses, apenas 88 (23%) apresentaram informações que permitiram sua análise nesta pesquisa. A amostra não tem a função de ter representatividade estatística, mas constitui todos os cursos cujos PPC estavam disponibilizados eletronicamente. Na Tabela 1 são apresentadas as variações de nomes identificadas, sendo os mais comuns: Engenharia Ambiental e Sanitária, Engenharia Ambiental e Engenharia Sanitária e Ambiental.

Tabela 1
Nomes e quantidade de cursos de Engenharia Ambiental identificados no Brasil e quantidade de cursos analisados nesta pesquisa

As informações a seguir são focadas nos 88 cursos analisados (Figura 2). A Figura 2A representa o ano de publicação dos PPC, que, em sua maioria, são recentes (2015-2019).

Figura 2
Informações sobre os cursos analisados. (A) Distribuição dos cursos por ano de publicação do PPC. (B) Quantidade de disciplinas que ensinam AIA segundo o nome da disciplina. (C) Distribuição das disciplinas que ensinam AIA segundo a etapa do curso em que são ofertadas

Em todos os cursos analisados foi identificada alguma disciplina obrigatória que ensina AIA, sendo: 58 cursos com 1 disciplina obrigatória, 26 cursos com duas disciplinas obrigatórias e 4 cursos com 3 disciplinas obrigatórias. Pode-se afirmar, então, que a presença do ensino de AIA em cursos de Engenharia Ambiental no Brasil está bem estabelecida. Essa presença na forma de disciplina obrigatória é importante porque situar a AIA somente como disciplina optativa teria implicações negativas para sua função como uma ferramenta de desenvolvimento sustentável (STELMACK; SINCLAIR; FITZPATRICK, 2005STELMACK, C. M.; SINCLAIR, A. J.; FITZPATRICK, P. An overview of the state of environmental assessment education at Canadian universities. International Journal of Sustainability in Higher Education, v. 6, n. 1, p. 36-53, mar. 2005.). Internacionalmente, muitos cursos de Engenharia Ambiental também incluem disciplinas obrigatórias sobre AIA na graduação e optativas na pós-graduação (RAMOS; CECÍLIO; MELO, 2008RAMOS, T. B.; CECÍLIO, T.; MELO, J. J. DE. Environmental Impact Assessment in higher education and training in Portugal. Journal of Cleaner Production, v. 16, n. 5, p. 639-645, mar. 2008.; SMITH; BISWAS, 2002SMITH, D. W.; BISWAS, N. Environmental engineering education in Canada. Journal of Environmental Engineering and Science, v. 1, n. 1, p. 1-7, fev. 2002.).

Foram identificadas 122 disciplinas obrigatórias que ensinam AIA de alguma forma nos 88 cursos analisados, sendo a maior parte (54) denominada ‘Avaliação de impactos ambientais’ (Figura 2B). Também foram identificadas outras disciplinas que incluíam o ensino de AIA como, por exemplo, ‘Licenciamento ambiental’ (12) e ‘Gestão ambiental’ (3). Como as variações de nomenclatura foram numerosas, os nomes de disciplinas que apareceram apenas uma ou duas vezes foram agrupados em ‘Outros’, englobando 28 variações. Dentre estas variações, encontram-se disciplinas que agregam o ensino de AIA com outras áreas ou instrumentos, como ‘Gestão e Planejamento Ambiental’, ‘Avaliação de impactos ambientais e Recuperação de áreas degradadas’ e ‘Auditoria ambiental’. Também foram identificados nomes mais abrangentes, como ‘Análise ambiental’, ‘Estudos ambientais’, ‘Projetos ambientais’ e ‘Estudo de caso em engenharia sanitária e ambiental’.

Resultado semelhante foi encontrado por Sánchez e Morrison-Saunders (2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.): o nome ‘Environmental impact assessment’ foi o mais frequente (presente em 14 respostas de 32 respondentes originários de 18 países), apesar de também haver uma grande variabilidade de outros nomes. Cabe destacar que esses resultados são um alerta de que a AIA pode estar sendo confundida com outras áreas e com o próprio EIA. Esse aspecto é discutido na próxima seção.

