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ARTE URBANA, ARTE CONTEMPORÂNEA

URBAN ART, CONTEMPORARY ART

ARTE URBANO, ARTE CONTEMPORÁNEO

RESUMO

A forma estética originária do grafite e pixação – desenho/inscrição/assinatura – é sensivelmente tributária de seus imperativos performáticos sobre o território – driblar e superar os dispositivos de vigilância e disciplina da cidade. O processo de reconhecimento do grafite e da pixação nos museus e galerias tradicionais, via estratégias de transliteração estética, absorve esse duplo registro da linguagem, que se realiza não apenas no traço efetivamente grafitado – a imagem –, mas inclusive no desenvolvimento da ação de grafitar – a performance. Nesse sentido, as exposições de arte urbana elaboram projetos de curadoria que restituem às imagens, ainda que expostas no abrigo institucional, sua natureza agencial sobre o território, fazendo do grafite não um gênero alternativo de pintura, mas trânsito estético entre linguagens contemporâneas.

PALAVRAS-CHAVE
Arte urbana; Arte contemporânea; Grafite; Transliteração estética; Curadoria

ABSTRACT

The original aesthetic form of graffiti and pixação – image/inscription/signature – is significantly dependent on its performative imperatives on the territory – to dribble and overcome the city’s surveillance and discipline devices. Graffiti/pixação recognition process in traditional museums and galleries, via aesthetic transliteration strategies, absorbs the dual aspect of the language, which takes place not only in the graffiti design – the image – but also in the development of the graffiti action – the performance. In this sense, urban art exhibitions elaborate curatorship projects that restore to images their agency on the territory, even if displayed in the institutional shelter, making graffiti not an alternative genre of painting, but an aesthetic transit between contemporary languages.

KEYWORDS
Urban Art; Contemporary Art; Graffiti; Aesthetic Transliteration; Curatorship

RESUMEN

La forma estética originaria del graffiti y la pintada – dibujo/inscripción/firma – está estrechamente ligada a sus imperativos performativos en el territorio – esquivando y superando los dispositivos de vigilancia y disciplina de la ciudad. El proceso de reconocimiento del graffiti y la pintada en museos y galerías tradicionales, a través de estrategias de transliteración estética, absorbe este doble registro del lenguaje, que se materializa no solo en el trazo efectivamente grafitado – la imagen – sino también en el desarrollo de la acción de hacer graffiti – la performance. En este sentido, las exposiciones de arte urbano elaboran proyectos curatoriales que restituyen a las imágenes, aunque estén expuestas en el refugio institucional, su naturaleza de agente en el territorio, convirtiendo al graffiti no en un género alternativo de pintura, sino en un tránsito estético entre lenguajes contemporáneos.

PALABRAS CLAVE
Arte urbano; Arte contemporáneo; Graffiti; Transliteración estética; Curaduría

1. Grafite-ato, grafite-traço

Em certa ocasião, estava andando por Porto Alegre e vi um grafite de um enorme cartão-postal desenhado na superfície de um extenso muro branco, perto do centro da cidade. Não havia qualquer inscrição, desenho, endereço, nada; apenas a parte anterior de um cartão-postal, com o espaço contornado do selo, as linhas vazias para o remetente, as retas pontilhadas. O desenho era banal, prosaico, sem nenhum traço particular que pudesse mobilizar ou provocar curiosidade. Não fosse a natureza do muro, a intervenção seria medíocre. Mas o muro era a divisória entre a Avenida Beira Rio e o Lago Guaíba, na altura da Praça da Alfândega. Em função da altura e da extensão, o paredão branco impedia o transeunte de atestar a beleza do lago que, de outro modo, representaria uma agradável mirada para aquele que caminhasse pelo centro da cidade. O grafite do cartão-postal era uma ironia clara contra a privação a que estavam submetidos os porto-alegrenses, caráter irônico cuja acentuação era afirmada pelo local de disposição do desenho.

Diferentemente da escultura ou da pintura, que, no geral, podem ser realocadas sem que a peça individual altere seu valor semântico, o grafite extrai muito de seu significado particular da consideração de seu local de intervenção (a ” caráter cênico” do grafite). Arte urbana, nesse sentido, é um exemplo acabado de estética site-specific, não porque a obra tenha sido encomendada estritamente para aquele local, mas porque o sentido imagético, simbólico e retórico da criação spray só alcança completa elucidação se confrontarmos a manifestação gráfica e o lugar de inserção, numa descrição que responda às diversas valências da linguagem. No plano imediato da imagem, descrever o grafite porto-alegrense é bastante simples: reconheço os contornos de um cartão-postal desenhados numa parede branca da cidade. O formato específico da tirada urbana, sarcástica e pública, cuja mensagem não se entrega no olhar imediato, mas assume paulatinamente compromissos de significado com seu suporte, é um traço de contexto que o estudo puramente icônico não alcança. A inscrição grafite, ao se apropriar da sintaxe da cidade, enuncia sentenças de presença e contexto que são irredutíveis ao desenho; investigar a sociogênese da forma grafite é investigar, portanto, como os processos sociais da cidade imprimem sua fatura na gramática da forma.

BaudrillardBAUDRILLARD, Jean. Kool Killer ou A insurreição pelos signos. Revista Cine Olho nº 5/6, jun/jul/ago 1979., em artigo publicado em 1979, distingue duas modalidades paradigmáticas de intervenção mural, a “europeia” e a “americana”. Na Europa, e especialmente em Paris durante os eventos estudantis de 1968, a inscrição urbana assumia preponderantemente a forma do slogan político, da reivindicação ideológica, do ataque contundente ao Estado. Os jovens universitários parisienses opunham-se às guerras que confrontavam o Bloco Soviético e o capitalismo de liderança norte-americana, exigindo, na esteira disso, maior abertura e tolerância no campo dos costumes. As frases eram rápidas e incisivas, escritas em uma linguagem acessível que transmitia com clareza uma mensagem ideológica (“nossa esperança não pode vir senão dos desesperados”, por exemplo). As frases de 68 foram espalhadas nas ruas da capital francesa precisamente porque aquelas eram ruas da cidade, com o tráfego intenso, as conotações simbólicas dos prédios, os perfis de transeuntes que circulavam por determinada área; a forma específica do grafite parisiense, ou grafite “europeu”, só pode ser compreendida nos termos históricos e sociais característicos daquele momento de reinvindicação, em que a frase público-poética desafiou simbolicamente as políticas do Estado francês, registro claro de comunicação em que a transmissão de contramensagens é, no plano imediato da forma, uma realização política.

Os jovens americanos, por outro lado, ficaram conhecidos pelas inscrições que, na perspectiva do sujeito incauto, não vinculavam qualquer significado reconhecível ou aparente. Os grafites eram, na sua maioria, justaposições de palavras e números que apareciam infinitas vezes nos muros e trens de Nova York. O acréscimo paulatino de cores, formas, efeitos tridimensionais, aumentava ainda mais o hermetismo das intervenções, de sorte que o reconhecimento de letras e números se tornava, para todos os efeitos, impraticável para qualquer um que não estivesse inserido no grupo (portanto, exato oposto do projeto de Paris, que cumpria de imediato sua decifração ideológica).

