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Os crimes das mineradoras e a luta popular na mineração

Resumo

Este texto-relato é resultado da mesa-redonda “Mariana, Barcarena, Brumadinho: mineração e crimes ambientais”, do III Congresso Latino-Americano de Ecologia Política, em março de 2019. Apresentamos os crimes na mineração e as experiências nascidas da resistência a projetos extrativos que ameaçam a integridade do planeta e a vida humana. Queremos entender e perquirir as formas de reação a esses projetos, integrando aspectos econômicos, sociais e geográficos. Essa visão transdisciplinar contribui para entender que crimes socioambientais e sociotécnicos na mineração não estão isolados, mas que os projetos extrativos das empresas respondem a uma lógica de expansão do capital global e a uma estrutura territorial onde se assenta a atividade mineradora. Essa lógica de acumulação não é apenas horizontal, com a expansão das fronteiras de extração, mas também é vertical, porque penetra o território poluindo as partes mais profundas da terra, da água, do ar e de toda a natureza e seres vivos.

Palavras-chave:
Mineração; crimes socioambientais; Mariana; Brumadinho; luta popular

Abstract

This narrative is the result of the round-table “Mariana, Barcarena, Brumadinho: mining and environmental crimes”, at the III Latin-American Congress of Political Ecology, in March 2019. We present the crimes in mining activities and the experiences born from the resistance to extractive projects that threaten the planet’s integrity and human life. We seek to understand and investigate the reactions to these projects, assessing economic, social and geographic dimensions. This transdisciplinary perspective contributes to understand that socioenvironmental and sociotechnical crimes are not isolated, and that extractive projects of mining companies are a result of a logic of global capital expansion and of a territorial structure where the mining activity takes place. This logic of accumulation is not only horizontal, with the expansion of the extraction frontiers, but is also vertical, because it penetrates the deepest parts of the earth, water, air and all the nature and living beings.

Keywords:
Mining; socioenvironmental crimes; Mariana; Brumadinho; popular struggle

Resumen

Este texto-relato es resultado de la mesa-redonda “Mariana, Barcarena, Brumadinho: minería y crímenes ambientales”, del III Congreso Latinoamericano de Ecología Política, en marzo de 2019. Presentamos los crímenes de la minería y las experiencias nascidas de la resistencia a proyectos extractivos que amenazan la integridad del planeta y de la vida humana. Queremos entender e investigar las formas de reacción a estos proyectos, analizando aspectos económicos, sociales y geográficos. Esta visión transdisciplinar contribuye para entender que los crímenes socioambientales y sociotécnicos en la minería no están aislados, sino que proyectos extractivos de las empresas responden a una lógica de expansión del capital global y a una estructura territorial donde ocurre la actividad minera. Esta lógica de acumulación no es solamente horizontal, con la expansión de las fronteras de extracción, sino también es vertical, porque penetra el territorio contaminando las partes más profundas de la tierra, del agua, del aire y de toda la naturaleza y seres vivos.

Palabras-clave:
Minería; crímenes socioambientales; Mariana; Brumadinho; lucha popular

Introdução

A CASA REVISITADA pela madrugada o sal na moleira e o ícone daquela geração [soberba prefere a lama ante à água com mãos mecânicas regozijam a [geologia daquela serra outonal [em íntimo duelo arrasto pela lírica - o toldo sangue e a economia dos seus abismos que predam corações] senhores - essa sintaxe masculina do poder o apregoado dos olhos denota é o favo agudo que estrondas a pedra [derradeira os afazeres do grito o alfazema do jardim e teu pulso o relicário antigo a criança que já não podemos ver o gesto Vaga em ordem alfabética o silêncio Chega - gritará os outros? a estética do ferro desbotou o horizonte e os cadáveres implicarão novos dízimos outras violetas que a nação [apodrecem eu beijei um a um membro efetivo da canga mineral - são os animais que bestializamos e tornamos sal e estrume esquecidos no objeto industrial. Charles Trocate Brumadinho [MG] fevereiro de 2019

