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O CINEMA LETRISTA EM 1968: A EXPERIÊNCIA DO CAFÉ-CINEMA E LE SOULÈVEMENT DE LA JEUNESSE

THE LETTRIST CINEMA IN 1968: THE CAFÉ-CINEMA EXPERIENCE AND LE SOULÈVEMENT DE LA JEUNESSE

EL CINE LETRISTA EN 1968: LA EXPERIENCIA DEL CAFÉ-CINE Y LE SOULÈVEMENT DE LA JEUNESSE

RESUMO

Entre 1967 e 1969, a vanguarda letrista mantém um café-cinema, unindo projeções experimentais e intervenções artísticas, inspiradas em práticas anteriores do grupo. À luz de tal experiência, o objetivo é examinar os posicionamentos letristas em relação aos eventos de 1968 a partir de três passos. Primeiramente, um mapeamento das atividades e manifestos associados ao café-cinema, tomando-os em suas continuidades com práticas letristas remanescentes. Num segundo momento, passa-se ao debate conceitual de tais continuidades a partir das ideias de colagem, cotidiano e juventude. Por fim, avança-se à análise do filme Le Soulèvement de la jeunesse (1968), de Maurice Lemaître, identificando uma construção autocentrada, que toma as rebeliões como consolidação das teorias anunciadas por Isidore Isou no livro Traité d’économie nucléaire (1949).

Vanguarda letrista; Maio de 1968; Cinema experimental

ABSTRACT

Between 1967 and 1969, the lettrist vanguard maintains a café-cinema , combining experimental projections and artistic interventions inspired by the group's previous practices. In the light of this experience, the aim is to examine the lettrists’ positions in relation to 1968’s events from three steps. Firstly, a mapping of cafe-cinema activities and manifestos in their continuities with remaining lettrist practices. In a second moment, we emphasize the conceptual debate of such continuities based on the ideas of collage, everyday life and youth. Finally, we analyze the film Le Soulèvement de la jeunesse (1968), by Maurice Lemaître, identifying a self-centered construction that takes rebellions as the consolidation of the theories announced by Isidore Isou in the book Traité d’économie nucléaire (1949).

Lettrist Vanguard; May 1968; Experimental Cinema

RESUMEN

Entre 1967 y 1969, la vanguardia letrista mantiene un café-cine , uniendo proyecciones experimentales e intervenciones artísticas inspiradas en sus prácticas anteriores. A la luz de tales experiencias, el objetivo es examinar los posicionamientos letristas con relación a los eventos de 1968 desde tres pasos. Primeramente, un mapeo de las actividades y manifiestos asociados a lo café-cine , analizados en su continuidad con practicas letristas remanecientes. Después, el debate conceptual de dichas continuidades a partir de las ideas de collage, cotidiano y juventud. Finalmente, se avanza a la analice de la película Le Soulèvement de la jeunesse (1968), de Maurice Lemaître, señalando una construcción autocentrada, que toma las rebeliones como consolidación de teorías anunciadas por Isidore Isou en Traité d’économie nucléaire (1949).

Vanguardia letrista; Mayo de 1968; Cine experimental

INTRODUÇÃO

Envolvendo diversas leituras, os eventos de maio de 1968 podem ser pensados pela heterogeneidade de perspectivas, abrangendo teorias de dimensões históricas, políticas, sociológicas, psicológicas e artísticas. Enfocando os debates em torno da política e da cultura, a constelação incluiria diversos conceitos e autores. Entre eles, Herbert Marcuse, que, em O homem unidimensional , sugere a arte como uma grande recusa, correspondente a modos de refutação, de ruptura e de recriação da existência fatual (2015, p. 15). Por outro lado, pode-se pensar numa crise da noção clássica de sujeito, associada à “afirmação da individualidade contra a pretensão das normas à universalidade”, como apontado por Luc Ferry e Alain Renaut (1988, p. 89). Henri Lefebvre, na época professor na Universidade de Nanterre, publica L’Irruption de Nanterre au sommet , com sua interpretação do período a partir das contradições sociais e das potências de uma revolução cultural. Na senda de tais debates sobre cultura e política, e avançando ao recorte do presente artigo, relativo à arte, pouco destaque se deu às intervenções e às realizações artísticas do letrismo. Apesar do movimento centralizado por Isidore Isou ter se desdobrado, ainda na década de 1950, na Internacional Situacionista, as elaborações letristas, entre a poesia, as artes plásticas e o cinema, têm um trajeto particular no contexto francês de 1968. Os letristas eram atuantes no período, dando continuidade a diversas frentes artísticas visitadas pelo grupo desde suas origens, envolvendo em particular uma prática de exibição e intervenção coletiva, o Café-cinema Le Colbert, cujas atividades e construções teórico-estéticas em relação ao Maio de 1968 são o foco deste artigo.

Durante os primórdios do letrismo, no pós-guerra, Isou retoma uma forma de contestação em diálogo com as vanguardas históricas, como o futurismo e o dadaísmo, incluindo uma violência verbal “pró-juventude” ( ALIX, 2016ALIX, Frédéric. Isidore Isou et la jeunesse en mai 68: un rendez-vous manqué. 2016. Disponível em: https://www.academia.edu/40901814/Isidore_Isou_et_la_jeunesse_un_rendez_vous_manqu%C3%A9. Acesso em: 7 ago. 2020.
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, p. 1), inicialmente presente nos manifestos e intervenções públicas, com desdobramentos em suas propostas sobre a juventude, tomada como classe externa, escravizada e de potencial criativo represado. Se, em termos amplos, a teoria letrista toma o mundo a partir de um progresso em duas etapas, entre o amplique e o ciselant 1 1 . Devido à prática letrista de transformação de palavras, alguns dos conceitos foram mantidos em sua grafia original, em francês. Neste caso particular, as noções de amplique e ciselant correspondem a dois períodos estéticos da arte em geral. O primeiro refere-se a um momento inicial, de uso de técnicas em harmonia, no qual se busca refletir o mundo externo, que é sucedido por uma fase de ruptura, na qual as linguagens e técnicas são rearticuladas, com o aprofundamento das formas e a destruição da arte. ( LEMAÎTRE, 1954 , pp. 151-152) , o local ocupado pela juventude deveria acompanhar tal teleologia, utilizando-se para tanto de seu potencial de externalidade.

Nos anos 1960, o grupo passava por uma segunda geração – envolvendo artistas como Roberto Altmann, Roland Sabatier e Jacques Spacagna –, aglutinados em torno de dois remanescentes de sua fundação, Isidore Isou e Maurice Lemaître. Entre as diferentes frentes artísticas estava em pauta a pintura, com suas colagens denominadas hypergraphies 2 2 . Dentro de uma concepção letrista de arte totalizante, a hypergraphie (também denominada de hypergraphologie ) corresponde à união do romance, da pintura, da fotografia e da escultura, bem como da escrita de alfabetos e hieróglifos, em “um novo modo de transcrição” ( LEMAÎTRE, 1954 , p. 154). , que transitavam entre pintura, fotografia, escrita e os quadrinhos. Note-se também a continuidade das intervenções poéticas e teatrais, em cafés e outros locais públicos, acompanhadas pela confecção e distribuição de manifestos. Do mesmo modo, há a redação de obras literárias e teóricas sobre o letrismo, especialmente por seu fundador Isidore Isou. Nesse período, paralelamente aos primeiros sintomas maníaco-depressivos seguidos de visitas a hospitais psiquiátricos ( GIRARD, 2010GIRARD, Bernard. Lettrisme – l’ultime avant-guarde . Paris: Presses du réel, 2010. , p. 44), Isou lança seu “Manifeste pour le bouleversement de la architecture”3 3 . Manifesto originalmente publicado no Bulletin du centre de la recherche lettriste , n. 19, fev. 1968. ( BOUHOURS, 1995 , p. 172) e amplia a redação de contos eróticos, vistos como provocadores pela censura francesa. 1968 seria também o ano no qual os letristas conseguiriam uma sala permanente, dedicada às obras e intervenções do grupo junto ao Musée d’art moderne de Paris (FDBLG, 2020). Maurice Lemaître, por sua vez, mantém a realização de filmes, referidos pela ideia de syncinema – uma fusão particular entre o cinema e as artes cênicas. Tais são expostos a partir de encontros poéticos e de projeções, denominados pelo grupo como café-cinema, realizados entre 1967 e 19694 4 . A cronologia presente no catálogo Maurice Lemaître indica um volume substancial de atividades ao longo dos anos 1960, espelhando a atividade do próprio grupo. Na década, há uma constante publicação de livros e manifestos, colaborações em revistas, participações em exposições, recitais de poesia e lançamentos de filmes. Nos anos 1967-68, há a candidatura de Lemaître às eleições legislativas, a organização do café-teatro letrista La Cave com apresentação de peças teatrais, a publicação do romance hypergráphique De Gaulle et le sexe , uma jornada de cinema letrista organizada na Cinemateca Francesa, a leitura de um manifesto letrista na Bienal de Paris, participações de Lemaître no Conservatoire national d’art dramatique e atividades de pesquisa relacionadas ao teatro de vanguarda, a publicação do conto hypergráphique “Les aventures d'El Momo”, a organização de uma sala letrista no Museé national d’art moderne, além da realização de filmes ( BOUHOURS, 1995 , pp. 170-173). .

