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O Direito de Dizer Não: Extrativismos e Lutas Territoriais

Resumo

Este artigo traz a transcrição e revisão da roda de conversa realizada no III Congresso Latino-Americano de Ecologia Política, que teve como objetivo debater diferentes experiências de lutas coletivas frentes a projetos de extração de recursos naturais, com a participação de lideranças indígenas, de comunidades tradicionais e intelectuais ativistas. As experiências relatam processos em que houve resistência coletiva a projetos extrativos-coloniais e o direito de dizer “não” foi colocado em prática. De forma geral, as apresentações discutiram o direito de dizer não que emerge para além do direito à consulta, e que tem como pressuposto a garantia da autonomia coletiva sobre os territórios de vida.

Palavras-chave:
Convenção 169 da OIT; povos indígenas; direito de consulta; comunidades tradicionais; direitos territoriais

Abstract

This article brings the transcription and revision of the roundtable discussion held at the III Latin American Congress of Political Ecology, which aimed to debate different experiences of collective struggles against projects of extraction of natural resource, with the participation of indigenous leaders, traditional communities and activist intellectuals. The narratives shares experiences in processes in which there was collective resistance to extractive-colonial projects and the right to say “no” was put into practice. In general, the presentations discussed the right to say no that emerges beyond the right to consultation, and that has as its assumption the guarantee of collective autonomy over life territories.

Keywords:
ILO Convention 169; indigenous peoples; right of consultation; traditional communities; territorial rights

Resumen

Este artículo trae la transcripción y revisión de la mesa redonda realizada en el III Congreso Latinoamericano de Ecología Política, que tuvo como objetivo debatir diferentes experiencias de luchas colectivas contra proyectos de extracción de recursos naturales, con la participación de líderes indígenas, comunidades tradicionales y activistas intelectuales. Las experiencias relataron procesos en los que hubo una resistencia colectiva a los proyectos extractivos-coloniales y se puso en práctica el derecho a decir “no”. En general, en las ponencias se habló del derecho a decir no, que surge más allá del derecho a la consulta, y que tiene como fundamento de garantizar la autonomía colectiva sobre los territorios de vida.

Palabras-clave:
Convenio 169 de la OIT; pueblos indígenas; derecho de consulta; comunidades tradicionales; derechos territoriales

Introdução

O direito a ser consultado sobre projetos que lhes afetam é uma conquista dos povos indígenas e comunidades tradicionais garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 1989, e reforçada pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007. No entanto, estas consultas prévias, que devem ser livres, prévias e informadas, raramente são vinculativas. O desrespeito ao “não”, que ocorre de forma sistemática, revela uma contradição do direito à consulta e o desequilíbrio do poder no controle dos recursos dos territórios. Assim, os mecanismos de consulta acabam servindo para suavizar a expansão desenfreada do capital, criando a falsa impressão de uma expansão “consentida”.

O argumento legal é apropriado pelas comunidades de forma subversiva, para que estas possam garantir sua existência, autonomia e soberania sobre seu território. Assim, outros conceitos emergem a partir da luta, tal como o direito humano fundamental de rebelião frente à tirania, inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos. É nesse último recurso jurídico onde se localiza a ideia do direito de dizer “não”, que se materializa em ações diretas de mobilização. Garantir o direito de dizer “não”, mesmo pela rebelião, talvez seja uma das últimas instâncias de defesa territorial de populações frente à violência do Estado-nação e do extrativismo do capital.

Para avançar nesse conceito organicamente, foi organizada uma roda de conversa no III Congresso Latino-Americano de Ecologia Política envolvendo ativistas e lideranças que participaram de processos em que houve resistência a projetos extrativos-coloniais e o direito de dizer “não” foi colocado em prática. Além dos autores e autoras deste relato, também participaram da mesa Milton Sanchez, do Colectivo Guardianas y Guardianes de la Laguna, e Jorge Nahuel, líder mapuche da Argentina.