Nos últimos anos, os crimes socioambientais e sociotécnicos na mineração se avolumam e são cada vez mais devastadores. Essa trilha trágica apresenta os rompimentos das barragens de rejeitos da Vale em Mariana e Brumadinho, a evacuação de populações em outras barragens e bacias de resíduos, em Barcarena, acarretando desastres humanos e ambientais. Este texto-relato é resultado da mesa-redonda “Mariana, Barcarena, Brumadinho: mineração e crimes ambientais”, do III Congresso Latino-Americano de Ecologia Política, em março de 2019. Apresentamos os crimes na mineração e as experiências nascidas da resistência a projetos extrativos que ameaçam a integridade do planeta e a vida humana. Queremos entender e perquirir as formas de reação a esses projetos, para o que é necessário integrar aspectos econômicos, sociais e geográficos. Essa visão transdisciplinar contribui para entender que esses eventos não estão isolados, mas que os projetos extrativos das empresas respondem a uma lógica de expansão do capital global e a uma estrutura territorial onde se assenta a atividade mineradora. Essa lógica de acumulação não é apenas horizontal, com a expansão das fronteiras de extração para a floresta amazônica, para o cerrado e para todos os territórios onde os minerais ainda não estão sendo extraídos, mas também é vertical, porque penetra o território poluindo as partes mais profundas da terra, da água, do ar e de toda a natureza e seres vivos.

A expansão das fronteiras extrativistas responde a um reordenamento territorial que esgarça o fino tecido das relações sociais. Diferentes governos e Estados latino-americanos incentivam a especialização da produção baseada em supostas vantagens comparativas oferecidas pela natureza (minerais, terras e rios) e pela mão de obra barata (gente), com o objetivo de exportar mercadorias principalmente para o gigante asiático, a China. Essa extração gera apropriação de riquezas para as empresas e seus acionistas, enquanto causa expropriação e danos para os povos, comprometendo a própria situação do país primário-exportador.

Diante dessa expansão, surgiram movimentos sociais e organizações que resistem, desafiam e apontam novos caminhos. Os povos que vivem nas terras que mineradoras pretendem explorar veem suas atividades de subsistência ameaçadas, as florestas destruídas, a água contaminada e as terras agrícolas removidas e transformadas em poço aberto improdutivo. A soberania alimentar e a saúde de milhões de pessoas são objeto do jogo corporativo: extrair ao máximo com custos mínimos.

Os colapsos das barragens da Vale, o vazamento contínuo de resíduos na bacia da Norsk Hydro e na barragem da Equinox Gold, as ameaças que pesam sobre as regiões onde as mineradoras se fazem presentes e onde pretendem se instalar, geraram rechaço por parte de organizações envolvidas em redes de resistência e que, apesar dos ataques e da constante criminalização perpetrados por governos em exercício, foram capazes de lançar bases para a articulações regionais, nacionais e, até mesmo, globais.

Sobre a articulação e organização de resistências à mineração no Brasil, Charles Trocate, da coordenação nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), diz:

De 2000 a 2019, nós vamos vivenciar o surgimento de algumas articulações que são importantes. Em 2006, surge no Maranhão a Justiça nos Trilhos (JnT), que articula os atingidos pela ferrovia Pará-Maranhão (Estrada de Ferro Carajás). Em 2007, a gente faz uma grande jornada de luta, na qual fica mais claro o poder da indústria da mineração no Brasil, em relação ao governo e à sociedade. Em 2008 e 2009, a gente constrói outras articulações amazônicas, o movimento dos garimpeiros em Serra Pelada, o Movimento em Ação, no oeste paraense. Em 2012, a gente faz a primeira reunião nacional, em Parauapebas, com a presença de 36 pessoas de 8 estados do Brasil, e a gente toma essa decisão de continuar essa articulação denominada MAM. Em 2013, surge o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, e aqui o debate do Novo Marco Regulatório da Mineração, que se conclui em novembro de 2017. Seis anos de luta no Congresso Nacional para se aprovar um código. Em 2013, surge o Comitê com 69 organizações, com a característica de fazer o conflito institucional para que o Código não saísse a cara das empresas, mas não teve jeito. E em 2014, surge uma articulação a partir das igrejas, que é a Rede Igrejas e Mineração, na América Latina.