Apesar das atividades paralelas e da militância de Isou quanto à juventude, alguns autores sugerem um deslocamento, entre o letrismo e o Maio de1968. Bernard Girard, por exemplo, indica que Isou foi simplesmente ignorado por jornalistas, estudantes e líderes do movimento, sendo explícito seu descompasso em relação aos envolvidos nos levantes. Naquele ano, o grupo organiza um festival de poesia, com intervenções orais e projeção de imagens, no anfiteatro da Universidade de Nanterre. Segundo Girard, o programa é abalado por um longo discurso político de Isou, depois do qual os trotskistas presentes teriam ensejado “expulsar da faculdade esse traidor neo-fascista”5 5 . Exceto quando indicado o contrário, todas as traduções são do autor deste texto. ( Girard, 2010GIRARD, Bernard. Lettrisme – l’ultime avant-guarde . Paris: Presses du réel, 2010. , p. 44). A ação teria se desdobrado em uma fuga dos letristas, seguidos por dezenas de jovens, enquanto alguns dos restantes jogariam espuma anti-incêndio sobre os aparelhos. Com a eclosão das rebeliões, os letristas seriam pegos de contrapé, sem qualquer participação enquanto grupo, limitando-se à distribuição de alguns folhetos (Ibidem, p. 44). A soirée de brigas, aqui relatada, indica uma cisão entre os letristas e parte dos jovens que realizariam a ocupação de Nanterre, com a sugestão de uma aversão ao posicionamento controlador e autoritário explicitado por Isou. Fréréric Alix, por sua vez, identifica um “deslocamento profundo frente à contestação estudantil”, devido ao posicionamento de Isou, com sua postura centralizadora num contexto de “dessacralização dos intelectuais” (ALIX, 2017, p. 410).

Levando em conta a existência de atividades letristas e, ao mesmo tempo, um deslocamento em relação às manifestações de 1968, o objetivo deste artigo é examinar os posicionamentos do grupo em relação aos eventos daquele ano. Para tanto, o trajeto possui três passos. Primeiramente, um mapeamento das atividades do café-cinema e dos manifestos do período, tomando-os em suas continuidades com práticas letristas anteriores. Num segundo momento, passa-se ao debate conceitual de tais continuidades, a partir das ideias de colagem, cotidiano e juventude. Por fim, avança-se à análise do filme Le Soulèvement de la jeunesse – mai 1968 (1968), de Lemaître, sondando-o como possível síntese das construções letristas em relação ao período.

O CAFÉ-CINEMA

Na Paris dos anos 1960, há uma multiplicação das atividades cineclubísticas associadas ao experimental. Como mapeado por Lebrat ( et al. , 2020), desde os anos 1950, os letristas realizavam e projetavam filmes, na Cinemateca Francesa ou em cineclubes abertos ao público. Tal atividade seria complementada, a partir de 1959, pela Bienal de Paris, com projeções dedicadas à promoção de jovens artistas experimentais. A partir dos anos 1960, alguns festivais abrem espaço ao experimental, como o Festival du court métrage de Tours (1955-71), ou então o Festival du Film Libre d'Évian (1965-66) dedicado a filmes poéticos, subversivos ou fora do padrão. A tendência é seguida por outros festivais, como o festival Sigma (1965-96), em Bordeaux, o Festival international du jeune cinéma de Hyères (1965-) e, posteriormente, o FUFU – Festival Universitaire du Film Underground (1974-) de Nancy. Em Paris, a Cinemateca Francesa realiza projeções especializadas, tendo organizado em 1967 a retrospectiva “Avant-garde pop et beatnik”. Nesse contexto, Piero Heliczer e Antoine Perich organizam projeções regulares de cinema underground no Centre américain de Paris (Boulevard Raspail), Christine Aubry realiza exibições no Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris e algumas galerias, como a Galerie Givaudan, expõem filmes experimentais como obras de arte, além de outros encontros dedicados ao experimental, em diferentes universidades (LEBRAT et al. , 2020).

Nesse contexto de profusão do experimental, origina-se o café-cinema letrista, a partir de 1º de novembro de 1967, no Café Le Colbert, situado na rua Vivienne, em Paris. Suas atividades mesclam projeções, poesia e teatro, retomando as intervenções provocativas como aquelas do dadaísmo, tendo entre suas intenções a legitimação do grupo como herdeiro de vanguardas passadas. Os escritos lançados pelos artistas na época, em particular o “Manifeste d’une nouvelle génération d’auteurs de films” (1967) ( LEMAÎTRE, 2003LEMAÎTRE, Maurice. 1967-1969 Café-cinéma Lemaître suivi de huit films lettristes . Paris: Paris Expérimental, 2003. , p. 9) e o “Manifeste des cafés-cinéma” (1967) (Ibidem, p. 7), explicitam o lugar e as ambições assumidos pelos letristas no campo artístico-cinematográfico. No primeiro deles, o movimento reivindica-se como autêntica vanguarda do cinema. A convocação é realizada de modo bastante ambicioso, apresentando o encontro como “a primeira sessão de uma nova forma de difusão cinematográfica, que permitirá aos jovens e aos criadores da sétima arte mostrar suas novas obras” (Ibidem, p. 9). No “ Manifeste des cafés-cinema ”, lançado junto com as primeiras atividades, ganha espaço o desejo de ruptura ante outros movimentos do contexto cultural. Isso abrange críticas ao Centre national de la cinématographie e às ações estatais associadas ao cinema de grande público, bem como ataques ao funcionamento do circuito comercial, incluindo produção, distribuição e exibição. Era também explícita a oposição à Nouvelle Vague , cujos cineastas e obras teriam perdido sua juventude e originalidade. Os únicos elogios direcionam-se a Maurice Lemaître, construído como um dos fundadores do letrismo e do cinema moderno, como também a Henri Langlois, diretor da Cinemateca Francesa, que emprestaria filmes para o funcionamento do café-cinema. A aversão, em geral, à decupagem clássica (tomada como o uso das técnicas em harmonia) e ao circuito de exibição comercial seria assim centralizada pelo café-cinema, construído como espaço para aqueles que não alcançavam as salas convencionais, de arte ou festivais. Para tanto, as atividades incluiriam: a) um festival permanente de cinema em 16 mm e b) um festival de clássicos surrealistas, dadaístas, abstratos e letristas, feito em associação com a Cinemateca Francesa. Essas duas atividades colocam-se como pilares para a formação de público e a criação de um canal anti-hegemônico de exibição. Sustentando tais atividades, a convocação, divulgada para a primeira reunião, enfatizava três ações por parte dos participantes: a) levar filmes em 16 mm para projeção; b) enviar companheiros colaboradores; e c) sugerir caminhos para o novo cinema.