A distribuição desigual de serviços, instituições artísticas, conglomerados empresariais, edifícios públicos, na extensão da grande metrópole americana – ou francesa, japonesa, brasileira –, gera sua contraparte de assimetria no fluxo desigual de pessoas pelo território; a territorialização do espaço urbano, por sua vez, promove um tipo bem particular de assimetria: a assimetria de alcance visual. Uma peça iconográfica altera sua potência retórica se posicionada nas áreas de realce da cidade, seja porque o número absoluto de pessoas atingíveis é incomparavelmente maior do que nas periferias ou subúrbios, seja porque o significado dos diferentes espaços urbanos transfere parte desse conteúdo emblemático à obra iconográfica. A assimetria visual das diversas áreas da cidade gera um segundo tipo de concentração, a da legalidade visual. As imagens juridicamente protegidas foram autorizadas a reclamar a atenção dos passantes, e a autorização é quase sempre sinônimo de monetarização dos espaços da vida. Nesse sentido, o que existe é um mecanismo de mercado que filtra a visualidade possível nos espaços de concorrência. E quando a visibilidade se torna precificada, o discurso imagético com chances reais de atingir a população ou provém do Estado, ou dos grandes players corporativos, de sorte que o dissenso iconográfico, político, moral quase não tem espaço no tabuleiro da legalidade. O grafite americano subverteu essa lógica da presença de maneira radical, não só porque as suas tags preencheram as paredes centrais da cidade, mas fundamentalmente porque elas surgiram na capital do mundo, Nova York – visibilidade que ultrapassa a geografia da própria cidade, e que antecede e catalisa todas as demais visibilidades globais. Qualquer que tenha sido o objetivo consciente que animou a ação dos grafiteiros, a mera presença do grafite era um elemento de subversão da visualidade, justamente porque rompia com a seleção mercadológica de ocupação dos espaços e, na esteira disso, ampliava os limites para a discordância visual, estimulando outros pares de rebeldia a inscrever seus descontentamentos urbanos sem a disciplina da autorização. Dado que as inscrições não indicavam explicitamente uma mensagem, conteúdo ou crítica, não buscavam ilustrar ou figurar nada, a presença era o elemento fundacional do gesto; estar ali encenava a primeira comunicação de sentido:

El graffiti no vende un producto ni un mensaje institucional, expresa su presencia, su conquista del espacio. Es un mensaje que quiere causar inquietud, porque es, ante todo, de resistencia, tanto física y espacial como simbólica y de respuesta a la densificación icónica de la sociedad contemporánea y la hegemonía de las imágenes emanadas, sin posibilidad real de respuesta, desde los medios de comunicación de masas. (DIEGO, 2000, p. 239DIEGO, Jesus. Graffiti. La palabra y la imagen. Barcelona: Los libros de la frontera, 2000.)

Exercising actual freedom of expression enables artists to contest a city’s corporate visual culture by either explicitly responding to it or creating new avenues of visual communication. Regardless of the artist’s intention, producing art on the street is in itself a form of resistance to sanctioned imagery and the notion of public space. In other words, the unauthorized visual alteration of city spaces is a type of rebellion against the capitalist construction of space. (WACLAWEK, 2011, p. 73WACLAWEK, Anna Graffiti and Street Art. London: Thames & Hudson Ltd, 2011.)

As características formais da tag são tributárias dessa concentração de legalidade. Uma das mais famosas assinaturas gráficas é a icônica TAKI 183. Taki era o apelido de Dimitraki, um imigrante grego residente em Nova York, e 183 fazia referência à 183rd Street, seu endereço à época. Era, portanto, uma inscrição notadamente identitária. Mesmo assim, a identificação pessoal estava protegida pelo “pseudônimo imagético”, de sorte que Dimitraki conseguiu projetar-se nos muros sem que os muros o delatassem. A inacessibilidade de TAKI 183 (e de tantas outras tags) era inclusive – mas não só – uma maneira de desviar-se das regras de seleção iconográfica, de modo que o atentado à visualidade autorizada não redundasse em sanções jurídico-criminais. Os apelidos, acrescidos dos números de endereço, garantiam que a conexão com os respectivos autores fosse camuflada de spray, e esse é um corolário óbvio da dinâmica social e urbana no projeto estético/autoral dos grafiteiros. Em Paris, a mensagem contramajoritária, realizada através de comunicação clara e transparente, afirmava sua intenção política; em Nova York, o sujeito contramajoritário – imigrante, negro, porto-riquenho – realizava, através de comunicação hermética e codificada, uma intenção igualmente política, só que numa chave mais sutil: contestar a assimetria de ser visto, sem ser visto.

A conquista simbólica do espaço, no entanto, não terminava com o sucesso individual de uma única tag, mesmo que estampada em local de prestígio e amplificação. A afirmação da superioridade gráfica decorria da pulverização de tags pelo território, de modo que a disputa por muros refletia a busca pela supremacia da assinatura. Quanto mais ocorrências de uma tag, maior era o cacife simbólico do grafiteiro. A tag, porém, era uma forma simples de assinatura identitária. O passo seguinte para a concorrência spray assumiu a pesquisa iconográfica como mecanismo de confirmação de superioridade. Elaborar inscrições formalmente rebuscadas, combinando cores e texturas, sem desrespeitar o tempo exíguo da punição, era um exercício de atrevimento artístico que denunciava os melhores grafiteiros: de um lado, virtuose; de outro, rapidez; traço e ato conformando as características e propriedades da linguagem. Esse traço crescentemente colorido/figurativo do grafite, em que se misturam elementos textuais e imagéticos, revela com nitidez a sensibilidade iconográfica dos artistas-grafiteiros, imagens claramente inspiradas nos desenhos animados, nas histórias em quadrinhos, nas animações, na publicidade, nos mangás, nos videogames etc. (DIEGO, 2000DIEGO, Jesus. Graffiti. La palabra y la imagen. Barcelona: Los libros de la frontera, 2000.). A linha do grafite é clara, é nítida, a ilustração fervilha de cores, o traçado é cartunesco, os personagens são caricatos ou fabulescos. O repertório imagético que configura a percepção criativa dos pioneiros americanos é menos o conjunto venerado das belas artes, e mais a afluência de figuras, sons e cores que excita o mercado de consumo cultural. Isso não significa, no entanto, que a figuração seja uma reprodução simples dos conteúdos da indústria de massas, ao contrário: a estética da imagem hodierna reflete suas características emblemáticas no trabalho dos grafiteiros que, por sua vez, assimilam o material de forma original e inovadora, no assim chamado processo de sampling.

La relación del graffiti hip hop con los medios de comunicación de masas y con los iconos de nuestro tiempo es larga y problemática. (…) Debemos considerar la utilización de esta tradición en el ámbito de la cultura hip hop a la luz del sampling como proceso básico de cita, distorsión y transformación de los contenidos de esta tradición. (DIEGO, p. 240–241DIEGO, Jesus. Graffiti. La palabra y la imagen. Barcelona: Los libros de la frontera, 2000.)

O desenvolvimento pictórico original do grafite, que combina, no próprio traçado, sua gênese urbana e ilegal, traz consequências sensíveis para o processo de institucionalização da linguagem no campo da arte legítima. A tradição imagética que anima os grafiteiros é, sobretudo, o conjunto de ilustrações e desenhos da indústria cultural que configura a sensibilidade iconográfica contemporânea. Por outro lado, o discurso de legitimação da imagem, de ascendência crítica, erudita e acadêmica, possui critérios de julgamento pictórico construídos a partir de outra tradição figurativa; quando a imagem grafite é submetida ao exame crítico e especializado, é a imanência da imagem que, em não raras ocasiões, recebe apreciação nos termos de produto estético “kitsch”, fácil, mera decoração. Mesmo a tradicional aproximação entre grafite e pop art encerra certa superficialidade de análise, na medida em que o procedimento estético que orienta ambos os empreendimentos é essencialmente diferente: quando Warhol produz um painel com a imagem do Mickey Mouse, o desenho animado é signo que supera a representação imediata do desenho, é emblema da mercantilização cultural, da homogeneização do consumo, esboço de reconciliação entre o mundo da arte e o mundo da vida na chave da superficialidade de sensações-consumo (McCARTHY, 2002, p. 41–42McCARTHY, David Arte Pop / trad. Otacílio Nunes. São Paulo: Editora Cosac & Naify, 2002.). Quando OSGEMEOS produzem um mural com seus conhecidos personagens amarelos, a narrativa imagética é o fim em si, a proposta artística de mérito próprio que, não sendo pop, é genuinamente popular. A estética dos produtos culturais de massa está incorporada no traçado do grafite, e não no meta-comentário da obra; ou, em outras palavras: naqueles, a cultura pop é essencialmente conteúdo de estudo; nestes, ela é essencialmente forma narrativa.

Para acompanhar o processo de institucionalização artística do grafite é necessário reconhecer, portanto, essas duas dimensões da obra de arte urbana: o grafite enquanto traço, e o grafite enquanto ato; este, performance e agência; aquele, pintura e artesanato. Meu objetivo é demonstrar como o processo de consagração do grafite acentua discursivamente os aspectos performáticos, agenciais e subversivos da forma social grafite (grafite enquanto ato), e não as propriedades imagéticas das obras grafitadas (grafite enquanto traço). Os elementos preponderantes de validação estética que concorrem para a apreciação legítima da arte urbana transcendem a imagem individual grafitada para ressaltar, isso sim, as propriedades performáticas da prática, como o anonimato subversivo das tags, o enfrentamento à legalidade visual das ruas, a provocação iconográfica na grande cidade, o comentário político e a crônica urbana, as camadas de sentido que o local específico de disposição sugere etc. O desenho no muro pode agradar, mas o impulso legitimador é resultado do significado social do grafite, elemento discursivo e contextual.

