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Fernanda Gomes: eloquência do silêncio

Fernanda Gomes: Eloquence of Silence

Fernanda Gomes: elocuencia del silencio

RESUMO

Fernanda Gomes tem se destacado no cenário artístico nacional por apresentar um trabalho pouco dócil ao sistema que o contém. Nosso intento nesta reflexão será demonstrar como sua obra (ou melhor, suas exposições-obras), amplamente perpassada pelas pequenas percepções e pela atenção exaustiva, formula uma estratégia de recepção singular – distinta da fugacidade da atenção hodierna e da intensiva discursividade do campo contemporâneo das artes. A hipótese de uma recepção singular é amparada pela constante recusa em atribuir nomes a obras e exposições (corriqueiramente intituladas com seu próprio nome, mais por insuficiência que por intenção), a insistência em destituir o poder das interferências discursivas curatoriais, sem que com isso suplemente o campo semântico do trabalho com sua própria subjetividade e vida.

PALAVRAS-CHAVE
Fernanda Gomes; Recepção; Tempo; Silêncio

ABSTRACT

Fernanda Gomes has stood out in the national art scene for presenting a work not very docile to the system that contains it. Our intention here is to demonstrate how her work (as a matter of fact, her exhibitions-works), largely permeated by small perceptions and exhaustive attention, formulates a singular reception strategy–distinct from the fugacity of today’s attention and the intensive discursiveness of the contemporary art field. The hypothesis of a singular reception is supported by the constant refusal to assign names to works and exhibitions (constantly titled with her own name, more by insufficiency than intention), the insistence on dismissing the power of curatorial discursive interferences, without thereby supplementing the semantic field of the work with its own subjectivity and life.

KEYWORDS
Fernanda Gomes; Reception; Time; Silence

RESUMEN

Fernanda Gomes se ha destacado en el escenario artístico nacional por presentar un trabajo poco dócil al sistema que lo contiene. Nuestro intento en esta reflexión será de demostrar cómo su obra (o mejor, sus exposiciones-obras), ampliamente impregnada de pequeñas percepciones y atención exhaustiva, formula una singular estrategia de recepción – distinta de la fugacidad de la atención actual y de la discursividad intensiva del campo contemporáneo del arte. La hipótesis de una recepción singular se apoya en su constante rechazo a atribuir nombres a sus obras y exposiciones (rutinariamente tituladas con su propio nombre, más por insuficiencia que por intención), la insistencia en desestimar el poder de las interferencias discursivas curatoriales, sin completar el campo semántico de la obra con su propia subjetividad y vida.

PALABRAS CLAVE
Fernanda Gomes; Recepción; Tiempo; Silencio

“As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem Ênfase.”

A flor e a náusea (1945), Carlos Drummond de Andrade

Que pode um trabalho de arte frente à atenção solicitada pela civilização dos medias e sua profusão de imagens? Fernanda Gomes (Rio de Janeiro, 1960) é artista conhecida por sua insistência em exposições-obras, espécies de instalações muito particulares, capazes de realizar obras a partir do espaço e torná-lo parte de seu jogo. Embora o termo site specific seja corrente para denominar obras como essas, as construções espaciais de Fernanda Gomes não chegam a se apropriar da particularidade dos espaços ocupados, ao menos não num sentido semântico, senão que neles instauram uma dinâmica privilegiada de visualização. O privilégio do visível, ainda que pareça fulcro comum das artes visuais, encontra em sua produção um posto singular: explorar aquilo que, no objeto, não pode ser contemplado pela linguagem. Isto é, explorar o que no(s) objeto(s) só pode ser silêncio, pois não chega a ter sentido manifesto. A percepção e a atenção exaustivas convocadas para contemplar infinitas tonalidades de branco, organizações ininteligíveis de objetos, gamas inúmeras de papéis rotos e pálidos, ao mesmo tempo que insinuam uma estratégia de recepção singular, apontam essa paragem diante daquilo para o que só há silêncio. Ou, ainda que haja palavra e, por sua vez, sentido, a demora em sua formulação indica que há aí uma estratégia de atenção. Paragem, demora, atenção, todos os termos assinalam um problema de tempo. Mais que um envolvimento espacial, a obra evoca uma certa duração, um tempo singular da recepção.