As disciplinas de AIA foram mais frequentemente oferecidas no 4° e 5° ano dos cursos de graduação (Figura 2C), se assemelhando aos resultados do Canadá (STELMACK; SINCLAIR; FITZPATRICK, 2005STELMACK, C. M.; SINCLAIR, A. J.; FITZPATRICK, P. An overview of the state of environmental assessment education at Canadian universities. International Journal of Sustainability in Higher Education, v. 6, n. 1, p. 36-53, mar. 2005.) e de Ruanda (KABERA, 2017KABERA, T. Environmental impact assessment in higher education institutions in East Africa: the case of Rwanda. Environmental Science and Pollution Research, v. 24, n. 8, p. 7852-7864, 8 mar. 2017.), onde as disciplinas de AIA eram geralmente oferecidas no 3° ou 4° ano da graduação. Cabe destacar que, como foram analisados cursos anuais e semestrais, para comparação das informações houve a padronização para o ano de curso (1° e 2° períodos - 1° ano; 3° e 4° períodos - 2° ano; e assim sucessivamente).

Em relação à bibliografia das disciplinas, em alguns casos, ela era dividida em básica e complementar, em outros, não havia divisão; e, em 12 casos, estava ausente. O número de referências e os títulos foram bastante variados. Três títulos de livros em português, em suas diferentes edições, tiveram destaque: ‘Avaliação de Impacto Ambiental: conceitos e métodos’ (SÁNCHEZ, 2020SÁNCHEZ, L. E. Avaliação de Impacto Ambiental: conceitos e métodos. 3. ed. São Paulo: Oficina de Textos, 2020.), ‘Avaliação e Perícia Ambiental’ (CUNHA; GUERRA, 2004CUNHA, S.; GUERRA, A. J. Avaliação e Perícia Ambiental. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.) e ‘Impactos ambientais urbanos no Brasil’ (GUERRA; CUNHA, 2001). Esses títulos apareceram, respectivamente, 69, 37 e 35 vezes dentre as 122 disciplinas analisadas. A referência bibliográfica mais utilizada foi a mesma identificada por Sánchez (2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.). Vale apontar que bons livros-textos foram considerados como necessários no ensino de AIA por dois terços dos entrevistados por Stelmack, Sinclair e Fitzpatrick (2005STELMACK, C. M.; SINCLAIR, A. J.; FITZPATRICK, P. An overview of the state of environmental assessment education at Canadian universities. International Journal of Sustainability in Higher Education, v. 6, n. 1, p. 36-53, mar. 2005.) e por todos os entrevistados por Kabera (2017KABERA, T. Environmental impact assessment in higher education institutions in East Africa: the case of Rwanda. Environmental Science and Pollution Research, v. 24, n. 8, p. 7852-7864, 8 mar. 2017.). Além disso, Sánchez e Morrison-Saunders (2010) citam que 53% dos educadores que participaram da sua pesquisa disseram adotar um livro didático.

Também estavam presentes na bibliografia legislações e guias produzidos por órgãos ambientais e outras organizações envolvidas com a AIA. Este resultado é parecido com Kabera (2017KABERA, T. Environmental impact assessment in higher education institutions in East Africa: the case of Rwanda. Environmental Science and Pollution Research, v. 24, n. 8, p. 7852-7864, 8 mar. 2017.), que cita que o próximo recurso mais popular depois dos livros são documentos governamentais, como diretrizes, manuais ou legislações. Por outro lado, foram raros os casos de adoção de referências internacionais e artigos, diferindo da prática internacional. A integração entre ensino e pesquisa é uma boa prática extremamente importante para o ensino de AIA, devendo os estudantes estarem envolvidos com a pesquisa da área (MORRISON-SAUNDERS; POPE; JONES, 2020MORRISON-SAUNDERS, A.; POPE, J.; JONES, M. Establishing international best practice principles for impact assessment teaching and training. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 38, n. 4, p. 336-353, 3 jul. 2020.). Ainda, o uso de artigos como bibliografia em disciplinas de AIA é difundido no contexto internacional, sugerindo que a pesquisa é uma importante fonte de conhecimento para o seu ensino (SÁNCHEZ; MORRISON-SAUNDERS, 2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.).

