Acessibilidade / Reportar erro

Do espaço cibernético à Guerra do Canaimés: imagens que ganham vida e a arte como armadilha

From Cyberspace to the War of the Canaimés: Images that Come to Life and Art as a Pitfall

Del espacio cibernético a la Guerra de lo Canaimés: imágenes que toman vida y el arte como trampa

Resumo

O artigo introduz algumas reflexões sobre os efeitos das interações cotidianas no ambiente cibernético, intensificadas durante a pandemia. Um deles é que a mediação constante da tecnologia na geração e arquivo de nossas memórias esteja diluindo as demarcações fixas entre seres humanos e máquinas. Propomos então um percurso especulativo através de teorias recentes, no campo da estética e da antropologia, que procuram dar conta dessas hibridizações, repensando radicalmente os dualismos centrais para o nosso pensamento (natureza e cultura, humano e não humano, masculino e feminino, o eu e o outro). Ao longo do artigo, serão abordados objetos díspares, como as perspectivas parciais da filósofa Donna Haraway e as armadilhas poéticas de Jaider Esbell, artista, ativista e escritor.

Palavras-Chave:
Crise da representação; Jaider Esbell; Donna Haraway; Espaço Cibernético

Abstract

The article introduces some reflections on the effects of everyday interactions in cyberspace and its intensification during the pandemic. One of them is that the constant mediation of technology in the generation and archiving of our memories is diluting fixed demarcations between human beings and the machines. We then propose a speculative path through recent theories in aesthetics and anthropology, seeking to account for these hybridizations, radically rethinking the dualisms central to our thinking (nature and culture, human and non-human, masculine and feminine, the self and the other). Throughout the article, disparate objects will be addressed, such as the partial perspectives of philosopher Donna Haraway, and the poetical traps created by Jaider Esbell, artist, activist, and writer.

Keywords:
Crisis of Representation; Jaider Esbell; Donna Haraway; Cyberspace

Resumen

El artículo introduce especulaciones acerca de los efectos de las interacciones cotidianas en el entorno cibernético, intensificadas en la pandemia. Uno de ellos es que la mediación constante de la tecnología en la generación y el archivamiento de nuestras memorias estea diluyendo las fronteras fijas entre seres humanos y máquinas. Proponemos entonces un recorrido especulativo por teorías recientes, en la estética y antropología, que buscan contemplar esas hibridaciones y replantear radicalmente los dualismos centrales a nuestro pensamiento (naturaleza y cultura, humano y no humano, masculino y feminino, yo y el otro). A lo largo del artículo, se abordarán objetos dispares, como las perspectivas parciales de la filósofa Donna Haraway y las trampas poéticas de Jaider Esbell, artista, activista y escritor.

Palabras-Chave:
Bill Viola; Martin Heidegger; Keiji Nishitani; finitud; nada

ENCONTROS SER HUMANO-MÁQUINAS

Existem aspectos intrigantes decorrentes do período de isolamento social desse primeiro ano e meio de pandemia. Estamos testando os limites entre os nossos corpos e as imagens: imagens que aproximamos com um movimento dos dedos, que falam ao vivo, que alimentam sequências de imagens, imagens de perfil, imagens que conseguimos silenciar, que pulam em primeiro plano ou que pedem para serem salvas. Tudo isso enquanto o nosso olhar fixa a mesma superfície luminosa e bidimensional.

O crítico Hal Foster propõe uma leitura das transformações recentes afirmando que, se a partir dos anos 1960, termos como “espetáculo” e “simulacro” se mostraram necessários para lidar com os efeitos da mediação da imagem nos circuitos da comunicação de massa, hoje, o ambiente computacional gera novos desafios (FOSTER, 2021 FOSTER, Hal. O que vem depois da farsa? Arte e crítica em tempos de debacle. São Paulo: UBU, 2021.). O autor se pergunta então como responder a uma cultura em que a maioria das imagens é produzida de máquinas para máquinas, descartando os seres humanos do processo, para isso utilizando-se, entre outros, da teorização da artista visual e filósofa Hito Steyerl. Steyerl nos alerta que as imagens com as quais interagimos emergem do espaço fluido da rede, onde o nosso sistema perceptivo é desafiado por formas e padrões que surgem de fluxos de informações amorfos:

A percepção contemporânea é maquínica em um grau ainda mais intenso. Apenas uma minúscula parte dela está inserida no espectro da luz visível para humanos. As cargas elétricas, as ondas de rádio, os pulsos de luz codificados por máquinas e para máquinas cruzam o ar em velocidades quase subliminares. A visão perde a sua importância e é substituída pela filtragem, pela decriptação e pelo reconhecimento de padrões. (STEYERL apudFOSTER, 2021 FOSTER, Hal. O que vem depois da farsa? Arte e crítica em tempos de debacle. São Paulo: UBU, 2021., p. 138)

Enquanto o inconsciente ótico do cinema e da fotografia, interpretados por pioneiros como Walter Benjamin, já apontava um campo em que a tecnologia não somente nos permite ver melhor, mas também afeta os sentidos em termos difusos, aproximando-nos do núcleo indiferenciado, aberto e híbrido que constitui a nossa experiência como seres que possuem corpos e pulsões, aqui nos deparamos com algo que transcende a experiência humana. Fredric Jameson já havia comentado, nesse sentido, que o sistema mundial global é “irrepresentável”, uma vez que seus fluxos e metamorfoses escapam de nosso alcance existencial (JAMESON, 1996 JAMESON, Fredric. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.). Steven Shaviro, outro autor citado por Hal Foster, descreve esse espaço como algo extremamente abstrato, mas ao mesmo tempo sufocantemente próximo e íntimo:

Por um lado, é tão abstrato que chega a ser totalmente invisível, inaudível e intangível. Não podemos realmente “ver” ou “sentir” o espaço de fluxos virtuais no qual estamos imersos. Pois este espaço é relacional, em grande parte composto e moldado por instrumentos financeiros misteriosos e outras transferências de “informação” que circulam por ele. (SHAVIRO, 2010 SHAVIRO, Steven. Post Cinematic Affect. Ropley: Zero Books, 2010. , p. 85, tradução minha)1.

Se o close cinematográfico, no começo do século XX, espanta os espectadores e os teóricos da época, revelando um microcosmo de intensidades inqualificáveis da ordem do afeto —- diferente do campo das emoções, que podem ser nomeadas —-, hoje navegamos em um universo ainda mais abstrato e ubíquo2. É um campo fenomenológico híbrido, que envolve imagens sintéticas, fotografias, vídeos, textos e áudios em um tecido conectivo impalpável, que percebemos concretamente quando somos interrompidos por algum problema técnico ou de conexão, por algum telefonema insistente (provavelmente de alguma máquina), ou quando temos que fornecer dados, como no Re-Captcha, acrônimo do “Teste de Turing público e automatizado para separar computadores de humanos”3. O teste avalia o nosso pertencimento a uma dessas duas categorias -- ser humano ou máquina -- a partir da capacidade de reconhecimento de peças urbanas ou letras distorcidas, o que implica a existência de algoritmos em busca de dados que podem interagir na rede como se fossem seres humanos.

Esse “como se” é fascinante, pois, como indica Steyerl, abre o cenário para discussões de cunho animista que tinham sido relegadas aos binarismos excludentes de categorias cognitivas, como ser animado versus ser inanimado, natureza versus cultura e ser humano versus máquina4. Se, por um lado, ainda é parte dessa lógica, por outro, o teste indica que as máquinas estão começando a ter atitudes suspeitas. Após décadas de ficção científica, esse contato com o universo de dados em que estamos imersos tem algo de decepcionante. Pensemos por exemplo na saga de Blade Runner, construída em torno da dúvida sobre a humanidade de Deckard, caçador de andróides5. O clímax da sequência, Blade Runner 2049, é a cena em que Deckard, um Harrison Ford envelhecido (índice de humanidade?) reencontra o jovem holograma da misteriosa replicante Rachel. Os instantes em que ela diz amá-lo, e Deckard a olha longamente, estarrecido, todos sem saber se trata-se “de amor ou precisão matemática”6, condensam bem o efeito perturbador, de memória freudiana, do encontro com algo que se situa -- entre -- essas categorias. A romantização do tema brotará, de formas visionárias, em inúmeras obras literárias e cinematográficas.