O intento desta pequena reflexão é tentar pensar as implicações que a obra de Fernanda Gomes apresenta para a estética e, em especial, para uma filosofia da arte. Não se trata aqui de oferecer uma interpretação propriamente dita da obra, mas antes pensar como esta age sobre seu receptor e atua em seu circuito. Desde logo é necessário advertir que meu interesse pela obra de Fernanda se guia mais pela forte impressão que recebi de seu trabalho do que por uma obstinada tentativa de enquadrá-lo numa resposta intelectual satisfatória. Primeiro, e principalmente, pois o trabalho é reticente quanto ao auxílio da linguagem em sua compreensão. Isto se mostra na relativa escassez de textos analíticos, na quase inexpressividade dos textos curatoriais e na recusa da artista em complementar o campo semântico da obra com discursos (falas, entrevistas etc.). Se o recurso discursivo é por excelência o cerne de nossa empreitada, desponta-se desde logo uma complicação. Por conseguinte, a recusa em nomear as obras e exposições parece intensificar isso que tratamos por eloquência, tornando seu efeito mais grave e singular, ainda que ressoe num incômodo silêncio, numa negatividade exemplar. É a própria Fernanda quem, numa das poucas entrevistas que concedeu, haveria de exprimir uma intuição que caracteriza bem seu procedimento. Perguntada sobre silenciamento num trabalho antigo, constituído por um travesseiro sobre um dicionário velho, ela responde: “Silêncio também é uma palavra, e pode ser bastante eloquente” (GOMES, 2016GOMES, Fernanda. Uma coisa completa a outra (entrevista) In BARTHOLOMEU, Cezar; TAVORA, Maria Luísa (org.). Arte & Ensaios, n. 31, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/ Escola de Belas Artes, UFRJ, junho 2016, p. 8-27., p. 17). Eis a pista a ser perseguida. As pequenas contribuições que se seguem tentam dar vazão às impressões que recolho do trabalho. Portanto, são um tanto imaturas e, como sempre, provisórias.

O pequeno verso com que inicio esta apresentação tem o propósito de iluminar um pouco o problema sobre o qual pretendo aqui discorrer. Em “A flor e a náusea”, terceiro e célebre poema de A rosa do povo, livro publicado em 1945, Drummond ensaiava uma aproximação entre o eu lírico e o objeto de sua poesia. Seu objeto: o mundo; aquilo que, cercando-lhe, constitui seu universo. O verso salientado é apenas um dos desenvolvimentos desse eu lírico no percurso autorreflexivo que culminará com o inesperado encontro com uma flor que fura o asfalto. A culminância do poema é, exprimida toda náusea do existir, deparar-se com uma flor indistinta em meio à cidade. Isso que chama de “forma insegura”, a flor inusitada, que é banal e revolucionária ao mesmo tempo, recebe no poema o tratamento enfático que prega o verso destacado. Forma insegura, vegetal, frágil e indistinta, como a vegetação que insiste em nascer no canto das estradas, nos passeios desleixados e nos pequenos quadrados de terra devolutos que completam a geografia de nossas cidades. Há, no entanto, uma similaridade de tratamento muito curiosa entre a flor revolucionária e insegura de Drummond e aquele que será o procedimento característico da poética de Fernanda Gomes: ambos consideram com ênfase as coisas despercebidas, banais, tornando-as dignas de uma atenção poética propriamente invulgar. Atenção essa que em Drummond aparece desde a antológica “pedra no meio do caminho”, capaz de impressionar suas “retinas tão fatigadas” (trato pois de “No meio do caminho”, publicado em 1928, na Revista Antropofagia, e inserido em seu livro de lançamento, Alguma poesia, de 1930). Mas Drummond aqui é só um catalisador, nosso intento é tratar da obra de Fernanda Gomes.

