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Poética da distância: entrevista com Carlos Fajardo

Poética da distância* * O projeto 'Poética da Distância' foi selecionado em 2002 pelo programa Petrobras Artes Visuais, que propiciou a realização de exposições do artista em cinco museus brasileiros (MAMAM, Recife; MAM-BA, Salvador; MARGS, Porto Alegre; MAM, Rio de Janeiro e Pinacoteca do Estado, São Paulo) e a publicação de dois catálogos. A presente entrevista foi originalmente publicada no primeiro deles. [ SALZSTEIN, Sônia. Carlos Fajardo: Poética da Distância. São Paulo, Petrobras Artes Visuais, 2002. ] ** Carlos Fajardo é artista plástico e professor do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. . Entrevista com Carlos Fajardo** * O projeto 'Poética da Distância' foi selecionado em 2002 pelo programa Petrobras Artes Visuais, que propiciou a realização de exposições do artista em cinco museus brasileiros (MAMAM, Recife; MAM-BA, Salvador; MARGS, Porto Alegre; MAM, Rio de Janeiro e Pinacoteca do Estado, São Paulo) e a publicação de dois catálogos. A presente entrevista foi originalmente publicada no primeiro deles. [ SALZSTEIN, Sônia. Carlos Fajardo: Poética da Distância. São Paulo, Petrobras Artes Visuais, 2002. ] ** Carlos Fajardo é artista plástico e professor do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

Sônia Salzstein

Crítica de arte e professora do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

A entrevista que se segue é o resultado de uma série de conversas mantidas entre o artista e a curadora de setembro a novembro de 2002. Ela busca delinear o percurso de mais de três décadas de uma obra por natureza lacônica e trazer à tona uma constelação de informações e referências que até aqui permaneciam inéditas ou dispersas em um sem-número de publicações. O que sobressai da entrevista é o ponto de vista do artista a respeito dos desdobramentos de sua obra e o exercício de revê-la em perspectiva histórica e entendê-la à luz das questões mais prementes que envolveram sua trajetória de meados dos anos 60 à atualidade.

Formação, Referências

Sua formação de artista aconteceu ao longo da década de 60, período no qual foi marcante o curso de desenho que você fez com Wesley Duke Lee. Quais eram suas preocupações como artista naquele período?

Embora tivesse freqüentado uma faculdade de arquitetura, minha formação de artista foi autodidata, alimentada por vários interesses culturais. Fiz cursos breves de música, cinema, fotografia. Creio que o curso de desenho que tive com Wesley Duke Lee, no período de 1962 a 1963, foi de grande importância em minha formação. Em virtude dessa experiência, o desenho era, na época, o suporte básico de meu raciocínio plástico. Entendia o desenho como um ato preparatório, como um modo de produzir raciocínios visuais. Minhas pinturas já deixavam transparecer o interesse pela materialidade do suporte, por um objeto-pintura: utilizavam, por exemplo, placas de acrílico presas com parafusos a cerca de 5 centímetros de distância da superfície da tela. Nesse momento, minha produção estava estreitamente relacionada ao desenho, que, por sua vez, tinha um suporte narrativo muito forte. Veja este, espécie de seqüência solta - sem começo nem fim - de um conto policial: um homem que estrangula uma mulher ["mulher sendo atacada", de 1966]1 1 . O artista não atribui títulos a suas obras. Apenas algumas, da década de 60, foram nomeadas. Optou-se, no texto, por identificar todas as obras mencionadas na entrevista por meio de descrições sumárias indicativas de alguns de seus elementos essenciais. (fig. 1). O que importa nesse desenho, entretanto, não é a narração, mas o suporte material. Vinquei o papel em planos sucessivos, fiz algo como uma janela sanfonada "através" da qual as figuras são vistas, de modo que a narração é, por assim dizer, absorvida pelos acontecimentos do papel.


Produzi nessa época o "neutral" (fig. 2), no qual também está presente meu interesse pelo desenho, mas de maneira um pouco diferente. O "neutral", de fato, resulta da indiferença do desenho. É um cubo de acrílico transparente em cujo interior há outro, de dimensões idênticas, virtual, do qual só há o traçado, e esse traçado aparece ligeiramente deslocado em relação ao primeiro cubo. O desenho, como eu disse, é algo externo ao objeto, mas o objeto só aparece ao observador na medida em que for refazendo, ou atualizando, esse desenho, ou projeto. É uma questão estrutural, que permaneceu forte em meu trabalho. As figuras e o espaço narrativo foram aos poucos desaparecendo. Em todo caso, na década de 60 há, em minha produção, um raciocínio material, físico, construtivo, que convive com um suporte narrativo.


Parece haver, já em sua produção desse período, uma polaridade entre o desenho (ou aquilo que o desenho tem de projetualidade, e, por conseqüência, de profundidade), a narrativa e a exigência da presença, a afirmação da fisicalidade e da dimensão objetual dos trabalhos.

De fato, minha produção viveu dessas contradições até os anos 70. Nas pinturas, por exemplo, há uma preocupação com a figura, mas também com uma questão estrutural, de ordem construtiva, e era comum que eu sobrepusesse às superfícies (eventualmente trazendo figuras) algum outro material, dando aos trabalhos um caráter de montagem, construção. Mesmo quando os trabalhos se referiam a elementos orgânicos, esses eram desnaturalizados, esvaziados de sua carga semântica de tipo emotivo, sentimental, e subordinados a uma lógica construtiva, auto-suficiente.

Outra característica que percebo em seu trabalho é esse lugar peculiar que ele parece buscar, para o qual convergiriam as questões da bidimensionalidade e a exigência da presença decisiva dos objetos no espaço. O curioso é que não se trata de interesses paralelos, mas de uma preocupação que às vezes se resolve no plano, e que às vezes precisa estabelecer situações espaciais.