O curador Ansel Franke (2012 FRANKE, Anselm. Animism: Notes on an Exhibition, e-flux journal, n. 36, jul. 2012.), em um texto para a exposição "Animism", lembra que o ensaio “O inquietante” (1919), de Freud, no qual algum detalhe de um objeto nos transmite a sensação de ser mais animado do que deveria, é um momento paradigmático sobre esse questionamento7. A ruptura das fronteiras entre o eu e o mundo, entre pessoas e coisas, que se converte na experiência do estranho, é reconduzida por Freud à ordem da percepção sensorial, mais especificamente ao domínio da estética. Foi de novo Freud, em “Totem e tabu” (1913), o primeiro a observar que a civilização moderna reserva o campo da arte como o campo onde expressar sensações vagas, que diluem as fronteiras entre os corpos, e onde o animismo, que traz essa indefinição, pôde sobreviver, sem os riscos de desestabilizar a racionalidade e a ordem social (FREUD, 2012FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In FREUD, Sigmund. Freud (1912-1914) Totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos - Obras Completas, vol. 11. São Paulo: Companhia das Letras , 2012, pp. 7-176.). A história do cinema oferece um cenário da animação de espectros do imaginário literário e fantástico, entre os limites possíveis do tempo da narração e no espaço finito do quadro. Podemos evocar os movimentos embrionários, nesse sentido, de Buster Keaton, que testa a elasticidade de seu corpo acoplado às diferentes velocidades das máquinas modernas, chocando o tempo inteiro com o chão e os limites da tela, sobrevivente em queda livre no tênue limiar entre realismo e ficção.

O que parece incontornável, hoje, na relação cotidiana com o inanimado, ou seja, algo que não pode permanecer confinado em nenhum reduto estético ou patológico, é a existência do mapeamento de nossos itinerários telemáticos, que deixam seus rastros na rede, dando forma a algo que se aproxima de um “inconsciente algorítmico”. Em outras palavras, o fantasma informe e lacunoso de nossos desejos, em contínua formação no limbo dos dados cibernéticos globais, memória digital de nossas escolhas e preferências. Através do histórico eletrônico de nossos percursos, a máquina pode antecipar e atualizar o nosso cardápio de consumos diários, concorrendo retroativamente a formatar aquilo que, em termos psicanalíticos, seria o núcleo vital mais íntimo de qualquer sujeito humano: o impulso desejante. Isso aponta o fato de que a indagação do Re-Captcha, além de pouco poética, parece mal formulada: como tinha previsto Donna Haraway nos anos 1980, já nos tornamos ciborgues, seres híbridos que depositaram parte de suas memórias em nuvens de informações indeléveis8. Dito em outros termos, além de ser possível, sim, apaixonar-se por alguma imagem animada por sofisticados cálculos matemáticos, nós mesmos, nossos encontros e nossos destinos, somos efeito de tal intrincada hibridização.

O fato curioso é que continuamos nos percebendo absolutamente humanos, pois a abertura para o campo aparentemente infinito de percursos possíveis na rede oculta seus limites, definidos pelo cruzamento entre o que procuramos e a resposta algorítmica a nossas buscas. Oculta também a evidência de que o traçado de nossas escolhas atuais predestina nossos percursos futuros. Por outro lado, o fato de sermos sujeitos às recentes formas virais reforça a nossa humanidade em termos estritamente biológicos, enquanto terreno mudo e fértil para a propagação da epidemia. Biologicamente vulneráveis, os nossos corpos privilegiados encontram-se confinados, suas ações mediadas por automatismos psíquicos que confluem nos automatismos das máquinas, atravessados pelos fluxos indóceis dos interesses econômicos do capital transnacional, “corporações, governos, departamentos de polícia, seguradoras e agências de crédito” (FOSTER, 2021 FOSTER, Hal. O que vem depois da farsa? Arte e crítica em tempos de debacle. São Paulo: UBU, 2021., p. 146). Enquanto isso, outros corpos mais vulneráveis trabalham para que os serviços cheguem até nossas casas, ou as prateleiras dos supermercados, expondo-se ao vírus. É possível concluir, a partir desse cenário, que a nossa experiência está se entrelaçando nas tramas do universo computacional, tornando-nos seres mais previsíveis e limitando nosso imaginário e criatividade onírica, ou seja, a capacidade de sair de caminhos pré-estabelecidos.

A seguir, vamos trilhar um percurso especulativo a partir de algumas teorias no campo da estética e da antropologia contemporânea que procuram dar conta dessas hibridizações, superando as filosofias do sujeito transcendental e as dicotomias que caracterizam a categorização da realidade9. As pesquisas mais recentes, introduzidas pela “virada ontológica” na filosofia e na antropologia, propõem mergulhos radicais na alteridade -- mundos não humanos, ou não ocidentais -- através do reconhecimento de que existem realidades refratárias à nossa idealização e à projeção de nossas lógicas de organização do conhecimento. Na última parte do texto, vamos observar as estratégias de sutura entre esses mundos operadas por artistas indígenas contemporâneos brasileiros, mestres em estabelecer pontes entre os corpos e os fluxos virtuais das imagens10. O artista e escritor Jaider Esbell, de origem Macuxi, afirmou em uma live que “o artista indígena contemporâneo consegue caminhar entre a floresta e o asfalto, e faz percursos transmundanos para provocar reflexões”11. Na última parte do texto, vamos nos deter sobre alguns aspectos de sua obra multiforme, a partir de sua ideia de arte como armadilha -- estratégia poética contracolonial --, que se ainda não subverteu a ordem social, com certeza já deu um giro nos cânones da arte contemporânea. “É positivo”, conclui Esbell na mesma fala, “quando conseguimos fazer as máquinas pararem e as pessoas olharem para nós”. Em um movimento contrário ao que ocorreu durante séculos, quem decide para onde direcionarmos o olhar nesse caso é o outro, o que concorre à diluição dessa fronteira, ou binarismo fundamental e excludente.

SABERES LOCALIZADOS E VIRADAS ONTOLÓGICAS

Quais são os efeitos da intensificação de nossas relações cibernéticas sobre a percepção? É difícil tentar dar forma a essas transformações sem distanciamento histórico, mas alguns reflexos imediatos no campo da estética podem oferecer pistas. Em face à crise sócio-político-econômica do projeto neoliberal e às preocupações ecológicas ligadas ao Antropoceno -- a era geológica marcada pelo impacto da nossa sociedade sobre o clima e sobre os ecossistemas da Terra -- na última década, a estética se abriu à possibilidade de pensar a representação a partir de outras perspectivas, uma das frentes sendo a dos “novos materialismos”12. Novamente em O que vem depois da farsa?, se, por um lado, Hal Foster abraça muitas das teses de Steyerl, que nos últimos 20 anos vem acompanhando teórica e poeticamente essas transformações com uma produção que se tornou referência incontornável para o debate sobre a imagem na contemporaneidade, por outro, ironiza algumas de suas conclusões. Isso acontece justamente quando Steyerl se alinha aos novos materialismos, que, segundo diz Foster (2021, p. 143), “varreram o mundo das artes nos últimos anos”.