A experiência no Peru

Milton Sanchez relatou a experiência de oposição à construção do megaprojeto de Conga de La Laguna, na região de Cajamarca, no Peru. A contaminação gerada pelo projeto afetou a economia local, de produção de leite, diminuiu o abastecimento de água e impactou a saúde dos habitantes - a região tem um dos índices mais altos de câncer de estômago do país. De capital peruano e internacional, voltado para a exportação para a China, o projeto explora um centro de nascentes vital para a região. Neste território, já foram depositadas aproximadamente 196 mil toneladas de rejeitos contaminados. Após 26 anos de exploração mineral, a região passou de quarta para a primeira posição dentre as províncias mais pobres de todo o Peru.

A exploração começou na Lagoa Yanacocha, que significa água preta. Não existe mais essa lagoa, e a empresa tomou o nome da lagoa. Uma imagem de satélite revela a destruição no lugar da lagoa, o progresso que eles se interessam. O rio foi transformado em quatro tubos. Essas tubulações que, depois da exploração mineral, devolvem o descarte para a comunidade. É a polícia que faz a segurança da área, e é muito difícil entrar para ver o que acontece. Devido à contaminação de metais pesados, tem sido registrado morte de animais também. A jazida que existe já é muito maior do que a própria cidade, que tem 200 mil habitantes. E agora a mineradora propõe um projeto de expansão.

Como ninguém nos consultou, nos organizamos e falamos “não!”, através da ação dos Guardiões das Lagoas. Pelo lado do Estado e da empresa, a resposta foi de militarizar o conflito. Por oito meses, a missão especial da polícia invadiu o território. Tomaram a praça Celedin. Atiraram contra nós e assassinaram cinco companheiros. E, diante da resistência, decidiram parar a expansão.

A história de parar projetos extrativistas é uma história antiga no Peru. Em 2002, tivemos que organizar essa autoconsulta. Isto é, uma consulta que não era feita pelo governo, mas feita pela comunidade. E isso resultou em que o projeto foi paralisado depois de que 93% das pessoas disseram não. O governo então passou a rejeitar as consultas auto-organizadas, e a população começou a exigir uma lei de consultas populares. Esta lei foi aprovada em 2011. Mas isso não foi a solução. Acontece que o Estado e as empresas não consultam todo mundo. São eles que decidem quem é indígena e quem vai ser consultado. Depois dessa lei de consulta, todos os projetos que foram consultados foram aprovados.

A mesma coisa ocorre com hidrocarbonetos, de maneira que o governo e as empresas usam essa lei de consulta para garantir seus próprios benefícios, para dar legitimidade aos projetos.

Mas, no Peru, resistimos. Na Guatemala e no México, os povos estão observando a experiência da resistência no Peru, para tentar fazer a mesma coisa. Já tiveram um encontro com os povos indígenas da América Central, e a posição é que não irão se submeter, não vão aceitar essas consultas que apenas legitimam os projetos. A palavra de ordem é não: a gente não vai aceitar que venham com as suas próprias ferramentas manipular e impor os projetos em nossos territórios.

A luta mapuche na Argentina

Jorge Nahuel é da província de Neuquén, região que vive há cinco anos problemas com o fracking, uma técnica de exploração petroleira que utiliza ingestão de substâncias químicas dentro da terra para extrair petróleo. Essa técnica, que explora aproximadamente três mil metros abaixo do solo, é particularmente nociva porque contamina a água e, consequentemente, a população, com metais pesados e outros compostos químicos. No caso argentino, o Estado se nega a aplicar a consulta. Na Argentina, não se aceitou a regulamentação da consulta sem a garantia do direito ao consentimento, a dizer “não”. Jorge explica que os mapuche eram uma nação livre há 130 anos, o que lhes permite perceber o tipo de agressão territorial imposta pelo fracking, promovido pelo Estado argentino, com cumplicidade do Legislativo e do Judiciário, e pelas multinacionais. As lideranças mapuche, que apenas cumprem o seu dever como autoridades indígenas, sofrem com a criminalização da sua mobilização contra o fracking, acusadas de associação ilícita, dentre outras alegações. Jorge entende que a luta contra este tipo de exploração vai além do território mapuche especificamente, mas envolve uma compreensão do ser humano de maneira integrada com a água, o solo, o ar e a terra.