Certo, nesse período eu fazia trabalhos bidimensionais e também os relacionados ao espaço. Acho que desde essa época já era visível meu interesse pela noção de superfície, mais do que por bidimensionalidade ou tridimensionalidade. Os trabalhos começavam a acontecer numa zona fronteira com o espaço.

A atitude de valorizar a natureza objetual do trabalho, a presença dele no espaço, sugere que o minimalismo2 2 . Para uma introdução às idéias minimalistas, cf., entre outros, JUDD, Donald. Complete Writings: 1975-1986. Eindhoven, Van Abbemuseum, 1987, e MORRIS, Robert. Continuous Project Altered Daily. Cambridge/Massachusett, The MIT Press, 1995. foi uma referência importante para você, nesse período de formação.

Em minha formação, importa, de fato, o minimalismo. "Specific Objects"3 3 . JUDD, Donald. "Specific Objects". In JUDD. Op. cit., p. 115-124. , de Donald Judd, é de 1965, e eu li o texto mais ou menos nessa época. Além de Judd, havia Allan Kaprow, Robert Smithson, a Arte Povera4 4 . CELANT, Germano. Art Povera: Conceptual Art, Actual or Impossible Art?. Milão, Gabriele Mazzotta Publishers, 1969. . Mas, no que concerne ao minimalismo, não era um interesse exclusivo, de tipo programático. Interessava-me a questão construtiva, e se essa aparecia associada principalmente ao minimalismo, estava presente também no neoconcretismo, de maneira muito diversa, pois aí se agregava à questão construtiva a figura do sujeito, uma fenomenologia do sujeito. Desse momento em diante, meu trabalho tornou-se uma luta contra a narração. Era, como você sugeriu, uma situação problemática, pois se tratava de buscar algo que não fosse narrativo precisamente no plano, na superfície - que são, por excelência, o território da sintaxe, do tempo progressivo e lógico da narração, que solicitam, portanto, um começo, um meio e um fim. Em todo caso, a produção dessa época é marcada em igual medida pelos raciocínios de superfície e pelo pressuposto da materialidade. Mesmo os trabalhos tridimensionais advinham do desenho: são antes uma inter-relação de superfícies do que a realização de um pensamento escultórico.

Noto em alguns de seus trabalhos da época - como, por exemplo, nesse objeto, que é um jogo de superfícies de madeira laqueada ["quadro embutido"] (fig. 3), uma preocupação em manter cada parte como parte, seu empenho em demover a conexão dessas partes a um todo pressuposto, mas, ao mesmo tempo, o objeto trai a pressão inevitável de uma narrativa de tipo cubista, que não liqüida o todo, apenas o decompõe, analiticamente, em fragmentos...


Nesse caso, sim, ainda há, como você diz, a memória de um "todo cubista". Mas em trabalhos apenas um pouco posteriores, como "de acordo com os antigos" ou "da minha altura" (fig. 4), as partes não estabelecem um diálogo sincrônico, uma metáfora de temporalidade que faz de cada parte a culminação da precedente e a causa lógica da subseqüente - esse tipo de temporalidade é unidimensional, é mera representação de temporalidade, não me interessa. Há, nos dois trabalhos citados, continuidade e duração, mas não narrativa - se estivermos de acordo que a narrativa pressupõe um tempo ideal e um espaço externo ao do observador. Eles me agradam - especialmente "da minha altura" - porque só se realizam no encontro com o "espaço externo".


Vamos admitir que não há qualquer narrativa em seu trabalho - que de fato ele passa longe da narrativa clássica, com sua exigência de um começo, um meio e um fim, seus pressupostos de transparência, universalidade e finalidade. Mas não me parece que, no pólo oposto, haja nele, apenas, a pura fisicalidade, a mera afirmação da evidência de uma natureza objetual.

Eu diria que meu trabalho oscila entre a condição do objeto e tudo o que não pode se exprimir na realidade monolítica desse objeto, embora nem por isso deixe de estar ali, presente no espaço, como manifestação física. A noção de distância é, por isso, fundamental para mim - esse espaço "vazio" que se estende além do objeto, sem o qual ele simplesmente não faz sentido. Mais do que o objeto, então, é a superfície que me interessa, pois estou sempre colocando as coisas "em relação", extraindo relações de continuidade entre objetos aparentemente incongruentes, alheios uns aos outros. Veja este trabalho, "a floresta" (fig. 5), exposto na Galeria Art-Art, em 1968. Lá, havia uma sala comprida com uma parede no meio. O trabalho se erguia de um dos lados da parede, dava uma volta nela, subia, ia pelo teto e caía pelo chão. Não há narrativa aí, há a pressão física do espaço sobre o trabalho, e o movimento físico pelo qual ele reage a essa pressão, pelo qual ele recusa os termos em que se estabelece o dado espacial e se propõe como uma modificação nesse espaço. O trabalho, embora tenha inteligência própria, auto-suficiente, é absolutamente responsivo ao espaço. Há aí algo de uma site-specificity, embora naquele momento o termo não tivesse sido formulado.


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Esse comentário parece perfeito para explicar trabalhos como "madeira encaixada", de 1969, e "madeira em balanço", de 1970 (fig. 6).


Sim, ambos são trabalhos de superfície. Vamos começar pelo segundo, cujo elemento construtivo central é uma lâmina de madeira, dessas comuns que se encontram na construção civil, de cerca de 6 metros de comprimento. Todo o esforço dos outros elementos que constituem o trabalho é empregado para levantar do chão essa lâmina de madeira. Numa extremidade, há uma pequena viga que "morde" a lâmina como uma garra, "puxando-a" para baixo, enquanto na outra extremidade há uma lâmina rija, que a trespassa verticalmente e exerce sobre ela uma força de propulsão. Não me interessa, aqui, a ação da gravidade, mas o esforço que a lâmina, que nesse formato é um material passivo e com pouca capacidade estruturante, faz para vencer o atrito com os outros elementos, para modificar a situação dada. A outra peça, "madeira encaixada", também coloca em questão, de modo elementar e sempre obedecendo ao critério construtivo, uma relação entre superfícies, um jogo de forças simétricas e opostas. Ela consiste em duas secções longitudinais de tronco de árvore que se encaixam no ponto médio. O tipo de encaixe aí utilizado é o que os marceneiros conhecem como "macho e fêmea".