A linguagem lapidar de Steyerl talvez apresente uma excessiva simplificação dessas questões: “Por que não ser uma coisa?” cita Foster, que continua assim:

A ideia, aqui, é que viemos projetando a nossa força vital nessas entidades mágicas [[produtos-imagens conectados às redes]] de modo tão absoluto que elas agora têm mais vida do que nós, e, por isso, devemos recuperar o máximo possível de energia por meio da identificação com elas. “Participar na imagem como coisa significa participar com sua agência potencial”: essa frase diz tudo. (Ibidem)

Enquanto as contribuições de Steyerl não precisam de defesa, gostaria de trazer alguns fundamentos desses materialismos, que afundam suas raízes, entre outras contribuições, no pensamento da filósofa norte-americana Donna Haraway. A partir do final da década de 1980, a filósofa milita a favor da natureza incorporada da visão: em um texto paradigmático de 1986, “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”, propõe pensar a partir desse sentido, “tão difamado” no discurso feminista, como instrumento de posicionamento político (HARAWAY, 2009HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 18, 2009, pp. 7-41. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773. Acesso em: 2 abr. 2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
).

Ao longo do texto, Haraway questiona os mitos da objetividade na tradição ocidental e seus objetos de investigação como território estável de nossas investidas teóricas, introduzindo a necessidade de afirmar um saber crítico parcial e localizável, ou seja, que provém de pontos de vista situados. Ela enfatiza que a visão é sempre uma questão de “poder ver”, com a violência que lhe é implícita. Mais adiante, Haraway aponta o fato de que a “objetividade” das máquinas científicas da visão, aparentemente neutra, diz respeito apenas aos interesses e ao ponto de vista de um sujeito específico, não marcado -- o homem branco ocidental --, universalizando o seu ponto de vista e apagando assim o seu posicionamento. Essa pretensa universalidade o exime de suas responsabilidades, dando-lhe o poder de “ver sem ser visto”.

Os olhos têm sido usados para significar uma habilidade perversa —- esmerilhada à perfeição na história da ciência vinculada ao militarismo, ao capitalismo, ao colonialismo e à supremacia masculina —- de distanciar o sujeito cognoscente de todos e de tudo no interesse do poder desmesurado. (Ibidem, p. 19)

Em nome desse conhecimento racional aparentemente universal, a lente do olhar ocidental vagou colonizando o resto do mundo, impondo violentamente o seu modelo em detrimento de outras visões. O manifesto de Haraway propõe, então, que, para contrastar esse regime no qual uma visibilidade infinitamente móvel pode ser instrumental à des-corporificação e, com ela, a uma ausência de responsabilidade, oponha-se uma “objetividade feminista” fundada em conhecimentos localizados, parciais e incorporados. Uma ótica que, por provir de diferenças de gênero, em que são depositadas outras marcas e feridas desse olhar que congela e reifica, se responsabilize por um conhecimento fundamentado em “ressonâncias e não em dicotomias”, que ganha em objetividade justamente por ser parcial e específico (HARAWAY, 2009HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 18, 2009, pp. 7-41. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773. Acesso em: 2 abr. 2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
, p. 10). A falta originariamente atribuída ao sujeito dividido, no “infindável jogo dos significantes, num campo de forças cósmico” (Ibidem, p. 21), é convertida em uma totalidade parcial: “a objetividade feminista trata da localização limitada e do conhecimento localizado, não da transcendência e divisão entre sujeito e objeto” (Ibidem, p. 21). Ou seja, a “divisão” alude aqui a uma topografia da subjetividade multidimensional, com as visões que a acompanham. O eu cognoscente é sempre parcial, nunca “acabado, completo, dado ou original”, portanto “capaz de ver junto sem pretender ser o outro” (Ibidem, p. 21).

Parte da ética do saber localizado é considerarmos com cuidado as especificidades das visões próprias de cada máquina, objeto ou sujeito, retirando do “humano” o privilégio epistêmico -- de interpretação e definição -- sobre a realidade. Haraway fala em “cuidado amoroso”, introduzindo o fundamento animista que acaba aflorando em nossos cotidianos cibernéticos: o agenciamento dos objetos do conhecimento, não mais algo inerte e passivo, mas, na esteira do pensamento mágico, como atores ativos e relacionais. De modo análogo, mundo e natureza, tradicionalmente objetificados em termos analíticos como recursos a serem explorados por projetos instrumentais ao progresso de poucos, devem recuperar um estatuto ativo, assim como as tecnologias, os objetos, a matéria, pois “os códigos do mundo não jazem inertes, apenas à espera de serem lidos” (Ibidem, p. 37).

O filósofo Slavoj Žižek ressalta que a implicação ética dos novos materialismos é nos colocar na frente de nossa posição em “arranjos maiores”, com a consciência de que estamos imersos em uma materialidade não mais pensada como inerte, em uma rede potencialmente ilimitada de forças. Ele levanta porém uma questão interessante, ou seja, se e como essa perspectiva vitalista consegue superar a perspectiva antropocêntrica:

O novo materialismo rechaça, portanto, a divisão radical entre matéria e vida e entre vida e pensamento; em todos os lugares se disseminam múltiplos “eus”, ou agentes, sob diferentes formas. Entretanto, aqui persiste uma ambigüidade essencial: estas qualidades vitais dos corpos materiais são resultado do nosso (do observador humano) “antropomorfismo benigno” ou, de fato, trata-se de uma asseveração ontológica forte, que afirma uma espécie de espiritualismo sem deuses e que, à seu modo, traz o sagrado de volta para a mundaneidade? Se “um cuidadoso percurso pelo antropomorfismo” pode ajudar a revelar a vitalidade dos corpos materiais, não fica claro se essa vitalidade é resultado de que nossa percepção seja animista ou de um poder vital assubjetivo realmente existente. (ZIZEK, 2017 ŽIŽEK, Slavoj, Elementos para uma crítica do “novo materialismo”. Ou, mais além de Latour, de volta a Hegel / trad. Grupo de Estudos em Antropologia Crítica. Máquina Crísica - Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (MC-GEAC). 29 mar. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://maquinacrisica.org/2017/03/29/elementos-para-uma-critica-do-novo-materialismo-ou-mais-alem-de-latour-de-volta-a-hegel/#_ftnref3 > . Acesso em: set. 2021.
https://maquinacrisica.org/2017/03/29/el...
)

Tentando abrir espaço a questionamentos análogos, a partir do começo do século XXI se delineia uma mudança na paisagem da filosofia e das ciências sociais, na direção de um descentramento ulterior do protagonismo do sujeito transcendental -- esse sujeito de origem cartesiana e kantiana pretensamente universal, cujo único acesso à realidade se daria a partir da correlação necessária entre a sua racionalidade “objetiva” e o mundo, sem nunca perder o seu chão13.

Esse movimento em formação na filosofia e na antropologia, chamado também de “virada ontológica”, deu-se a partir das obras de Debora Danowsky e Eduardo Viveiros de Castro, Bruno Latour, Quentin Millasoux e Graham Harman, entre muitos outros que estão pesquisando as possibilidades de reconhecer o estatuto de realidade “daquilo que não somente não concerne ao humano, mas apresenta uma indiferença irrestrita à sua existência”14:

Tanto na filosofia quanto na antropologia, o papel da ontologia exprime um movimento realista e antirrepresentacionalista que demanda uma capacidade criativa, conceitual e prática tanto para acessar o outro (seja um objeto, uma coletividade, a natureza etc.) quanto para, por meio dele, colocar a si mesmo e aos seus próprios pressupostos em questão. (SILVA; BALTAR, 2020 SILVA, Diogo; BALTAR, Paula. O antinarciso no século XXI -- A questão ontológica na filosofia e na antropologia. Revista Crítica de Ciências Sociais, Universidade de Coimbra, n. 123, 2020, pp. 143-166., p. 159)

No campo da antropologia, o recurso ao conceito de ontologia é mais radical e deriva do esgotamento do conceito de “cultura”, tanto no evolucionismo -- a perspectiva de que as culturas evoluíram de uma matriz universal -- quanto no pluralismo cultural15. Em ambos os casos, a cultura é concebida como um sistema coletivo de representações simbólicas projetadas sobre uma natureza que permanece sob a tutela da ciência naturalista dos “modernos”, donos dos olhares múltiplos das diversas tecnologias que perpetuam a apreensão aparentemente neutra da realidade, objetos da crítica de Haraway16.