The terms “graffiti” and “street art” generally invoke an image - that is, a painted public surface of some sort. Yet graffiti and street art, by their very nature as public and often illicit productions, also incorporate a particular set of practices and experiences. To write graffiti or paint street art is to negotiate situations of vulnerability and risk far different than those inside the confines of the art studio or gallery, and often to do so in the company of other street art practitioners. Because of this, graffiti writers and street artists not only produce distinctive forms of art that are governed by their own aesthetic and stylistic codes; they also engage distinctive if ephemeral artistic experiences and communities in the moments that they produce such art (...). For its practitioners, the phenomenon under consideration is immediate act as much as eventual art. (FERREL, 2016, p. XXXIIIFERREL, Jeff Foreword: Graffiti, Street Art and the Politics of Complexity. In ROSS, Jeffrey Ian. Routledge Handbook of Graffiti and Street Art. Nova York: Routledge, 2016.)

2. Transliteração estética

Uma lata de alumínio contendo fezes humanas não é arte, evidentemente. Não pode ser arte. Não deveria ser arte. Se equipararmos um mero expediente de repulsa a legítimo processo de criação estética, nós banalizamos o compromisso artístico ao seu mais flagrante termo de imaturidade. Quem disse que o paradigma contemporâneo de arte não diz nada a plenos pulmões, tem na lata um objeto fetiche.

Por outro lado, é igualmente verdadeiro que, no bio-gesto de Manzoni, o processo de realização da obra antecede o momento particular de exposição do objeto: a aquisição de uma lata de excremento, barganhada a preço de ouro, inaugura um comentário sobre o conjunto de adjetivos que estrutura o fazer-concorrência no paradigma contemporâneo de arte – concorrência superficial, absurda, imatura, vazia, fácil. Lata de fezes e Merde d´artiste não são a mesma coisa: o processo de realização da segunda antecede o momento particular de exposição, em que a primeira é, efetivamente, visitada; um é esteio do outro, mas não se confundem. Quando as mais importantes instituições e coleções de arte do mundo expõem dejetos aos seus visitantes, o autor do desacato obriga-nos a transcender a lata imediatamente exposta, e testemunhar a falência do projeto artístico inaugurado nas desobediências vanguardistas do começo do século XX, e transformado em caricatura de obscenidade mediante empenho deliberado. Se Duchamp transformou o plágio em originalidade, a lata é a cópia de um plágio: o mictório que virou ready-made desafiou a instituição legítima; o ready-made que virou excremento é a própria institucionalidade legitimada. A lata encerra a provocação, mas a obra é maior do que o objeto. É o próprio ridículo: se ela está exposta em um museu de arte, a sua mensagem de descrédito transcende o objeto em sua fisicalidade imanente, e busca no elemento discursivo as chaves possíveis de repercussão.

A incorporação do grafite no sistema de arte contemporânea responde, de igual maneira, às prerrogativas de transgressão discursiva: o museu não expõe uma bela pintura urbana (objeto imanente), ele exibe – enquanto projeto de curadoria e texto catalográfico – a forma social da linguagem, arquitetada na urgência do mundo da vida. A imagem não é um “em si” de contemplação, na medida em que a ocupação dos espaços públicos, nos termos de insubordinação, produz uma forma que, antes de ser estética, é imediatamente social: rapidez do traço, anonimato, originalidade da assinatura, perícia urbana (escalar prédios, formar escadas humanas, pular marquises, enganar porteiros etc.). Todas essas propriedades de repercussão formal são derivadas da relação que os grafiteiros, pixadores e artistas estabelecem com os dispositivos de vigilância e disciplina, autorização e contra-ataque visual, gênese de uma linguagem que não é imagem, mas transição entre imagem e cidade.

Ao absorverem a produção estético-urbana no abrigo expositivo, as instituições de arte oferecem um projeto de transliteração estética para capturar essa dinâmica de emergência do urbano que se realiza no traço do grafite. Transliteração estética é o mecanismo através do qual museus e galerias utilizam suportes de linguagem diferentes do suporte grafite – fotografia, videoarte, performance, instalação, assemblage, catálogo etc. – para reinserir o desenho grafite nas diversas valências da linguagem urbana grafite. Se a institucionalização separa a intervenção urbana da rua, a transliteração estética, através de cuidadosa concepção curatorial, procura reafirmar a conexão entre intervenção e cidade, projetando na peça as camadas de linguagem que não se encerram no mero desenho. As mais destacadas exposições de arte urbana que ocorreram no circuito paulistano de museus e galerias procuraram traduzir um aspecto das valências urbanas (cenaridade, performance, agressão etc.) para o seu ambiente de exibição, de sorte que os recursos de curadoria não convidavam a audiência a admirar imagens em sua imanência composicional ou colorística, mas a testemunhar a conjunção entre arte e cidade, o ato de grafitar que encerra os significados mais originais do traço grafitado.

Em 2004, a Pinacoteca do Estado de São Paulo abrigou a exposição “A cidade ilustrada”, de Marcio Scavone. Nela, o fotógrafo paulistano apresentou mais de 50 imagens com grafites e intervenções urbanas espalhadas por São Paulo. Os enquadramentos buscavam situar as realizações dos grafiteiros em seu contexto urbano imediato, além de registrar as reações das pessoas diante das obras. No espaço expositivo, a curadoria esforçou-se em projetar uma atmosfera de urbanidade que refletisse o locus orgânico das intervenções e, entre uma fotografia e outra, solicitaram ao pixador e artista Mauro que inscrevesse suas frases de protesto, cirurgicamente desorganizadas, nas paredes do ambiente. Ao fundo, os visitantes podiam escutar os sons metropolitanos captados nos respectivos lugares em que Scavone registrou as cenas (MUSEU..., 2004MUSEU atesta pluralidade fotográfica. Folha de São Paulo. São Paulo, 7 ago. 2004. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0708200421.htm. Acesso em: 13 out. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustr...
). Na mesma Pinacoteca, o grafiteiro Alexandre Órion organizou a exposição “Metabiótica”, também em linguagem fotográfica. O artista congelou o momento preciso em que os transeuntes da cidade, sem qualquer estímulo ou orientação prévia, “invadiam” o quadrante da fotografia e, involuntariamente, protagonizavam relações de significado com as intervenções urbanas do próprio Órion, produzindo pequenas anedotas narrativo-imagéticas (uma fila de alienígenas aguarda um senhor terminar a ligação no telefone público; a moça pichada conduz um cachorro verdadeiro pela calçada; um garçom aristocrático serve seus clientes em um bar de salubridade comprometida etc.). Assim como em “A cidade ilustrada”, Órion distribui seus grafites pelas paredes do espaço expositivo, de modo a entrelaçar a linguagem urbana ao suporte fotográfico (CAVERSAN, 2004CAVERSAN, Luiz. Mostras na Pinacoteca esclarecem duas “radicalidades” da fotografia. Folha de São Paulo. São Paulo, 22 mai. 2004. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2205200424.htm. Acesso em: 13 out. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustr...
). Em 2005, o Instituto Gtech de São Paulo albergou a exposição “SPray: tatuagens urbanas”, com fotografias de Iatã Cannabrava e um grupo de nove rapazes que, em um final de semana, percorreu a cidade – especialmente os redutos de arte urbana – para apresentar um olhar geracional sobre as intervenções. Nas palavras do fotógrafo:

Nossa intenção era propor essa reflexão sobre o excesso. São Paulo se comunica visualmente de forma muito caótica. Seja com aquelas faixas de ‘Eu te amo’ colocadas nas ruas, com outdoors que ocupam paredões inteiros dos prédios e cobrem edifícios históricos ou com a pichação, que, às vezes, tem letras lindas e, em outras, é puro vandalismo. (GRAFITE GANHA EXPOSIÇÃO..., 2005GRAFITE ganha exposição e debate. Folha de São Paulo. São Paulo, 25 mai. 2005. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac2505200503.htm. Acesso em: 14 out. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/aconte...
)

Além da mostra fotográfica, a instituição promoveu três encontros para debater os desafios e potenciais da arte urbana, com os sugestivos nomes de “O legítimo e o transgressor”, “Público e privado”, e “Vandalismo e expressão” (GRAFITE..., 2005GRAFITE ganha exposição e debate. Folha de São Paulo. São Paulo, 25 mai. 2005. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac2505200503.htm. Acesso em: 14 out. 2021.
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).