As resistências e lutas populares se erigem também sobre iniciativas produtivas que buscam formar relações sociais qualitativamente distintas daquelas impostas pela megamineração. Esta discussão acerca das formas de produzir é fundamental para a construção de resistências e alternativas econômicas e sociais. Na seguinte seção, relatamos nosso debate sobre os crimes ambientais, particularmente da Vale, e novas formas produtivas e de se pensar a economia em territórios minerados.

Os crimes das mineradoras e as alternativas produtivas

Muitos foram os prejuízos para a atividade econômica que milhares de pescadores, produtores artesanais e pequenos agricultores tiveram e continuam a ter com a destruição do rio Paraopeba e do rio Doce. Entretanto, os danos causados pela megamineração a outros setores econômicos ocorrem também em regiões mineradas onde não ocorreram rompimentos de barragens.

Para além das multinacionais de mineração, a economia é a forma através da qual as pessoas produzem e reproduzem sua existência, e isso inclui atividades vistas muitas vezes pela economia de matriz neoclássica como de baixa produtividade e de pequeno retorno econômico. Na visão econômica dos megaprojetos de mineração, a agricultura familiar, a pesca, as formas artesanais de produção e uma miríade de atividades de pequena escala são economias de subsistência, um sinal do atraso das economias. No entanto, tais atividades são o modo de produzir e viver de milhões de pessoas no país.

O propagandeado desenvolvimento da megamineração a céu aberto, como é o caso da Vale em Brumadinho e outros municípios, gera dificuldades para essas formas econômicas de produção realizadas em regiões mineradas. A poluição, a alteração e a destruição de córregos, igarapés e rios, o rebaixamento do nível do lençol freático, a emissão de poeira, a migração de população decorrente da instalação e expansão da megamineração, afetam de maneira determinante essas atividades econômicas. Em muitos casos, inclusive, as aniquila.

Essa população destituída de suas formas econômicas, caso opte por continuar residindo nas regiões de mineração, busca postos de trabalho na própria atividade mineradora que exigem menor qualificação e que, também, oferecem piores contratos, salários e condições de trabalho. Assim, as opções de se produzir a vivência nesses territórios vão diminuindo, até chegar ao ponto em que aparentemente a única opção para além da mineração é emigrar. Essa destituição de alternativas econômicas constrange os trabalhadores e a população da região a aceitarem uma suposta vocação econômica, inflada pela narrativa das empresas tendo a mineração como único caminho viável. A economia de Brumadinho padece desses problemas, típicos de economias baseadas na mineração em larga escala.

Em territórios onde a megamineração ainda não se instalou, contudo, existe a possibilidade de se defender os Territórios Livres de Mineração (TLMs). Considerando o limitado poder de consulta e deliberação popular do atual modelo de licenciamento de projetos de mineração no país, os TLMs podem ser uma importante bandeira de luta ao redor da qual se reúnem populações que declinam a instalação da megamineração.

Porém, resta ainda a questão do que fazer em territórios minerados, aqueles que contam com a presença de grandes empreendimentos de mineração. O que é possível propor para a população desses territórios? A proposta deve partir do conhecimento da realidade dos territórios minerados e de suas características. Nesse sentido, aponta-se para a necessidade de se debater a diversificação econômica popular nas regiões mineradas.

Enquanto diversificação popular entende-se a criação e fomento de variedades econômicas para além da mineração em formas econômicas cooperativadas e solidárias, destacando-se a agricultura familiar, principalmente em sua forma agroecológica, o turismo comunitário, a pesca, formas artesanais e tradicionais de produção. Além disso, políticas voltadas para a diversificação produtiva contam com a premência de incentivos à pesquisa científico-tecnológica nesses territórios por meio de benefícios fiscais e financiamentos. Os recursos para tal diversificação poderiam vir da própria atividade mineradora, por exemplo da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM). Ainda, os recursos oriundos de multas dos órgãos ambientais às mineradoras e novos tributos podem também servir de base para esses estímulos.