O protocolo de consulta dos Munduruku, por Alessandra Korap Munduruku

Sou Alessandra, do povo Munduruku, no Oeste de Tapajós. Parentes, companheiros, a luta de vocês fortalece muito a nossa também, é um aprendizado muito grande quando ouvimos outros povos falando. Às vezes nos sentimos tão fracos, e de repente a gente sente que é forte também.

O povo Munduruku elaborou um protocolo de consulta, porque o governo federal já estava decidido a fazer a usina hidrelétrica São Luís de Tapajós, colocando pesquisadores e Força Nacional já dentro do território. Não tínhamos o direito de falar, de ir para rua, justamente porque eles já haviam tomado a decisão de fazer a usina.

E o protocolo, quando foi feito, a gente não só falou do povo Munduruku, a gente falou do povo em geral que ia ser impactado, dos beiradeiros, das comunidades tradicionais, e há muitas comunidades, o pessoal de Montanha-Mongabal, nos aliamos com eles também.

E isso nos fortaleceu. O governo queria comprar as lideranças, como aconteceu em Belo Monte: promessa de carro, voadeira, dinheiro pra construir barracões. E a gente viu que isso não era bom. A experiência que tivemos quando fomo lá em Belo Monte fortaleceu para nós também, a gente viu o que estava acontecendo. Porque o erro deles, nós também poderíamos cometer.

Quando fizemos o protocolo foi justamente para sermos ouvidos dentro da aldeia. Realmente, a gente não deixa o governo entrar em nosso território, porque eles usam a arma muito fácil, que é a mentira. Eles não sabem ouvir a verdade, não sabem escutar, não sabem ouvir um não. Eles têm que aprender a ouvir um não, é esse o problema do governo e das empresas.

A gente não pode se esconder, nós precisamos falar também, porque é isso que eles fazem, eles apenas falam e vão embora, e a nossa reunião, se precisar, vai até duas horas da madrugada. Quando falam que precisam falar com as lideranças. Só três? Não, se nós somos 100, os 100 vão entrar na reunião. É isso que nós exigimos, que nós sejamos ouvidos. Devem ser consultados os sábios, antigos, pajés, o senhor que sabe contar história, que sabe medicina tradicional, raiz, folha, sabe os lugares sagrados, os caciques, guerreiros, guerreiras, lideranças, professores e agentes de saúde, as mulheres. Antigamente as mulheres não eram ouvidas e hoje nós estamos em grupo grande já. Estudantes, universitários, pedagogos Munduruku, eles também devem ser consultados.

Como nós tomamos nossa decisão? Quando o projeto afeta todos nós a nossa decisão é coletiva, o governo não pode consultar apenas uma parte do povo Munduruku. Não pode, por exemplo, consultar só o povo Munduruku do médio, ou só do alto. Nenhuma associação decide ou responde pelo povo Munduruku. As decisões do nosso povo são tomadas em Assembleia Geral, convocada por nossos caciques. Nas assembleias, nós discutimos e chegamos a um consenso. Se for preciso, discutimos muito, fazemos votação. Se não houver consenso, é a maioria, e com o povo nós esperamos promover respeito à nossa decisão, nós temos poder de veto. Sawê!

Nós conseguimos barrar a ferrovia que transporta soja, conseguimos barrar a concessão florestal, 200 mil hectares de madeira do nosso território. Barramos a grande hidrelétrica de São Luís do Tapajós. Eles falam que nós somos teimosos, uma praga, uma pedra no sapato, mas a gente vai continuar sendo tudo que eles dizem, porque a gente não vai entregar a nossa terra.

Isso é para as futuras gerações, o que eu vou deixar é para elas. Se está desmatado, vamos reflorestar, vamos plantar, vamos pescar. O protocolo de consulta é a única arma que nós temos no momento. Se não respeitar, então o único jeito é ocupar.