Sobre o funcionamento desse café-cinema, embora não haja, até ao momento, acesso direto à documentação administrativa dos encontros, a publicação dos manifestos e circulares em 1967-1969 Café-cinéma Lemaître suivi de huit films lettristes ( LEMAÎTRE, 2003LEMAÎTRE, Maurice. 1967-1969 Café-cinéma Lemaître suivi de huit films lettristes . Paris: Paris Expérimental, 2003. ) permite indagações sobre uma cosmologia do letrismo, construída a partir de uma narrativa sobre suas próprias origens, marcada especialmente pela colagem. Entre as principais práticas, nota-se a apropriação de argumentos externos, paralelamente à repetição interna de diretrizes em diferentes manifestos. Assim, o “Manifeste d’une nouvelle génération d’auteurs de films” (1967) inicia-se por uma apropriação do “First statement of the New American Cinema Group” ( MEKAS, 1961MEKAS, Jonas. The First Statement of the New American Cinema Group. Film culture , n. 22-23, verão 1961, pp.130-133. ), enfatizando a ideia de que seriam uma “nova geração de autores de filmes”. A última frase, por sua vez, retoma “O Manifesto Comunista” de Marx e Engels, com “jovens cineastas inovadores do cinema, revoltem-se!” (LEMAÎTRE, op. cit., p. 7). Quanto às repetições de diretrizes internas, por seu turno, elas colaboram para a afirmação de uma cosmologia do letrismo e das diretrizes do café-cinema. Entre os argumentos retomados, há a ideia de Maurice Lemaître e do letrismo como origens do cinema moderno, disputando com a Nouvelle Vague a influência sobre as novas gerações de cineastas. Tal construção destaca-se entre os manifestos, mas reverbera sobre a própria programação do café-cinema. Não é gratuita a projeção de três tipos de materiais, incluindo as obras de Lemaître, uma retrospectiva de vanguardas europeias, das quais os letristas reivindicam ser os legítimos herdeiros, bem como filmes de jovens realizadores, supostamente influenciados pelos agitadores do café-cinema. Há, assim, uma cosmologia teleológica, unindo as vanguardas históricas, o letrismo e o cinema experimental contemporâneo ao café-cinema. A mesma é justificada a partir de uma outra repetição estratégica, presente ao longo dos manifestos. Trata-se das acusações à Nouvelle Vague associadas à tentativa de se colocarem como os verdadeiros herdeiros de Henri Langlois, no lugar dos críticos-cineastas dos Cahiers du cinéma . Ao longo dos manifestos e circulares de 1967, publicadas em 1967-1969 Café-cinéma Lemaître suivi de huit films lettristes ( LEMAÎTRE, 2003LEMAÎTRE, Maurice. 1967-1969 Café-cinéma Lemaître suivi de huit films lettristes . Paris: Paris Expérimental, 2003. ), a figura de Langlois como um dos patronos do cinema letrista é recorrente. Entre os argumentos, há a organização da mostra “Avant-garde pop et beatnik” na Cinemateca Francesa, num contexto em que “o cinema letrista pode mostrar sua influência determinante sobre os jovens cineastas de vanguarda” ( LEMAÎTRE, 2003LEMAÎTRE, Maurice. 1967-1969 Café-cinéma Lemaître suivi de huit films lettristes . Paris: Paris Expérimental, 2003. , p. 10), bem como o empréstimo de filmes de vanguarda por Langlois para a composição do “Festival de filmes clássicos dadaístas, surrealistas, abstratos e letristas” (Ibidem, p. 10), ocorrido ao longo dos encontros do café-cinema. Na época, Langlois fora afastado de seu cargo, pelo governo francês, sob acusação de má gestão do acervo, levando a uma mobilização para sua reintegração à Cinemateca Francesa. O assim conhecido Affaire Langlois é diretamente referido em circulares letristas, ganhando destaque em “Hommage à Langlois au Café Lemaître” (1967)LEMAÎTRE, Maurice. Union de la Jeunesse et de l’éxternité – Éléctions législatives de mars 1967 24e. [folheto]. Circonscription , 1967. . Nesta circular, Lemaître é referido como “membro depositário da Cinemateca, amigo e intransigente defensor de Henri Langlois, [...] um dos promotores da ação de protesto em curso contra o complô de burocratas medíocres do Centre National de la Cinématographie” (Ibidem, p. 14). Em decorrência, as sessões do café-cinema deveriam ser transformadas em uma “homenagem supertemporeel permanente a Henri Langlois, um dos criadores da eco-esthétique do filme” (Ibidem, p. 14). Feito para circulação entre o conselho da Cinemateca Francesa, a declaração assume maior seriedade em relação à função de uma biblioteca-museu para a preservação da cultura e, em particular, para a salvaguarda de filmes de vanguardistas inovadores, como os de Man Ray, Germaine Dulac, Luis Buñuel e Jean Vigo. Não apenas por difundir as grandes obras do cinema, mas sobretudo por realizar escolhas, nelas incluindo obras do panteão vanguardista dos letristas, Langlois é considerado por Lemaître como um autêntico criador, aceito no domínio da criação estética letrista. Ao trazer o intelectual para o universo do grupo, o gesto explicita o funcionamento do recorte, da escrita e da construção fílmica letrista, que partem da ruptura, para depois enfatizar repetições à luz de um panteão e de uma cosmologia bastante claras e autocentradas. Em termos de redação, os materiais de divulgação publicados em 1967-1969 Café-cinéma Lemaître suivi de huit films lettristes sugerem uma escrita que reordena fragmentos, sendo que cada manifesto retoma extratos dos manifestos anteriores. Tal escrita, associada uma intenção autocêntrica, é uma característica que ecoa pela arte letrista em geral, incluindo textos e filmes no contexto do café-cinema.

Em torno de 1968, a cinematografia letrista é dominada pela obra de Maurice Lemaître – um dos fundadores do grupo e do café-cinema. Num recorte abrangendo as atividades do café-cinema, a obra fílmica de Lemaître inclui mais de 11 filmes6 6 . Moteur (1967), Le Film de demain (1967), Contre le cinéma d’André Holleaux et consorts (1969), Victoire de Jules, l’apostolique pendant la seconde guerre de Troie (1967), Chantal D. Star (1968), Pellicule (1968), Chutes (1968), Une œuvre (1968), Le Soulèvement de la jeunesse - mai 1968 (1968), L’Écrevisse mathématique (1969), Votre film (1969) ( LEMAÎTRE, 2007) . . Um olhar sobre os títulos sugere continuidades em relação à filmografia anterior. Entre elas: a) os diálogos com as vanguardas; b) as provocações ao cinema narrativo clássico, por eles denominado de cinema amplique , e aos seus espectadores; bem como c) a ideia do filme como uma ação em curso. Em relação à obra anterior de Lemaître, tal filmografia guarda continuidades narrativas e de estilo. Consolidando um abalo à construção da diegese e um ataque à própria imagem em sua materialidade, tomada frame a frame , os filmes de Lemaître apresentam intervenções manuais. Predominantemente, trata-se de filmes de found footage , feitos a partir da união de fragmentos de película, provenientes de descartes ou imagens feitas pelos próprios letristas. Sobre esse conjunto fragmentar de imagens, são somados registros sonoros, especialmente narrações over , entrevistas ou poesias letristas, que muitas vezes constituem o esqueleto central de cada filme. Um dos traços mais marcantes, retomados pela filmografia dos anos 1967-69, no contexto do café-cinema, é a transformação da sala escura no espaço de uma experiência intermidiática, entre o cinema e o teatro, unindo projeção, atores e a participação dos espectadores. No catálogo Oeuvres de cinéma ( LEMAÎTRE, 2007LEMAÎTRE, Maurice. Oeuvres de cinéma (1951-2007) . Paris: Paris Expérimental, 2007. ), a filmografia de Lemaître é acompanhada por comentários de projeção, com apresentação das dinâmicas e extratos de textos que deveriam ser lidos ao longo da sessão de cada filme. Nos verbetes referentes às obras dos anos 1967-69, as referências ao café-cinema Le Colbert são recorrentes, paralelamente a projeções marcadas pelas intervenções do público e por processos de montagem ou debates coletivos. A partir do léxico criado por Lemaître, tais filmes são concebidos como obras supertemporelles , ou seja, infinitamente abertas às intervenções do público, mas também herdeiras da noção de syncinema , cuja sessão exige “uma tela especial”, por vezes dividida ou transformada, e uma “ mise en scène na qual são incorporadas intervenções do público (atores, espectadores, atendentes, operador etc.), num local inteiramente reconsiderado (hall de entrada, sala etc.)” ( LEMAÎTRE, 2007LEMAÎTRE, Maurice. Oeuvres de cinéma (1951-2007) . Paris: Paris Expérimental, 2007. , p. 37).

