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Resenha & Resposta Resenha de Gonçalves, R. T. (tr.) Lucrécio. Sobre a natureza das coisas. (2021)

Review & Reply. Review of Gonçalves, R.T. (tr.) Lucrécio. Sobre a Natureza das Coisas (2021)

Gonçalves, R.T. (tr.) (2021GONÇALVES, R. T. (trad.) (2021) Sobre a natureza das coisas. Lucrécio. Belo Horizonte, Autêntica. ) Lucrécio. Sobre a natureza das coisas, Belo Horizonte, Autêntica.

O tradutor de Sobre a natureza das coisas, autoridade neste tipo de projeto editorial, me promete, quando leio sua Nota (Gonçalves, 2021GONÇALVES, R. T. (trad.) (2021) Sobre a natureza das coisas. Lucrécio. Belo Horizonte, Autêntica., p. 19-23), que vou me deparar com um poema “profundamente subversivo”, feito de “versos magníficos e belos”, que adoçam as amargas doses da indigesta verdade, e digno de performance embalada num ritmo próximo ao da poesia épica da Antiguidade. Atribui-se a esse texto “capacidade terapêutica” que advém da modulação poética tanto quanto da doutrina epicurista. Diferente, talvez, da maioria da gente leitora, justo porque assumi a tarefa de redigir uma crítica, não pretendo me deixar render. O que ele me promete não é pouco. O sarrafo está bem alto.

De rerum natura é a única obra supérstite de Lucretius Titus Carus ou simplesmente Lucrécio, autor do século I AEC, um dos raros nomes que escreveram filosofia em latim na Antiguidade, bem como Cícero e Sêneca. É literatura de qualidade, mas também documento relevante para os estudos sobre Epicuro (341-271 AEC), mentor da doutrina que muitos confundem com o hedonismo puro. O epicurismo deve ser entendido, no entanto, como uma filosofia do bem viver fundamentada em uma física materialista, que, ao conceber o arranjo de partículas primordiais em corpos compostos a partir de movimentos indetermináveis, acolhe a ideia do livre arbítrio, acenando com a perspectiva da felicidade (eudaimonia), configurada como a paz de espírito (ataraxia) decorrente da ausência da dor (aponia), por meio da moderação na satisfação das necessidades, motivo de prazer.

É a corrente filosófica helenística que ainda aporta material inédito graças à prolongada investigação na Villa dei Papiri, em Herculano, no golfo de Nápoles, local em que foi soterrada pela erupção do Vesúvio de 79 EC a biblioteca do poeta e filósofo epicurista Filodemo de Gádara, que escrevia em grego no século I AEC.

Mesmo lacunar, o extenso poema de Lucrécio, elo firme na cadeia de recepção e transmissão da doutrina de Epicuro, divide-se em seis livros, conforme a tradição, avançando, esquematicamente, do micro para o macrocosmo, uma explicação atomista da realidade que procura dar sustentação a uma ética laica: Livro I - átomos e o vazio; Livro II - movimento dos átomos e o clinamen; Livro III - animus & anima; Livro IV - sentidos, simulacra, sensações; Livro V - este mundo e outros mundos; Livro VI - fenômenos naturais curiosos e pestilências. O volume tem a vantagem de seguir as subdivisões temáticas da edição de Cyril Bailey (1947BAILEY, C. (ed.) (1947) Lucrécio. De Rerum Natura. Oxford, Oxford University Press.) para o texto latino.

O famoso proêmio inaugural, uma invocação à deusa do amor, tanto filosoficamente polêmico como literariamente sedutor, é aquela prova que ou prende o leitor ou o deixa escapar. Os 13 primeiros versos desta tradução compõem uma prazerosa experiência com as labiodentais /f/ e /v/. Esta vem ecoando desde os vocativos “ó volúpia” (v. 1) e “Vênus” (v. 2), passando por “navígeros” (v. 3), um latinismo oportuno, e outros vocábulos, até o enlace com o novo vocativo “ó divina” (v. 12). A ocorrência do /rr/ velar no português “terra” (v. 3 e 7), estranha ao latim, é abrandada pelo /f/, por exemplo, em “frutíferas terras frequentas” (v. 3) e em “flores suaves oferta” (v. 8), que vem logo após “terra dedálea” (v. 7), mais um latinismo, chegando-se, enfim, a uma síntese das labiodentais em “floresce a fértil brisa favônia” (v. 11). Isso agrada aos ouvidos. Recomenda-se a leitura em voz alta.