Por fim, cabe destacar que o Estado pode ser um facilitador, porém sem a participação ativa da população dessas regiões no processo decisório de como criar alternativas econômicas, qualquer iniciativa será infrutífera. É essencial a participação dessas populações e qualquer iniciativa deve partir dessa participação.

Apesar de aparentar que as populações dos territórios minerados estão em uma cava sem saídas, existem potencialidades e alternativas aos buracos propostos pela megamineração. A luta popular é certamente a base dessas potencialidades e alternativas. Na próxima seção, discutimos a luta popular e o trabalho de base na mineração, tendo como base a fala de Magno Costa, articulador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que convive com a resistência à mineração no interior da Bahia.

A luta popular e o trabalho de base na mineração

Os acontecimentos supracitados demonstram a necessidade da população debater e construir um projeto político mineral popular soberano. A participação massiva dos trabalhadores e trabalhadoras, quilombolas, camponeses, povos das matas e das águas é a base desta construção. Nesse sentido, faz-se necessária a presença de organização social que permita sustentar as pautas do povo que, em sua diversidade, vive em contradição com o atual modelo mineral. Mas como isso seria possível?

Neste processo, é importante colocar em evidência a democratização do poder, ou seja, é urgente que o povo aprenda na prática o que significa tomar decisões, negociar e apontar um caminho a seguir. Por isso as Assembleias Populares são uma ferramenta pedagógica, organizativa, formativa e de luta. Essa ferramenta nos permite discutir a inviabilidade deste modelo de exploração mineral - pautando-se em experiências concretas - e construir uma proposta de luta que supere este modelo baseado no modo de produção capitalista.

Assembleias Populares trazem ações que apontam para a resolução imediata dos problemas concretos dos trabalhadores e trabalhadoras, de camponeses e camponesas, dos povos tradicionais das águas e das matas, e para a formulação, no presente, da sociedade que queremos no futuro, ou seja: uma proposta de luta. Não se constrói uma proposta de luta sem dialogar/vivenciar as contradições que o povo enfrenta, sem olhar para a sua realidade cotidiana. Não há como fazer uma proposta de luta sem levar em consideração a necessidade de construir um mundo novo.

Nesta realidade as mudanças estruturais exigem a negação do velho (projeto de morte), ao mesmo tempo em que se pratica o mundo que se quer construir (projeto de vida). Não há, portanto, soberania popular na mineração sem uma mudança estrutural na sociedade.

Diante de tal complexidade da realidade, fazer trabalho de base é dialético; é ter intencionalidade, é anunciar a possibilidade de um mundo novo e dialogicamente resgatar a dignidade, fazer entender que temos condições de mudar a realidade em que vivemos. Para que mudanças aconteçam, é necessária a organização popular dentro de um novo projeto, onde cada realidade dirá qual a melhor forma de organização, pois sabemos que não existe uma fórmula única. O que pode garantir o sucesso deste trabalho é a síntese do conhecimento teórico aplicado à prática - por isso a formação não está separada da ação. A prática nos ajuda a pisar no chão das contradições, compartilhando experiências e qualificando a luta.

Parece-nos importante também afirmar que todo trabalho de base é um processo educativo. Por quê? Porque ele apresenta maneiras de conhecer a realidade social e de lidar com os problemas colocados por ela. Para os movimentos populares, é uma ação transformadora porque tem por objetivo mudar as condições da realidade apontando pressupostos organizativos, formativos e de luta. É também dialógico porque compreende que essa superação só se dará com o outro. Caberá aos oprimidos desta terra se libertar dos opressores e, dialeticamente, libertar quem os oprime. De tal forma, o trabalho de base garante uma práxis pedagógica que articula teoria e prática.