MONTAGEM, COTIDIANO E JUVENTUDE

Para questionar a construção letrista do maio de 1968, tendo por base o filme Le Soulèvement de la jeunesse - mai 1968 (1968), além das continuidades temáticas e narrativas em relação à filmografia de Lemaître, convém atentar a uma tríade de conceitos, que colaboram com a interpretação contextual da obra. Sendo Le Soulèvement ... um filme de montagem, as imagens do contexto adquirem significado a partir de uma prática letrista de colagem, que não apenas desdobra-se a partir de práticas cotidianas de montagem coletiva, como também versa sobre uma temática cara ao letrismo, ou seja, o potencial subversivo da juventude. Assim, para uma posterior análise de Le Soulèvement ..., serão aqui debatidas as ideias de colagem, cotidiano e juventude, buscando suas fundamentações teóricas para posterior cotejo com a obra audiovisual.

Em termos de colagem, em sintonia com outras obras letristas, os filmes de Lemaître retomam um gesto inspirado no dadaísmo. Tal como pensado por Argan (1992ARGAN, Giulio C. Arte moderna . São Paulo: Cia das Letras, 1992. , p. 56), está em pauta um gesto antiartístico, que se contrapõe à arte como produção de objetos de valor. Procura-se negar a arte, colocando ênfase às intervenções e impulsos. Coloca-se em xeque a arte e todo seu trajeto anterior, como se fosse possível voltar a uma estaca zero. Tendo por origem a poesia, a decomposição das palavras, imagens e sons terá grande importância para o letrismo. Em sua composição geral, os filmes letristas são a união de fragmentos visuais e sonoros bastante diversos. Além de colagens, podem ser pensados também na qualidade de found footage , ou seja, materiais deslocados de seus contextos originais, com a criação de novos traços discursivos via montagem. Se, para Brenez e Chodorov (2014)BRENEZ, Nicole; CHODOROV, Pip. Cartografia do found footage. Revista Laika , vol. 3, n. 5, jun. 2014, pp. 1-11. , a modalidade de narrativa relaciona-se com uma reciclagem exógena, marcada pela intervenção e a criação de novos discursos, há autores para os quais tais intervenções enfatizam traços anteriormente apagados. Assim, para Michael Zryd, pode-se falar em uma forma meta-histórica de comentário, apropriando-se de discursos culturais não explícitos diretamente nas imagens de origem, porém embebidos por sua história de produção, circulação e exibição (2003, p. 42). Na mesma senda, Didi-Huberman associa a montagem à intensificação de potências: ela “intensifica a imagem e atribui à experiência visual uma potência que nossas certezas e hábitos visuais têm por efeito pacificar, ou encobrir” (2003, p. 170). No caso do cinema letrista, há uma montagem com sotaque negador, que joga constantemente com as evidências, mas, sobretudo, com as negações das evidências das imagens de origem. Não se trata de atentar a algo encoberto, mas de criar um mundo em constante choque, por meio do cinzelamento7 7 . Relacionado ao ato de intervenção direta sobre a película ( LEMAÎTRE, 1954, p , p. 152), por meio de inscrições, desenhos, raspagens ou uso de produtos químicos. Em alguns casos, como aquele de Le film est déjà commencé? (1951), são teorizadas formas de intervenção de modo a contrapor as figuras originalmente existentes. que abala a construção da diegese, ou a materialidade do suporte, desdobrando-se a partir de intervenções sobre a película.

No contexto de 1968, as origens dos materiais utilizados pelos letristas variam. Entre outros elementos, incluem: documentários, noticiários, imagens cotidianas de Paris, bem como extratos de melodramas, filmes eróticos, filmes de vanguarda ou imagens fixas com grande teor de colagem. Nos anos 1960, tais operações de colagem poderiam ser questionadas a partir do desvio situacionista. Segundo Gil J. Wolman e Debord, em seu “Mode d'emploi du détournement” (1956), não haveria limite para a integração de “fragmentos de trabalhos obsoletos em um novo”, podendo-se “alterar o significado desses fragmentos de qualquer forma apropriada, deixando aos imbecis a sua escravidão às referências e às ‘citações’” ( DEBORD; WOLMAN, 1956)DEBORD, Guy; WOLMAN, Gil J. Mode d'emploi du détournement. Les Lèvres Nues , n. 8, mai 1956, pp. 2-9. . Em oposição à simples referência ao original, ou criação do cômico pelo prazer do consumo, o objetivo seria questionar a sociedade e a situação de origem, com a superação dos desvios enganadores. Para o cinema, também em termos teóricos, a proposta era a “reconversão de sequências preexistentes”, acompanhadas por novos “elementos musicais, pictóricos ou históricos” (Ibidem). Se, para Debord e Wolman, um dos objetivos finais era o questionamento, ou desvio, das condições de origem, a colagem letrista parece neles encontrar um diálogo fértil, com ambiguidades. Por um lado, mantém um pé na negatividade dadaísta, em que o ataque e a dissolução são fundamentais. Por outro, opera deslocamentos críticos, denunciando as matrizes de origem. Na filmografia de Lemaître já referida, entre 1967-69, isso inclui: a ironia ao estrelismo americano; a crítica aos moralismos do melodrama; o questionamento do serial no cinema pornô; bem como uma crítica às imagens documentais e cotidianas dos anos 1960, pela criação de um balé de massas audiovisuais, que por vezes tendem a um lirismo militarizado.

Outro modo de pensar a montagem letrista é opondo-a ao dadaísmo. Assim, se em Duchamp o ready-made convoca uma dupla crítica, com a negação do gosto e da própria noção de obra ( PAZ, 1977PAZ, Octávio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 1977. , p. 22), no letrismo as recontextualizações levam a novos sentidos. Em grande parte, em termos de sentido, o gesto artístico evoca o letrismo como o centro do mundo e motor das ações. Se nos manifestos associados ao movimento há uma cosmologia letrista, na colagem cinematográfica a coletividade organizada em torno de seus principais fundadores, Isou e Lemaître, apresenta-se como polo gerenciador de uma ação de criação de caráter universal, que busca unir os diferentes ramos das artes, ciências e do conhecimento. Ao contrário de abolir a arte, trata-se de agregá-la ao conjunto geral de domínios, tendo em vista uma evolução a uma sociedade vista como paradisíaca (ISOU, 1978).

Nas atividades do café-cinema, bem como em projetos letristas anteriores, como os roteiros publicados na revista ION v.1 (1952), que incluíam a transformação imaginária dos espaços de projeção, há implícito um debate acerca da vida cotidiana como locus de transformação, em diálogo com a sociologia da época. Nos escritos de Henri Lefebvre, por exemplo, o cotidiano será uma forma de crítica à sociedade moderna, mas também um espaço das possibilidades de encontro e transformação, evocando os descompassos existentes, para uma crítica do presente e a construção do possível (LEFEBVRE, 1961). A interpretação de 1968, esboçada em L’irruption de Nanterre au sommet (1998 [1968]), examina o possível, presente no contexto, tomando a sociedade francesa da época a partir de suas contradições. Entre as diversas etapas de seu diagnóstico, Lefebvre refere-se à revolução como um processo situado entre o estremecer e o reestabelecimento da cotidianidade. No caso de 1968, há uma contraposição aos lastros das autoridades, redes e circuitos da modernidade capitalista, momentaneamente contrapostos à proposta de autogestão, formulada entre os universitários e associada às experiências das universidades populares ( THIOLLENT, 1998THIOLLENT, Michel. Maio de 1968 em Paris: testemunho de um estudante. Tempo social , vol. 10, n. 2, 1998, pp. 63-100. ), vistas como brechas no sistema social existente. Tal tendência transformadora, de outro modo, estará presente na deriva situacionista, relacionada à passagem ativa entre ambientes variados na forma de um deslocamento no espaço com vistas à transformação ou à ruptura, incluindo o estudo dos efeitos do meio geográfico sobre o comportamento afetivo dos indivíduos ( DEBORD, 1997DEBORD, Guy. Rapport sur la construction des situations et sur les conditions de l’organisation et de l’action de la tendance situationniste internationale. In Internationale situationniste 1958-1969 . Paris: Fayard, 1997. , p. 699). Já no contexto do letrismo, é possível pensar o café-cinema como experiência cotidiana. De modo particular, trata-se de uma retomada de experiências vanguardistas, que recoloca a construção de espaços de encontro e transformação. No café-cinema, a transformação está no uso do espaço, mas também, em suas interferências sobre o cinema. Em alguns dos filmes, a criação será coletiva, mediada pelo espaço do café, com suas potencialidades transformadoras. Quanto a isso, Pellicule (1968) é paradigmático. O filme é construído a partir da coleta aleatória de películas descartadas por laboratórios cinematográficos. Durante a primeira exibição, Lemaître pede que os espectadores cortem o rolo de filme, para que os fragmentos possam ser remodelados em uma nova ordem, guardando a aleatoriedade, atividade esta realizada em diversos encontros sucessivos. A inserção das narrações over , por sua vez, teriam seguido o mesmo processo coletivo. Ao conjunto, Lemaître inclui intervenções com ácido, cinzelamentos e pinceladas, bem como, na banda sonora, um relato do processo de realização coletiva, com a ajuda do público ( DEVAUX, 1992DEVAUX, Frédérique. Le cinema lettriste (1951-1991) . Paris: Paris Experimental, 1992. , pp. 165-166). Contrapondo-se a um objeto de consumo visual acabado, em projeções posteriores o público seria chamado para novas intervenções. Variações de tais procedimentos são identificáveis em outras obras do período, permitindo pensá-las como multiformes – objetos cujas modificações ao longo das projeções são incorporadas, passando a fazer parte de uma memória do cinema letrista. Outro exemplo será Chantal D. Star (1968). Em sua ficha técnica, elaborada por Lemaître, destacam-se separadamente: data da primeira projeção, acompanhada por transcrição do comentário oral aos espectadores presentes; período do registro do som original seguido pela data da primeira projeção sincrônica. Tudo isso variando entre março de 1967 e setembro de 1968 ( LEMAÎTRE, 2003LEMAÎTRE, Maurice. 1967-1969 Café-cinéma Lemaître suivi de huit films lettristes . Paris: Paris Expérimental, 2003. , p. 27). Entre as práticas contemporâneas, há também o automatismo aplicado à montagem cinematográfica, levando a filmes como Une oeuvre (1968) e Chutes (1968). O discurso do artista em relação a tais materiais é o de não intervenção, seja na concepção dos planos filmados, na escolha dos temas ou no ritmo da montagem. Sobre os extratos audiovisuais montados, porém, as intervenções manuais, com cinzelamentos, tachismos e hypergraphies , acabam explicitando “um desejo estético preciso por parte do artista, aportando uma cadência suplementar” (DEVAUX, op. cit., p. 167).