A resistência pelo Xingu Vivo, por Antônia Melo

Sou da organização Movimento Xingu Vivo Para Sempre, criada em 2008 para promover a união dos movimentos sociais e indígenas do Xingu contra a construção da hidrelétrica Belo Monte. Nós queremos dizer para a amiga guerreira e amigo de luta, do Peru e da Argentina, que estou vendo esse filme que estão passando, esse filme passou bastante com Belo Monte, igualzinho. Esses malditos projetos só mudam de endereço, mas a prática terrível de massacre, de violação de direitos, está em todo lugar.

É como ele disse, que a luta deles em defesa do território é antiga: a nossa também. Na década de 1980 na ditadura militar havia o projeto chamado de Cararaô, um complexo com seis barragens no rio, que alagaria quase 20mil Km, 12 terras indígena além de grupos indígenas isolados e desalojaria centenas e milhares de pessoas. Então, em 1989, os indígenas Kayapó, realizaram um grande encontro com apoio dos aliados, Comissão Pro-Índio e da Igreja Católica. chamaram o governo pra dizer “NÃO” em uma grande reunião em Altamira. A índia Tuíra, num gesto guerreiro, colocou seu facão na cara do representante do governo e da empresa Eletronorte e o chamaram de mentiroso, porque ele disse que as terras indígenas não seriam alagadas, mas eles já tinham estudado o projeto e sabiam que elas seriam. Com as pressões internacional e nacional e a luta dos povos indígenas, o cancelamento dos recursos pelo Banco mundial, o projeto foi pra gaveta do governo.

Em 2000, o governo Fernando Henrique Cardoso anunciou que ia construir um grande projeto de desenvolvimento para o país, Belo Monte. O governo veio dizendo que ia construir a usina, que não ia atingir as terras indígenas, que ia desviar o rio. E realmente fez isso, desviou o rio Xingu, 20 quilômetros, canal de derivação que leva água do Rio Xingu para a chamada casa de força de belo monte.

É uma luta de mais de 30 anos dizendo NÃO a esse projeto. Infelizmente o governo LULA passado por cima das leis, dos direitos indígenas e dA população atingida em geral, disse que ia fazer, passando por cima de tudo quanto é direito. Vejam só a cara de pau, sabe o que eles fizeram, com a Funai metida no meio? Junto com a empresa, mostraram um projeto de Belo Monte, as barragens, as benesses - umas coisas bonitas, powerpoint bonito - nas aldeias, que era para os indígenas terem conhecimento do projeto, só isso. E depois eles usaram essas fotos e essas assinaturas das comunidades indígenas para dizer que eles tinham sido consultados.

Foram muitos abaixo-assinados, muitas campanhas, mas o chamado “governo do povo” passou por cima de tudo, foi uma desgraça. Mas, a luta continua. Belo Monte está pronta, e agora? Do que adianta? Adianta sim, foram várias conquistas que nós tivemos. Primeiro, a conquista de não deixar que Belo Monte ficasse escondida debaixo do tapete. Nós denunciamos, e hoje todo mundo sabe: Belo Monte serviu à corrupção, gerou muita lavagem de dinheiro. Esse modelo não nos serve, só deixa pobreza, miséria. “Desenvolvimento” para nós é uma mentira.

Belo Monte hoje está construída, com muitos problemas: continuam as ameaças, é muita violência. É um projeto que não se sustenta, é inviável e não vai gerar a energia que eles propagam, vai secar mais de 100 quilômetros da Volta Grande do Xingu, onde estão as aldeias, as comunidades indígenas e ribeirinhas.