“A cidade ilustrada”, “Metabiótica”, e “Spray” instrumentalizam o suporte da fotografia a fim de desafiar a descontinuidade entre o grafite institucionalizado e a cidade. Os retratos das intervenções, emolduradas em seus respectivos locais de disposição, “restituem” a valência de cenaridade como camada possível de significação das imagens. Enquanto o cubo branco oferece à obra sua imanência de neutralidade, a arte urbana se mistura à perturbação do entorno para desenvolver possibilidades de sentido. A transliteração estética, neste caso, reproduz pequenos sintomas de urbanidade para construir uma ficção de pertencimento: o caos metropolitano recobre as paredes da instituição com ilustrações de violência visual; as fotografias congelam a cidade no enquadramento do museu; a paisagem sonora sugere uma avenida de acontecimentos que transporta a sensibilidade do visitante para a desproteção externa. O grafite imprime sua estética particular nas exposições de arte com base na agência urbana da linguagem, da qual extrai sua relevância provocadora (o ato). Todo o esforço de curadoria, a partir da transliteração fotográfica, busca desencorajar uma apreciação imagética que olha a obra como simples pintura citadina encerrada em uma visualidade imanente; a cidade é encenada na escala reduzida da instituição, exprimida nos limites de uma cenaridade fotográfica.

Se a metrópole se converte em simulacro de curadoria para fixar narrativas e interpretações no interior dos museus e galerias, é igualmente verdade que as instituições se projetam em direção à cidade para preservar o componente situacional do grafite. Em 2007, os artistas plásticos Celso Githay, Cláudio Donato, e Ozi-Ozéas Duarte participaram de uma grande intervenção mural em nome da galeria Mônica Filgueiras. A performance “Stencil-o-Rama” consistia na pintura de um grande painel na Rua Santo Antônio, no centro de São Paulo, seguido de um percurso de intervenções nas fachadas da cidade que levaria os artistas até o endereço da galeria. Toda a trajetória de realização foi filmada para posterior exibição nas paredes da instituição (EXPOSIÇÕES, 2007EXPOSIÇÕES. Folha de São Paulo. São Paulo, 28 dez. 2007. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/guia/ex2812200700.shtml. Acesso em: 14 out. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/guia/ex281...
). Em 2012, para celebrar o aniversário de 458 anos de São Paulo, o Museu da Imagem e do Som convidou quatro artistas para executarem exibições de grafite, no evento “Arte urbana ao vivo”. Em hora e local previamente estipulados, os grafiteiros fariam intervenções para a audiência do entorno (Mundano e Cela luz eram os destaques da programação) (MASSOTE, 2012MASSOTE, Clara; RAGO, Laura; GROGORIO, Rafael. Confira roteiros grátis ou até R$ 25 para curtir neste feriado. Folha de São Paulo. São Paulo, 24 jan. 2012. Disponível em: https://guia.folha.uol.com.br/passeios/1038497-confira-roteiros-gratis-ou-ate-r-25-para-curtir-neste-feriado.shtml. Acesso em: 14 out. 2021.
https://guia.folha.uol.com.br/passeios/1...
). Nessa mesma trajetória, a 6ª Semana Ticket Cultura & Esporte, realizada em 2012, convidou sete artistas urbanos para demonstrarem sua perícia a uma plateia no Conjunto Nacional (prédio importante da Avenida Paulista, na zona oeste de São Paulo), entre os quais Nove, Paulo Ito e Magoo. A apresentação recebeu o nome de “No ato” (EXPOSIÇÕES, 2012EXPOSIÇÕES. Folha de São Paulo. São Paulo, 2 nov. 2012. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/guia/ca0211201201.shtml. Acesso em: 14 out. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/guia/ca021...
).

Se o grafite é executado “ao vivo” e “no ato”, a audiência, por definição, não responde à contemplação de uma imagem: ainda não há imagem pra ver. Responde, antes, ao testemunho de ação, ao ato de criar grafite. O visitante que aborda uma obra de arte acabada pode gostar ou não gostar do resultado, admirar a técnica ou repudiar sua insuficiência de projeto. Qualquer que seja a reação afetiva ou intelectual, o contato estético se dá através do desfecho autoral, do projeto de imagem concebido pelo artista (mesmo naquelas mais passionais telas de exploração gestual, em que o ato parece transcender o conteúdo imagético – como é o caso dos expressionistas abstratos –, o gesto está, ainda assim, cristalizado, registrado na fatura de execução; portanto, gesto pretérito). Por outro lado, quando a plateia presencia as estratégias, esquemas, falhas, esboços, revisões, cansaços do fazer artístico, o olhar estético soma intimidade à criação, nessa indefinição de fronteira que não separa mais imagem e performance. Esse vínculo de familiaridade performática reduz não só a distância do desinteresse, mas danifica, inclusive, a própria muralha aurática que inscreve uma obra na esfera do inacessível – o grafite é, em sua própria natureza de cotidiano urbano, arte do imediatamente popular, nos dois termos de criação e audiência. A transliteração performática restabelece, portanto, o grafite como uma arte do convívio, do ordinário, uma estética desta ou daquela esquina, para este skatista ou aquele rapper, sem a pretensão litúrgica das grandes assinaturas autorais. A performance evidencia o ato antes de ser traço, de sorte que a agência antecipa e qualifica a contemplação.

“Expor em galerias muda muito as coisas, mas eu tento não deixar que cada peça fique preciosa demais. Tento manter a liberdade e o espaço para experimentação na pintura”, afirma McPherson, grafiteira de Los Angeles (MARTÍ, 2009MARTÍ, Silas. Americanos adaptam arte de rua para exposição dentro da galeria. Folha de São Paulo. São Paulo, 19 jan. 2009. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2009/01/491612-americanos-adaptam-arte-de-rua-para-exposicao-dentro-de-galeria.shtml?origin=folha. Acesso em: 14 out. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/...
). A tentativa de “não deixar que cada peça fique preciosa demais” fala muito sobre a participação dos grafites no ambiente expositivo, processo de institucionalização curatorial que acolhe as intervenções de rua no calendário de exposições legítimas. McPherson sabe que, dentro de uma galeria, o tempo disponível para realização da imagem incide, de modo sensível, nas características estéticas da peça. Sabe também que o espaço legítimo promove, acima de tudo, o valor de visualidade da obra, em detrimento das relações semânticas que uma intervenção compactua com seu entorno. Ao evitar o traço excessivamente primoroso, a grafiteira reconhece que a estética da cidade é o componente de força que o seu trabalho encerra. A iminência do flagrante deposita sobre o traço a hesitação da velocidade; quando a rapidez deixa de ser um imperativo, a irregularidade da linha, cuidadosamente imperfeita, é a virtuose de urgência a evocar uma lembrança de transgressão. Portanto, mesmo no plano mais imediato do traço grafite, é a ação de grafitar que estetiza sua retórica de força, linguagem pictórica original que busca imprimir na gramática do desenho os condicionantes de velocidade da metrópole; mancha e contorno são, eles próprios, signos de cidade.