Começo por uma pequena apresentação daquilo que pode ser um historial da trajetória da artista e uma visão geral de seu trabalho. Fernanda nasceu em 1960, no Rio de Janeiro. Lá vive e produz. Formada pela Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro, interessara-se pelas artes visuais ainda jovem, integrando com ressalvas aquilo que posteriormente seria denominado “Geração 80”. A assim chamada “Geração 80” brasileira tinha como balizas o retorno à pintura, a forte influência da arte conceitual, a ênfase nas grandes escalas e o sensível abandono do léxico estritamente político que marcara a produção durante a ditadura. Fernanda desde logo se diferencia da agenda compartilhada de sua época; apesar de parecer também influenciada pelo legado de Ivens Machado, desenvolve uma pesquisa visual muito particular, que tem como base a coleta de objetos descartados, obsoletos, degradados e sem uso. A partir disso, elabora-se uma atividade obstinada de convivência, intervenção e organização dos objetos, que assim constituem um acervo pronto a, num dado espaço, segundo a disposição precisa imposta pela artista, assumir a condição de obra. Desde sua primeira exposição, realizada na Galeria Macunaíma, sala expositiva da Funarte localizada no edifício Gustavo Capanema (no Rio de Janeiro), em 1988, o procedimento se renova conservando seu traço singular, que envolve as etapas de recolha, convivência, intervenção, disposição e exposição. Cabe nota que muitos dos elementos são frutos de recolhas das andanças da artista por Copacabana, bairro onde reside e trabalha. As sucessivas exposições feitas pela artista, excluídas algumas coletivas, são realizadas de modo muito regular: Fernanda tem em sua casa-ateliê um conjunto de objetos, que servem de base aos trabalhos e são acrescidos diariamente pela recolha de novos elementos; os objetos, alguns já modificados ou reunidos, formando objetos secundários, são levados da casa-ateliê ao espaço expositivo (salvo raras exceções) e é neste espaço, efetivamente no espaço expositivo – público por excelência –, que os conjuntos de objetos sofrem a organização e a disposição pelas mãos da artista. Ainda que existam em condição de obra em sua casa-ateliê, uma tal condição é ainda só latente: o trabalho de Fernanda Gomes parece só poder ocorrer nesta condição específica em que a convivência e a intervenção nos objetos é seguida pela convivência da artista com os objetos no espaço de sua exposição.

Temos já um ponto a ser sublinhado: a obra, ainda que penetre o circuito comercial, o que em Fernanda Gomes ocorre desde os anos de 1990, quando começa a ser representada pela conhecida galerista brasileira Luisa Strina, é quase que inalienável, na medida em que um conjunto de objetos recolhidos e intervencionados só passa a ter condição pública de obra num dado espaço e, consequentemente, num dado tempo. O aparecimento da obra é condicionado pela interação entre os objetos, a artista e o espaço (e, consequentemente, o público). Portanto, mais que um site specific, temos neste caso algo que se traduz melhor por uma situação – uma imbricação complexa de linhas de força. Fazem parte dos objetos, dessas coisas das quais a obra se alimenta, fragmentos de madeira, papéis rotos e amarelados, varetas, arames, moedas, móveis semidestruídos, elementos do cotidiano em geral, fita adesiva, fios de barbante, travesseiros velhos, caixas, restos de mobiliário expositivo, tecidos velhos, pregos, parafusos, vidrarias, restos de instrumentos (tesouras, fitas métricas). Enfim, a gama de coisas é um tanto indefinida, ainda que se perceba uma ligeira preferência por materiais orgânicos (fibras, madeiras e papéis). Alguns procedimentos lhe são recorrentes: madeiras equilibradas, varetas escoradas, superfícies irregularmente encobertas por camadas de brancos variados – brancos velhos e novos, mais limpos, sujos, desgastados –, espaços elaborados pela justaposição de coisas sem exato contraste, empilhamento pueril de triângulos de madeira, pilhas de moedas escondidas, torções de fita adesiva branca, reunião de papéis de cigarro queimados. Não há limites específicos.

O trabalho certamente tem um conjunto de sentidos mais ou menos recorrentes. São eles: destruição, degradação, geometria, tempo, envelhecimento, descarte, obsolescência, equilíbrio, poluição, melancolia, inutilidade etc. Há outros, certamente. Esses são apenas os mais recorrentes. Eis que então nos deparamos com um certo vazio, com algo próximo a um silêncio desconfortável. Nenhum desses sentidos elencados consegue aplacar ou domesticar aquilo que com certa dificuldade o olho acompanha. O corpo se move no espaço na esperança de, com o olhar, cumprir essa síntese apaziguadora, mas ela demora, é constantemente refeita, torna-se logo inadequada e sem lugar. As inúmeras superfícies manchadas de brancos, de impurezas do branco, convocam uma atenção tonal pouco convencional. As formas de disposição evocam o arranjo de um jogo, um jogo das formas, dos múltiplos equilíbrios e dos contrastes inesperados. Tudo gira em torno da insuficiência de um sentido dominante, tudo está ainda por ser estabelecido. O receptor é então convidado a um desafio: como assimilar algo que corriqueiramente se tem por insuficiente?