O dado mais interessante introduzido pelos advogados da virada ontológica é a recusa da tradução dos outros modos de ser, na tentativa de enunciar “o que eles são e representam para nós”, e a busca por saberes parciais e situados, que emergem no embate, ou nos descompassos, entre os mundos. Cada “ontologia” inaugura uma realidade, e o papel do antropólogo não é assumir o pluralismo radical dessas alteridades, representando as suas formas simbólicas nos termos de nossa cultura, mas, através da fricção entre diversas realidades, ou ontologias, revela os limites e as peculiaridades de nosso aparato perceptivo e de nossas representações do mundo. O objetivo é que essa relação concorra a transformar a nossa visão “em um movimento que pretende conferir à alteridade um estatuto de realidade suficientemente forte para que seja capaz de colocar a nós mesmos, reflexivamente, em questão” (SILVA; BALTAR, 2020 SILVA, Diogo; BALTAR, Paula. O antinarciso no século XXI -- A questão ontológica na filosofia e na antropologia. Revista Crítica de Ciências Sociais, Universidade de Coimbra, n. 123, 2020, pp. 143-166., p. 160). Tentando responder ao questionamento introduzido por Zizek à luz dessas perspectivas, talvez a pergunta seja mal formulada. Ao invés de investigar se o vitalismo da matéria e das imagens seria fruto de nossa tendência à “antropomorfização” ou uma vitalidade intrínseca a esses objetos, seria mais interessante indagar porque esse assunto insiste em aflorar, apontando relações com o mundo -- cognitivas, éticas -- que desafiam o nosso funcionamento individual e coletivo.

A GUERRA DO CANAIMÉS

A obra de artistas indígenas que vêm se destacando, nos últimos anos, nas instituições da arte contemporânea brasileira traz, entre suas dobras, traços das cosmovisões dos povos originários, apresentando uma hibridização interessante para a presente discussão e, em geral, para a discussão dos cânones da arte contemporânea17. São traços híbridos no sentido que é uma produção que tensiona estrategicamente diversas ontologias, e uma de suas forças reside justamente nos abismos intransponíveis que deixa entrever, mas não tenta preencher, entre os diversos mundos. Além disso, a poética desses artistas atravessa questões irresolvidas, por terem sido tratadas até então em uma lógica binária, como a distinção entre obra de arte versus artefacto etnográfico ou o sentido intrinsecamente coletivo de autoria, implícito em suas atuações individuais.

Emblemática, a esse respeito, é a obra multiforme de Jaider Esbell, artista e escritor Macuxi que se define “neto de Macunaíma”. A obra de Esbell dialoga com uma produção vigorosa de artistas indígenas que dividem com ele o propósito de uma revisão histórica mais ampla, que transcende o campo da arte e que encontra um momento paradigmático em uma mostra coletiva que marcou o ano de 2020, “Véxoa: nós sabemos”, curada pela pesquisadora Naine Terena na Pinacoteca de São Paulo18.

Na performance Mori Erenkatu eseru - Cantos para a vida, Jaider Esbell e Daiara Tukano, coberta por um manto Tupinambá vermelho criado por ela mesma -- pois como ela mesma nota, os exemplares existentes “estão lá na Europa, engaiolados naqueles aquários” --, defumaram o espaço em reverência aos representantes dos povos em mostra e “ativando” o museu, ocupado também por ícones do modernismo brasileiro, como a pintura Antropofagia (1929), de Tarsila do Amaral (figura 1)19. Outra etapa significativa, no mesmo ano, foi a mostra individual de Esbell na Galeria Millan, introduzida por um texto inequívoco do próprio artista:

Deixei as armadilhas em outra casa, agora me desnudo pleno. Acredite, te trago um raro presente, aquilo que nunca mente. Queres a tua alma de volta? Disso entendemos bem, pois coube de virmos primeiro e sinto que também já não sonhas. (ESBELL, 2021b ESBELL, Jaider. Ruku. Texto curatorial da mostra "Apresentação: Ruku", Anexo Millan, São Paulo, 2021b., n.p.)

Esbell diz ter se dedicado uma década inteira, integralmente, pensando a sua arte “como parte de um sistema político e estratégico mais amplo, em um constante movimento de cruzar sentidos, andando em uma margem muito estreita, esses lugares invisíveis por onde só andam os mais astuciosos exploradores” (ESBELL, 2020a ESBELL, Jaider. A Arte Indígena Contemporânea como armadilha para armadilhas. 9 jul. 2020a. Disponível em: Disponível em: http://www.jaideresbell.com.br/site/2020/07/09/a-arte-indigena-contemporanea-como-armadilha-para-armadilhas/ Acesso em: 20 set. 21.
http://www.jaideresbell.com.br/site/2020...
, n.p.). A Arte Indígena Contemporânea (AIC), “feita e conceitualizada por seus autores próprios”, é uma ação coletiva, que procura responder conceitual e poeticamente aos desafios da transposição, ou transição entre mundos (Ibidem). É uma articulação fundamental, estratégia de resistência frente à canibalização do mundo da arte, que encontra fôlego renovado nessas testemunhas de outros possíveis modos de existência. Como nota Esbell, a crise já chegou a afetar o imaginário ocidental, e isso ativa, como é de costume no sistema neoliberal, a nossa busca por fontes mais vitais. A AIC vem como uma armadilha para pegar armadilha, diz Esbell,

FIGURA 1
Jaider Esbell e Daiara Tukano, Mori Erenkatu eseru - Cantos para a vida, 2020. Registro de performance. Publicado no catálogo da mostra “Vexoá: nós sabemos”, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2020.

porque pressupõe se lançar nesses espaços do enquadramento, do encaixotamento, do emolduramento. Tem que entrar lá para ver como funciona essa dinâmica, com a habilidade de não ficar aprisionada. Ela vem com a chance de operar códigos muito sutis, muito distintos, nessa ideia de intermundo da comunicação, passando pela ideia da tradução. (Idem, 2021a, p. 21)

Uma armadilha que introduz bem a atuação intermundos de Esbell é o resgate do mito de Macunaíma, que, citando o artista, “originariamente não tem gênero ou forma física, é energia que vai circulando, em constante movimento” (ESBELL, 2020b ESBELL, Jaider. As vozes dos artistas #2: cantos Tikmu’un, programação pública 34ª Bienal de São Paulo, 26 nov. 2020b. Disponível em: Disponível em: https://www.facebook.com/bienalsaopaulo/videos/399100317809611/ . Acesso em: 15 ago. 2021.
https://www.facebook.com/bienalsaopaulo/...
). Esbell devolve a energia informe e inconstante de Macunaíma, representado como anti-herói por Mário de Andrade, a seu estado-potência sem forma estável, “uma energia densa, forte, com fonte própria, como uma bananeira” (Idem, 2018, p. 11):

Uma energia recolocada no contexto da colonização, que precisou ser traduzida em seus termos por Mário de Andrade a partir de uma força masculina, patriarcal: Macunaíma homem malandro, a partir dos fragmentos da fala dos pagés traduzidos para o alemão por Theodor Koch-Grunberg. Inicia assim a desvirtuação dessa energia transformadora no caráter caricato da figura que temos hoje completando 100 anos. ... Vou me agarrar a essa energia transformadora do Macunaíma, do avó da vovó que transpôs esses mundos. (ESBELL, 2020b ESBELL, Jaider. As vozes dos artistas #2: cantos Tikmu’un, programação pública 34ª Bienal de São Paulo, 26 nov. 2020b. Disponível em: Disponível em: https://www.facebook.com/bienalsaopaulo/videos/399100317809611/ . Acesso em: 15 ago. 2021.
https://www.facebook.com/bienalsaopaulo/...
, n.p.)