Alessandra Cestac produz cartazes de si mesma nua e em tamanho natural, e cola-os em lugares incomuns, como pontes ou viadutos de vias expressas. A rapidez dos veículos desconcerta os motoristas que, no vislumbre de nudez, duvidam, por um instante, da aparição feminina. O componente erótico da intervenção produz algum ruído moralista, mas seu alcance transborda o conteúdo, e se afirma na relação de estranhamento entre obra e entorno: a sugestão de presença ressignifica a monotonia do espaço, e cria pequenas desconstruções de familiaridade, exigindo da atenção um tributo ao imprevisto. “Colo as maiores [de corpo inteiro] em vias expressas para que as pessoas fiquem com a sensação de terem visto algo, mas, como não podem parar, não tenham certeza. É uma intervenção urbana que tem como princípio a performance”, afirma. A artista instrumentaliza um imperativo da cidade, qual seja, a velocidade de suas vias marginais, para infundir a sensação de incerteza, de incredulidade, de sorte que a cidade passa a compor sua linguagem estética. “O fato de estar nua em lugar insólito é uma forma de sair do contexto, do lugar de origem, do natural. Acho que o trabalho consegue atingir muitas pessoas, não só do ‘meio’. Adoro ouvir comentários, ou saber que alguém rasgou” (NOVAES, 2006NOVAES, Tereza. Mulher pelada “para” o trânsito nas ruas de São Paulo. Folha de São Paulo. São Paulo, 3 fev. 2006. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0302200627.htm Acesso em: 14 out. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustr...
, n.p.), conclui. A obra de arte urbana não é uma oferta autoral acabada, mas um constante processo de acumulações, desrespeitos, réplicas, deterioração que, no transcurso de sua biografia visual, cede à efemeridade a afirmação de supremacia. O grafite é uma sucessão de atos que, aos poucos, vai depositando novas camadas de significado à proposta original, equiparando o tempo de criação ao tempo de existência física da obra.

Enquanto McPherson estetiza elementos de performance urbana na fatura do grafite, Cestac entrincheira suas intervenções na grade sintática da cidade. O primeiro movimento sai da rua para a instituição; o segundo, sai da instituição para a rua. Essa circularidade da linguagem aparece de modo exemplar nos discursos curatoriais e, mais especificamente, nos catálogos organizados para as grandes exposições de arte urbana em São Paulo, responsáveis por assentar, no próprio plano discursivo, as vinculações entre imagem e cidade, instituição e agressão. Em uma cronologia rápida e panorâmica, destaco os seguintes eventos como significativos para o processo de reconhecimento institucional do grafite brasileiro: em 1981, a Pinacoteca do Estado de São Paulo organiza “Muros de São Paulo”, com fotografias de Alex Vallauri; em 2004, a mesma instituição lança “A cidade ilustrada”, já citada aqui; em 2007 é a vez do Museu Afro Brasil receber “Território ocupado”, no Parque do Ibirapuera; o Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC-USP) prepara sua “Street Art - Do graffiti à pintura” em 2008, numa parceria com o consulado da Itália; 2009 testemunha várias exposições com a temática, primeiro na Funarte, com “Da rua: que pintura é essa?”, seguida por “De dentro para fora/ De fora para dentro”, organizada pelo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), e a “Bienal de Graffiti Fine Art”, no Museu Brasileiro de Escultura (MuBE); também em 2009, acontece a exposição d’OSGEMEOS no Museu de Arte Brasileira da FAAP, “Vertigem”; no ano seguinte, em 2010, o Centro Cultural Banco do Brasil abre a exposição “Ossário”, de Alexandre Órion; o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) homenageia o grafiteiro Alex Vallauri, em “São Paulo e Nova York como suporte”, de 2013; por fim, o Centro Cultural São Paulo alberga, já em 2015, a exibição de “Cartograffiti”.

“Território ocupado”, “Da rua: que pintura é essa?”, “De dentro para fora/ De fora para dentro”, “Muros de São Paulo”, “A cidade ilustrada”, “São Paulo e Nova York como suporte”, “Street Art - Do graffiti à pintura”. O testemunho da circularidade urbana está esboçado já no título das mostras: de um lado, os termos institucionais e citadinos, sugeridos nas oposições “rua” e “pintura”, “dentro” e “fora”, “São Paulo” e “suporte”, “graffiti” e “pintura”; de outro, o museu busca evocar a cidade, a rua, o lado de fora, para qualificar a exposição que ocorre dentro, no interior da instituição: “Território ocupado”, “Muros de São Paulo”, “A cidade ilustrada”. Mesmo as exibições “Ossário” e “Cartograffiti” encerram, a partir de seus respectivos nomes, uma insinuação de circularidade rua-museu: a primeira é o nome da intervenção urbana que Alexandre Órion realiza nos túneis da cidade de São Paulo, e a segunda faz referência a uma “cartografia de graffiti’s” espalhada pelo município e retratada na instituição.

Os catálogos das exposições desenvolvem um enquadramento sobre o grafite alicerçado nessa dinâmica circular entre cidade e instituição, entre o traço e o gesto de grafitar. Aprofundo, nos subtítulos a seguir, os pontos de apoio que caracterizam o processo de transliteração catalográfica.

2.1. Transliteração catalográfica: Ato

O ciclo de exposições Da Rua: Que Pintura é essa? buscou criar um diálogo da instituição com a produção mais emergente da arte contemporânea surgida dos muros das ruas que cortam as grandes cidades como um novo caminho de expressão. Um caminho que escapa ao modelo museológico convencional com suas salas imaculadas de tão brancas. Parece que este tipo de exposição perde cada vez mais sentido diante da vibração da arte que vem dos becos, dos viadutos, dos muros e do asfalto que compõem a malha urbana acinzentada. A rua parece ser o lugar onde se dá atualmente a troca de ideias e de experiências artísticas, gradativamente mais próximas do seu público em potencial. (FUNARTE, 2009FUNARTE. Da rua: que pintura é essa? Catálogo de exposição Fundação Nacional das Artes, São Paulo, 2009., n.p.)

Naturalmente, o debate sobre transgressão visual assume protagonismo nos discursos catalográficos. A liberdade intransigente dos grafiteiros e pixadores, alheia aos mecanismos de autorização, desafia o em-si da imagem, desenraizada dos processos da vida. Grafite, quando na rua, tem como prerrogativa ressignificar os espaços de disposição pública, e a constante modificação estética dos locais estimula a desnaturalização da cidade, incitando uma apreciação ativa da metrópole. Há, portanto, uma homologia entre o caos visual dos grandes centros urbanos, e a liberdade frequentemente violenta do grafite/pixação. “A mobilidade do grafiteiro para produzir imagens espalhadas é uma liberdade nunca antes vista em criadores visuais. Trata-se do conceito de deslocamento e não apenas a difusão da imagem. São dois corpos em relação permanente: a cidade e a legião de grafiteiros espalhados pelo mundo” (MUSEU AFROBRASIL, 2007MUSEU AFROBRASIL. Território ocupado. Catálogo de exposição. Museu AfroBrasil, São Paulo, 2007., n.p.). A conquista desimpedida do urbano, nesse sentido, é parte inerente do seu significado artístico, e estabelece as dimensões de atrevimento e repercussão do ato, bem como seu alcance comunicacional. “O grafite é uma forma de arte que não pede licença ou permissão para existir, nem para conquistar espaços ou reconhecimento da cidade” (CCSP, 2015, p. 55CCSP. Cartograffiti. Catálogo de exposição. Centro Cultural São Paulo, São Paulo, 2015.). O ilícito representa, portanto, a estratégia de combate visual na guerrilha de comunicação, em meio à saturação de outros estímulos visuais concorrentes; seu ato de descompromisso público mergulha a estética numa profundeza de independência criativa: “Compreender o grafite significa, portanto, compreender o exercício de autonomia dos componentes de uma sociedade, dos habitantes de uma cidade. Mais ainda, significa compreender a transgressão como aquele momento do mais lícito exercício de liberdade” (MASC, 1994MASC. Rupta. Catálogo de exposição. Museu de Arte de Santa Catarina, Florianópolis, 1994., n.p.).

A transgressão das intervenções murais, nesse sentido, funciona como veículo de revitalização para os espaços legítimos de exposição que, do contrário, permaneceriam acorrentados à inércia burocrática da arte institucional, descolados do vigor do mundo da vida. A aproximação entre grafite e instituições legítimas não imprime suas digitais apenas sobre a arte de rua, mas registra repactuações no interior do próprio circuito de consagração:

Canalhas são os dissidentes, quem se desconforma, os livres, expoentes de um pensamento eversivo que não tem direito à cidadania dos circuitos oficiais de cultura. Os museus – primeiramente aqueles de arte contemporânea – são a expressão de um modelo que ficou para trás, pré-moderno. São espaços autísticos, assépticos como câmaras mortuárias, imóveis como mamutes, distantíssimos da vida cotidiana pela incalculável complexidade de seus testemunhos. (MAC-USP, 2008, p. 4MAC-USP. Street Art – Do grafite à pintura. Catálogo de exposição. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.)