Ao adotar “uma versão flexível do hexâmetro datílico brasileiro” (Gonçalves, 2021GONÇALVES, R. T. (trad.) (2021) Sobre a natureza das coisas. Lucrécio. Belo Horizonte, Autêntica., p. 22), o tradutor-poeta coloca-se como agente da métrica, optando muitas vezes pelo troqueu (pé composto de sílabas longa-breve no latim ou tônica-átona no português) em lugar do espondeu (longa-longa ou tônica-tônica) ou do dátilo (longa-breve-breve ou tônica-átona-átona). Já como tradutor-aedo, na performance, exerce a liberdade de alongar a átona do troqueu. Experimento multilíngue do grupo Pecora Loca, uma récita dos nove primeiros versos do poema, disponível no YouTube, é o suporte ideal para o artigo “Tradução e ritmo: rêver le vers de Lucrécio” (Gonçalves, 2016), em que é delineado o projeto do tradutor.

A extensão flexível do verso é bastante para veicular a mensagem pari passu, tranquilizando aqueles que julgam difícil, senão impossível, fazer filosofia que não seja em prosa. Entre outras figuras de linguagem, verifica-se mesmo a anáfora, dispositivo de repetição largamente explorado na poesia da Roma antiga. Um exemplo é o seguinte par de versos (I, 6-7): “ventos fogem de ti, ó deusa, e as nuvens celestes / fogem do teu advento e a ti a terra dedálea”. Note-se que “fogem” compensa o triplo “te” do verso 6 em latim, mantendo a forte aliteração. Estes são versos breves em português, mas há outros tantos que se estendem mais, em geral, dentro dos parâmetros estabelecidos pelo tradutor. Um verso de 16 sílabas poéticas foi adotado pelo prolífico tradutor Carlos Alberto Nunes (1897-1990) em suas versões da épica grega de Homero e latina de Virgílio, seguindo com tônicas e átonas regularmente o hexâmetro datílico, o que o obrigou a inserir não poucas vezes adjetivos para compor a métrica da Eneida. Isto não ocorre aqui.

Maior desafio para quem lê Sobre a natureza das coisas é abstrair-se da representação gráfica do verso e ou projetar na mente ou vocalizar o ritmo da composição do tradutor-aedo. Veja-se o verso 25, essencial em tantos aspectos que pede atenção redobrada. Quanto à métrica latina, trata-se de um hexâmetro datílico com três pés espondaicos: quōs ĕgŏ | dē rē|rūm nā|tūrā | pāngĕrĕ | cōnŏr.1 1 Sílabas longas são marcadas com o sinal macro (ˉ) sobre a vogal, já as breves, com a braquia (˘). O verso em português expõe a agência do tradutor-aedo, que opta por mimetizar a duração das sílabas latinas: sōbr(e) ă nă|tūrā | dās cōi|sās qu(e) ā|quī ĕu rĕ|vēlŏ. Se não é essa a explicação, prefiro esta conjectura, caso contrário, um arranjo métrico consonante com o verso 21 da tradução acomodaria bem a palavra “natureza”, com alongamento da primeira sílaba como tônica secundária (subtônica): sōbr(e) ă | nātŭ|rēză dăs | cōisăs qu(e) ă|quī ĕu rĕ|vēlŏ.

Como vem anotado na publicação (Gonçalves, 2021GONÇALVES, R. T. (trad.) (2021) Sobre a natureza das coisas. Lucrécio. Belo Horizonte, Autêntica., p. 463, n. 3), registra-se nesse verso a expressão que dá nome ao poema: “de rerum natura”. O tradutor faz a opção por “natura”, um sinônimo “formal” segundo o Dicionário Houaiss on-line, soando como um latinismo a princípio, depois assimilado, de tão recorrente (mais de 40 vezes no Livro I). Outras ocorrências também soam latinismos: cor (coração), morbo (doença), loco (lugar), moto (movimento), frigor (frio).

Ainda no escrutínio do verso 25, tema sensível é o aceno à possibilidade de uma revelação. A tradução “que aqui eu revelo” para a formulação latina “quos ego (...) pangere conor” causa inquietação. Mesmo que se admita para o verbo “revelar” a acepção mais prosaica de “mostrar”, sua mera ocorrência a esta altura do proêmio instiga a pensar em uma revelação divina - e nada mais distante disso do que a simples tentativa de compor versos, expressa em latim. Talvez pareça um preciosismo, mas importa muito para delinear a função que o eu-poético assume nessa escrita identificada como epicurista: é ele o detentor do conhecimento ou é ele o porta-voz eleito da deusa? “Revelação” é um termo técnico na filosofia antiga, constando como verbete, por exemplo, do Léxico da filosofia grega e romana, de Giovanni Reale (2014REALE, G. (2014) Léxico da filosofia grega e romana. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz, Marcelo Perine. São Paulo, Edições Loyola ., p. 223), que usa como paradigma outro poeta-filósofo, Parmênides, do século VI AEC, agraciado por uma deusa não nomeada com a revelação sobre o ser e o não-ser, justamente no proêmio do seu poema Da natureza, escrito em grego, do qual restam escassos fragmentos.