Há uma alusão literária à cópula. O caso é que o trabalho faz refluir essa alusão literária à condição de um acontecimento físico, literal. Veja que, nesse momento, mesmo quando faço "esculturas", estou mais interessado na superfície do que na idéia de tridimensionalidade; aliás, a rigor, não entendo essas peças como esculturas.

Quais foram suas exposições mais importantes no período? Como foi sua participação na Jovem Arte Contemporânea (JAC)5 5 . As JACs, interessadas especialmente na prospecção da produção jovem, ocorreram em edições anuais no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, no período de 1967 a 1974. Seu idealizador e curador foi o historiador de arte Walter Zanini, então diretor do museu. ?

Com Frederico Nasser, José Resende e Luís Paulo Baravelli, eu havia participado, em 1968, de uma exposição na Galeria Art-Art, que depois foi levada para a Petite Galerie, no Rio de Janeiro. Já não estávamos ligados ao Grupo Rex, mas tínhamos afinidades como grupo, embora ele fosse bastante informal. Em 1970, nós quatro expusemos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e depois no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. No mesmo ano, fundamos a Escola Brasil:, e a partir de então passei a me dedicar quase exclusivamente ao ensino. Minha atividade como artista sofreu um hiato, um refluxo, e apenas no fim dos anos 70 voltei a produzir de modo intenso. Em todo caso, nesse período, fiz umas poucas peças. Trabalhos que começavam a evitar o desenho, o artesanato, o fazer. Gostava de achar que meus trabalhos eram encomendados por telefone... Durante a época do Rex, a mostra que considero mais importante é a primeira do grupo, 'Descoberta da América'. Participei dessa exposição com duas pinturas em que apareciam superfícies de acrílico sobrepostas e com o cubo "neutral". As pessoas adquiriam não o cubo, mas as instruções para montá-lo. Na JAC, em 1967, apresentei três pequenas construções nas quais sublinhava o caráter portátil, sua condição de objetos manufaturados, que qualquer um podia mandar fazer. A provocação era que não se podia deduzir um "estilo" daqueles objetos tão diversos entre si. Havia também uma indiferença da forma, o fato de que os trabalhos eram portadores de uma idéia que ultrapassava aquele fazer. Usei materiais diferentes para cada um deles, com acabamento manual, não feito por mim, naturalmente.

Um segmento importante de sua produção, entretanto, desenvolveu-se nesse período. Refiro-me às fórmicas.

A fórmica me atraía, não por suas referências à cultura urbana, de massa, a um mundo pop. Pouco importava que pudesse ser encontrada no balcão do bar, no mobiliário barato. Para mim, era a realização mais estrita da idéia de superfície e de cor. Por ser um material industrial, podia encomendar o trabalho na fábrica, a partir de um modelo. Eu fazia o desenho e o levava ao marceneiro, que produzia o objeto.

Os arranjos dessas fórmicas, em marchetaria, parecem aleatórios, sugerem uma indiferença no uso de formas geométricas ou orgânicas... Outros deixam entrever, de modo difuso, certa ironia com a figuração, como "República do Líbano", de 1971 (fig. 7).


De fato, em "República do Líbano", a imagem é mais reconhecível. Eu selecionei sete cores relacionadas em sete formas diferentes, e, dentre as inúmeras possibilidades de combinação, escolhi cerca de 40, cada uma correspondente a alguma hora do dia, que não era numérica nem seqüencial: essa é a "hora República do Líbano", pois eu passava por essa avenida todas as noites, ao voltar para casa, vindo da Escola Brasil:. Como a figura era sempre a mesma, o que me interessava era a variedade de cores relacionadas, as 40 relações cromáticas. A produção das fórmicas teve início em 1969 e continuou até os anos 90.

As fórmicas trazem várias questões de interesse contemporâneo: falam da pintura numa escala mural, impessoal, sem serem pintura; revelam um procedimento construtivo, mas esvaziado da promessa construtiva de franqueza da operação artística, sendo, ao contrário, marcadas pelo caráter aleatório de sua construção; solapam a convicção na racionalidade da forma, pois nelas essa se desdobra com uma graça decorativa, de modo repetitivo. A despeito dessas atitudes, que em princípio indicariam distanciamento, curiosamente não vejo nas fórmicas uma arte seca, de viés conceitual, que comenta os limites da própria arte, mas a inusitada pressão de uma face expressiva, algo de humor e desordem querendo irromper no trabalho. Outras produções, como as duas peças tridimensionais que discutimos há pouco, também deixavam entrever certo antropomorfismo que, de modo muito cifrado, parece permanecer até hoje em seu trabalho, fazendo pulsar, debaixo dele, uma curiosa dimensão expressiva. De novo defrontamos uma polaridade...

É bem possível que essa polaridade constitua um núcleo ativo em meu trabalho, mas não é algo de que eu vá me ocupar. Só posso constatar essa polaridade a posteriori. É importante frisar que nunca pensei meu trabalho comprometido com os rigores de uma literalidade de tipo minimalista, muito menos herdeiro da vertente conceitual, e, nesse sentido, capaz de prescindir de uma fenomenologia do sujeito/objeto. Reconheço nele uma expressividade difusa, que não tem nada a ver com as afecções do sujeito, com uma psicologia individual, com estilo. Em todo caso, as fórmicas assinalam um momento crucial em minha produção, pois foi com elas que comecei a lidar de frente com a crise da estrutura narrativa.