Explico melhor: há anos Fernanda se recusa a atribuir nomes às suas obras e exposições. Nunca se sabe onde começa ou termina um objeto; não há divisão nem legenda que identifique as obras – há obras ou apenas obra? Tudo é impreciso, silencioso, de modo que a falta assuma a posição de destaque, lugar propício a se produzir o sentido outrora inexistente. Ainda que as exposições sistematicamente adotem o nome da artista como título, tudo não passa de uma necessidade muito estrangeira ao próprio trabalho – diz mais sobre o circuito institucional e comercial do que propriamente ao que ali se oferece ao olhar. Não há nada que nos remeta à subjetividade de Fernanda, não se trata de uma ode ególatra em que a artista aparece como doadora de sentido ao trabalho. Seus rastros são pequenos; os objetos, ainda que permaneçam em sua convivência por muito tempo, são muito impessoais. É como se uma fortuna, impessoal como a latina, estivesse ali deixado suas marcas caprichosas.

A geometria aparece, mas não como ordenamento universal do qual a obra pretende se valer; ela aparece pois é o signo da ordem do mundo. Os objetos é que são servos da geometria. Assim, distinta dos concretos, Fernanda nos apresenta uma apreciação formal que reclama o humano e sua contingência (temporal por excelência). Ou melhor, apresenta uma geometria acrescida do vislumbre da efemeridade dos materiais orgânicos – que, como numa analogia simples, acabam por reclamar a nossa própria brevidade. Certamente que recolhe isso daquilo que fora a sabedoria máxima da Arte Povera, mas o jogo das disposições é ainda a ela estrangeiro, assim como a insistência em ocupar o espaço reclamando o tempo. É assim que o silêncio da obra se torna eloquente: ele existe para que o sentido possa ser formulado nas malhas da experiência, numa espécie de vislumbre da estranheza de tudo que nos é muito familiar. Quer seja dos objetos todos, que na obra aparecem de modo inusitado ou corrompido, mas também do próprio espaço e do tempo – o espaço, convertido em convite a um uso inusitado (portanto, a uma apreciação também ela distinta) e o tempo, que deixa de ser um tema e passa a ser uma condição exaustivamente tematizada.

O caráter “negativo” da obra, bem expresso pelo crítico Paulo Venâncio, expõe de modo exemplar a situação do tempo: Fernanda explora com insistência a entropia do tempo, tanto na fisionomia dos materiais quanto nessas aparições instáveis da obra – que aparece distinta a cada exposição e que é composta por elementos tão frágeis. A exposição escancara o tempo, o tempo dos objetos, a duração de uma disposição e essa voraz boca do tempo que tudo transforma. A obra se converte assim em aparição temporal, destitui-se de qualquer perenidade. O branco, ou os brancos, os muitos brancos, neste aspecto são reveladores: Fernanda recorrentemente cobre objetos e superfícies de branco, apelando para o seu valor pictórico e refletor. Os múltiplos objetos brancos, com suas linhas e volumes específicos, retomam a ciência da linha orgânica e se aproveitam dessa solidariedade entre objeto e espaço. É certo que o branco é bem-vindo, pois é consoante às paredes brancas que constituem nossos espaços de exposição. Mas é bem-vindo pois é completamente propenso à iluminação, à poeira e ao verniz do tempo. Cria assim uma heterogeneidade que tende à afinidade. E, consequentemente, uma educação do olho. “Ver é um aprendizado como outro qualquer. Conversei uma vez com uma pessoa que não conseguia ver dois tons de branco. Fiquei muito impressionada e perguntei: nunca reparou que existem infinitos tons?” (GOMES, 2016GOMES, Fernanda. Uma coisa completa a outra (entrevista) In BARTHOLOMEU, Cezar; TAVORA, Maria Luísa (org.). Arte & Ensaios, n. 31, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/ Escola de Belas Artes, UFRJ, junho 2016, p. 8-27., p. 13). A impressão narrada por Fernanda Gomes é sintomática, pois reclama pensar o lugar ocupado por seu trabalho no sistema que o contém. Mais que um apanágio, o trabalho funciona como provocação – uma provocação por certo silenciosa, discreta, constituída por um diagrama de objetos sem lugar. Mas que, sobretudo, pleiteia uma educação da visão.