O alheamento dos deuses é ponto irrefutável da doutrina epicurista, daí que se polemize tanto sobre a invocação a Vênus, também um hino de louvor, no poema de Lucrécio. Não há dúvida de que o eu-poético anseia pela associação com a deusa na confecção de versos que sejam sedutoramente perenes, mesmo que destinados, em primeira instância, a Mêmio, aristocrata romano coetâneo do autor. Cabe perguntar se existe no poema uma “revelação” da essência (natura) do mundo (rerum), quer dizer, da realidade. O tradutor manifesta seu ponto de vista já na terceira linha da sua Nota (Gonçalves, 2021GONÇALVES, R. T. (trad.) (2021) Sobre a natureza das coisas. Lucrécio. Belo Horizonte, Autêntica., p. 19): “Quase sete mil e quinhentos versos organizados de forma a revelar a realidade...” (grifo meu). Fica a dúvida: Quem a revela? Vênus? Epicuro? Lucrécio?

Os versos seguintes do proêmio são um imenso desafio, pois a leitura do latim constrói uma cena romântica detalhadíssima. Vênus é chamada a apaziguar o deus da guerra, seu amante na tradição mitológica, para que o poeta possa compor com a alma tranquila e o seu discípulo desobrigar-se das funções oficiais. Vencido pela dor do amor, Marte costuma render-se a Vênus: joga-se no seu colo, acomodando a taurina nuca, e ergue, cheio de desejo, os olhos cobiçosos, fixos na deusa; boquiaberto, pende ofegante, ansiando - tudo indica - por um beijo. Ela é instruída pelo eu-poético a se debruçar sobre o deus, ali recostado, envolvendo-o com seu corpo sublime (exatamente como vem configurado na ordenação das palavras no verso latino: tuo recubantem corpore sancto), e convencê-lo, sussurrando, a assegurar a paz aos romanos. O tradutor encontrou algumas boas soluções.

Faz com que enquanto isso os feros trabalhos da guerra

pelos mares e terras, adormecidos, descansem. 30

Pois só tu tens poder de trazer paz tranquila e auxílio

aos mortais, já que os feros trabalhos da guerra Mavorte

armipotente é que rege, já que sempre em teu grêmio

lança-se, por eterna ferida de amor derrotado,

e fitando-te, com o pescoço bem-feito aninhado,

alimenta seus ávidos olhos, amor inalando,

deusa, de ti, e suspende a respiração em teus lábios.

Diva, e a ele, com teu sagrado corpo envolvendo,

de tua boca falinhas suaves derrama sobre ele,

plácida paz aos Romanos pedindo, ínclita deusa. 40

effice ut interea fera moenera militiai

per maria ac terras omnis sopita quiescant. 30

nam tu sola potes tranquilla pace iuvare

mortalis, quoniam belli fera moenera Mavors

armipotens regit, in gremium qui saepe tuum se

reicit aeterno devictus vulnere amoris,

atque ita suspiciens tereti cervice reposta

pascit amore avidos inhians in te, dea, visus

eque tuo pendet resupini spiritus ore.

hunc tu, diva, tuo recubantem corpore sancto

circumfusa super, suavis ex ore loquellas

funde petens placidam Romanis, incluta, pacem. 40

Exibir o casal de deuses confirma a inserção de Lucrécio na tradição poética da qual fazem parte os pré-socráticos Parmênides, já mencionado, e Empédocles, filósofo do século V AEC que introduziu, no poema grego Sobre a natureza, o amor e o ódio como forças cósmicas motivadoras da união e da separação dos quatro elementos ou “raízes”, representadas por divindades: Zeus (fogo), Hera (ar), Aidoneus/Hades (terra), Nestis/Perséfone (água). Esse filósofo surge no Livro I (v. 705-829) como um dos alvos das condenações de teorias rivais, contudo, é louvado como poeta. Antes a crítica é dirigida a Heráclito (v. 635-704), depois, a Anaxágoras (v. 830-930).

Encerrando a invocação a Vênus, surgem seis versos que se repetem no Livro II (v. 646-51), por isso, há publicações que não trazem a passagem no proêmio, no entanto, essa é a primeira ocasião em que Lucrécio dá a conhecer a visão epicurista de que é inerente aos deuses a imortalidade e a bem-aventurança, mantendo-se alheios à realidade humana, quadro que o próprio Epicuro expõe na “Carta a Meneceu” §123-4 (Dos Reis, 2021, p. 85-6). O desfecho do proêmio vem formulado, em latim, como uma demonstração, apresentando composição simétrica de dois períodos de três versos, sendo que o primeiro é marcado pela conjunção “enim” (de fato), de asserção ou confirmação; o segundo, pela conjunção “nam” (pois), explicativa ou demonstrativa. Além de observar essa estrutura, para evitar ambiguidade, é crucial a interpretação da forma abreviada “necessest” (v. 44) como ananke (em grego), isto é, a necessidade intransigente, inflexível, daí, o forçoso, o incontornável.