Em termos teóricos, em 1968, os letristas retomam o debate acerca da externalidade da juventude, formulado duas décadas antes em Traité d’économie nucléaire: le soulèvement de la jeunesse, problème du bicaténage et de l’externité ( ISOU, 1957ISOU, Isidore. Traité d’économie nucléaire: le soulèvement de la jeunesse, problème du bicaténage et de l’externité. [1949]. Paris: Éditions Maurice Lemaître, 1957. [1949]). Neste livro, Isou propõe uma ambiciosa teoria econômica, concebendo a luta econômica como o choque entre os externos (os jovens e outros descontentes com sua colocação social) e os internos (situados no interior do circuito econômico). Isou reserva o poder de transformação aos externos, representados pelos jovens, descritos como escravos da economia familiar e do sistema escolar, pelos trabalhadores explorados, condenados a realizar tarefas sem sentido para conseguir ascensão hierárquica, bem como por indivíduos descontentes com o seu posto de trabalho. A juventude, por sua vez, apresenta-se duplamente aprisionada. Por um lado, “ela é a propriedade de seus pais, seu animal de luxo, seu meio de descarga psicológica”; por outro, quando precariamente inserida no mercado, “é o proletário do proletário, a superexplorada em proveito dos próprios empregados” (Ibidem, p. 100).

De modo geral, a externalidade é atribuída à juventude devido à sua dificuldade de autodeterminação. Deve-se destacar, porém, que a definição não se restringe à idade, incluindo desempregados, trabalhadores idosos, bem como indivíduos empregados, mas que não encontraram sua colocação ideal. Para o teórico letrista, a força externa representaria o único fator dinâmico da história, posteriormente dividida entre a créativité pure , referente à multiplicação das riquezas através das invenções culturais e técnicas, e a créativité détrounée , relativa à destruição das riquezas por meio das guerras e revoluções. A juventude, junto com outros atores externos, teria o poder de colocar em questão a renovação das hierarquias, bem como das normas sociais, econômicas e estéticas. Nesse sentido, Isou propõe uma série de transformações do sistema escolar, bancário e político, visando uma integração mais fácil e efetiva dos externos, tendo por finalidade última a constituição de uma sociedade em constante multiplicação e aberta ao fluxo das ambições criadoras. Tais propostas são resumidas no livro de 1949, no manifesto “Le Soulèvement de la jeunesse. Premier manifeste” (1950) e, posteriormente, no folheto de propaganda política de Lemaître, quando de sua candidatura ao legislativo em 1967 ( LEMAÎTRE, 1967LEMAÎTRE, Maurice. Union de la Jeunesse et de l’éxternité – Éléctions législatives de mars 1967 24e. [folheto]. Circonscription , 1967. ). No livro, Isou acusa o sistema escolar de cercear o potencial criativo, devido às repetições sem utilidade, associadas à tensão psicológica para a realização dos exames. Assim, para uma liberação do potencial criativo, o ensino médio deve dividir-se em duas fases: um primeiro ciclo de três anos, dedicado a conhecimentos básicos sobre a ciência, a técnica e a arte, seguido por um ano de especialização, voltada a um labor específico. Tudo isso, como visto por Alix, “sob a perspectiva de um embarque geral da civilização em direção a um progresso contínuo” (2016, p. 6). Já no manifesto de 1950, redigido de modo mais didático, a reforma econômica e do ensino proposta por Isou inclui: 1) a “redução do número de anos escolares”; 2) a eliminação do baccalauréat 8 8 . Qualificação acadêmica obtida mediante exames para ter acesso ao ensino universitário. ; 3) a diminuição dos impostos em decorrência da entrada no sistema econômico de uma grande massa de jovens; 4) o apoio bancário à criação de jovens empresas; e 5) a condenação da nacionalização das empresas, sendo as empresas nacionais vistas como uma forma de exploração dos trabalhadores por “uma série de novos parasitas, burocratas, homens de Partidos” ( ISOU, 2004ISOU, Isidore. Le soulèvement de la jeunesse premier manifeste. [1950]. In ISOU, Isidore. Les Manifestes du Soulèvement de la Jeunesse (1950-1966) . Marselha: Al Dante, 2004. ). Em decorrência, no âmbito de sua divulgação política, as propostas de Isou assumem traços conservadores que, contrapondo-se às visões marxistas de superação do capitalismo, desdobram-se na manutenção das formas de produção existentes. Tal posicionamento é reafirmado na plataforma de candidatura de Maurice Lemaître, em 1967. Nesse contexto, a noção ampliada de juventude refere-se a “qualquer indivíduo, seja qual for sua idade, que luta para atingir o lugar que deseja” ( LEMAÎTRE, 1967LEMAÎTRE, Maurice. Union de la Jeunesse et de l’éxternité – Éléctions législatives de mars 1967 24e. [folheto]. Circonscription , 1967. , p. 1). Quanto a tais jovens, impedidos de galgar na carreira, “suas energias poderiam ter sido utilizadas para enriquecer o país como um todo, com a criação de novas riquezas, [...] que nos permitiriam reduzir nosso tempo de trabalho para um ganho superior.” Para isso, o sistema de ensino, com base em uma cultura geral criadora, deveria permitir aos jovens alcançar o mais rápido possível uma “situação mais rentável” em uma “sociedade em progresso” (Ibidem, p. 2). A partir da breve descrição, aqui realizada, nota-se uma mudança de tom entre as propostas do livro Traité d’économie nucléaire e a circulação de suas ideias em manifestos. De uma abordagem teórica, tendo em vista seu potencial criativo e de abalo da ordem social, passa-se a uma maior ênfase às ideias de inclusão e progresso, sem uma efetiva transformação das formas de produção.

LE SOULÈVEMENT DE LA JEUNESSE - MAI 1968 (1968)

Ao longo do período do café-cinema, um dos filmes representativos é Le Soulèvement de la jeunesse - mai 1968 (1968), de Lemaître. Nele, há uma retomada de traços do cinema letrista, articulados às experiências do grupo em 1968 e ao posicionamento quanto aos levantes. Com base no livro Traité d’économie nucléaire , de Isou, o filme Le Soulèvement ... acompanha os eventos de maio sob o ponto de vista letrista, a partir de uma montagem autocêntrica, tomando a revolta social como profecia das construções teóricas de Isou no final da década de 1940, bem como reafirmando uma cosmologia que teria seu ponto de partida nas teorias de Traité d’économie nucléaire . Para examinar seu posicionamento, o filme será pensado à luz da experiência do café-cinema e das ideias de colagem, cotidiano e juventude, com um foco particular à noção de found footage , associado ao exame dos sentidos assumidos por materiais endógenos e exógenos à obra de Lemaître.