Quanto à carga horária, nesta pesquisa, não foi possível estabelecer uma média para as disciplinas, uma vez que, em alguns casos, o ensino de AIA era compartilhado com o ensino de outras temáticas e, em outros, o PPC não deixava claro se a unidade era hora (h) ou hora-aula (h/aula). Porém, foi possível observar uma variabilidade de situações, com disciplinas de 30h até 136h/aula. A literatura também retrata uma gama considerável de variação da carga horária para o ensino de AIA. Por exemplo, Ramos, Cecílio e Melo (2008RAMOS, T. B.; CECÍLIO, T.; MELO, J. J. DE. Environmental Impact Assessment in higher education and training in Portugal. Journal of Cleaner Production, v. 16, n. 5, p. 639-645, mar. 2008.) afirmam que a carga horária da maioria dos cursos de AIA na graduação em Portugal varia de 4 a 5h/semana; Sánchez (2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.) relata que sua disciplina tem um total de 64h durante dois semestres e Sánchez e Morrison-Saunders (2010) identificaram a carga horária de 36h como a mais reportada.

Dentre os 88 cursos analisados, 70% (62) apresentaram indícios de ensino da prática da AIA, seja por meio da divisão da carga horária em teórica e prática ou por incluírem o estudo da sua prática (por exemplo, estudo de caso). A integração entre teoria e prática é considerada como um princípio de boa prática de ensino de AIA (MORRISON-SAUNDERS; POPE; JONES, 2020MORRISON-SAUNDERS, A.; POPE, J.; JONES, M. Establishing international best practice principles for impact assessment teaching and training. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 38, n. 4, p. 336-353, 3 jul. 2020.).

Perfis dos cursos

A partir do conteúdo dos PPC e aplicação do protocolo de análise, cada um dos 88 cursos foi classificado em um perfil (Figura 3).

O ensino de AIA foi classificado no perfil Faz de conta em 15 cursos (17%). A principal característica desse perfil é confundir a AIA com outros instrumentos de gestão e política ambiental. Entre os instrumentos confundidos com a AIA estão: análise de risco, auditoria ambiental, indicadores ambientais, sistema de gestão ambiental, certificação ISO 14000, avaliação do ciclo de vida, recuperação de área degradada e legislação ambiental. Em alguns casos, até mesmo os nomes das disciplinas levam a esta confusão (Figura 2B).

Figura 3
Distribuição dos cursos segundo seu enquadramento nos perfis de ensino

Apesar de a AIA poder se associar ou integrar a outros instrumentos de gestão e política ambiental, visto que os diferentes instrumentos contribuem entre si (FISCHER; JHA-THAKUR, 2013FISCHER, T. B.; JHA-THAKUR, U. Environmental Assessment and Management related Master level degree programmes in the EU: baseline, trends, challenges and opportunities. Journal of Environmental Assessment Policy and Management, v. 15, n. 04, p. 1350020, 2 dez. 2013.), é preciso reconhecer sua individualidade e especificidade em relação a suas funções, objetivos e procedimentos. Sem esse conhecimento, corre-se o risco de descaracterizar o instrumento. No contexto internacional, a AIA geralmente é ensinada como uma disciplina específica (SÁNCHEZ; MORRISON-SAUNDERS, 2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.). Assim, talvez a principal implicação de um ensino Faz de conta seja não capacitar os profissionais para praticá-la de forma adequada. Um exemplo deste perfil de ensino pode ser observado a seguir, evidenciando que ele não é focado em AIA, sendo parte de seu conteúdo voltado para outros assuntos.

EMENTA: Licenças ambientais. Estudos de Impactos Ambientais. Métodos de Avaliação de Impactos Ambientais. Certificação ISO 14000. Sistemas de Gestão Ambiental. Auditorias Ambientais. Avaliação do Ciclo de Vida e Rotulagem Ambiental (PPC 3).