Resgatemos os ensinamentos freirianos. Eles nos ajudam a compreender como podemos relacionar de maneira positiva os conhecimentos sistematizados e os saberes populares. Os saberes populares produzem uma cosmogonia que é eficaz para a explicação dos fenômenos no mundo - desde a agricultura (quando plantar, o que plantar etc.) à política (porque vivo desta maneira e não de outra) - ou seja, esse saber resolve os problemas concretos de um povo que tradicionalmente arquiva e reproduz esse conhecimento. Por exemplo, para ter uma boa safra de milho no São João, é passado de geração para geração que é importante plantar no dia de São José. Para explicar a da pobreza, argumenta-se de geração em geração que é a vontade de Deus. O exercício pedagógico é compreender esse processo de aprendizagem e superá-lo com o conhecimento científico sistematizado. Superá-lo, então, não em um sentido positivista, onde um é superior ao outro, mas no sentido dialético: tese-antitese-síntese. O conhecimento sistematizado é, portanto, aquele que extrai uma teoria dos saberes populares que consiga chegar à raiz do fenômeno estudado, extraindo dos fenômenos particulares as leis universais que contribuem para a transformação da sociedade.

Não é um caminho fácil. O povo brasileiro não participou das decisões políticas do nosso país. No caso da mineração, é possível percebermos e afirmarmos que o modelo mineral se constrói de forma antidemocrática, antipopular e antinacional. Essa caracterização revela uma burguesia que nunca se preocupou com os interesses da nação e agiu sempre para colocar os interesses do povo em segundo plano. Para tanto, foi necessário um Estado forte e opressor, que teve seu melhor exemplar na ditadura militar.

A partir da abertura democrática em nosso país, as organizações políticas centraram sua luta na garantia de direitos dentro da ordem e da democracia burguesa. O desenvolvimento do capitalismo nos países periféricos, somado às iniciativas de luta por dentro da ordem, edificou uma classe em si legalista, que tem uma grande dificuldade de se tornar classe para si.

Aqui uma pergunta é importante: Por que comunidades variadas que vivem em conflito com o mesmo empreendimento têm dificuldade de se organizarem dentro de uma mesma proposta de luta? Primeiro, porque os grandes empreendimentos tentam dividi-las, inclusive compartimentando o projeto no licenciamento para facilitar sua aprovação. Segundo, porque o Estado “aparece” nesses casos como instrumento de mediação de conflitos. Terceiro, porque as condições econômicas empurram as comunidades para “dentro” dos empreendimentos, principalmente em busca dos empregos prometidos pelas empresas mineradoras.

A respeito dessa concepção acerca do modelo de mineração no Brasil, o próprio MAM passou por mudanças em sua estratégia, tal como percebemos na fala de Charles Trocate :

Nós começamos como movimento dos atingidos pela mineração, mas logo depois, a gente recua desse conceito, o atingido negativo, e propõe outra coisa, inclusive para não rivalizar com a construção histórica do MAB, o conceito de atingido por barragem hidrelétrica. A gente recua desse conflito negativo porque não pertence ao atingido na mineração a tarefa da sua auto-salvação, da mudança de modelo de mineração. A gente (...) propõe algo maior, que é a soberania popular na mineração. Significa que, para regular, controlar ou mesmo estimular um outro modelo de mineração, ou não, depende do amplo processo de articulação com a sociedade, e não [é] a tarefa só do atingido.

Para que seja possível avançar na construção de um projeto soberano e popular para um novo modelo mineral brasileiro, será necessário, portanto, tanto compreender aquilo que é particular e vivenciado na realidade concreta cotidiana, quanto sistematizar essa experiência dentro da abstração presente naquilo que é histórico e universal em nossa formação social. Esse duplo movimento deve ser constitutivo de um trabalho de base permeado de estratégias e ferramentas que vocalizem, traduzam e sistematizem a consciência que nos conduz da aparência à essência, garantindo um processo transformador da sociedade.