Le Soulèvement... é constituído por um conjunto heterogêneo de imagens, costuradas por diferentes conjuntos de vozes over , sob a aparência geral de um cinejornal, que noticia grandes fatos franceses e mundiais. O plano de abertura, retirado diretamente de Les Actualités françaises – Regards sur le monde (29 mai. 1968), explicita o diálogo com os cinejornais enquanto forma narrativa. Sob a autoridade de construção do mundo própria ao documentário expositivo, o filme de Lemaître soma novas vozes à narração original em over do cinejornal, como se os relatos se dessem em nome do letrismo. Aproximando-se da ideia de um foud footage “analítico” ( BRENEZ; CHODOROV, 2014BRENEZ, Nicole; CHODOROV, Pip. Cartografia do found footage. Revista Laika , vol. 3, n. 5, jun. 2014, pp. 1-11. , p. 9), um exame mais detido permite afirmar que Le Soulèvement... é construído em cima do próprio Les Actualités françaises , edição de 29 de maio de 1968, ao qual são adicionados novos estratos de imagens e de sons, com a construção de um relato das ações estudantis e operárias, à luz de uma autoridade vocal letrista.

Com atividades iniciadas no pós-guerra, enquanto empresa estatal, Les Actualités françaises incorporam uma visão oficial de eventos políticos, científicos e cotidianos da França e do mundo. Algumas de suas edições dedicam-se a retrospectivas anuais, caso de Regards sur le monde: 1957 , que se afirma como um almanaque de notícias econômicas e políticas, discursando enquanto nação, preocupada com seu desenvolvimento interno, mas também com acontecimentos internacionais, em torno da ciência e da arte. Les Actualités françaises (29 mai. 1968), por seu turno, apresenta uma cronologia das rebeliões estudantis e seus desdobramentos, colocando a situação como um drama social vivenciado pela França. Sob a metódica cronologia dos fatos narrada em over , que por vezes abre espaço aos posicionamentos pacificadores do presidente De Gaulle, os estudantes são construídos enquanto multidão enraivecida, presente a partir de confrontos e dejetos urbanos, sob a liderança de Daniel Cohn-Bendit. As imagens articulam reuniões e pronunciamentos governamentais, ao lado de registros dos confrontos e manifestações urbanas.

Dessa estrutura, Le Soulèvement... guarda o aspecto de almanaque, com a sucessão de eventos unida por comentários em over , somando a ela novos fragmentos sonoros e imagens em movimento, ampliando a duração original em cerca de 20 minutos. O filme de Lemaître traz para si não apenas o grupo de imagens originais, mas também a forma narrativa do cinejornal em seu “modo expositivo” ( NICHOLS, 2012NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário . Campinas: Papirus Editora, 2012. , p. 142), centrado na informação verbal, e cuja autoridade é transposta ao discurso letrista.

Centralizando um posicionamento letrista, a espinha dorsal sonora é marcada por duas principais vozes over , masculinas. Uma delas, com intenção radiofônica, remanescente de Les Actualités françaises , pontua os acontecimentos, estabelecendo com o espectador o pacto referencial de serem verídicos os acontecimentos vistos nas imagens; a outra das vozes, criada por Lemaître, recita trechos do livro Traité d’économie nucléaire e interpretações dele derivadas, colocando-o como previsão profética das rebeliões. A essa dupla de vozes somam-se outros extratos, como registros de coros letristas, com sua violência verbal quase militar, bem como uma voz poética feminina, que verbaliza extratos do conto hypergraphique “Les aventures d'el Momo. Episode de mai 1968: avec apeiros vers la création au pouvoir!”9 9 . Nessa versão, publicada com tiragem de 20 exemplares, o Maio de 1968 é narrado sob o ponto de vista do legendário herói “El Momo”, criado de modo autoficcional por Maurice Lemaître, no formato de uma história em quadrinhos a ser colorida pelos próprios leitores. , de Maurice Lemaître. A sucessão de vozes é bastante rítmica, centralizada pela poesia e pelas construções teóricas do grupo. Os conjuntos de imagens, que se mesclam sem ordenação lógica, compreendem majoritariamente: imagens dos levantes, entre noticiários e fotografias dos confrontos; planos de Lemaître perambulando por Paris, apresentados em negativo; documentários científicos envolvendo exercícios de sobrevivência em alto mar ou explorações submarinas; além de imagens da vida cotidiana parisiense. Convergindo numa montagem autocentrada, a lógica geral é a sobreposição de fragmentos, centralizados pelo avanço rítmico da construção sonora e pela pontuação cronológica das ações dos estudantes, grevistas e do governo.

Em termos de uma montagem autocêntrica, Le Soulèvement... extrapola a dissolução dos significados dos materiais de origem, afirmando-se como um filme de propaganda letrista. Ente os debates relativos ao reemprego de materiais de arquivo, Nicole Brenez e Pip Chodorov referem-se à ideia de found footage – uma forma particular de reciclagem, incluindo autonomização das imagens, intervenções sobre a película, bem como a adesão a novas formas de montagem (2014, p. 3). O cinema letrista em geral, especialmente aquele de Isou e Lemaître, aproxima-se de tal definição, unindo extratos de filmes pré-existentes, imagens realizadas pelo grupo, intervenções manuais sobre a película, bem como a teorização de uma montagem que, a partir da noção de um “cinema discrepante” (Lemaître, 1954, pp. 102-103), buscava romper com as relações entre sons e imagens enfatizando sua autonomia. Dentro desse quadro, Le Soulèvement... possui as suas particularidades. Ao remeter-se à forma do cinejornal, aproxima-se à ideia de “reemprego intertextual”, com a imitação da obra original Les Actualités françaises ; por outro lado, ao incorporar diretamente materiais pré-existentes, efetua uma operação de “reciclagem” ( BRENEZ; CHODOROV, 2014BRENEZ, Nicole; CHODOROV, Pip. Cartografia do found footage. Revista Laika , vol. 3, n. 5, jun. 2014, pp. 1-11. , p. 3). No filme de Lemaître, as reciclagens envolvem materiais endógenos e exógenos à obra do cineasta. Um dos grandes fundamentos da montagem autocêntrica é o uso de materiais endógenos, pertencentes a diferentes mídias. A leitura de livros teóricos, histórias em quadrinhos e poesias letristas, transpostas à obra audiovisual a partir de gravações vocais, moldam o ponto de vista letrista, a partir de uma colagem de materiais em trânsito em termos de suporte. Os extratos de Traité d’économie nucléaire , transpostos verbalmente ao filme de Lemaître, sobrepõem-se às imagens dos manifestos e confrontos de modo a interpretá-los, a partir de um enfático distanciamento teórico, como se os próprios letristas não fizessem parte dos levantes. As gravações de poesias do grupo, algumas delas já utilizadas em filmes anteriores de Lemaître, trazem um estranhamento tátil e rítmico, cumprindo função especial na temporalidade de Le Soulèvement... . A leitura de “Les aventures d'el Momo. Episode de mai 1968: avec apeiros vers la création au pouvoir!”, por sua vez, é a recriação sonora da narrativa de um conto visual hypergraphique , reconhecível aos espectadores antenados às publicações letristas do período.