O perfil de ensino mais recorrente foi o Mecanizado, 55 cursos (62%), além de outros sete cursos com perfil Mecanizado fast track (8%). A principal característica do ensino Mecanizado é seu foco na elaboração de EIA/Rima e/ou no LA, o que não é o suficiente para entender a AIA como um instrumento de política ambiental. Geralmente, o curso possui disciplina específica de AIA, mas seu foco é apresentar as normas e regulamentos associados ao processo de LA e ensinar métodos e ferramentas práticas aplicadas na elaboração dos estudos ambientais. Porém, falha em abordar as outras etapas que compõem o processo de AIA (por exemplo, escopo, análise técnica, acompanhamento). Ou seja, assume uma abordagem reducionista em relação ao conteúdo ensinado. Um exemplo de curso com este perfil é o curso referente ao PPC 19:

EMENTA: Conceitos fundamentais. Documentos para licenciamento ambiental. Evolução das metodologias de avaliação de impactos ambientais. Metodologias para identificação. Descrição, qualificação e quantificação de impactos ambientais. Aplicação das técnicas de avaliação de impactos ambientais em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Instrumentos de avaliação de impactos ambientais: EIA, RIMA, PCA, RCA.

Vale destacar que o ensino dos métodos e ferramentas de AIA e da legislação local é muito importante e também está presente em outros contextos de ensino de AIA (KABERA, 2017KABERA, T. Environmental impact assessment in higher education institutions in East Africa: the case of Rwanda. Environmental Science and Pollution Research, v. 24, n. 8, p. 7852-7864, 8 mar. 2017.; MORRISON-SAUNDERS; POPE; JONES, 2020MORRISON-SAUNDERS, A.; POPE, J.; JONES, M. Establishing international best practice principles for impact assessment teaching and training. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 38, n. 4, p. 336-353, 3 jul. 2020.; RAMOS; CECÍLIO; MELO, 2008RAMOS, T. B.; CECÍLIO, T.; MELO, J. J. DE. Environmental Impact Assessment in higher education and training in Portugal. Journal of Cleaner Production, v. 16, n. 5, p. 639-645, mar. 2008.; STELMACK; SINCLAIR; FITZPATRICK, 2005STELMACK, C. M.; SINCLAIR, A. J.; FITZPATRICK, P. An overview of the state of environmental assessment education at Canadian universities. International Journal of Sustainability in Higher Education, v. 6, n. 1, p. 36-53, mar. 2005.). No entanto, esse tipo de abordagem passa a ser um problema quando se limita ao ensino desses aspectos práticos utilizados na elaboração de estudos, descaracterizando a AIA. Assim, a principal implicação do perfil Mecanizado é não conseguir ensinar AIA como um processo, reduzindo-a ou confundindo-a com o estudo ambiental.

Ser um processo é um dos princípios da AIA (IAIA; IEA, 1999) e a importância de evidenciar esse caráter processual no seu ensino foi indicada, por exemplo, por Sánchez (2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.), sendo uma prática observada em diferentes contextos (SÁNCHEZ; MORRISON-SAUNDERS, 2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.; WEILAND, 2012WEILAND, U. Teaching on Environmental Impact Assessment in geography reflecting demands on the working practice: a German case study. Journal of Environmental Assessment Policy and Management, v. 14, n. 03, p. 1250019, 30 set. 2012.). Nesse aspecto, a maior parte dos cursos analisados neste trabalho se distancia dos princípios da AIA e da prática internacional do ensino de AIA.

A compreensão limitada da AIA e sua confusão com o EIA no Brasil já foi observada em outros estudos. Para Montaño e Veronez (2018MONTAÑO, M.; VERONEZ, F. Perception and discourse analysis of EIA practice. 38 Annual Conference of the International Association for Impact Assessment. Anais...Durban, South Africa: 2018.), existe uma compreensão turva de analistas ambientais em relação ao processo de AIA no Brasil que, muitas vezes, é confundido como parte do EIA (e não o contrário). Essa confusão parece estar relacionada com o fato de que no Brasil a AIA foi regulamentada de forma integrada ao processo de LA, bem como pelo fato de a atual regulamentação legal do sistema AIA/LA não mencionar explicitamente o processo de AIA, mas apenas que o EIA é requerido em processos de LA de empreendimentos capazes de causar significativa degradação ambiental (CONAMA, 1988; 1997).