Outro projeto é Belo Sun, uma mineradora canadense que quer se instalar à margem do rio Xingu, onde já falta água. Eles vão buscar água do Xingu pra essa mineradora, uma cava de 12 anos, mais de 50 toneladas de ouro, de 200 metros, com torres de rejeitos, de pedra, de barro, maiores do que os maiores prédios de São Paulo. É uma monstruosidade na beira do rio, próximo da barragem Pimental de Belo Monte. Nós estamos lutando para mobilizar a nível internacional com campanha, para mostrar a monstruosidade de um projeto de impactos sem precedentes muito pior que os crimes das empresas criminosas de Mariana e Brumadinho

Essas são as desgraças que esses governos e empresas trazem pra nós na Amazônia, na América Latina, e nós temos que reagir. Nossos rios estão sendo contaminados, as pessoas estão sendo assassinadas por essas empresas ou com apoio delas. Nós precisamos de uma grande aliança, da Pan-Amazônia dos povos latinos. Quando é que nós, nesse país, vamos dizer NÃO e sermos respeitados! Dizer: aqui não, nós somos donos desse território para nossos modos de vida e bem Viver! Este modelo de desenvolvimento não serve, destrói.

O respeito aos povos isolados, por Antenor Vaz

A minha fala é informativa. Tento resgatar um conjunto de informações acerca dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (PIIRC). Quero trazer uma inquietação sobre como estão esses povos que ainda não estabeleceram contato. Por que eles recusam o contato, preferindo o isolamento?

Esses povos estão ameaçados por uma armadilha que se chama modelo de desenvolvimento. Os países da América do Sul com registros de povos indígenas isolados, sem contato permanente, são: Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Paraguai e Brasil. Em 2005 existiam, em toda a América do Sul, 51 registros confirmados de povos isolados e 33 a confirmar. Em 2019, são confirmados 66 povos em situação de isolamento e a confirmar 119. Houve, então, um acréscimo grande de informações entre 2005 e 2019. Esses registros são resultado dos trabalhos de proteção desenvolvidos pela sociedade civil organizada, a partir das organizações indígenas ou aliadas.

O modelo de desenvolvimento agro-extrativista-exportador, implantado em todos os países da América do Sul, é apoiado e financiado por grandes corporações econômicas e bancos de fomento que se aliam aos Estados para a implementação de grandes obras. Relacionamos cerca de 70 grandes empresas de capital nacional e internacional que financiam e implementam obras que estão na Amazônia, Cerrado e Grande Chaco e que afetam direta ou indiretamente os povos indígenas isolados. Destacamos empresas chinesas, canadenses, dos Estados Unidos, bancos como BNDES, Banco Mundial etc., financiando construção de estradas, agronegócio, petrolíferas, usinas hidrelétricas, linhas de transmissão, mineração, turismo e madeira.

Concluindo, esses povos indígenas isolados têm sua maneira de dizer não: “não queremos nos relacionar com vocês”. Esse isolamento não é porque eles acham a mata bonita, a natureza bonita. O isolamento deles diz: “esse modelo de sociedade que vocês têm não nos interessa”. É uma resistência cultural e ideológica. A história que esses povos travaram ao longo de séculos com a sociedade ocidental foi uma história de morte e massacres. O principal inimigo desses povos indígenas - estou falando no caso dos povos indígenas isolados, ressaltando que não os represento - é nosso modelo de desenvolvimento.

Dos sete países, três têm uma legislação específica de proteção a esses povos: Brasil, Peru e Colômbia. Os outros, como Venezuela e Paraguai, não têm marco jurídico referente à sua proteção. A Bolívia tem, mas nunca implementou. Mas os países nunca conseguem proteger de fato as populações indígenas isoladas, apenas diminuir minimamente aquilo que causaram e causam. É o eterno retorno do mesmo.

Povos indígenas e Comunidades Tradicionais do Maranhão, por Kum’Tum Akroa Gamela

Eu sou Kum’Tum, do povo Akroá Gamela, e venho aqui também em nome da Teia dos Povos e Comunidade Tradicionais do Maranhão. A Teia não é um espaço de representações, também não é uma articulação de entidades. Somos povos e comunidades que fazemos, de pé, a luta em defesa dos nossos territórios. Todo mundo é bem-vindo desde que esteja nessa perspectiva do tecimento da luta.

A partir das nossas ancestralidades reconhecemos e sentimos que todos e todas - água, terra, minerais, plantas, animais, humanos, encantados e encantadas - estamos interligados. Somos fios da mesma teia da vida. Entretanto, projetos de mineração, barragens, parques eólicos e solares, monocultivos de soja, eucalipto, cana-de-açúcar estão ferindo gravemente nossa Mãe-Terra, envenenando as águas, matando as florestas e os seus habitantes de um modo e numa velocidade que as suas consequências não podem ser reparadas.