Temos então que estabelecer algumas considerações mais gerais, de modo que o silêncio eloquente seja mais bem explicitado. A formulação da obra como categoria instável faz com que seu produto não seja facilmente deglutido pelas avarezas institucionais, pela recepção facilitadora ou pela angústia curatorial em incluí-lo nas estratégias comerciais, da publicidade e dos modismos. Entendendo a obra artística como mantenedora de uma triangulação inelutável entre produtor, receptor e mundo, pode-se supor que o ato da recepção reconvoque a interrelação dos três extremos. Como a obra de Fernanda Gomes convoca justamente aquilo que no mundo é opaco, destituído de sentido saliente, a elaboração de seu sentido está sempre em vias de se estabelecer, ou seja, é mais latente que cristalizada. Portanto, se o sentido não se acha de antemão disponível, e se sua flutuação é constante, é certo que ocorre uma intensificação do jogo da recepção e, porventura, da atenção que nele se despende. Chegamos então ao cerne daquilo que se pretende averiguar. Esse silêncio (uma metáfora por certo ainda muito distante daquilo que pretende dar conta) ou, se quisermos, a ausência de um sentido dominante na obra, de uma eloquência verbal ou plenamente verbalizável, parece ser a mola propulsora que remodela paulatinamente a recepção que dela se faz.

Retomo aqui, a título de aclaramento, um trecho muito precioso d’A prosa do mundo, livro inacabado deixado por Maurice Merleau-Ponty. Ele escreve:

O mundo percebido e talvez mesmo o do pensamento é feito de tal maneira que não se pode colocar nele o que quer que seja que não assuma logo sentido nos termos de uma linguagem da qual nos tornamos depositários, mas que é tarefa tanto quanto herança. Basta que no pleno das coisas, cuidemos de certos ocos, certas fissuras – e desde que vivemos, nós o fazemos – para fazer vir ao mundo aquilo mesmo que lhe é mais estranho: um sentido, uma incitação irmã das que nos arrastam para o presente ou o futuro ou o passado, para o ser e o não ser... (MERLEAU-PONTY, 2002MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., p. 74)

Merleau-Ponty expõe o sentido como essa espécie de argamassa que completa, mas sempre provisoriamente, a fragmentação própria do mundo. O sentido é, assim, a possibilidade de reunião do que se achava disperso, sem destinação. Portanto, sua ação ocorre nos intervalos. É o mesmo Merleau-Ponty que anos antes, sobre a linguagem, afirmaria que “o sentido só aparece na intersecção e como que no intervalo das palavras” (MERLEAU-PONTY, 2003MERLEAU-PONTY, Maurice. A linguagem indireta e as vozes do silêncio. In O olho e o espírito. Sao Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 57-122., p. 63). Eis que um paralelo interessante pode ser proposto: ainda que o trabalho de Fernanda Gomes não seja propriamente constituído por signos claros encadeados, é certamente o intervalo entre todos as coisas, essa incansável tentativa de justapor, juntar, separar, combinar, que realiza propriamente a possibilidade de sentido. De todo modo, é sempre um sentido virtual, uma expectação de sentido, pois o que o trabalho põe em relevo são os intervalos, essas fissuras que Merleau-Ponty sublinhava. Não só porque não há uma ordenação central que guie sua apreensão, mas também porque o próprio trabalho é constituído de restos, de troços, desses inúmeros intervalos incômodos que regem a vida pragmática, útil e produtiva. Não deixa de ser um modo de considerar essas quase-coisas com ênfase (como proposto por Drummond), permitindo que delas brote algo inesperado, ou ao menos que a atenção dispendida esteja assinalada. Mas o que parece mais marcante em todo o trabalho é a possibilidade de tornar esses intervalos, esses vazios, ou se quisermos, essas regiões de silêncio, plataformas absolutamente eloquentes, chamativas para o jogo de sua suplantação. E quanto a isso, a asserção de Paulo Venâncio sobre o trabalho soa certeira: “Aqui não se procura o choque ruidoso, mas um igualitário silêncio, apenas um mesmo murmurar solidário.” (VENANCIO FILHO, 2006VENANCIO FILHO, Paulo. Lugares In RAMOS, Maria (org.). Fernanda Gomes (catálogo de exposição). Porto: Fundação de Serralves, 2006, p. 133-140., p. 139)