A literatura também evidencia a baixa efetividade de diferentes etapas que compõem o processo de AIA no Brasil, em especial a definição do escopo e participação pública (ALMEIDA; MONTAÑO, 2017ALMEIDA, M. R. R.; MONTAÑO, M. A Efetividade dos Sistemas de Avaliação de Impacto Ambiental nos Estados de São Paulo e Minas Gerais. Ambiente & Sociedade, v. XX, n. 2, p. 79-106, 2017.; DUARTE; DIBO; SÁNCHEZ, 2017SÁNCHEZ, L. E.; MITCHELL, R. Conceptualizing impact assessment as a learning process. Environmental Impact Assessment Review, v. 62, p. 195-204, jan. 2017.), indicando, de certa forma, seu negligenciamento. Parece haver, então, forte influência da prática brasileira (grande foco para o EIA) nos cursos enquadrados no perfil de ensino Mecanizado, o que pode ser um indicativo de que o ensino de AIA está mais preocupado em ensinar a elaborar estudos ambientais do que propriamente ensinar a função, etapas e objetivos da AIA. Essa forte influência da prática no ensino de AIA pode indicar uma tentativa dos cursos de atender às demandas do mercado, à semelhança do que tem sido observado para diferentes cursos de graduação no Brasil (AGAPITO, 2017AGAPITO, A. P. F. Ensino superior no Brasil: expansão e mercantilização na contemporaneidade. Temporalis, v. 16, n. 32, p. 123-140, 26 fev. 2017.; SOUZA, 2016SOUZA, V. M. DE. Para o mercado ou para a cidadania? a educação ambiental nas instituições públicas de ensino superior no Brasil. Revista Brasileira de Educação, v. 21, n. 64, p. 121-142, mar. 2016.).

A consideração das especificidades da AIA no contexto local (regulamentação e prática) é de grande relevância para seu ensino (MORRISON-SAUNDERS; POPE; JONES, 2020MORRISON-SAUNDERS, A.; POPE, J.; JONES, M. Establishing international best practice principles for impact assessment teaching and training. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 38, n. 4, p. 336-353, 3 jul. 2020.), sendo um dos tópicos de conteúdo mais mencionados nos cursos de AIA (KABERA, 2017KABERA, T. Environmental impact assessment in higher education institutions in East Africa: the case of Rwanda. Environmental Science and Pollution Research, v. 24, n. 8, p. 7852-7864, 8 mar. 2017.; SÁNCHEZ, 2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.; SÁNCHEZ; MORRISON-SAUNDERS, 2010). Contudo, a relação íntima estabelecida pela legislação brasileira entre AIA/LA precisa ser vista e ensinada com cautela, para que na prática profissional não se corra o risco de reduzir a AIA à elaboração de um estudo ambiental ou à concessão de uma licença ou autorização (ROSS; MORRISON-SAUNDERS; MARSHALL, 2006ROSS, W. A.; MORRISON-SAUNDERS, A.; MARSHALL, R. Common sense in environmental impact assessment: it is not as common as it should be. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 24, n. 1, p. 3-22, 2006.).

Visto que neste trabalho considerou-se como conteúdo essencial o ensino da AIA como um processo, apenas 11 dos 88 cursos (12,5%) foram avaliados como abordando pelo menos o mínimo necessário para o ensino adequado do instrumento: dois cursos enquadrados no perfil Suficiente, três no perfil Suficiente express e seis no perfil Plus.

Nos cursos avaliados como Suficiente e Suficiente express, notou-se que, geralmente, o conteúdo também evidencia o caráter multidisciplinar e participativo da AIA. Ambos são princípios de boas práticas do ensino de AIA (MORRISON-SAUNDERS; POPE; JONES, 2020MORRISON-SAUNDERS, A.; POPE, J.; JONES, M. Establishing international best practice principles for impact assessment teaching and training. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 38, n. 4, p. 336-353, 3 jul. 2020.) e, normalmente, são abordados no ensino de AIA no contexto internacional (SÁNCHEZ; MORRISON-SAUNDERS, 2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.; STELMACK; SINCLAIR; FITZPATRICK, 2005STELMACK, C. M.; SINCLAIR, A. J.; FITZPATRICK, P. An overview of the state of environmental assessment education at Canadian universities. International Journal of Sustainability in Higher Education, v. 6, n. 1, p. 36-53, mar. 2005.). O conteúdo programático a seguir (PPC12) ilustra esse perfil.