O artista associa a energia originária de Macunaíma ao tempo da transformação contínua, ao princípio do movimento, daquilo que desestabiliza, “exemplificando como é possível ... não aprisionar a forma, não eternizar nada, não colocar nada como definitivo ou duradouro demais” (Idem, 2021a, p. 23).

Na mostra coletiva da 34ª Bienal de São Paulo “Faz escuro mas eu canto”, verso do poeta Thiago de Mello escrito em 1965 em oposição à ditadura militar, Esbell apresenta a série de pinturas "A guerra do Canaimés". A Bienal foi inaugurada em 2020 em versão reduzida, por causa da pandemia, com a mostra coletiva “Venta”, com obras pontuais distribuídas na vastidão do prédio Ciccillo Matarazzo, para aumentar o espaçamento e melhorar as condições de segurança das visitas. As telas dessa série foram expostas na parede que fechava a lateral esquerda do prédio, no térreo, enquanto no primeiro andar, na parede oposta —- no fundo à direita —-, estavam expostos três monocromos de Antonio Dias de 1971 da série "The Illustration of Art". Nesses trabalhos, que Dias desdobrará até 1978 em meios variados, o sistema da arte é analisado de forma reflexiva através de enigmas suspensos entre as palavras e o fundo preto das telas, expressão peculiar da crise da representação do tardo modernismo. Ambas as séries, de Dias e de Esbell, foram produzidas em tempos de resistência —- contra a repressão instaurada pelo regime militar, no caso de Dias, e no de Esbell, o pano de fundo das investidas militaristas do atual governo brasileiro, o que confirma a atualidade da observação de Wesley Duke Lee, quando afirma, em 1972, que “no Brasil é sempre ontem” (LONGO, 2017 LONGO, Celso. Entre a poética do frágil e a resistência: abordagens gráficas e estratégias de comunicação na vanguarda brasileira dos anos 1960. In RIBEIRO, José Augusto (org.). Vanguarda brasileira dos anos 1960 - Coleção Roger Wright. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2017, pp. 133-155., p. 113).

O recurso de Dias à grade modernista, que norteia toda a reflexão das Ilustrações da Arte, aqui é aplicado através da redução do quadro a um monocromo demarcado sutilmente por uma borda branca20. No lugar da imagem, lemos The day as a prisoner, illusion e memory sobre o fundo preto. Fora do quadro, como uma legenda, as palavras the image, nas primeiras duas obras, e the space, na última, apontam laconicamente para o espaço contraditório da tela, que se torna campo semântico onde a imagem é negada. Cubos pretos espalhados na frente da instalação corroboram o sentido da obra como espaço negativo que, transcendendo a bidimensionalidade do quadro, vem ao nosso encontro. Trata-se de comentários inscritos na poética do artista e que participam de um debate mais amplo sobre a desconstrução da narrativa modernista e a crise da representação de seu tempo. Enquanto a série de Antonio Dias traz o apagamento da imagem como um comentário sobre uma história da arte que estava ensaiando o seu fim, "A guerra do Canaimés" celebra a resistência de uma história que tem sido constantemente apagada.

Se qualquer pintura pode ser entendida, paradoxalmente, como um campo de virtualidades, o que se materializa na tela sendo em primeiro lugar o índice da presença do artista, que já esteve ali, a presença muda de Dias choca com as marcas expressivas, mas igualmente enigmáticas de Esbell, que nos interrogam sobre a sua natureza: as figuras dos Canaimés foram sonhadas, imaginadas ou canalizadas pelo pintor? Em que medida essas representações participam do tecido de formas dançantes da cosmovisão xamânica? Isso tem um peso relevante na análise dos motivos superpostos sobre os fundos igualmente pretos dessas telas.

São quadros all over onde várias figuras e motivos fluidos e planos, desenhados com as canetas de tinta acrílica Posca, se entrelaçam em uma metamorfose de formas sobre o fundo preto. Esbell compõe imagens “multiestáveis”, representações nas quais a gestalt não é negada, mas gera uma forte instabilidade, ou coexistência de perspectivas. Aqui, figura e fundo não são mutuamente exclusivos, mas várias figuras coexistem em um processo generativo que tem uma qualidade fractal. Quando o nosso olhar passeia nas telas das figuras 2 e 3, por exemplo, percebemos as camadas de figuras em metamorfose perpétua, ora uma raposa, ora dois pássaros, ora duas serpentes. Existe uma sugestão dinâmica forte, já que as formas não param de confluir umas nas outras. Quando retornamos o olhar desses seres, porém, a imagem congela, enquanto eles nos fixam de uma multiplicidade infinita de pontos, reforçando que existe alguma simetria, mesmo oscilante. Os olhos são círculos maiores e menores, manchas que imitam olhos, padrões pontilhados que se transformam em superfícies camufladas, peles e plumas que, em um instante, se fazem quadro, congelando a imagem. Quando começamos a movimentar o olhar sobre a tela, porém, as formas recomeçam a dançar, brotando do centro, com seu enorme potencial metamórfico21.

Isso nos conduz às teorias da filósofa Susanne Langer, teórica que influenciou o crítico brasileiro Mário Pedrosa, que fala da dinâmica intrínseca à visão em relação a motivos decorativos, como, por exemplo, as espirais, em que não se trata, como ela diz, de “ilusão de movimento”, mas de uma outra definição da realidade: é algo que não podemos ver, mas que ao mesmo tempo não podemos deixar de ver, “a forma real e a dinâmica abstrata”, como duas faces da mesma moeda22. Esse fenômeno acontece com muita intensidade nessas imagens. Podemos também dizer, nessa tentativa sempre falha de descrever formalmente a experiência desses trabalhos, que as imagens, duplicadas em simetrias imperfeitas, geram um efeito estranhamente estereoscópico, no qual o que está em jogo é a tatilidade, uma “tangibilidade transformada em experiência visual" 23. A estereoscopia, nas pinturas de Esbell em que existe certo espelhamento entre olhos, bicos, linhas e plumagens, como nas figuras 2 e 3, tudo perpassado por camadas de padrões em transparência, gera um território multiestável de profundidades móveis e táteis.

FIGURA 2
Jaider Esbell, A guerra do Canaimés (série), 2020. Acrílica e caneta Posca sobre tela, 110 x 145 cm. Coleção do artista.

O tema são esses seres chamados Canaimés, figuras presentes, diz Esbell, nas etnias do chamado circum-Roraima, entre os Karíb, os Arawak, os Wai Wai e os Wapichana. São “uma pessoa num momento de transe, de metamorfose, que ataca e depois se desfaz de sua forma, voltando a ser um humano” (ESBELL, 2020b ESBELL, Jaider. As vozes dos artistas #2: cantos Tikmu’un, programação pública 34ª Bienal de São Paulo, 26 nov. 2020b. Disponível em: Disponível em: https://www.facebook.com/bienalsaopaulo/videos/399100317809611/ . Acesso em: 15 ago. 2021.
https://www.facebook.com/bienalsaopaulo/...
, n.p.). Os Canaimés são justiceiros sobrenaturais, que aparecem “vestidos de peles de animais, grandes ou pequenos, enfim, uma composição de adereços artisticamente muito interessante” (Idem, 2021b, n.p.). Em resumo, diz o artista, “o Canaimé é um estado performático, transitório, metamórfico mesmo, porque se trata de manipulação de poder, de feitiços” (Idem, 2021a, p. 16).