Ainda assim, não existe ingenuidade possível que desconsidere as alterações estéticas inevitáveis que a autorização impõe sobre o grafite. É evidente que uma parcela de rebeldia urbana se envergonha do aperto de mãos cordial entre grafiteiro e curador, e lamenta por isso: “Depois do desaparecimento de seus protagonistas, esta arte da provocação e do protesto que nasceu em finais dos anos Setenta nos guetos de periferia das metrópoles americanas, parece ter perdido a raiva e a vida. Langue, mas não morre. E muda de epicentro” (MAC-USP, 2008, p. 4MAC-USP. Street Art – Do grafite à pintura. Catálogo de exposição. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.). O tom evoca uma precoce nostalgia de vitalidade: “Os puristas lamentam que, deslocado de seu local e proposta de origem, o grafite tenha perdido seu caráter transgressor e sua espontaneidade (…). Desconfiam da autenticidade das imagens produzidas sem um quê do espírito de aventura” (MAB-FAAP, 2009MAB-FAAP. Vertigem. Catálogo de exposição. Museu de Arte Brasileira, Fundação Armando Álvares Penteado, São Paulo, 2009., n.p.). No entanto, a vinda do grafite à instituição corresponde, antes de tudo, ao deslocamento da instituição para a rua, para a turbulência, para a desproteção. A burocracia do desinteresse deve repensar, portanto, sua inserção de relevância frente às novas formas de produção estética que reclamam não a neutralidade asseada das grandes galerias, mas as anarquias do mundo da vida.

E o graffiti é uma nova arte “doela a quien doela”. Poderíamos dizer que o graffiti do qual estamos falando, mostra a insuficiências de bienais e panoramas e que não bastará acolher “grafiteiros” (inside) em museus sem que os museus saiam do ensimesmamento (outside) de serem museus. Sem que artistas e curadores debatam as questões de ensinamento visual que opera novos raciocínios espaciais. (MUSEU AFROBRASIL, 2007MUSEU AFROBRASIL. Território ocupado. Catálogo de exposição. Museu AfroBrasil, São Paulo, 2007., n.p.)

Tudo porque as exposições de arte urbana não são meras exibições de imagens e despretensão. A diluição da instituição na cidade ajusta o olhar transeunte para apreciar os pequenos deslizes artísticos cometidos pela generosidade ilegal. A aridez cinza da cidade revela, aqui e ali, uma timidez colorida que imprime sinais de beleza em meio à insensibilidade paulistana. São Paulo é uma cidade insofismavelmente feia, um resultado impecável de sordidez, sujeira e desigualdade, tudo confusamente construído em esquinas de degradação e mendicância. Aqui, os únicos alívios de urbanidade cercam-se em ilhas de salubridade e higiene, na seleta metrópole de fachadas limpas e vigilância 24 horas, separada do entorno imediato por um Atlântico de injustiça. O fracasso estético da cidade condena São Paulo a ser uma eterna ruína de progresso, empilhando suas ambições de grandeza em alicerces de penúria e invisibilidade. Numa tal cidade, a “mera decoração” é quase um ato político de dissidência; qualquer beleza é uma reparação:

Ao levar suas intervenções para múltiplos lugares e regiões de São Paulo, o Cartograffiti não apenas nos convida a essa experimentação do urbano, como também representa um rico mapeamento e produz, a partir das margens, um relato inovador que supera a dicotomia centro/periferia sem abrir mão de um profundo questionamento das contradições sociais com as quais convivemos, mas que muitos não veem ou fazem que não. (CCSP, 2015, p. 52CCSP. Cartograffiti. Catálogo de exposição. Centro Cultural São Paulo, São Paulo, 2015.)

Experimentar as intervenções murais nos seus respectivos espaços de disposição constrói uma vivência do urbano, a partir de suas contradições, desconfortos e desafios. A tomada visual das ruas é, a princípio, um empreendimento individual que, na saturação, compõe e desarranja uma grande cacofonia coletiva. Cada intervenção particular projeta suas próprias ansiedades, tormentos, vaidades; no conjunto, todas elas testemunham a soberania de uma visualidade imprevisível, mutável, por vezes cafona e decorativa, frequentemente violenta: “Esta discussão acabaria entrando pelas vielas estreitas da dinâmica da cultura urbana contemporânea e pelos conflitos entre uma alegada visão individualista do mundo e uma suposta visão colaborativa do mundo” (MASP, 2009MASP. De dentro e de fora/ De fora para dentro. Catálogo de exposição. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, São Paulo, 2009., n.p.). Esse mosaico de intervenções que disputa a desatenção citadina sobrevive na ditadura do efêmero; o apagamento e o atropelo são as cortesias de indiferença oferecidas pela cidade; grafite e pixação se preservam no conjunto, são uma arte da totalidade, dos grandes territórios, da imposição visual forçada; linguagem que melhor soube converter quantidade em qualidade estética:

A efemeridade do graffiti é o que faz dessa arte o que ela é. Essa incansável superação do dia a dia nas ruas, dos muros da soberania de quem vence. A realidade urbana é implacável, não poupa nada, nem valores, não se preocupa se foram minutos, horas ou dias de trabalho naquele pedaço de cidade (...). (MUSEU AFROBRASIL, 2007MUSEU AFROBRASIL. Território ocupado. Catálogo de exposição. Museu AfroBrasil, São Paulo, 2007., n.p.)

Os muros, por outro lado, encerram um potencial de provocação, de desacato, de objeção, porque discursam para a audiência do cotidiano. “Alex Vallauri acreditava que o espaço público seria o único lugar em que a arte poderia fazer alguma diferença, em especial durante os anos de chumbo, marcados pela ditadura militar brasileira” (MAM, 2013MAM. Alex Vallauri: São Paulo e Nova York como suporte. Catálogo de exposição. Museu de Arte Moderna de São Paulo, São Paulo, 2013., n.p.).

A criatividade é a melhor filha da rivalidade. Na arena de saturação, a elaboração formal, o ataque transgressivo, a estetização da barbárie são os mecanismos de competição visual que, legitimados pela ilegalidade, reclamam o instante de apreço:

Transeuntes, publicidade, os pixadores que manifestam o que sentem, assim como os artistas que buscam estéticas e estratégias de maior visibilidade, os prefeitos que prometem fazer uma bem avaliada gestão. A cidade se percebe nas superfícies e quem pode escolher o que ver nos percursos e paisagens? Lugar, não-lugar, o que há de ver no conviver em SP? (CCSP, p. 2015, p. 67CCSP. Cartograffiti. Catálogo de exposição. Centro Cultural São Paulo, São Paulo, 2015.)

Para preservar essa potência discursiva, as instituições projetam um espelho de liberdade – idêntica na forma, mas aparência por definição – que reflete, com alguma opacidade, a economia criativa das ruas. “Cada um desses espaços é um espaço de ação, no que essa manifestação de linguagem tem de absolutamente livre, como se na rua fosse, com a ação e com os instrumentos por eles inventados, o que muda completamente o conceito entre o grafiteiro e o pintor” (MUSEU AFROBRASIL, 2007MUSEU AFROBRASIL. Território ocupado. Catálogo de exposição. Museu AfroBrasil, São Paulo, 2007., n.p.). Há uma tentativa deliberada de salientar o grafite que existe na imagem; se a pintura aprisiona o conteúdo artístico em uma moldura de imanência (a imagem como o fim em si), o grafite cancela a cisão entre arte e entorno. Não é o traço imagético que vai para o museu, mas a liberdade intransigente, “como se na rua fosse”, que faz do grafite uma linguagem maior que a imagem: grafite nasceu na própria família estética do século XX, em que performance, videoarte, happening, ready-made, não são encenações, texto, escultura ou pintura, mas as vírgulas que unem todos os interstícios, artes que só se encerram no plural. O reconhecimento legítimo da linguagem urbana, para preservar essa multidimensionalidade do grafite, obriga o museu a dispersar-se no entorno, a olhar a potência do grafite respondendo às urgências da vida, seja no flerte de decoração, seja no desdém de violência. “O Museu de Arte Contemporânea reconheceu logo a importância do Graffiti como expressão artística (...), ao mesmo tempo, escritura e ação, estudando-o no meio urbano, no contexto sociológico, da comunicação e da estética” (MAC-USP, 2008, p. xviiiMAC-USP. Street Art – Do grafite à pintura. Catálogo de exposição. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.).