CONTEÚDO PROGRAMÁTICO:

Unidade I: Conceitos e Definições

1.1 Aspectos históricos, conceituais e legais da avaliação de impacto ambiental (AIA).

Unidade II: O Processo da AIA

2.1 Objetivos; 2.2 Licenciamento ambiental; 2.3 Etapas do processo da AIA.

Unidade III: Estudos Ambientais

3.1 Tipo de estudos; 3.2 Participação pública; 3.3 Termos de referência; 3.4 Definição de abrangência e escopo

Unidade IV: EIA/RIMA

4.1 Planejamento e elaboração; 4.2 Identificação e avaliação dos impactos; 4.3 Área de influência; 4.4 Metodologias de avaliação de impacto; 4.5 Tomada de decisão; 4.6 Acompanhamento do processo de AIA; 4.7 Gestão de medidas mitigadoras, potencializadoras e compensatórias.

Unidade V: Análise Técnica de Estudos Ambientais

5.1 Análise crítica; 5.2 Elaboração de parecer técnico.

Unidade VI: Análise de Risco

6.1 Definições: 6.2 Estudos de análise de riscos.

Em alguns dos cursos enquadrados no perfil Mecanizado, a participação pública apareceu como um tópico, mas focada e limitada à realização da audiência pública, como uma etapa a ser cumprida no processo de LA apoiado na elaboração de EIA/Rima (CONAMA, 1987). Por outro lado, nos cursos do perfil Suficiente que incluem participação pública, ela recebe um caráter mais amplo e é entendida como uma etapa da AIA. Pensar que a participação na AIA é apenas a audiência pública reduz muito seus objetivos, que, segundo Glucker et al. (2013GLUCKER, A. N. et al. Public participation in environmental impact assessment: why, who and how? Environmental Impact Assessment Review, v. 43, p. 104-111, nov. 2013.), envolvem influenciar decisões, aumentar capacidade democrática, servir como aprendizado social, capacitar e emancipar grupos ou indivíduos marginalizados, aproveitar conhecimentos e informações locais, incorporar conhecimento experimental e baseado em valor, testar a robustez das informações de outras fontes, gerar legitimidade e resolver conflitos.

Observando-se a prática brasileira da AIA, a participação pública está entre as mais recorrentes deficiências (ALVES et al., 2020ALVES, G. P. et al. A participação social nas audiências públicas nos processos de Licenciamento Ambiental de empreendimentos minerários em Minas Gerais. Revista Brasileira de Geografia Física, v. 13, n. 5, p. 2154-2169, 2020.; PIAGENTINI; BENASSI; PENTEADO, 2014PIAGENTINI, P. M.; BENASSI, R. F.; PENTEADO, C. L. C. Olhares sobre a hidreletricidade e o processo de licenciamento no Brasil. Estudos Avançados, v. 28, n. 82, p. 139-153, dez. 2014.; ZHOURI; OLIVEIRA, 2012ZHOURI, A.; OLIVEIRA, R. Development and environmental conflicts in Brazil: challenges for anthropology and anthropologists. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, v. 9, n. 1, p. 181-208, jun. 2012.). Nesse contexto, vale destacar a relevância do ensino desse tema, visto que ao não abordar a importância de envolver os diferentes atores no processo (e, por consequência, toda a pluralidade de valores e perspectivas), seus praticantes não terão a visão da sua importância, o que, juntamente com a baixa exigência legal de participação no Brasil, torna o processo falho.

Por fim, seis cursos (7%) incluíram em seus conteúdos alguns pontos importantes da AIA além do mínimo necessário, sendo enquadrados no perfil Plus. Todos eles apresentaram carga horária adequada ao conteúdo, não havendo nenhum curso com características do Plus express. Os elementos de boas práticas identificados nessa pesquisa foram: sustentabilidade, impactos cumulativos, estudo de alternativas e AAE. Alguns cursos enquadrados nos perfis de ensino Faz de conta e Mecanizado apresentaram elementos de boas práticas, porém, por confundirem a AIA com outros instrumentos ou por não a reconhecer como um processo, não alcançaram os requisitos do perfil Plus. O trecho destacado a seguir (PPC17) apresenta um exemplo de ementa do perfil de ensino Plus.