Os registros audiovisuais de ações do grupo, por sua vez, compõem uma segunda ordem de reciclagem endógena. Em Le Soulèvement... , as perambulações por Paris de um jovem que parece figurar Lemaître, entre caminhadas solitárias e ações prosaicas dentro de casa, acompanham o trajeto geral do filme com aparições intermitentes. Sua presença retoma uma prática de montagem já anunciada em Traité de bave et d'éternité (1951), que incluía imagens cotidianas dos letristas, somadas a outros extratos. Em Le Soulèvement... , as perambulações de um jovem solitário sugerem a não inclusão, do mesmo e dos letristas em geral, em relação às massas humanas em confronto. Vale destacar que, ao longo do filme, tais perambulações são apresentadas em negativo fotográfico, radicalizando a marginalidade de tais atos. Nesse sentido, é como se ele ocupasse uma posição oposta, em relação aos jovens em revolta, a partir de um confronto de posições, entre negativo e positivo fílmico, ou então entre consciente e inconsciente. A partir de um olhar arqueológico pela obra de Lemaître, identifica-se que os mesmos extratos de imagens foram utilizados em Un soir au cinéma (1964). Neste filme, realizado quatro anos antes de Le Soulèvement... , as perambulações eram associadas ao galanteio noturno dos letristas em suas idas ao cinema, emulando rupturas do cotidiano e dos usos socialmente aceitos das salas de cinema. A reutilização das imagens de perambulação, transpostas a Le Soulèvement... , traz consigo a dimensão do caminhar pela cidade como prática autorreferencial letrista, mas também certo desejo de ruptura do cotidiano, associada no filme de 1964 às heranças surrealistas de René Clair e Buñuel10 10 . Em Un soir au cinema (1964), uma das repetições das imagens do jovem caminhando por Paris é acompanhada pela frase, cinzelada diretamente sobre a película: “Depuis Entr’acte et Un chien andalou , rien que nous!” – valendo lembrar que extratos desses dois filmes de vanguarda são usados por Lemaître no filme de 1964. . Em Le Soulèvement... , a primeira sequência em negativo, posteriormente continuada pelas perambulações, é um extrato de Un chien andalou (1929), de Buñuel e Dalí, no qual um jovem persegue sua companheira pela sala, desejando-a, e ao tocá-la vislumbra suas partes íntimas momentaneamente despidas. As demais sequências em negativo, centradas nas perambulações reutilizadas de Un soir au cinéma , guardam tais reflexos. Em termos visuais, as inserções desses extratos em negativo circundam e destoam em relação aos planos das manifestações pelas ruas de Paris, como se o jovem visto não tivesse qualquer relação com as rebeliões.

Outra forma de reciclagem endógena, em Le Soulèvement... , são os registros audiovisuais de atividades letristas. Em filmes anteriores, aproximando-se de uma auto-etnografia do grupo, tal modalidade chegou a ser fundamental. É o caso de Tous derrière Suzanne, jeune dure et pure! (1978), completamente montado a partir de registros visuais e sonoros de situações cotidianas letristas. A auto-etnografia reciclada encontra-se em poucos, porém importantes, momentos de Le Soulèvement... . As imagens de uma exposição coletiva, incluindo objetos, quadros e cartazes, possivelmente realizada em 1968, são referidas no ápice do filme, próximo ao seu final. Entre as diferentes façanhas de 1968, assim, a arte do grupo ganha espaço como um dos pontos de chegada, desejados pela cosmologia letrista. A partir das práticas de reciclagem interna, aqui debatidas, nota-se uma colagem que retoma formulações textuais, sonoras e imagéticas presentes em obras anteriores. Trata-se de uma reciclagem endógena, também presente entre os manifestos do grupo, associados ao café-cinema.

O reuso de reportagens provenientes de Les Actualités françaises , por sua vez, traz a Le Soulèvement... a referência aos fatos do período, com sua disposição cronológica pontuada em over . A ênfase ao letrismo como núcleo teórico dos eventos, porém, é de tal modo enfática que um espectador desavisado poderia simplesmente aceitar. No limite, as imagens recicladas de Les Actualités françaises por Lemaître cumprem o papel de legitimação do discurso letrista, com seu posicionamento universalizante e de distanciamento do intelectual, diante dos jovens tratados como multidão enraivecida.

A análise dos sentidos criados, entre os fragmentos de imagens e sons, permite identificar as dimensões da posição autocêntrica letrista em Le Soulèvement.... Desde o início do filme, a apresentação de extratos de Un chien andalou (1929), em negativo, acompanhados por uma narração efusiva dos impasses políticos existentes, sugere a rebelião como algo destituído de razão. A voz over encarregada de pontuar os acontecimentos apresenta uma concepção cada vez mais crítica à causa dos estudantes e grevistas. Com o avançar das imagens e comentários sobre a noite das barricadas, os jovens serão referidos por sua “violenta desordem”, que apesar dos pedidos de disciplina pelas autoridades, “enraivecidos”, não hesitariam em afrontar a ordem. Como “provocadores”, tomados por uma revolta inconsequente, iriam saquear o Boulevard Saint-Germain. Com o adensamento das imagens de chamas e carros revirados, os estudantes são sugeridos como uma força fora da ordem, em oposição às aparições do presidente Charles de Gaulle, em discursos nos quais aceita a necessidade de transformações guiadas pelo próprio governo. A construção do presidente e dos jovens como forças opostas, respectivamente associadas ao diálogo político e à ruptura irracional, culmina durante os últimos planos do filme. Antes da cartela com o dizer “Fim”, são intercalados quatro conjuntos de imagens: manifestantes e policiais, digladiando-se, cada um a seu lado; de Gaulle discursando; o plano de detalhe de um falo masculino; tudo isso seguido por um extrato de Un chien andalou , no qual vislumbra-se a face de um personagem em êxtase. O resumo das forças em jogo, trazendo a juventude como desordem e o discurso gaulista como tentativa pacificadora institucional, é fortemente rompido pela imagem do falo, que ironiza o cinema e a lógica narrativa assumida, mas não se imita a isso. O gesto retoma a ruptura letrista, por eles denominada de cinzelamento, além de recolocar a autorreferência de modo fálico e masculinizado. Se a citação do filme de Buñuel sugere a oposição à razão, própria ao estado de ação revolucionária pelo qual Le Soulèvement... se inicia, a interpretação geral é novamente dada pela voz over . A despeito das tensões em jogo, a voz letrista discorre em over , impondo sua distância interpretativa: retomando a leitura de Traité d’économie nucléaire , a narração indica que a rebelião somente será superada com a aplicação da teoria econômica letrista, cujos pressupostos e exemplos foram bombardeados ao longo dos 26 minutos de filme.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto do 1968, a retomada do tema da juventude pelo letrismo é acompanhada por práticas e posicionamentos teóricos anteriores, tendo por viés a autorreferência como modo de explicação do mundo. Nesse sentido, ao evocar a teoria de Isou, o filme de Lemaître reafirma uma série de posicionamentos próprios ao fundador do letrismo. Entre eles, uma concepção de história, ou cosmologia, que implica a evolução do amplique ao ciselant , bem como a proposta de uma teoria universalizante, que busca unir as diversas áreas de conhecimento. O ato de recolocar tal posicionamento em 1968, porém, acaba desdobrando-se em anacronismo histórico, sem levar em conta as modificações sociais durante os 20 anos que separam Traité d’économie nucléaire e os levantes de 1968. Nesta senda, o historiador Fréderic Alix sugere a existência de um “deslocamento intelectual” entre as teorias de Isou e os pensamentos que levaram às rebeliões. A concepção de juventude presente em Le Soulèvement... , construída a partir de um Isou centralizador, evoca uma autoridade intelectual questionada pelo movimento estudantil: “Pois se Isou desejava acabar com o quadro estreito e castrador da autoridade [...] ele mesmo não tinha definitivamente feito outra coisa que dar-se a face de uma autoridade” ( ALIX, 2016ALIX, Frédéric. Isidore Isou et la jeunesse en mai 68: un rendez-vous manqué. 2016. Disponível em: https://www.academia.edu/40901814/Isidore_Isou_et_la_jeunesse_un_rendez_vous_manqu%C3%A9. Acesso em: 7 ago. 2020.
https://www.academia.edu/40901814/Isidor...
, p. 7).