2.2. Transliteração catalográfica: Traço

O projeto de curadoria, alicerçado no compromisso discursivo das instituições, enaltece a sociabilidade urbana do grafite como fonte primária de relevância estética. No interior dos museus e galerias, os curadores procuram reproduzir a forma social da linguagem, no que ela realiza de efêmero, agencial, transgressivo, citadino, site-specific, para além de seu componente imediatamente imagético. No entanto, a presença das intervenções no circuito de legitimação promove um esboço de apropriação do grafite pelos expedientes tradicionais de exibição e interpretação museológicos, de modo a inseri-lo na cronologia de eventos expressivos da história da arte. Os procedimentos técnicos e pictóricos específicos da street art são, portanto, esmiuçados numa leitura formal e perita, evidenciando as originalidades procedimentais que o método grafiteiro consegue imprimir na elaboração do traço:

Ao manipular a lata de tinta spray, ferramenta tradicional das grafitagens, eles obtêm um traço superfino e uma técnica de sombreado inovador. O efeito é conseguido pela pressão suave de um bico com orifício pequeno, por vezes adaptado de outras latas de aerossol. O jato é aplicado a uma curta distância da superfície. Seguem-se duas características: uma linha fina de contorno e uma aspersão de gotículas marginais à linha, que criam o efeito de sombreamento das bordas da figura (…). Como o sombreado circunda toda a borda dos elementos pintados com o bico fino do spray, cria-se um efeito de volume da figura. Os personagens esferoides criam uma ilusão peculiar de tridimensionalidade. (MAB-FAAP, 2009MAB-FAAP. Vertigem. Catálogo de exposição. Museu de Arte Brasileira, Fundação Armando Álvares Penteado, São Paulo, 2009., n.p.)

A descrição minuciosa e detida da manipulação da lata de spray, bem como seus resultados de originalidade no contorno da figura, são análogos à análise das pinceladas para a composição de efeitos expressivos, quando das pinturas tradicionais. A técnica dos grafiteiros, nessa chave, responde não às necessidades de urgência do mundo da vida – o spray viabiliza inscrições rápidas e discretas no espaço público –, mas antes enaltece as consequências estéticas características do jato aerossol, em especial a sua assinatura particular de dispersão da tinta. A linguagem catalográfica preserva, assim, certa inércia institucional rascunhada em juízos estéticos tradicionais. Essa apreciação específica de perícia que descreve a “linha fina de contorno e aspersão de gotículas marginais à linha” é uma prerrogativa quase que exclusiva do circuito de legitimidade: enquanto a rua condiciona um olhar situacional, orientado para a articulação entre cidade e estética – olhar rápido, desprotegido, marcado por grandes apreensões de espaço –, a proteção expositiva faculta o exame da sutileza, da imanência, do contorno etc.

As imagens de grafite não são os componentes de entusiasmo que facultam a inserção da linguagem no circuito de arte legítima, é bom frisar. Conquanto isso seja verdade, o traço figurativo, uma vez disposto na parede do museu, transforma-se no protagonista da atenção visitante, embora ressignificado pelas sugestões de curadoria – o traço é, antes de tudo, uma ação de urbanidade. Eles, os grafites, não estão lá porque são belas imagens de técnica impecável e extraordinário desenvolvimento colorístico, mas isso não exclui, naturalmente, a possibilidade de virtuose. Os artistas urbanos se engajam em pesquisas formais para aperfeiçoar constantemente seu traçado; a beleza que esta ou aquela obra encerram, contudo, é um aspecto contingente para o processo de legitimação da linguagem. Tanto é assim que os catálogos assumem um duplo procedimento para a descrição das intervenções: no plano geral da linguagem, isto é, do grafite enquanto prática coletiva, os elementos agenciais e valenciais são evidenciados para discutir a expressão in totum; no plano da realização individual (este grafite de fulano, aquele mural de ciclano), a atenção crítica sublinha, ao contrário, o procedimento estético autoral e os aspectos figurativos do traçado para a interpretação de relevância. “Um outro desse grupo é o Melim, talvez o mais pintor deles (…). Suas cores são também requintadas, e há que se destacar uma certa ambiguidade entre a figura e o fundo: ora elas se juntam, ora se separam, criando uma ilusão ótica de fundir todos os elementos pictóricos (...)” (MUSEU AFROBRASIL, 2007MUSEU AFROBRASIL. Território ocupado. Catálogo de exposição. Museu AfroBrasil, São Paulo, 2007., n.p.). Nesse sentido, a construção textual tipicamente museológica, redigida em verborragias inefáveis e interpretações etéreas, empresta suas formulações de alcance erudito para notabilizar as obras de arte dos grafiteiros, numa retórica emblemática do gênero literário “catálogo”:

Em algumas obras, a perplexidade do artista concentra-se não apenas na descrição figurativa, mas na representação da condição transitória do ser humano, adstrita à vida contemporânea. Em nenhum momento Vallauri ilustra a vida. Reflexivo, desenha, grava, estampa e, como num mapa, indica as incertezas da própria arte do seu tempo. Elucida a permanente crise que situa cartograficamente o ser humano, a sua idealizada autonomia e o livre-arbítrio. Independentes, isentas de proselitismos e de qualquer falsidade panfletária, suas obras mimetizam a própria crise conceitual na qual, cronologicamente, estão também envolvidas. (MAM, 2013MAM. Alex Vallauri: São Paulo e Nova York como suporte. Catálogo de exposição. Museu de Arte Moderna de São Paulo, São Paulo, 2013., n.p.).

O estilo textual demarca as fronteiras de pertencimento num paradigma estético que busca transcendências para as suas obras. O registro literário de certa vertente catalográfica expõe, no plano da retórica e da estilística, uma relação de superação para com o objeto artístico, mera sugestão contingente de temas e preocupações que, essas sim, ultrapassam a fisicalidade imediata da peça. Uma cama em desalinho é tudo, menos uma cama em desalinho: ela é insônia, êxtase, degradação moral, provocação, suicídio; uma lata de fezes é uma ofensa, é a hipérbole do ridículo, é a declaração não-verbal da falência contemporânea; um estêncil de Vallauri transborda sua imagética fundamental, acessível, colorida, para assumir-se como “representação da condição transitória do ser humano, adstrita à vida contemporânea” (MAM, 2013MAM. Alex Vallauri: São Paulo e Nova York como suporte. Catálogo de exposição. Museu de Arte Moderna de São Paulo, São Paulo, 2013., n.p.). A negação do imediato, da transparência interpretativa, da clareza intelectual, insere o grafite em um reino de erudição claramente afastado dos seus espaços sociais originários, onde a atenção transeunte festeja justamente a leveza popular das intervenções. O estilo literário do texto, não apenas seu conteúdo explícito, crava repercussões de pertencimento.

Nessa mesma linha, os catálogos buscam encaixar o grafite na cronologia legítima da arte, advogando sua participação autêntica no quadro dos grandes avanços estéticos do século XX. Para tanto, os textos institucionais dedicam às obras dos grafiteiros uma leitura especializada e acadêmica que proclama analogias formais com escolas e artistas incontestes. A historiografia estética e canônica é convocada, portanto, a testemunhar a aptidão artística do grafite:

Transgressores e até mesmo agressores, os grafiteiros, com suas ambientações e performances, traduziram, nas ruas de São Paulo, as liberdades dadaístas, pop-artísticas, tanto dos ‘ready-mades’ quanto ao gosto pelos detritos urbanos, dos materiais e procedimentos inusitados para a arte institucionalizada. (MASC, 1994MASC. Rupta. Catálogo de exposição. Museu de Arte de Santa Catarina, Florianópolis, 1994., n.p.)