Já comentei como a idéia de fragmento ou parte é imprópria para descrever a forma que aparece nelas, forma que não remete a qualquer drama interno do "quadro", de implosão de uma totalidade espacial pressuposta. Ao contrário, aquele modo de lidar com a forma sugeria que ela podia virtualmente propagar-se para o ambiente. As fórmicas, ao personificarem a idéia de exterioridade, empurravam-me para o espaço, instigavam-me a uma nova escala. Você apontou diversos outros aspectos nelas, e decerto eu não atinava claramente com a maioria deles no momento em que as produzia, mas, como elas prosseguiram até os anos 90, talvez tenham contagiado outros trabalhos com essas preocupações.

Já sabemos que elas surgiram num momento de pouca produção, em que você estava principalmente envolvido com o ensino na Escola Brasil:. No último terço da década de 70, quando você retomou a produção com intensidade, como o trabalho enfrentou a questão da busca de uma escala espacial a que as fórmicas o haviam conduzido? E a "crise da narrativa", como se apresentava nesse momento?

Foi só em 1977 que essas questões apareceram de modo mais claro. Comecei a produzir pinturas de grandes formatos, como esse trabalho com três mulheres em tamanho natural (fig. 8). Há aí um procedimento curioso, que funde o raciocínio de superfície, tão central em meu trabalho, com a exigência de conferir fisicalidade a essa superfície, de constituí-la como um fenômeno espacial. O procedimento era o seguinte: uma pessoa se posicionava na frente da tela, rente a ela, e eu fazia seu contorno, tal qual um decalque em que o molde era o próprio corpo dessa pessoa. Ficava ali o vestígio físico da presença dela. Não era representação, era o indício da pessoa..


Na virada dos anos 70 para os 80, você se despediu da pintura. Os problemas da narrativa, doravante, não se manifestariam mais nos termos da figuração. O trabalho se projetou decididamente no espaço, e, como você passou a conceber o espaço como um feixe de relações entre superfícies descontínuas, cabe perguntar se mais uma vez não se apresentou a questão da narrativa, uma vez que o espaço resultava, precisamente, das múltiplas relações que essas superfícies estabeleciam entre si. E relação sempre implica, de certo modo, um procedimento narrativo.

Nos anos 80, meu trabalho passou a solicitar grandes extensões. Era preciso se relacionar com ele em seus aspectos físicos, era preciso levar em conta a distância que ele dispunha entre as coisas, e sobretudo a questão do tempo, do transcurso de tempo que essas relações no espaço protagonizavam. Ele agora requeria uma consciência corporal do indivíduo, o que não significava que precisasse recorrer a um arsenal de técnicas de estimulação sensorial, mas simplesmente que acolhia um indivíduo em sua condição mais viva e espontânea - de pedestre. O trabalho não queria transportar o indivíduo a outro lugar; ao contrário, pressupunha esse indivíduo, o tempo todo, autoconsciente das condições dadas do espaço, rente a ele, e por isso mesmo capaz de modificar tais condições; o trabalho passava então a ser o transcurso espaçotemporal a que convidava. Acho que o que há aí não é narrativa, mas desconstrução contínua dela.

O espaço como jogo de superfícies

Uma provocação: você defende que a partir do fim dos anos 70 seu trabalho descartou definitivamente a narrativa, no momento mesmo em que passou a ter como suporte o próprio espaço, desde então compreendido como um feixe de relações. Nessa situação, os elementos são livremente legados a forças de atração e repulsão recíprocas. Tendo a pensar, no entanto, que, mais do que liqüidar a narração, seu trabalho tem sido um empenho constante de desarticulá-la por dentro, fazendo nela intervir distâncias, ambigüidades, de sorte que parece agora caber ao observador estabelecer, livremente, relações de continuidade ou descontinuidade entre aqueles elementos.

Eu mesmo estranho o modo de operar que, por vezes, emprego. Em minha tese de doutorado6 6 . O artista é professor do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde defendeu, em 1998, sua tese de doutorado. [FAJARDO, Carlos. A Profundidade e a Superfície. São Paulo, Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 1998. (mimeo)] , fiz um ensaio fotográfico, isto é, escolhi o lugar em que se incrusta o problema da narrativa: a máquina fotográfica. O sistema ótico e a física dizem respeito à profundidade, sem a qual não há narrativa em pintura. Constato que é de minha índole querer brigar com o inimigo na casa dele. É dessa forma, aliás, que parte de meu trabalho encara a fotografia.

Questiono se o trabalho de fato alcança a literalidade que você reitera desde o momento em que se despediu daquelas figuras de mulheres (refiro-me à pintura de 1977) ou se, de outro modo, não pode prescindir da profundidade - o que, talvez, seja inevitável, já que não há como a visão operar sem destacar uma figura de um fundo. Se esse ponto de vista estiver correto, cabe admitir que há um procedimento acentuado de dissociação mais do que uma aniquilação da narrativa. Não quero dizer, com isso, que o trabalho sucumba a um idealismo da visão, que perca de vista seu observador "pedestre", posto que nunca deixa de instá-lo a estabelecer, ele próprio, as condições do espaço, que nunca são dadas a priori.