EMENTA: Origem e difusão da avaliação de impacto ambiental. Quadro legal e institucional da avaliação de impacto ambiental no Brasil. O processo de avaliação de impacto ambiental e seus objetivos. Determinação do escopo do estudo e formulação de alternativas. Identificação de impactos. Previsão de impactos. Avaliação da importância dos impactos. Análise de risco. Avaliação Ambiental Estratégica. Plano de gestão ambiental. Comunicação dos resultados. Análise técnica dos estudos ambientais. Participação pública. A tomada de decisão no processo de avaliação de impacto ambiental. A etapa de acompanhamento no processo de avaliação de impacto ambiental.

Os elementos de boas práticas identificados neste trabalho e associados ao ensino Plus também estão presentes no ensino de AIA em outros contextos. Por exemplo: sustentabilidade está presente em quase todos os cursos de AIA em Portugal (RAMOS; CECÍLIO; MELO, 2008RAMOS, T. B.; CECÍLIO, T.; MELO, J. J. DE. Environmental Impact Assessment in higher education and training in Portugal. Journal of Cleaner Production, v. 16, n. 5, p. 639-645, mar. 2008.); impacto cumulativo é abordado no Canadá (STELMACK; SINCLAIR; FITZPATRICK, 2005STELMACK, C. M.; SINCLAIR, A. J.; FITZPATRICK, P. An overview of the state of environmental assessment education at Canadian universities. International Journal of Sustainability in Higher Education, v. 6, n. 1, p. 36-53, mar. 2005.) e em cerca de metade dos cursos avaliados por Sánchez e Morrison-Saunders (2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.); e o estudo de alternativas é recorrente tanto em Ruanda (KABERA, 2017KABERA, T. Environmental impact assessment in higher education institutions in East Africa: the case of Rwanda. Environmental Science and Pollution Research, v. 24, n. 8, p. 7852-7864, 8 mar. 2017.) quanto no contexto internacional (SÁNCHEZ; MORRISON-SAUNDERS, 2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.).

Quanto à inclusão da AAE nos cursos Plus, ela se deu predominantemente como um tópico da disciplina de AIA e não como uma disciplina específica, concordando com Ramos et al. (2015RAMOS, T. B. et al. Strategic Environmental Assessment in higher education: Portuguese and Brazilian cases. Journal of Cleaner Production, v. 106, p. 222-228, nov. 2015.), que apontam que a AAE no ensino superior no Brasil e em Portugal é principalmente tratada como um tópico do ensino de AIA; e concordando com Sánchez e Morrison-Saunders (2010SÁNCHEZ, L. E.; MORRISON-SAUNDERS, A. Teaching impact assessment: results of an international survey. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 28, n. 3, p. 245-250, set. 2010.), que observaram que o ensino da AIA de projetos é mais frequente e que a AAE geralmente é inserida como um tópico dentro de um curso mais amplo de AIA.

Em resumo, a análise dos conteúdos dos cursos de AIA para a Engenharia Ambiental no Brasil evidenciou uma compreensão frequentemente equivocada da AIA, seja por confundi-la com outros instrumentos (escopo difuso) ou por reduzi-la ao EIA/Rima (abordagem reducionista). Além disso, mesmo dentre os cursos que demonstram abordar a AIA como um processo e instrumento de política ambiental, a inserção de elementos de boas práticas foi rara e em nenhum caso observou-se a presença de todos os princípios de boas práticas para o ensino de AIA definidos por Morrison-Saunders, Pope e Jones (2020), sendo que nenhum curso foi classificado nos perfis Power ou Power express.

Diante do perfis de ensino identificados neste trabalho e da distribuição dos cursos nesses perfis, pode-se apontar que, em alguns casos, o ensino de AIA nos cursos de Engenharia Ambiental no Brasil é sim um ‘faz de conta’. O que predomina, porém, é o ensino voltado a atender as demandas de mercado para a elaboração de EIA, estando bastante distante de atender aos princípios de boas práticas de ensino de AIA no que tange ao seu conteúdo.

A partir desses resultados também é possível refletir sobre a relação entre o ensino e a prática da AIA. Segundo Gazzola (2008GAZZOLA, P. Trends in education in environmental assessment: a comparative analysis of European EA-related Master programmes. Impact Assessment and Project Appraisal, v. 26, n. 2, p. 148-158, jun. 2008.), a forma com que a AIA é ensinada depende de como é a prática e o entendimento nos diferentes contextos. Nos casos analisados, parece de fato haver essa influência da prática, visto que a visão míope da AIA na prática brasileira está refletida no seu ensino, que parece buscar atender às demandas do mercado.