Perguntada sobre a relação que seu trabalho estabelece com um certa insuficiência da linguagem, Fernanda Gomes responde:

Sem título seria uma condição de autonomia da coisa em relação à palavra. Essas coisas nem são exatamente pintura, escultura, desenho, ou seja, coisa seria uma designação mais precisa, na sua imprecisão. Objeto também não me parece agradável, talvez seja uma palavra muito objetiva. [risos] Estas coisas prescindem de classificação ou título, hierarquias. São o que são, estão ali como estão. Precisam de silêncio, para acentuar a amplitude da linguagem plástica. Precisamos desconfiar de cada palavra, evitar que a palavra se sobreponha à coisa. Melhor deixar a emoção sem nome, deixar que a perplexidade se instale. (GOMES, 2016GOMES, Fernanda. Uma coisa completa a outra (entrevista) In BARTHOLOMEU, Cezar; TAVORA, Maria Luísa (org.). Arte & Ensaios, n. 31, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/ Escola de Belas Artes, UFRJ, junho 2016, p. 8-27., p. 18)

Como é evidente, o universo da palavra e, portanto, da comunicação, dele não podemos prescindir. Estamos de tal modo imersos na linguagem que seria leviano passar da metáfora do silêncio à constatação de uma verdadeira autonomia da coisa. A coisa, antes mesmo de tentarmos divorciá-la da palavra, já é coisa – acha-se de antemão sob o signo da linguagem. Já mesmo J. G. Herder apontaria que o homem é uma criatura de linguagem, onde “todos os estados de reflexão são estados linguísticos” (HERDER, 1987HERDER, Johann G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Lisboa: Edições Antígona, 1987., p. 123). O que desejamos frisar é essa indecidibilidade sobre o que quer que ela seja ou possa ser, verdadeira preservação do estado de coisa, visual e significante, capaz de prender o olhar, tornando o observador perplexo (misto de maravilhado e desapontado). A perplexidade, esse estado de um não sei o quê, estado vacilante em que não se consegue digerir com facilidade aquilo que se pretende ajuizar, reafirma nossa intuição de que o jogo da recepção fora aqui intensificado. A emoção sem nome escancara a abertura do trabalho ao sentido por se construir, que usa o silêncio como dado central de sua formulação. Silêncio que é ao mesmo tempo uma metáfora da experiência visual, pois as salas de exposição e galerias por vezes parecem demasiado vazias, quase mudas, e pela incessante tentativa de evitar a palavra. Ou, ao menos, evitar a palavra taxativa, aquela capaz de conciliar o que o trabalho pode mostrar e aquilo que o público corriqueiramente espera receber – não seria essa a atribuição corrente daquilo que chamamos de curadoria?