A centralização adotada por Isou, desde os anos 1940, reivindicando a condução do grupo letrista e de suas diretrizes teóricas, dando-se o direito de falar como dono da verdade e da justiça, impunha-se de modo autoritário. Como sugerido por Alix, os embates políticos e teóricos do período colocariam em xeque “o esquema vertical de circulação de ideias, da cultura e do saber, herdado do Iluminismo”, em prol de uma circulação horizontal oposta às hierarquias e aos grandes pensadores (Ibidem). O 1968 foi, de fato, um momento de contestação da figura do intelectual como aquele que adere à causa dos oprimidos, anteriormente proposto por Sartre. O “espaço público no qual evoluíam tradicionalmente os intelectuais é objeto de uma verdadeira tomada de poder”, num contexto no qual o engajamento passa a ser da sociedade como um todo, “retirando dos intelectuais seu papel privilegiado de porta-voz” (Ibidem, p. 9). A partir de então, tal como examinado por Brillant (2008)BRILLANT, Bernard. Intellectuels: les ombres changeantes de mai 68. Vingtième Siècle. Revue d'histoire , vol. 98, 2008, pp. 89-99. , nota-se uma constelação de posicionamentos pela reinvenção do intelectual. Nesse contexto, a postura de Isou, com sua teoria teleológica, pressupondo um conhecimento universal monopolizado pelo artista-intelectual, pode ser pensada como deslocada (ALIX, op. cit, p. 1). Soma-se a isso um “posicionamento messiânico, introduzindo uma relação vertical de transmissão do saber e uma visão seletiva e hierarquizada da criação e de uma suposta evolução” (Ibidem, p. 7), que acabam afastando Isou em relação ao espírito do tempo de 1968. Isso inclui sua postura doutoral quanto ao processo de ensino. Depreende-se que: “Isou continua sendo aquele que sabe. O aluno continua sendo aquele que não sabe, e de fato, encontra-se submetido à autoridade do primeiro, ou seja, Isou ele próprio” (Ibidem, p. 7). Tal debate, sobre o deslocamento do discurso letrista, em particular aquele de Isou em relação a 1968, ecoa sobre a construção de Le Soulèvement... , de Lemaître. A montagem autocêntrica, trazendo Isou e os letristas como núcleo da narrativa, como debatido ao longo do tópico anterior, traz um olhar externo e com certa aversão ao Maio de 1968.

Paralelamente ao deslocamento no tratamento da juventude, o cinema letrista recoloca uma forma de montagem já presente em obras anteriores, aqui radicalizada em termos do autocentrar-se. O trabalho com extratos de imagens e sons em diálogo com outras mídias colabora com uma prática intermidiática de found footage , com modalidades de reciclagem já referidas a partir de Brenez e Chodorov. Além de conferir autonomia às imagens, aderindo às intervenções sobre a película e a novas práticas de montagem, o cinema de Lemaître dialoga com diversos dos usos atribuídos ao found footage pelos referidos autores. Entre eles, há um “uso crítico” no qual as imagens são violentamente apropriadas, incluindo sua destruição ( BRENEZ; CHODOROV, 2014BRENEZ, Nicole; CHODOROV, Pip. Cartografia do found footage. Revista Laika , vol. 3, n. 5, jun. 2014, pp. 1-11. , p. 4), um “uso materiológico” associado às “explorações das propriedades específicas da película como matéria” (Ibidem, p. 8), ou mesmo um “uso analítico” (Ibidem, p. 9), no qual um outro filme completo é estudado em profundidade, incorporado e transformado. Em Le Soulèvement... , a reciclagem endógena e exógena adequa-se a um desejo de centralidade, própria ao grupo letrista, presente nas obras de Isou, bem como nos manifestos e atividades de exibição do café-cinema. Ao invés de revelar traços presentes nos materiais de origem, a construção de Le Soulèvement... tende a uma autoficção, que possui entre as principais intenções o colocar-se como filme de propaganda do letrismo, ou um almanaque sobre a profética sobrevivência da teoria letrista, no contexto de 1968.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FILMOGRAFIA

  • Chantal D. Star (1968), Maurice Lemaître, França, 26 min.
  • Chutes(1968), Maurice Lemaître, França, 12 min.
  • Le Soulèvement de la jeunesse – mai 1968(1968), Maurice Lemaître, Collectif Jeune Cinéma, França, 26 min.
  • Les Actualités françaises – 29 mai 1968(1968), Les Actualités françaises, França, 6 min.
  • Les Actualités françaises – Regards sur le monde: 1957, Les Actualités françaises, França, 1958, 9min.
  • Tous derrière Suzanne, jeune dure et pure!(1978-1995), Maurice Lemaître, França, 174 min.
  • Traité de bave et d'éternité(1951), Isidore Isou, prod. Marc’O, França, 120 min.
  • Un chien andalou(1929), Luis Buñuel e Salvador Dalí, França, 16 min.
  • Une oeuvre(1968), Maurice Lemaître, França, 15min.

NOTAS

  • 1
    . Devido à prática letrista de transformação de palavras, alguns dos conceitos foram mantidos em sua grafia original, em francês. Neste caso particular, as noções de amplique e ciselant correspondem a dois períodos estéticos da arte em geral. O primeiro refere-se a um momento inicial, de uso de técnicas em harmonia, no qual se busca refletir o mundo externo, que é sucedido por uma fase de ruptura, na qual as linguagens e técnicas são rearticuladas, com o aprofundamento das formas e a destruição da arte. ( LEMAÎTRE, 1954LEMAÎTRE, Maurice. Qu’est-ce que le lettrisme? Paris: Éditions Fishbacher, 1954. , pp. 151-152)
  • 2
    . Dentro de uma concepção letrista de arte totalizante, a hypergraphie (também denominada de hypergraphologie ) corresponde à união do romance, da pintura, da fotografia e da escultura, bem como da escrita de alfabetos e hieróglifos, em “um novo modo de transcrição” ( LEMAÎTRE, 1954LEMAÎTRE, Maurice. Qu’est-ce que le lettrisme? Paris: Éditions Fishbacher, 1954. , p. 154).
  • 3
    . Manifesto originalmente publicado no Bulletin du centre de la recherche lettriste , n. 19, fev. 1968. ( BOUHOURS, 1995BOUHOURS, Jean-Michel. Maurice Lemaître . Paris: Centre Georges Pompidou, 1995. , p. 172)
  • 4
    . A cronologia presente no catálogo Maurice Lemaître indica um volume substancial de atividades ao longo dos anos 1960, espelhando a atividade do próprio grupo. Na década, há uma constante publicação de livros e manifestos, colaborações em revistas, participações em exposições, recitais de poesia e lançamentos de filmes. Nos anos 1967-68, há a candidatura de Lemaître às eleições legislativas, a organização do café-teatro letrista La Cave com apresentação de peças teatrais, a publicação do romance hypergráphique De Gaulle et le sexe , uma jornada de cinema letrista organizada na Cinemateca Francesa, a leitura de um manifesto letrista na Bienal de Paris, participações de Lemaître no Conservatoire national d’art dramatique e atividades de pesquisa relacionadas ao teatro de vanguarda, a publicação do conto hypergráphique “Les aventures d'El Momo”, a organização de uma sala letrista no Museé national d’art moderne, além da realização de filmes ( BOUHOURS, 1995BOUHOURS, Jean-Michel. Maurice Lemaître . Paris: Centre Georges Pompidou, 1995. , pp. 170-173).
  • 5
    . Exceto quando indicado o contrário, todas as traduções são do autor deste texto.
  • 6
    . Moteur (1967), Le Film de demain (1967), Contre le cinéma d’André Holleaux et consorts (1969), Victoire de Jules, l’apostolique pendant la seconde guerre de Troie (1967), Chantal D. Star (1968), Pellicule (1968), Chutes (1968), Une œuvre (1968), Le Soulèvement de la jeunesse - mai 1968 (1968), L’Écrevisse mathématique (1969), Votre film (1969) ( LEMAÎTRE, 2007)LEMAÎTRE, Maurice. Oeuvres de cinéma (1951-2007) . Paris: Paris Expérimental, 2007. .
  • 7
    . Relacionado ao ato de intervenção direta sobre a película ( LEMAÎTRE, 1954, pLEMAÎTRE, Maurice. Qu’est-ce que le lettrisme? Paris: Éditions Fishbacher, 1954. , p. 152), por meio de inscrições, desenhos, raspagens ou uso de produtos químicos. Em alguns casos, como aquele de Le film est déjà commencé? (1951), são teorizadas formas de intervenção de modo a contrapor as figuras originalmente existentes.
  • 8
    . Qualificação acadêmica obtida mediante exames para ter acesso ao ensino universitário.
  • 9
    . Nessa versão, publicada com tiragem de 20 exemplares, o Maio de 1968 é narrado sob o ponto de vista do legendário herói “El Momo”, criado de modo autoficcional por Maurice Lemaître, no formato de uma história em quadrinhos a ser colorida pelos próprios leitores.
  • 10
    . Em Un soir au cinema (1964), uma das repetições das imagens do jovem caminhando por Paris é acompanhada pela frase, cinzelada diretamente sobre a película: “Depuis Entr’acte et Un chien andalou , rien que nous!” – valendo lembrar que extratos desses dois filmes de vanguarda são usados por Lemaître no filme de 1964.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    1 Maio 2021
  • Aceito
    10 Jun 2021
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