Talvez possa concordar com você, na medida em que as grandes pinturas (tinham cerca de 4 metros de comprimento) apresentadas na XVI Bienal de São Paulo, de 1981, por exemplo, protagonizam esse processo de distanciamento entre elementos familiares, elementos cuja atração recíproca se funda no hábito, num substrato ideológico qualquer, de sorte que o trabalho quer problematizar tal progressão "natural" de uns elementos aos outros. Nos trabalhos "quatro em uma" (o de chassi vazado), "bienal verde" e "arco", eu almejava, precisamente, que o espectador não pudesse reconhecer uma narração, já que cada elemento é díspar e diverso. Naquele apelidado "tela em branco", a tela central não sofreu qualquer ação. Em "azul" (fig. 9), a tela da direita está invertida, com o chassi ocupando a condição frontal. Três aspectos são aí significativos: todas essas pinturas são encostadas na parede; guardam uma distância estratégica entre si (nem tão próximas que possam parecer uma pintura mural de escala monumental, nem tão distantes entre si que possam indicar um capricho formalista qualquer); e, por último, exigem que o observador ande para vê-las - só podem ser vistas numa continuidade, demovem uma apreensão instantânea, frontal.


Vou insistir no ponto que tenho reiterado ao longo de nossa conversa: precisamente nessas pinturas, apresentadas na Bienal de 1981, você parece ter "resolvido" o problema histórico do trabalho, que o atribulava desde a segunda metade da década de 60. Freqüentemente, ele parecia debater-se entre a premência dos enunciados conceituais, o autocontrole da forma e o advento espontâneo dos materiais, de relações imprevistas entre seus elementos, e até mesmo do gesto, ainda que esse devesse ser sempre uma ocorrência meio extraordinária, pontual. Vejo nessas pinturas a consolidação da linguagem de um trabalho que associa impessoalidade, uma disciplina rigorosa de recolhimento do eu, a desconfiança profunda do vocabulário e da própria linguagem da arte, mas que, a despeito dessas atitudes em princípio puristas, emana, como se fosse a contrapelo, quase um expressionismo, uma vaga pulsação perante a possibilidade de aparecimento do corpo para o espaço.

De fato, o elemento expressivo foi deslocado de lugar. Não pretendo fazer afirmações do tipo "não sou pintor", "a pintura não mais importa", "posso fazer algo puramente mecânico, sem gestualidade". Mas me interessa lidar com noções de espaço, com a relação física, pedestre, que o corpo entretém com o espaço, sem definitivamente reduzi-las a um drama de desajuste do sujeito contemporâneo, a questões estritas da subjetividade. Penso sempre o indivíduo disposto ao embate com uma exterioridade, premido pelo espaço da cidade, pela determinação cúbica, ortogonal, de todos os espaços nos quais cabe viver etc. Quero reencontrar uma expressividade lidando com situações espaciais prosaicas, casuais. As pinturas que discutíamos têm nossa escala, solicitam uma temporalidade real, imanente. Em outro desses trabalhos mostrados na Bienal [apelidado "com porta"] (fig. 10}, um dos planos que compõem o "conjunto" é, na verdade, uma porta, um elemento "pobre", que, no entanto, solicita do observador um esforço de linguagem, de associação com outros elementos complexos que estão ali presentes. A reação pode ser, inclusive, adversa ao trabalho, de absorção irresistível do observador por uma situação percebida como puramente empírica, como ocorreu nesse caso específico. A porta funcionou aí como um dado "pesado" de materialidade que contagiou todos os outros elementos, pois acabou sendo levada embora por alguém, durante a exposição. Posso enfim dizer que, se a partir desse momento meu trabalho, de fato, pretende uma aderência ao mundo, andar rente a ele, isso não significa que abra mão da possibilidade de modificá-lo, ainda que a margem de manobra seja muito estreita, pois vejo essa condição da horizontalidade como central para mim.


Poética da distância

Vimos como, no princípio dos anos 80, seu trabalho se projetou mais decididamente no espaço, com uma linguagem muito peculiar, não tridimensional, não escultórica, fundada na noção de superfície.

A partir desse momento, não retornei mais à pintura, embora os problemas do desenho continuassem a me interessar, às vezes em escala ambiental, como ocorreu numa instalação que realizei na Galeria Sérgio Milliet, da Funarte, no Rio de Janeiro, em 1987. Uma parede inteira da sala onde instalei o trabalho foi borrifada com uma camada homogênea de pó de grafite, de sorte que ali o conceito da linha era concretamente dissolvido para dar lugar a uma experiência de superfície, que, aliás, parecia pairar no ar, porque não havia sido utilizado qualquer aglutinante ao material. O grafite não estava de fato aderido ao suporte: era uma espécie de superfície no ar.

Voltando à questão do espaço: nesse período, os trabalhos começaram a invadir o espaço físico, deixaram de ter um drama interno e passaram a conviver com os problemas do espaço de maneira menos heróica. Na nova condição, eu buscava lidar com situações tópicas, rentes ao observador, mas que eram, por assim dizer, dilatadas, pois os elementos se apresentavam incompletos - incompletos no sentido de serem nexos de relações potenciais, e não de alguma falta -, e assim solicitavam que o observador organizasse o espaço em torno. Além disso, no período, os trabalhos aumentaram significativamente de escala e passaram a prezar cada vez mais materiais comuns, encontrados em lojas de produtos industriais. Isso implicava uma atitude de distanciamento de materiais marcados por alguma plasticidade, distanciamento de materiais expressivos, que pudessem evocar a tradição da pintura ou da escultura.

Mas o mármore e o granito reapareceram com força na década de 90.

Veremos que nesses trabalhos aos quais você se refere eu uso a costaneira, que é a pedra bruta, que mostra as marcas do processo de corte usado nas pedreiras. É o mármore sem simbolismos, reconvertido a sua indiferença originária, a um valor quase geológico, de estrutura mineral, com qualidades físicas de peso e massa... Mas voltemos aos anos 80. A cor era algo que me atraía quando a encontrava já pronta, casualmente, em materiais inespecíficos; a cor do madeirite, por exemplo, passou a freqüentar boa parte de meus trabalhos. Todas essas atitudes - ampliação de escala, valorização da distância entre as coisas, atração por materiais pobres, inexpressivos - indicavam que o caráter simbólico eventualmente remanescente nos elementos do trabalho ia se tornando indicial: eis a transformação - material e conceitual - mais significativa ocorrida entre o fim dos anos 70 e o início dos 80.