Diante das problemáticas apontadas, podemos afirmar que os enfrentamentos nos territórios são o que melhor permite ampliar o arsenal de luta contra o modelo de mineração hegemônico. Um exemplo de luta que serve como instrumento pedagógico é a resistência do Assentamento Bom Gosto, localizado no Sul da Bahia. O assentamento tem vinte e um anos e abriga cerca de setenta famílias que estão na zona de impacto da construção do Porto Sul/Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), que tem por objetivo escoar o minério de ferro da Bahia Mineração (Bamin) e da Sul Americana de Metais (SAM).

Desde 2008, o assentamento é visto como uma “pedra no sapato” desses grandes empreendimentos. No início do projeto da Bamin, a poligonal na qual seria construído o porto era de 4.833 hectares, na região de Aritaguá. Setores da sociedade local articulados com os interesses da mineradora, somado à falácia da abertura de postos de trabalho, construíram uma narrativa que colocou os pequenos agricultores em segundo plano. Os defensores do Porto Sul questionavam a importância do assentamento em relação a um projeto de porte internacional.

Os assentados do Bom Gosto se articularam e se organizaram. Primeiro fizeram uma ampla aliança com ambientalistas, pastorais, igrejas e movimentos populares, a exemplo do MAM. Depois, conseguiram vocalizar a importância do pequeno agricultor e da alimentação saudável com base agroecológica. Apontaram a relação entre os projetos, ou seja, entre a cava da mina, em Caetité, a ferrovia que atravessa mais de quarenta municípios e o porto. Assim, visitaram comunidades no alto sertão e fizeram uma aliança de luta.

Em 2014, o governo do estado da Bahia reduziu a poligonal para 1.860 hectares, garantindo o assentamento fora da área do porto. Esse fato seria suficiente para abrandar os ânimos dos assentados. No entanto, cientes de que mesmo fora da poligonal continuariam impactados, permaneceram atentos e participando das articulações em favor do fortalecimento do pequeno agricultor.

São mais de doze anos de resistência articulada em níveis diferentes de luta. Fecharam estradas, articularam-se com amplos setores da sociedade, entenderam-se como pequenos agricultores e procuraram apoio jurídico. Com a certeza de que quem luta pela terra deve ficar atento sempre, venceram.

Considerações Finais

A luta em territórios minerados ou onde a mineração pretende se instalar é complexa. São diferentes grupos, classes sociais, culturas, biomas e territórios envolvidos. Nas regiões onde a mineração está presente, busca-se a mobilização e a organização das populações que sofrem com os efeitos da atividade e a criação de alternativas econômicas que possibilitem outras formas de produzir e viver nesses territórios. Nas regiões onde mineradoras pretendem instalar seus projetos, tem centralidade a pauta dos territórios livres de mineração e a valorização de formas produtivas existentes, tais como a agricultura familiar, a agroecologia, o turismo comunitário, formas de produção tradicionais e artesanais etc. É preciso também aprender com as formas de organização que os povos originários desenvolveram ao longo dos séculos; algumas delas constituem metodologias democráticas para a construção da mobilização e organização popular.

Assim como se multiplicam as formas de resistência à mineração no Brasil e no continente latino-americano, crescem também os crimes cometidos pelas mineradoras: rompimentos de barragens, poluição dos rios, solo e ares, ameaças aos militantes, fluxos financeiros ilícitos, violações aos direitos trabalhistas, e se segue uma longa lista. Portanto, as lutas na mineração acompanham os conflitos crescentes, que devem ser um dos eixos políticos que determinarão os próximos passos na sociedade brasileira e na América Latina. Esperamos que essa luta dos movimentos sociais e das comunidades em defesa dos territórios resulte na efetiva aplicação do direito a uma vida sã e pacífica.

  • NOTA

    A realização desta roda de diálogo contou com apoio da Capes, CNPQ e Fundação Rosa Luxemburgo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2021
  • Aceito
    07 Set 2021
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