É preciso entender e respeitar que cada elemento da natureza tem um espírito que o protege e nele tem morada. Quando esses lugares são destruídos, os seus guardiões e guardiãs ficam vagando, e o sofrimento deles ameaça a harmonia de toda a teia. O céu vai desabar sobre todos nós, como nos ensina o xamã yanomami Davi Kopenawa.

O povo Akroá Gamella, depois de séculos de tentativas de genocídio, silenciou para continuar existindo nas nossas pajelanças, na Festa de Bilibeu, na Serra de Velho, nas narrativas sobre João Piraí, na arte de tecer guarimã, de fazer farinha, na pesca de mão, no ato de comer juçara. Sobre nós, o Estado colocou uma pedra, mas nossas raízes ancestrais permaneceram vivas e alimentando nossas vidas. Assim, conseguimos juntar forças pra derrubar a pedra, como nos ensina Cotap, liderança do nosso povo, para dizer ao mundo que existimos e devemos ser respeitados.

Em 2014, nosso povo descobriu que havia mais uma linha de transmissão de alta tensão sendo construída sobre o nosso território, e aí começou, por parte da Companhia Energética do Maranhão, sucessivas tentativas de aliciamento e assédio às nossas lideranças para permitir o empreendimento. No ano seguinte, denunciamos ao MPF essas tentativas ilícitas e solicitamos providências. Mesmo assim, o empreendimento teve continuidade. A empresa entrou com uma ação para garantir a continuidade das obras mesmo com as ilegalidades, sob a alegação de interesse público. A medida foi concedida, mas nós protestamos junto ao juiz que, prontamente, reconsiderou a decisão liminar e designou audiência para ouvir todas as partes envolvidas. Fizemos o juiz entender que o rio é constitutivo da nossa identidade. Portanto, toda e qualquer ação que possa causar impacto negativo deve ser discutida por toda a comunidade.

No curso da ação judicial fomos chamados “supostos índios” “sem balizas comportamentais” e acusados de impedir o progresso e o desenvolvimento, reproduzindo discursos e práticas genocidas de sempre. Desde nossas raízes ancestrais resistimos e resistiremos, porque vidas não podem ser compensadas ou mitigadas. E não falamos somente de vidas humanas.

Até agora estamos resistindo. Até quando? Sabemos que o Estado detém a força bruta e que poderá enviar a qualquer momento, em nome do “interesse público”, as forças de segurança para garantir a implantação do empreendimento sobre cadáveres. Mesmo que sejamos violentados, nós seguiremos sendo sementes regadas por nossa memória ancestral e as lutas feitas pelos povos originários de todos os lugares da Terra.

A Teia dos Povos, por Joelson Ferreira

Eu sou de Ogum, sou da guerra, não tenho mais problema com isso e vou dizer: nós estamos vendo uma guerra total contra nosso povo. Eu tive a sorte de, no MST, viajar pela China, Coréia, Filipinas, Venezuela, e é o mesmo relato de todos nós aqui. Em tudo quanto é lugar, o Banco Mundial, os bancos públicos, os governos progressistas, os governos de todo tipo, é o mesmo linguajar desse tal “desenvolvimento”, que é a destruição dos povos locais, originais, pretos.

Não tem jeito: nós temos de decretar guerra de defesa aos nossos inimigos, temos de voltar a discutir questões importantes. Hoje é heresia falar na guerra contra o império e que, no século XXI, nós temos que ser anticapitalistas, anti-imperialistas. Nós, no Brasil, vamos enfrentar a quinta neocolonização do capital: é um capital financeiro, que antes estava na agiotagem e agora volta aqui para comprar tudo em nossos territórios.