FIGURA 3
Jaider Esbell, Maikan e Tukui (Raposas e Beija-flores), da série A guerra do Canaimés, 2020. Acrílica e caneta Posca sobre tela, 100 x 75 cm.

Na figura 4 não existe simetria, mas padrões sobrepostos que remetem a um mapeamento dominado por um enorme sapo amarelo, prestes a desmanchar em outros seres e padrões. Nesse caso, é possível recorrer a uma comparação com os estudos das pinturas corporais da tribo Kaxinawa da antropóloga Els Lagrou, quando ela diz que os grafismos “produzem um efeito cinético que movimenta o espaço, como se o olhar fosse projetado pra dentro do espaço da visão”, quando as linhas criam “um engajamento ativo do olhar na superfície desenhada”, que “produz uma percepção de transparência, ou permeabilidade” (LAGROU, 2015 LAGROU, Els. Entre xamãs e artistas: entrevista com Els Lagrou. revista USINA, n. 20, jul. 2015. Disponível em: Disponível em: https://revistausina.com/20-edicao/entrevista-com-els-lagrou/ . Acesso em: 11 set. 2021.
https://revistausina.com/20-edicao/entre...
, n.p.). Enfim, as aproximações formais são múltiplas e instáveis, mas o dado crucial dessas pinturas é o que não pode ser visto através delas, pois se trata de armadilhas para o olhar, que, como diz Esbell,

Trabalham com a ideia de guerras entre mundos, de conflito a partir da própria figura do Canaimé. Como ele interage com o mundo, como se forma, como se desforma, falando dessas camadas de sobreposições de corpos e forças ou sutilezas mesmo, e o contexto disso na ideia de cultura, e principalmente na ideia de presente. ( ESBELL, 2021a ESBELL, Jaider. Na sociedade indígena, todos são artistas. [Entrevista]. Arte & Ensaios, PPGAV-UFRJ, vol. 27, n. 41, pp. 14-48, jan-jun 2021a. , p. 19)

FIGURA 4
Jaider Esbell, A guerra do Canaimés (série), 2020. Acrílica e caneta Posca sobre tela, 110 x 145 cm. Coleção do artista.

São permutas que remetem a "perspectivas incompatíveis em termos de representação”, que David Lapoujade e Laymert Garcia dos Santos, em um debate onde discutem a possibilidade de tradução do termo utupê -- o mais próximo ao conceito de “imagem” na língua Yanomami --, observam nos desenhos em pequeno formato dessa tribo.

Nesses desenhos sobre papel, produzidos em encontros com a fotógrafa Claudia Andujar, figuras diminutas são arranjadas no mesmo plano, que é ao mesmo tempo “o plano perceptivo, o plano cosmológico e o plano intensivo e o plano não representativo, mas figurativo, ou seja, da visão em estados xamânicos” (LAPOUJADE apud SENRA, 2011 SENRA, Stella. Conversações em Watoriki, Das passagens de imagens às imagens de passagem: captando o audiovisual do xamanismo. Cadernos de subjetividade, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, PUC/São Paulo, ano 8, n. 13, out. 2011, pp. 55-77., p. 76). São mapeamentos de intensidades onde acontece algo, nota Lapoujade, que a arte Ocidental nunca soube alcançar, pois trata-se de planos incompatíveis, não sintetizáveis em uma “representação”24. Ao mesmo tempo, todas as informações desses planos convivem na mesma superfície, em uma totalidade. A ênfase cognitiva de quem gerou esses desenhos não é separar a figura do fundo, mas encontra-se em um estado de fluxo, em que cada detalhe, como uma imagem fractal, espelha um todo em perene metamorfose. Bruce Albert responde, na mesma conversa entre Lapoujade e Garcia dos Santos, que, da mesma forma, a percepção do território é um encaixe de muitos pontos de vista sobre as trajetórias na terra-floresta:

é por isso que todas as coisas que são representadas são vistas, ao mesmo tempo, de cima, de lado, em outro tempo, no presente. E tudo está imbricado, encaixado em uma multiplicidade de perspectivas espaciais e temporais. (ALBERT apud SENRA, 2011 SENRA, Stella. Conversações em Watoriki, Das passagens de imagens às imagens de passagem: captando o audiovisual do xamanismo. Cadernos de subjetividade, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, PUC/São Paulo, ano 8, n. 13, out. 2011, pp. 55-77. , p. 77)

O nosso ponto de vista, enquanto sujeitos divididos da psicanálise, rendidos às falhas e constantemente lacunosos, encontra aqui a possibilidade das “totalidades parciais” de uma subjetividade multidimensional, aparentemente próxima da visão de Haraway, mas difícil de imaginar, justamente por fugir dos nossos horizontes representacionais. Esbell, imenso mediador intercultural, nos dá algum vislumbre dessa visão do território através do txaísmo, uma forma expandida de mapeamento do território indígena, que inclui os novos caminhos abertos nos circuitos interculturais das artes contemporâneas, abraçando suas dimensões espirituais e afetivas. O txaísmo é uma representação do território que se contrapõe aos princípios de proteção do “rondonismo”, no qual as reservas indígenas são delimitadas de fora para dentro, em uma relação sempre assimétrica e autoritária. As maneiras de “estar” no espaço, segundo essa multiperspectiva, são inclusivas, revelando conexões que não têm coordenadas cartesianas. Diz Esbell (2021b, n.p.):

Estaremos em tom de universo, cor de terra verde de floresta em arte em seu estado máximo de fluidez. Todas as visões são transitórias e há mais de um em mim.

Essas visões implicam uma multiplicidade de instâncias que, como vimos, não pode ser reduzida ao nosso conceito de imagem, tampouco de representação. No caso das visões mediadas pelo corpo do artista-xamã, que não cabem em nenhuma folha de papel e tampouco na tela, trata-se da percepção direta de uma realidade tida como absolutamente tangível (SENRA, 2011 SENRA, Stella. Conversações em Watoriki, Das passagens de imagens às imagens de passagem: captando o audiovisual do xamanismo. Cadernos de subjetividade, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, PUC/São Paulo, ano 8, n. 13, out. 2011, pp. 55-77., p. 76). São imagens não icônicas, que não se assemelham àquilo que representam, pois são inacessíveis aos “olhos de fantasma” da gente comum. São imagens “que veem no lugar de serem vistas” (VALENTIM, 2018 VALENTIM, Marco Antonio. Extramundanidade e Sobrenatureza. Florianópolis: Cultura e Barbárie Editora, 2018., p. 114).

As telas de Esbell provêm dessa tradição que, como ele mesmo afirma, “ainda sabe negociar com o sobrenatural”, e mesmo que todas essas camadas não sejam acessíveis aos nossos olhos de fantasma, existe um árduo trabalho de tradução, por parte do artista, que imprime fluidez nessas formas em metamorfose, dando um vislumbre de uma ontologia da transformação em que a imagem é trâmite para mergulhos na matéria e, por outro lado, para a ação política:

Vendo telas e compro terra: essa é a realidade não romântica do nosso país, e que a arte tem de fato a obrigação de reverberar em um contexto muito mais amplo do que a mera vitimização, ou um uso muito distorcido disso. Então essa é uma força que as populações indígenas podem mais uma vez mostrar pra nós e pro mundo: a relação entre mundos, como ela se constrói e como passa por esses valores todos, inclusive a própria ideia de capitalismo, pra assentar e pra de novo manter a ligação muito sutil do cosmos com o nosso dia a dia e mesmo a chance que a gente tem de trazer um sentido amplo da vida conectando esses prédios e suas curvas com as voltas que a vida dá. ( ESBELL, 2020b ESBELL, Jaider. As vozes dos artistas #2: cantos Tikmu’un, programação pública 34ª Bienal de São Paulo, 26 nov. 2020b. Disponível em: Disponível em: https://www.facebook.com/bienalsaopaulo/videos/399100317809611/ . Acesso em: 15 ago. 2021.
https://www.facebook.com/bienalsaopaulo/...
, n.p.)