Salto, entretanto, a uma última consideração que me parece muito séria e que conjectura o silêncio e a atenção sob outro prisma – além de abarcar a dita perplexidade. Frederic Jameson, o conhecido crítico norte-americano, em seu ensaio sobre o pós-modernismo, ensaiava alinhavar uma distinção possível entre as artes produzidas no alto modernismo e naquilo que poderíamos denominar pós-modernismo. A distinção central equivaleria a dizer que no alto modernismo havia uma marcada distinção entre alta cultura e a cultura de massas (ou comercial), condição que assistiria seu ocaso com a insurreição do achatamento operado no pós-modernismo. Se as artes da alta modernidade, ao menos numa visão histórica, operavam em profundidade e contra a reificação de seus produtos, no nosso tempo, até mesmo por uma mudança no regime cultural dominante, é a superficialidade que rege o jogo cultural. Jameson endereça o problema a uma espécie de modificação da disposição do sujeito no mundo social (que passaria de um sujeito individual, burguês e centrado, a um sujeito esfacelado, produzido no capitalismo midiático e tecnológico), o que implicaria uma nova patologia social e, portanto, um novo tipo de arte. Sem nos atermos à mencionada mudança no estatuto do sujeito proposta por Jameson, sublinhamos apenas a distinção entre uma cultura da profundidade e outra da superficialidade. Nas palavras de Jameson: “é o aparecimento de um novo tipo de achatamento ou de falta de profundidade, um novo tipo de superficialidade no sentido mais literal, o que é talvez a mais importante característica formal de todos os pós-modernismo [...]” (JAMESON, 1997JAMESON, Frederic. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997., p. 35). O pós-modernismo, portanto, seria uma dominante cultural do capitalismo tardio, o que por si mesmo implicaria uma nova postura no campo das artes. Recorro a Jameson, pois o trabalho de Fernanda Gomes, ainda que inserido na lógica cultural que sustenta o mercado de arte contemporânea, parece apresentar alguns empecilhos para o pronto consumo que lhe configura – o mercado. Explico: enquanto boa parte das tendências vigentes, que remontam à década de 60, sustenta aquilo que Jameson acertadamente aponta como replicação, senão mesmo intensificação, da lógica do capitalismo tardio, Fernanda promove em sua obra uma espécie de desvio no procedimento. Isto é, nas últimas décadas tem sido difícil estabelecer uma diferença clara entre tendências midiáticas e aquelas culturais e artísticas. Ainda que a ironia escancarada nos trabalhos de um Andy Warhol, apenas para citar um caso exemplar, promovesse uma reiteração crítica do mundo, uma tal tendência não deixou de abrir caminho à extrema aliança entre as diretrizes mercadológicas e a produção artística. Aliança essa que, ao promover certos artistas à condição de celebridades, aproximou também o campo artístico, intensamente centrado na lógica das galerias e das grandes exposições de reclame popular, do mero consumo e de sua temporalidade. A temporalidade do consumo podemos nomeá-la como agitada, pois marcada pela constante necessidade de reformulação e pela redobrada atenção dada ao êxito comercial.

Não são precisos muitos exemplos para que o que se afirma fique mais claro: a dominância das pautas ambientais, políticas e sociais assemelha cada vez mais os trabalhos de arte a uma espécie de jornalismo deficitário. Há uma polifonia incômoda entre os modos de comercialização da informação, das subjetividades e das pautas sociais estabelecidos dentro do sistema capitalista e sua aparição no campo artístico. O problema certamente não passa pelo conteúdo tão somente, mas, sobretudo, pelo modo de sua socialização: o campo artístico, sob o título da acessibilidade e da variedade, torna-se cada vez mais imediatista e planificado. A máquina comercial das exposições e galerias acaba por converter a multiplicidade de produtos em um varejo de tendências e tópicas facilmente deglutíveis. Eis que a proposição de Jameson, que evidentemente reitera algumas impressões anteriores de Adorno, assume a face de um diagnóstico preocupante – ainda que o próprio Jameson nos dissuadisse de assumir uma crítica da autenticidade desse sistema baseada nas formulações clássicas da esquerda ou da contracultura. Esta sociedade da imagem, do espetáculo, da mercadoria, do simulacro, do algoritmo, qualquer que seja o apanágio, tem como marca a planificação não só de seus conteúdos, mas também do modo de sua assimilação. Sob tal prisma, o trabalho de Fernanda Gomes assume uma posição privilegiada: promove, dentro de claros limites, um curto-circuito das tendências, nos modos de recepção e na atenção que lhe é dispendida. Essa rasura na comunicação cotidiana, o quase interdito às falas do comercio curatorial, junto à consideração enfática das mais desprezíveis coisas, apresentadas sob o marasmo de um trabalho que nunca termina, impõem que se pense alternativas ao que desde logo parece demasiado assentado.

Referências:

  • GOMES, Fernanda. Uma coisa completa a outra (entrevista) In BARTHOLOMEU, Cezar; TAVORA, Maria Luísa (org.). Arte & Ensaios, n. 31, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/ Escola de Belas Artes, UFRJ, junho 2016, p. 8-27.
  • HERDER, Johann G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Lisboa: Edições Antígona, 1987.
  • JAMESON, Frederic. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997.
  • MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
  • MERLEAU-PONTY, Maurice. A linguagem indireta e as vozes do silêncio. In O olho e o espírito. Sao Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 57-122.
  • VENANCIO FILHO, Paulo. Lugares In RAMOS, Maria (org.). Fernanda Gomes (catálogo de exposição). Porto: Fundação de Serralves, 2006, p. 133-140.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2023
  • Aceito
    04 Maio 2023
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