Há outro trabalho em que meu encontro com os valores expressivos da cor é forçado pela própria fisicalidade dos materiais. Trata-se da peça apelidada "duraplac", de 1980, constituída de três placas de duraplac e duas de madeira. Há uma placa vermelha, uma amarela e uma azul. A vermelha eu pintei (com tinta industrial) de amarelo, a amarela de azul, a azul de vermelho. Ocorria aí um fenômeno tradicional da pintura: o pentimento, um estado de "deriva" da visão, que escorrega pelos pequenos rastros das camadas mais internas da pintura, inesperadamente denunciadas em superfície. O observador é atraído pelo que acontece detrás da superfície pintada, mas nesse caso há apenas o duraplac, a exterioridade reencontrada...

É precisamente nesse tipo de atitude - você menciona uma visão que por um instante é levada à deriva, que se demora e assim, de algum modo, reconstitui uma profundidade - que vejo um expressionismo em seu trabalho, a despeito de tudo se passar rigorosamente em superfície.

Acho que esse "expressionismo" de que você fala só começa a se manifestar - se é que podemos chamá-lo com esse nome - nos trabalhos da década de 90 ou do fim dos anos 80. A instalação da Sérgio Milliet de fato colocava lado a lado, como para extrair uma impossível continuidade entre elementos e ações tão estranhos uns aos outros, materiais sensoriais, expressivos, e materiais industrializados, anódinos, em princípio absolutamente resistentes ao gesto. Tínhamos ali o fazer cego de uma "linha" de argila, moldada numa ação puramente artesanal, e a intervenção asséptica, quase cirúrgica, de depor sobre uma parede um plano inclinado de madeirite, que distorcia a ortogonalidade do espaço, criava uma profundidade (fig. 11). O ambiente resultava, assim, numa estranha soma de frieza e distanciamento com sensualidade, arrancada de situações inusitadas, inesperadas.


Uma peça como "cone e véu" (fig.12), de 1992, começava a mostrar a emergência mais decidida do gesto em minha produção. Mas se eu pudesse explicá-la como um desenho, diria que é um desenho sem interioridade, clarividente. Não nego, entretanto, que haja aí um jogo sensorial de pressão e resistência entre superfícies, um antropomorfismo, se você quiser. Insisto quanto ao fato de que essa expressividade é, em meu trabalho, algo que brota da superfície para fora, a posteriori, isto é, na relação do trabalho com o espaço e o observador. Não penso meu trabalho como história da arte, mas acho que essa "exterioridade permeável" que busco tem algo a ver com a estrutura do ready-made de Duchamp, um objeto fortemente expressivo a despeito de si mesmo. Além disso, desde o início, ele está posto no mundo. O tempo e o espaço dele são reais.


Voltando ao problema da cor, dois trabalhos que você realizou em 1991, embora tenham uma estrutura hierática e elementar, trazem, como de contrabando, uma intensa expressividade da luz e da cor. Refiro-me à "grade vermelha" (fig. 13) e à "grade verde", sobre as quais você polvilhou pigmento puro.


Os depósitos de pigmento sobre as hastes das grelhas são, de fato, uma questão de pintura: o pigmento puro reflete, condensa, mas também faz a cor propagar-se no ambiente. Lembro-me de que, nessa época, havia ido a uma exposição de Barnett Newman, no Metropolitan Museum, de Nova York, na qual vi uma pintura em que o pigmento era jogado puro na tela. Fiquei impressionado. Acho que meu trabalho não descarta totalmente a memória da pintura, mas a percebe de fora, faz intervir nela outros elementos: conceituais, táteis, espaciais, olfativos. A grade, utilizada na construção civil para fazer lajes, foi cortada no tamanho propício para que eu a manipulasse. Mas não deixava de vir também de Malevitch, de passar por El Lissitzky e Mondrian, artistas que me são muito caros. Concordo com você que, a despeito da secura do procedimento, as grades resultaram em trabalhos ultracinéticos e, mesmo tendo dimensões relativamente modestas, ocupavam com vigor o espaço.

Talvez como decorrência da intervenção explícita do gesto (a essa altura, estou entendendo como gesto o procedimento de polvilhar o pigmento na grelha, um gesto, a meu ver, bastante expressivo), no fim da década de 80 seu trabalho passou a entreter uma relação mais sensorial e francamente expressiva com os materiais.

Mas nunca fui atrás de materiais expressivos - esse problema é do trabalho, não posso decidi-lo de antemão. Você viu as grelhas... Examinando minha produção retrospectivamente, noto uma diversidade considerável de materiais, mas confesso que os emprego segundo uma certa lógica da negação. Em primeiro lugar, porque não os subordino a um fazer, o gesto ocorre em outro lugar que não numa marca particular que eu deixe sobre uma superfície - a expressividade, quando aparece, provém dos próprios materiais ou das relações densas que se explicitam entre eles. Em segundo lugar, meu trabalho não tem, propriamente, uma poética dos materiais que, como já afirmei, são indiferentemente diversos. Mesmo que eles eventualmente reapareçam em vários trabalhos ao longo dos anos, como, por exemplo, o madeirite, trata-se, para mim, de desconsiderar sua eventual familiaridade com o trabalho, de forçá-los a situações inéditas.

Ainda a respeito do uso dos materiais, acho importante mencionar a recorrência, em seu trabalho, de certos materiais e procedimentos ligados à tradição popular (a argila, a cestaria, a marchetaria, o tijolo) que, se paradoxalmente descrevem um fazer artesanal e desinvestido de individualidade, aportam certa dramaticidade às situações em que aparecem.