Partindo da batalha contra o estado brasileiro, para a homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, Esbell passa então a ocupar um lugar nos museus, nas galerias, no mercado da arte e, finalmente, no espaço simbólico da arte ocidental. A complexidade de suas pinturas, ao mesmo tempo motivos de um universo irrepresentável e imagens que dialogam com as formas mais sofisticadas do modernismo ocidental, ou seja, que se inserem perfeitamente em nosso passado museológico, participam da luta para devolver a terra a seus anciãos e sábios guardiões, e nada poderia ressignificar de forma mais profunda o papel dessas instituições e o papel da arte enquanto território que pode, sim, desestabilizar a racionalidade e a ordem social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BARAD, Karen. Meeting the Universe Halfway: Quantum Physics and the Entanglement of Matter and Meaning. Durham e Londres: Duke University Press, 2007.
  • BRAIDOTTI, Rosi. Nomadic Subjects: Embodiment and Sexual Difference in Contemporary Feminist Theory. Nova York: Columbia University Press, 1994.
  • COCCIA, Emanuele. A vida das plantas. Uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.
  • CRARY, Jonathan. Técnicas do observador. Visão e modernidade no século XIX. São Paulo: Contraponto, 2012.
  • DANOWSKY, Débora; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins. Florianopólis: Isa, 2014.
  • DE LANDA, Manuel. A Thousand Years of Nonlinear History. Nova York: Zone Books, 1997.
  • DOLPHIJN, Rick; VAN DER TUIN, Iris. The Transversality of New Materialism. In DOLPHIJN, Rick; VAN DER TUIN, Iris. New Materialism: Interviews & Cartographies. Ann Harbor, Michigan: Open Humanities Press, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://quod.lib.umich.edu/o/ohp/11515701.0001.001/1:5.2/--new-materialism-interviews-cartographies?rgn=div2;view=fulltext >. Acesso em: 19 set. 2021.
    » https://quod.lib.umich.edu/o/ohp/11515701.0001.001/1:5.2/--new-materialism-interviews-cartographies?rgn=div2;view=fulltext
  • ESBELL, Jaider. Makunaíma, o meu avó em mim!. Iluminuras, Porto Alegre, vol. 19, n. 46, pp. 11-39, jan/jul 2018.
  • ESBELL, Jaider. A Arte Indígena Contemporânea como armadilha para armadilhas. 9 jul. 2020a. Disponível em: Disponível em: http://www.jaideresbell.com.br/site/2020/07/09/a-arte-indigena-contemporanea-como-armadilha-para-armadilhas/ Acesso em: 20 set. 21.
    » http://www.jaideresbell.com.br/site/2020/07/09/a-arte-indigena-contemporanea-como-armadilha-para-armadilhas/
  • ESBELL, Jaider. As vozes dos artistas #2: cantos Tikmu’un, programação pública 34ª Bienal de São Paulo, 26 nov. 2020b. Disponível em: Disponível em: https://www.facebook.com/bienalsaopaulo/videos/399100317809611/ Acesso em: 15 ago. 2021.
    » https://www.facebook.com/bienalsaopaulo/videos/399100317809611/
  • ESBELL, Jaider. Na sociedade indígena, todos são artistas. [Entrevista]. Arte & Ensaios, PPGAV-UFRJ, vol. 27, n. 41, pp. 14-48, jan-jun 2021a.
  • ESBELL, Jaider. Ruku. Texto curatorial da mostra "Apresentação: Ruku", Anexo Millan, São Paulo, 2021b.
  • FOSTER, Hal. O que vem depois da farsa? Arte e crítica em tempos de debacle. São Paulo: UBU, 2021.
  • FRANKE, Anselm. Animism: Notes on an Exhibition, e-flux journal, n. 36, jul. 2012.
  • FREUD, Sigmund. O inquietante. In FREUD, Sigmund. Freud (1917-1920) "O Homem dos lobos" e outros textos - Obras Completas, vol. 14 . São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 328-376.
  • FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In FREUD, Sigmund. Freud (1912-1914) Totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos - Obras Completas, vol. 11. São Paulo: Companhia das Letras , 2012, pp. 7-176.
  • GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. Arte indígena como conexão. In TERENA, Naine (curadoria). Vexoá: nós sabemos. Catálogo de exposição. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2020.
  • HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In HARAWAY, Donna. Antropologia do ciborgue. As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, pp. 33-118.
  • HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 18, 2009, pp. 7-41. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 Acesso em: 2 abr. 2021.
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773
  • HARMAN, Graham. Object-Oriented Ontology: A New Theory of Everything. Londres: Penguin, 2018.
  • INGOLD, Tim. The Perception of the Environment. Essays on Livelihood Dwelling and Skill. Abingdon: Routledge, 2000.
  • INGOLD, Tim. Being Alive: Essays on Movement, Knowledge and Description. Nova York: Routledge, 2011.
  • JAMESON, Fredric. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.
  • LAGROU, Els. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica. Rio de Janeiro: TopBooks, 2007.
  • LAGROU, Els. Entre xamãs e artistas: entrevista com Els Lagrou. revista USINA, n. 20, jul. 2015. Disponível em: Disponível em: https://revistausina.com/20-edicao/entrevista-com-els-lagrou/ Acesso em: 11 set. 2021.
    » https://revistausina.com/20-edicao/entrevista-com-els-lagrou/
  • LATOUR, Bruno, Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
  • LONGO, Celso. Entre a poética do frágil e a resistência: abordagens gráficas e estratégias de comunicação na vanguarda brasileira dos anos 1960. In RIBEIRO, José Augusto (org.). Vanguarda brasileira dos anos 1960 - Coleção Roger Wright. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2017, pp. 133-155.
  • MASSUMI, Brian. The Thinking-Feeling of What Happens. In MULDER, Arjen (eds.). Interact or die! Roterdão: NAi Publishers e V2_Publishing, 2007, pp. 70-91.
  • MEILLASSOUX, Quentin. After Finitude: An Essay on the Necessity of Contingency. Nova York: Continuum, 2008.
  • MORTON, Timothy. Hyperobjects: Philosophy and Ecology after the End of the World. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013.
  • RIVETTI, Lara. Everything and Nothing: comentários sobre a obra de Antônio Dias entre 1968 e 1971. ARS (São Paulo), vol. 17, n. 37, 2019, pp. 75-103.
  • SENRA, Stella. Conversações em Watoriki, Das passagens de imagens às imagens de passagem: captando o audiovisual do xamanismo. Cadernos de subjetividade, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, PUC/São Paulo, ano 8, n. 13, out. 2011, pp. 55-77.
  • SHAVIRO, Steven. Post Cinematic Affect. Ropley: Zero Books, 2010.
  • SILVA, Diogo; BALTAR, Paula. O antinarciso no século XXI -- A questão ontológica na filosofia e na antropologia. Revista Crítica de Ciências Sociais, Universidade de Coimbra, n. 123, 2020, pp. 143-166.
  • STEYERL, Hito. A Sea of Data: Apophenia and Pattern (Mis-)Recognition. In STEYERL, Hito. Duty Free Art: Art in the Age of Planetary Civil War. Londres: Verso, 2017, pp. 88-114.
  • TSING, Anna. The Mushroom at the End of the World: On the Possibility of Life in Capitalist Ruins. Princeton University Press, 2021.
  • VALENTIM, Marco Antonio. Extramundanidade e Sobrenatureza. Florianópolis: Cultura e Barbárie Editora, 2018.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