Por outro lado, ao não ser capaz de abordar a AIA de forma mais ampla e adequada, o ensino da AIA pode estar influenciando negativamente sua prática, criando um ciclo vicioso. Cabem, então, ações que alimentem este ciclo de forma positiva. Nesse cenário, para o aprimoramento da prática da AIA no Brasil, parece ser imprescindível a melhoria do seu ensino, que deve ser direcionado pelas boas práticas internacionais.

Por fim, vale mencionar que a prática do ensino pode, por vezes, se distanciar do conteúdo definido no PPC. No entanto, visto a importante função que o PPC desempenha ao vincular o conteúdo que deve ser ensinado, seu aprimoramento deve ser um passo importante para a melhoria do ensino de AIA no Brasil.

Conclusões

Esta pesquisa analisou e discutiu o ensino de AIA no Brasil. Foram analisados todos os 88 cursos de Engenharia Ambiental cujos PPC estavam disponíveis na Internet. A análise revelou diferentes perfis de ensino e levou ao desenvolvimento e aplicação de um protocolo de análise, o que possibilitou observar os perfis predominantes e lacunas no ensino de AIA.

Os resultados mostraram que a AIA é um tema presente em todos os cursos de Engenharia Ambiental analisados. No entanto, apesar desse aspecto positivo, os perfis de ensino encontrados evidenciaram um cenário de alerta. A análise revelou uma visão limitada da AIA, em alguns casos resultando em um ensino de ‘faz de conta’, em que a AIA é mencionada, mas não é o foco do ensino, sendo confundida com outros instrumentos. Além disso, a maior parte dos cursos analisados (88%) não tratou a AIA como um processo e não abordou o mínimo necessário para o entendimento e a prática adequada da AIA como instrumento de política ambiental.

O perfil mais frequente foi o ensino Mecanizado, onde os cursos estavam mais focados no ensino de métodos e ferramentas de AIA para atender à legislação, não abordando todo o processo de AIA e suas características. Nesse sentido, o ensino de AIA é voltado para atender às questões legais, mas de modo afastado das boas práticas para o instrumento. Ou seja, estudantes de Engenharia Ambiental, área de grande relevância para a prática da AIA no Brasil, têm sido formados a partir de cursos que não oferecem o mínimo do que se espera de um praticante de AIA. Esta é uma situação preocupante, com interferências negativas na prática brasileira de AIA, devendo o seu ensino passar por melhorias. Cabe destacar, ainda, que o ensino Power (ideal) não foi identificado em nenhum dos 88 cursos analisados.

Neste contexto e na perspectiva de buscar melhorias para esse ensino, uma série de questões parecem ser importantes de serem exploradas, por exemplo: qual a formação dos profissionais que elaboram os PPC e dos que ensinam AIA? Em que medida o conteúdo expresso nos PPC é de fato ensinado? Assim, sugere-se que estudos futuros avaliem a qualificação dos professores que ensinam AIA, se existe um distanciamento entre o planejamento do ensino previsto no PPC e o ensino efetivamente realizado, bem como a pedagogia e métodos de ensino empregados.

Ressalta-se que o estudo do ensino de AIA em outros contextos (por exemplo, em outros cursos de graduação ou formação profissional, ou mesmo outros países) também pode ser interessante, visto que a AIA é um instrumento multidisciplinar e profissionais de diferentes áreas estão envolvidos em sua prática. Para isso, o protocolo de análise proposto neste artigo pode ser adaptado e aplicado, podendo ser uma ferramenta útil para avaliar como a AIA tem sido ensinada.

Agradecimentos

As autoras agradecem à UNIFEI pelo apoio financeiro para tradução e ao IFES pelo apoio financeiro para a publicação do trabalho.

References

  • AGAPITO, A. P. F. Ensino superior no Brasil: expansão e mercantilização na contemporaneidade. Temporalis, v. 16, n. 32, p. 123-140, 26 fev. 2017.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2021
  • Aceito
    23 Dez 2021
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