Um de meus trabalhos que lidam mais diretamente com essas questões é a "esfera de cipó" (fig. 14), de 1997. Encomendei a um cesteiro que fizesse uma cesta fechada, contínua, tramada também interiormente, portanto sem o "dentro". Lembro que o procedimento de ter meus trabalhos executados por outros é tão antigo quanto o "neutral", de 1966, ou as fórmicas, realizadas a partir de 1969. Mas a "esfera de cipó" traz esse dado novo, essa dramaticidade, como quer você, que se produz no próprio procedimento construtivo: ela é suspensa no espaço com cabos de aço que servem de tirantes e que a prendem retesadamente às paredes. É um objeto natural, caloroso e suave, que, no entanto, é submetido à ação incongruente de inscrevê-lo, por assim dizer, "ortopedicamente" no espaço... Na "esfera de glicerina", de 1987 (fig. 15), interessou-me a impossibilidade de constituí-la propriamente como uma esfera. Assim que é retirada da fôrma de madeira, a glicerina sucumbe ao próprio peso e começa a achatar, ressecar por dentro, e com o tempo tende a partir-se e esfarelar-se. De fato, esses dois trabalhos não são esferas, são vontades de ser esfera. A integridade dos elementos não existe em meu trabalho - eles estão sempre à mercê de relações, de forças externas, mas sendo ao mesmo tempo capazes de transformá-las, de reagir a elas de modo imprevisível.



A importância que seu trabalho atribui à qualidade do gesto, às diferentes relações que os elementos podem estabelecer entre si, em seu aparecimento sempre renovado no espaço, sugere que você tendeu a divergir cada vez mais da poética do minimalismo, uma referência todavia relevante em sua formação. Seu trabalho jamais opera por repetição, jamais é uma afirmação do mesmo. Ocorrem encontros inesperados, singularidades em cada situação na qual o trabalho se encontra.

Concordo com você. Ademais, exceto nos textos de militância, sobretudo de Robert Morris e de Donald Judd, o minimalismo nunca existiu.

Trabalhos recentes

Comparado ao vigoroso trabalho que você apresentou na quarta edição do evento Arte-Cidade7 7 . O evento se insere num projeto de periodicidade geralmente bienal, sediado na cidade de São Paulo, e propicia à produção artística o confronto com a escala da cidade. Organizado pelo crítico Nelson Brissac e envolvendo a intervenção de diversos organismos da administração pública e o suporte de patrocinadores públicos e privados, o projeto se desenvolve desde 1994, espalhando-se por diversos edifícios e locais públicos no meio urbano, quase sempre externos ao circuito institucional da arte. (fig. 16), sua participação na XXV Bienal de São Paulo, em 2002 (fig. 17), pareceu tímida em escala, pouco eficiente para lidar com o ambiente massificador que envolve uma mostra daquele tipo. A impressão que tive é que você pretendeu criar um espaço vazio e auto-reflexivo, em ostensivo contraste com aquele ambiente atordoante e publicitário. Essa atitude, entretanto, soou estranha em face de um trabalho que, como o seu, nunca pretendeu comentar o sistema da arte, as mazelas do mundo institucional etc. Aliás, uma marca forte de seu trabalho é, precisamente, a natureza reflexiva dele.



Nos anos 60, li um livro de arte oriental que dizia que uma mandala não representa nada, porém estabelece uma situação que envolve o sujeito e o real na circularidade da própria mandala. Entendi essa situação como um vazio que se instalava entre o sujeito e a mandala. Gostei muito dessa idéia, de um lugar que produz em você uma situação reflexiva em relação ao espaço, da idéia de que afinal o trabalho não é algo que você "acrescenta" ao espaço, mas que você subtrai dele. Em certo sentido, o trabalho da Bienal era essa subtração. A estrutura de tela foi colocada lá para servir de filtro do ambiente externo, pretendia isolar o trabalho daquele ambiente informe, homogêneo e ensurdecedor. A idéia era criar uma noção de interioridade, tal como uma câmara, uma pequena audiência, e estabelecer uma relação qualitativa com o visitante. Entretanto, o trabalho não se realizou conforme eu esperava. Em primeiro lugar, devido à escala da Bienal, que já não é mais uma feira internacional de arte como tantas outras, mas um empreendimento na área da indústria do entretenimento, que tem interesses muito além do mundo da cultura, que quer absorver a cidade para dentro de si. Em segundo lugar, eventos como esse, que vêm se generalizando em escala global, tendem a induzir um novo tipo de público que quer interagir de modo funcional com os trabalhos, que quer explicações e mensagens, que quer quase um embate corporal com os trabalhos.

A estrutura em espiral do trabalho - eu a associo, evidentemente, ao que você mencionou sobre a mandala - afirma um núcleo interno, reflexivo, a contrapelo de todas as circunstâncias. O trabalho rumaria, aliás, na direção oposta de tudo o que você veio buscando nas últimas décadas: a franca exterioridade...

De fato, o corredor espiralado que servia de acesso a um núcleo interno - esse era constituído de uma maciça plataforma de mármore, formada por quatro costaneiras de superfície irregular - tinha 24 metros de extensão e obrigava o visitante a um afastamento lento e progressivo do ambiente externo, seja do ponto de vista psíquico, seja do sensorial.

O trabalho para a quarta edição do evento Arte-Cidade revela uma escala ambiental jamais alcançada em trabalhos anteriores.