A assimilação de material urbano para as realizações grafiteiras é uma prerrogativa autóctone das diversas valências da linguagem. A ocupação ilegal da cidade insurge, assim, uma arte do cotidiano, do equipamento citadino habitual, dos semáforos, das esquinas e dos pontos de ônibus: a moldura de pincelada-spray liberta a imagem no entorno metropolitano. O texto curatorial, por outro lado, inscreve o grafite em uma tradição de atrevimentos: a fuga da polícia é uma realização “dadaísta”, as tags de hermetismo negro e porto-riquenho são “pop-artísticas”, a rapidez é ready-made etc. Ainda que a linguagem das ruas não responda, conscientemente, às pesquisas vanguardistas do século XX – antes elabora uma estética original e apartada dos circuitos de celebração tradicionais –, o texto revela sua disposição agencial para imprimir relevo ao grafite nos marcos da historiografia artística “oficial”. Não se trata de denunciar, evidentemente, um suposto erro interpretativo do catálogo, mas em reconhecer os procedimentos argumentativos e retóricos que a instituição convoca para pavimentar o processo de legitimação da arte urbana. “Essa presença continuada no espaço público deu ao graffiti estatura semelhante aos murais, como aqueles realizados por Portinari, Di Cavalcanti e Clovis Graciano, nos anos 30, 40, 50” (MAC-USP, 2008, p. 12MAC-USP. Street Art – Do grafite à pintura. Catálogo de exposição. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.). O texto é, nesse sentido, um mecanismo vivo de cristalização de significados e reorientações interpretativas que promove, a partir da autoridade perita, um percurso de continuidades entre a ebulição grafiteira e as rebeldias vanguardistas.

Mesmo assim, o traço do grafite, julgado exclusivamente enquanto tal – isto é: traço-desenho –, esbarra nos critérios de legitimidade que o circuito artístico impõe à linguagem imagética. As pinturas fazem parte do repertório tradicional dos acervos museológicos, e a arte urbana, despida de suas valências de ação, torna-se imagem – ser imagem é uma das realizações possíveis do grafite, muito longe de ser a única. Nessa condição, a análise crítica instrumentaliza a erudição acadêmica para avaliar o desempenho estético das intervenções em sua imanência composicional. E, mais importante, avalia a distância desse desempenho em relação ao desempenho estético canônico dos mestres da imagem, gerando um atrito entre sensibilidades imagéticas distintas, amadurecidas em diferentes espaços de sociabilidade:

Tudo isso para dizer que não foi fácil, ou em todo caso evidente, levar De dentro para fora/De fora para dentro ao MASP. Havia bons argumentos iniciais para fazê-lo, sem dúvida. Por exemplo, o de que o MASP é um museu essencialmente de pintura. Se é um museu de pintura, como deixar fora de seus muros uma forma de pintura contemporânea já reconhecida em muitas instâncias fora do país? Pela qualidade, se dizia. Usando o critério da qualidade seria possível barrá-la do museu. Essa arte não tem qualidade. Por essa palavra se pretendia dizer, na verdade, valor espiritual. (MASP, 2009MASP. De dentro e de fora/ De fora para dentro. Catálogo de exposição. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, São Paulo, 2009., n.p.)

Essa linguagem autorreferenciada das intervenções urbanas, depositária do excesso imagético contemporâneo e publicitário, encontra guarida, contudo, na interpretação de legitimidade curatorial: ainda que os desenhos grafiteiros reivindiquem outra tradição composicional, técnica e colorística, afastando-se, em alguma medida, dos processos de criatividade e virtuose da pintura, o “amadorismo” das imagens urbanas é, em si, um elemento discursivo a municiar o processo de legitimação, numa retórica de estetização do singelo: “As ligações com a arte naif são também possíveis, seja pelo que representa o gênero em sua aproximação com o primitivo, com o estilo livre, mas também, e principalmente, pela escolha dos artistas em permanecer autodidatas e abstrair-se de pressões ou margens (...)” (MAB-FAAP, 2009MAB-FAAP. Vertigem. Catálogo de exposição. Museu de Arte Brasileira, Fundação Armando Álvares Penteado, São Paulo, 2009., n.p.). O traço “primitivo” e “autodidata” são, de acordo com o testemunho perito, escolhas deliberadas de realização criativa, mesmo imposições à rapidez do olhar da cidade, e não limitações expressivas condicionadas pela insuficiência de treinamento. O descompasso entre a linguagem imagética urbana e a pintura tradicional recebe aqui uma coloração de afronta intencional aos cânones composicionais e, portanto, é sublinhado como uma assinatura inovadora e revitalizante. Virtuose do traço simples.

3. Conclusão: os nervos estéticos da cidade

O processo de assimilação institucional do grafite em museus e galerias tradicionais cumpriu produzir enquadramentos discursivos que nomeassem – portanto, inaugurassem – os fatores de encontro entre arte contemporânea e arte urbana, com base no juízo de pertencimento: superar a barreira de imobilismo que aparta arte e mundo da vida (nome do entusiasmo de todas as linguagens originárias do século XX, a começar pelo ready-made e, século adentro, nas instalações, happenings, performances, design etc). Desenvolvimento paulatino, errático, entusiasmado de nova linguagem cria, também paulatinamente, linguagem no nível verbal; aos poucos, os padrões da nova estética vão se impondo à consciência interpretativa dos sujeitos, que cumprem transformar a arte do artista em literatura crítica/ sensibilidade para o intelecto. A circulação do grafite por instituições cada vez mais diversas foi capaz de assomar densidade discursiva, curatorial e interpretativa à estética das ruas, no que representa, para a própria experiência global da linguagem, um ganho de perspectiva.

Premissa dois: equipamentos urbanos, se grafitados/pixados, abandonam atrás de si as relações de sentido puramente funcionais com o entorno. Ao receberem uma intervenção, não são, a despeito disso, suportes para a intervenção, tal qual uma superfície de tela branca que, atrás do desenho, vira pura neutralidade; os equipamentos da cidade, ao contrário, são qualidades vivas de um enunciado, na medida em que concentram significados sociais que a própria cidade desenvolve, e que são anteriores funcionais à “captura” grafiteira. Desenhados ou agredidos, os equipamentos e as arquiteturas cumprem restituir à escala urbana a escala humana, e obrigam a um caminhar menos indiferente pela paisagem. Nesse sentido específico, grafite e pixação não realizam o imperativo antidesinteressado do século XX, mas radicalizam-no; ao invés de conciliar um e outro termo, arte e mundo da vida, são as linguagens que desfronteirizam o problema, ao transformar estética em significado quase trivial da experiência de metrópole.

Os precursores da interpretação, gente responsável por gestar o longo prazo das narrativas estéticas (curadores, galeristas, críticos, intelectuais) reconheceram nesse gesto performativo sobre o território a mais radical possibilidade de realização da linguagem, para além de qualquer ismo de pintura. Por outro lado, o gesto performativo sobre o território só cumpre seu termo de destaque quando enraizado no próprio locus da vida, de tal maneira misturado à experiência de cidade que a cidade, ela própria, já não pode ser pensada sem os seus nervos estéticos. Nesse sentido, trazer o grafite para museus e galerias obriga cada uma das exposições a ser, quase que inevitavelmente, um meta-comentário sobre o próprio ato de trazer grafite para museus e galerias. Existem riscos inerentes para o viço da linguagem, que projetou sua força originária no lado de fora dos espaços tradicionais. As narrativas de curadoria paulistana, ao negarem respostas simples para a imanência estética das intervenções, reconhecem que, quando grafite e instituição se aproximam, é a distância entre ambos que deve promover os fundamentos de interesse mútuo. Se há um componente de força no jogo de curadoria das instituições, o componente é o próprio reconhecimento – e manutenção – dessa distância, importante para preservar os melhores destroços da colisão entre grafite e arte.

O artigo foi elaborado com base nas conclusões da dissertação “Estética Spray: O grafite no campo da arte contemporânea” (BRAGA, 2018) e financiado pela FAPESP no projeto de número 2015/23932-1. Atualmente, o autor é bolsista de doutorado da FAPESP no projeto de número 2021-00645-8.

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    O artigo foi elaborado com base nas conclusões da dissertação “Estética Spray: O grafite no campo da arte contemporânea” (BRAGA, 2018) e financiado pela FAPESP no projeto de número 2015/23932-1. Atualmente, o autor é bolsista de doutorado da FAPESP no projeto de número 2021-00645-8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2021
  • Aceito
    21 Abr 2023
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