  • ŽIŽEK, Slavoj, Elementos para uma crítica do “novo materialismo”. Ou, mais além de Latour, de volta a Hegel / trad. Grupo de Estudos em Antropologia Crítica. Máquina Crísica - Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (MC-GEAC). 29 mar. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://maquinacrisica.org/2017/03/29/elementos-para-uma-critica-do-novo-materialismo-ou-mais-alem-de-latour-de-volta-a-hegel/#_ftnref3 > . Acesso em: set. 2021.
    » https://maquinacrisica.org/2017/03/29/elementos-para-uma-critica-do-novo-materialismo-ou-mais-alem-de-latour-de-volta-a-hegel/#_ftnref3
  • 1
    “We cannot actually ‘see’ or ‘feel’ the virtual ‘space of flows’ within which we are immersed. For this space is a relational one, largely composed of, and largely shaped by, the arcane financial instruments, and other transfers of ‘information’ that circulate through it.”
  • 2
    Ubíquo no sentido que “está ao mesmo tempo em toda parte”, afetando todos os sentidos, já que a nossa experiência fragmenta-se entre aplicativos e programas que conjugam funções práticas, relacionais, de apresentação pessoal e de entretenimento.
  • 3
    “De acordo com Steyerl, devemos abordar esse sistema em seus próprios termos amorfos e precisamos aprender a ver e a pensar da mesma forma que seus programas -- escanear, decodificar e conectar -- mesmo que sejamos brutalmente derrotados nesse jogo” (FOSTER, 2021, p. 138).
  • 4
    Considere-se, por exemplo, o incepcionismo, quando imagens computacionais registram os padrões de nossos movimentos oculares e conseguem antever nossas preferências e comportamentos. Cf. STEYERL (2017).
  • 5
    Blade Runner (1982), Ridley Scott, Estados Unidos.
  • 6
    Transcrição de fala do filme Blade Runner 2049 (2017), Denis Villeneuve, Estados Unidos.
  • 7
    Cf. FREUD (2010).
  • 8
    Cf. HARAWAY (2000. pp. 33-118).
  • 9
    Pesquisas recentes que vão nesse sentido são a metafísica das plantas, de Emanuele Coccia, as formas de comunicação das árvores, de Eduardo Kohn, os cogumelos como espécies companheiras, de Anna Tsing, e os hiperobjetos de Timoty Norton. Cf. COCCIA (2018), TSING (2021), MORTON (2013).
  • 10
    Para uma introdução sobre a relação entre a representação ocidental e na arte indígena, cf. LAGROU (2007) e SENRA (2011).
  • 11
    Live do dia 13 mai. 2020, disponível em: https://www.youtube.com/watch v=fzZcQ3LhZIE&ab_channel=FAUUSP. Acesso em: set. 2021. Citada GOLDSTEIN (2020).
  • 12
    “Manuel DeLanda e Rosi Braidotti -- em estudos independentes -- começaram a usar os termos ‘neo-materialismo’ ou ‘novo materialismo’ na segunda metade da década de 1990, para uma teoria cultural que não privilegia a linguagem e a cultura, mas se concentra no que Donna Haraway chamaria de ‘culturas naturais’, ou o que Bruno Latour simplesmente chamou de ‘coletivos’. O termo propõe uma teoria cultural que repensa radicalmente os dualismos tão centrais ao nosso pensamento pós-moderno, que começa suas análises sempre a partir de oposições (entre natureza e cultura, matéria e mente, o humano e o não humano, o masculino e o feminino). Isso explica porque, além do interesse pela ciência, a emancipação da matéria é também um projeto feminista.” (DOLPHIJN; VAN DER TUIN, 2012). Os novos materialismos tentam assim superar o impasse entre o construtivismo pós-modernista -- no qual a matéria é um fato social -- e o positivismo, no qual é refém do olhar “objetivo” da ciência. Em vez disso, procura dar conta, como diz Karen Barad, das “intra-ações” entre os significados e a matéria. Entre as obras mais relevantes sobre o assunto estão BARAD (2007), BRAIDOTTI (1994), DE LANDA (1997).
  • 13
    O correlacionismo é a ideia de que, no processo de conhecimento, só temos acesso a essa correlação, em que o mundo é a medida daquilo que me aparece.
  • 14
    Na filosofia contemporânea, o “realismo especulativo”, assim denominado por Quentin Meillasoux e outros pesquisadores em um simpósio de 2017 na Goldsmith University of London, reflete essa urgência de fundar um realismo que enfatize a independência da realidade e dos objetos em relação à mente e aos modos de conhecimento e de percepção humanos. A “especulação”, introduzida por Meillassoux, indica aqui a busca por um acesso à realidade que não se dá a nível epistemológico (ou seja, que não discute as modalidades do conhecimento, ou de representação do mundo), mas que se volta para uma reflexão sobre questões ontológicas. Cf. MEILLASSOUX (2008).
  • 15
    Para os fundamentos dessa crítica da ideia de cultura, cf. DANOWSKY; VIVEIROS DE CASTRO (2014), VIVEIROS DE CASTRO (2011), HARMAN (2018), INGOLD (2000, 2011).
  • 16
    Em Jamais fomos modernos, Bruno Latour desenvolve o conceito de modernidade como um projeto falho, que “gera entidades mistas de natureza e cultura e, ao mesmo tempo, cria duas zonas ontológicas inteiramente distintas, a dos humanos, de um lado, e a dos não-humanos, de outro”. Assim, o humanismo, feito por contraste com o objeto gera uma sequência de “quase-objetos” e “quase-sujeitos”, enquanto as ciências continuam multiplicando as formas e os olhares sem conseguir reduzi-los ou unificá-los. Cf. LATOUR (1994, p. 134).
  • 17
    Um marco importante nesse sentido foi a contratação de Sandra Benites, antropóloga, arte-educadora e artesã, como cocuradora da mostra “Dja Guata Porã”, no Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), em 2017, e como curadora do Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 2019.
  • 18
    A exposição foi a primeira curadoria exclusivamente indígena em um museu de arte brasileiro. Na mostra são expostas máscaras, vídeos, fotografias, pinturas e cerâmicas sem distinção entre arte e artefatos. Esbell está à frente da Arte Indígena Contemporânea junto a Daiara Tukano, Denilson Baniwa, Naine Terena, Gustavo Caboco, entre muitos outros. Para uma história das exposições de arte indígena no Brasil, cf. GOLDSTEIN (2020).
  • 19
    “Os mantos tupinambás são patrimônio da Noruega, da Bélgica e da França. No Brasil, o povo tupinambá continua sendo massacrado, o cacique Babau é um dos caciques mais perseguidos que tem.” Essa declaração de Daiara Tukano diz muito acerca das contradições e dos descompassos entre o que acontece nas vitrines e no mercado da arte contemporânea nacional e as políticas públicas -- inexistentes -- em defesa das populações indígenas.
  • 20
    Cf. RIVETTI (2019).
  • 21
    Isso acontece em frente às obras em sua escala real.
  • 22
    Cf. MASSUMI (2007).
  • 23
    Tecnicamente, na estereoscopia, duas imagens quase idênticas, uma ao lado da outra, são projetadas a partir de dois pontos de observação ligeiramente diferentes: o cérebro funde as duas imagens no córtex, como acontece com o mundo submetido ao olhar, cf. CRARY (2012).
  • 24
    “Interessa, antes de tudo, esse encaixe no limite da topologia (pois são espaços incompatíveis) que é, me parece, o mais espantoso, o mais inovador e aquele que está mais em ruptura com a arte ocidental.” (LAPOUJADE apud SENRA, 2011, p. 76).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2021

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2021
  • Aceito
    18 Nov 2021
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Depto. De Artes Plásticas / ARS, Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, 05508-900 - São Paulo - SP, Tel. (11) 3091-4430 / Fax. (11) 3091-4323 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ars@usp.br