Nós, na Teia dos Povos, não somos um movimento, somos um grupo que está buscando aliança para aqueles que estão em luta permanente, e com alguns princípios: primeiro, é a luta pela terra e pelo território - ela é urgente, é necessária e quem abrir mão disso está perdendo sua identidade, seu território e não tem mais jeito; segundo, a luta pela defesa da soberania, ou seja, da existência do nosso território. Não é subsistência, é existência.

Nós precisamos construir uma economia para além do capital, não adianta fazer atalhos. Nós precisamos construir as nossas escolas, para educar as nossas crianças, a nossa juventude para o futuro que está vindo. Se nós quisermos autonomia, nós precisamos defender as sementes crioulas, as sementes nativas e reparti-las para todo o mundo.

Nós precisamos resgatar as cosmovisões dos povos originários, do povo preto que veio da África e, como diz Darcy Ribeiro, misturar tudo nesse caldeirão. Nós precisamos construir um arco de aliança com os povos. Não fomos nós que criamos a guerra, eles é que a estão impondo. Nós precisamos desligar esses celulares, essas máquinas miseráveis que estão controlando nossos cérebros e nossas almas, pra nós tentarmos sentir algo, como diz Che Guevara, a indignação no mínimo. Os zapatistas estão existindo porque, quando todo mundo dizia que as armas não valiam nada, eles pegaram em armas, e hoje estão lá como sociedade. Também é preciso entender que a inteligência que nós temos é maior do que qualquer tipo de arma e entender que a economia dos povos é para fazer inclusive um diálogo com a sociedade urbana.

Nós precisamos construir uma aliança nesse plano do concreto, porque, senão, nós não dialogamos com a população do campo, que não acredita mais em ninguém. Quando a gente chega com as sementes e com as mudas, é extraordinário, todo mundo quer a semente e a muda. Quando a gente fala da questão do chocolate que nós hoje produzimos em nossos territórios, é concreto. Nós temos que também começar a discutir que nós precisamos radicalizar. E radicalizar significa que nós precisamos construir um projeto de vida e dizer: esse é nosso projeto, esse é nosso território, essa é nossa terra e é aqui que nós queremos ficar, é aqui que nós queremos viver e nós temos condições de criar nossas autonomias e nossa liberdade.

Conclusões: A autonomia dos povos

As narrativas das experiências e pensamentos acima evidenciam que o “direito a dizer não” é apenas um dos componentes de reivindicação mais ampla de autonomia. Seguindo o intelectual mixteco López Bárcenas, a autonomia nem sempre aparece com esse nome, mas parte dos “mesmos projetos utópicos, que passam por ser povos com direito pleno, territórios, recursos naturais, formas próprias de organização e de representação política” (2007: 9-10).

Os depoimentos coincidem em apontar que o momento da chegada desses projetos é de desmistificação do suposto caráter “neutro” do Estado. Ao fim e ao cabo, o desafio é construir a superação das relações de “colonialismo interno” que propõe manter as “relações de subordinação” estabelecidas desde a invasão europeia (López Bárcenas, 2007LÓPEZ BÁRCENAS, Francisco. Autonomias Indígenas en América Latina. México DF, MC/Coapi, 2007.: 52). Como nos lembra Antonia Melo: “o governo, as empresas, nunca irão escutar e nem saber ouvir ‘não’, porque eles não defendem povo. Quem tem que nos defender somos nós mesmos”.

Agradecimentos

A realização desta roda de conversa no III Congresso Latino-Americano de Ecologia Política contou com apoio de Capes, CNPQ e da Fundação Rosa Luxemburgo. Os editores agradecem à estudante Júlia Mota de Brito pela transcrição. A tradução deste documento foi apoiada pelo projeto de pesquisa financiado pela Academia Britânica (SDP2\100278) “’Desenvolvimento sustentável’ e atmosferas de violência: experiências de defensores ambientais” e pela Universidade de Sussex/ Research England/Global Challenges Research Fund (IDCF1- G262626-08), uma colaboração entre a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade de Sussex e executado pela Fapex.

References

  • LÓPEZ BÁRCENAS, Francisco. Autonomias Indígenas en América Latina. México DF, MC/Coapi, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2021
  • Aceito
    02 Set 2021
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