O trabalho da Bienal não era uma instalação, pois não convocava relações com um espaço preexistente, não pretendia intervir nesse espaço; de certo modo, queria ausentar-se dele. No que concerne ao trabalho do Arte-Cidade, realizado num galpão ocupando o 1º andar do edifício do Sesc Belenzinho, a situação era exatamente o contrário: para produzi-lo, tive de modificar o espaço daquele galpão, retirando partes do telhado (que já estava parcialmente sem telhas), fazendo uma construção dentro de outra construção. Quando estive lá pela primeira vez, havia notado que poças d'água refletiam o que estava acima, não somente o céu, mas o espaço aéreo da cidade, com suas imagens sujas e indeterminadas. O trabalho surgiu dessa condição real que o espaço me sugeriu. Pensei, então, em abrir de vez aquele galpão degradado, escuro, descartado pela cidade. Queria conferir a ele uma hipervisibilidade, recobrar-lhe uma presença cortante no espaço da cidade, seja pela multiplicação infinita de imagens que a plataforma e as paredes de espelhos propiciariam, seja, inversamente, pela intromissão, devastadora nesse recesso abandonado da memória da antiga cidade industrial, do vazio estridente do céu, de uma exterioridade imponderável e mordente.

O recurso ao espelho visava a algum efeito psicológico, relacionado ao advento de uma autoconsciência corporal por parte do visitante?

Todos sabemos que revestimentos de espelhos constituem um recurso meio corriqueiro e banal na arquitetura de massa das grandes cidades. Naquele galpão, entretanto, que ainda guarda a história de uma possante cidade industrial, acalentada pela promessa da modernização, os espelhos em escala mural produzem um efeito de contraste dramático. É como se erradicassem a memória social do edifício, como se subitamente o tornassem leve, imaterial. Ao mesmo tempo que magnificavam o edifício, na mesma medida em que o convertiam em imagem, ubíqua e inconsistente, devolviam o corpo do visitante à própria escala, a sua gravidade, à própria solidão, à manifestação de sua pequena idiossincrasia naquele local público; a disposição dos espelhos fazia com que tudo se multiplicasse, exceto sua imagem vista por você mesmo, já que os espelhos estavam dispostos paralelamente, ao longo de dois corredores estreitos, tendo no centro deles uma extensa plataforma também revestida de espelhos. Gosto muito desse enfrentamento com a própria imagem que o trabalho propicia, imagem que se era obrigado a ver de muito perto, em contraste com a imagem fluida e amorfa que se tinha dos outros.

  • * O projeto 'Poética da Distância' foi selecionado em 2002 pelo programa Petrobras Artes Visuais, que propiciou a realização de exposições do artista em cinco museus brasileiros (MAMAM, Recife; MAM-BA, Salvador; MARGS, Porto Alegre; MAM, Rio de Janeiro e Pinacoteca do Estado, São Paulo) e a publicação de dois catálogos. A presente entrevista foi originalmente publicada no primeiro deles. [ SALZSTEIN, Sônia. Carlos Fajardo: Poética da Distância. São Paulo, Petrobras Artes Visuais, 2002.
  • 2. Para uma introdução às idéias minimalistas, cf., entre outros, JUDD, Donald. Complete Writings: 1975-1986. Eindhoven, Van Abbemuseum, 1987,
  • e MORRIS, Robert. Continuous Project Altered Daily. Cambridge/Massachusett, The MIT Press, 1995.
  • 4. CELANT, Germano. Art Povera: Conceptual Art, Actual or Impossible Art?. Milão, Gabriele Mazzotta Publishers, 1969.
  • 6. O artista é professor do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde defendeu, em 1998, sua tese de doutorado. [FAJARDO, Carlos. A Profundidade e a Superfície. São Paulo, Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 1998.
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    O projeto 'Poética da Distância' foi selecionado em 2002 pelo programa Petrobras Artes Visuais, que propiciou a realização de exposições do artista em cinco museus brasileiros (MAMAM, Recife; MAM-BA, Salvador; MARGS, Porto Alegre; MAM, Rio de Janeiro e Pinacoteca do Estado, São Paulo) e a publicação de dois catálogos. A presente entrevista foi originalmente publicada no primeiro deles. [ SALZSTEIN, Sônia. Carlos Fajardo: Poética da Distância. São Paulo, Petrobras Artes Visuais, 2002. ]
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    Carlos Fajardo é artista plástico e professor do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
  • 1
    . O artista não atribui títulos a suas obras. Apenas algumas, da década de 60, foram nomeadas. Optou-se, no texto, por identificar todas as obras mencionadas na entrevista por meio de descrições sumárias indicativas de alguns de seus elementos essenciais.
  • 2
    . Para uma introdução às idéias minimalistas, cf., entre outros, JUDD, Donald. Complete Writings: 1975-1986. Eindhoven, Van Abbemuseum, 1987, e MORRIS, Robert. Continuous Project Altered Daily. Cambridge/Massachusett, The MIT Press, 1995.
  • 3
    . JUDD, Donald. "Specific Objects". In JUDD. Op. cit., p. 115-124.
  • 4
    . CELANT, Germano. Art Povera: Conceptual Art, Actual or Impossible Art?. Milão, Gabriele Mazzotta Publishers, 1969.
  • 5
    . As JACs, interessadas especialmente na prospecção da produção jovem, ocorreram em edições anuais no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, no período de 1967 a 1974. Seu idealizador e curador foi o historiador de arte Walter Zanini, então diretor do museu.
  • 6
    . O artista é professor do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde defendeu, em 1998, sua tese de doutorado. [FAJARDO, Carlos. A Profundidade e a Superfície. São Paulo, Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 1998. (mimeo)]
  • 7
    . O evento se insere num projeto de periodicidade geralmente bienal, sediado na cidade de São Paulo, e propicia à produção artística o confronto com a escala da cidade. Organizado pelo crítico Nelson Brissac e envolvendo a intervenção de diversos organismos da administração pública e o suporte de patrocinadores públicos e privados, o projeto se desenvolve desde 1994, espalhando-se por diversos edifícios e locais públicos no meio urbano, quase sempre externos ao circuito institucional da arte.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2003
    Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Depto. De Artes Plásticas / ARS, Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, 05508-900 - São Paulo - SP, Tel. (11) 3091-4430 / Fax. (11) 3091-4323 - São Paulo - SP - Brazil
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