A formulação latina é clara: de fato, é inescapável à natureza dos deuses fruir a imortalidade tranquilamente, alheia e distante dos assuntos humanos; essa natureza, desconhecendo dor e perigos, autossuficiente e independente de nós, é, pois, insensível a bondades e à ira. Soa como um apropriado desfecho epicurista desacreditar os apelos recém dirigidos a Vênus - já que os deuses, irmanados entre iguais, nada querem com os humanos - e voltar-se agora ao leitor ideal, cobrado a dar ouvidos ao poeta-filósofo. E, assim, tem início a apresentação do conteúdo do poema de instrução filosófica.

Seria mais justo com quem escreve a crítica e com quem é criticado poder comentar verso a verso a tradução. Impossível tratando-se de obra tão extensa. Nem mesmo é praxe que se faça dessa maneira. Melhor, então, prosseguir com os critérios que ficaram acima esboçados e “olhar com olhos de ver” algumas passagens essenciais.

Para quem se devota à leitura dessa tradução motivado pelo conteúdo filosófico, a adequação do léxico à matéria será, em princípio ao menos, o critério fundamental. O tradutor esclarece em notas suas opções, que mantém com consistência. A palavra “átomo”, por exemplo, não é registrada nenhuma vez porque Lucrécio nunca usa nem o termo grego nem seu decalque latino (Gonçalves, 2021GONÇALVES, R. T. (trad.) (2021) Sobre a natureza das coisas. Lucrécio. Belo Horizonte, Autêntica., p. 463, n. 8). Essa decisão, clara manifestação da agência do tradutor, é elogiada pelo pesquisador Thomas Nail, da Universidade de Denver, no Colorado, Estados Unidos, que reinterpreta os postulados do atomismo do De rerum natura propondo uma filosofia do movimento. Ele é o autor de um dos paratextos da publicação.

Não há átomos em Lucrécio. Ainda estou abismado com essa estranha dissonância entre o que Lucrécio disse e como ele foi traduzido e interpretado. Em vez disso, para descrever a matéria, Lucrécio usou uma grande variedade de palavras únicas que não são de forma alguma como partículas ou átomos discretos. A tradução literal de Gonçalves permanece fiel à heterogeneidade e à indeterminação poética da matéria de um modo que outros tradutores tenderam a obscurecer ao repetir “átomo” e “matéria” como termos genéricos. (Nail, 2021NAIL, T. (2021) “Prefácio: Lucrécio, nosso contemporâneo”. In: GONÇALVES, R. T. (trad.) (2021) Sobre a natureza das coisas. Lucrécio. Belo Horizonte, Autêntica ., p. 17-8)

O leitor especializado não estranhe, portanto, a ausência do jargão científico da nossa era: não é pra ser. Acostume-se, por outro lado, com “primórdios” (primordia rerum), “sementes das coisas” (semina rerum), “corpos das coisas” (corpora rerum), “corpos primeiros” (corpora prima), “corpos dos princípios” (corpora principiorum), expressões que se referem ao que outros, eventualmente, traduzem por “átomos”. As ocorrências vêm anotadas no final do livro, mas há menos interrupções na fruição do poema tendo esse repertório lexical em mente. Também a frequência da palavra “razão”, onde outros tradutores preferem ou “doutrina” ou “teoria” ou mesmo “filosofia”, senão também “essência”, é mais uma marca da agência do tradutor, que declara sua preferência pela tradução literal de “ratio” (Lucrécio, 2021, p. 463, n. 7) em todas as suas acepções (“causa”, por exemplo), daí que ela ocorra cerca de 30 vezes só no Livro I. Isso pouco incomoda a leitura e a compreensão, no entanto, deparei-me com um trecho (I, 127-35) em que as ocorrências de “ratio” e de outros termos técnicos cobram mais sutileza na interpretação.

Entre os maiores desafios para o tradutor de filosofia em latim está o uso dos vocábulos “animus” e “anima”. Em língua inglesa, pode-se atestar uma solução quase que padrão, “mind” e “soul”, respectivamente. Em português, costuma-se optar entre “alma” e “espírito” para ambas as palavras latinas ao passo que “mente” se reserva para o latim “mens”. Frente à distinção operada por Lucrécio, o tradutor adota uma saída filológica, preservando a etimologia nos termos em português “ânimo” e “ânima”, justificando respeitar a homologia fônico-estrutural do autor latino, por fim, assumindo que há custos decorrentes dessa escolha (Gonçalves, 2021GONÇALVES, R. T. (trad.) (2021) Sobre a natureza das coisas. Lucrécio. Belo Horizonte, Autêntica., p. 464, n. 14). Também Sêneca, disseminador do estoicismo tardio, procura distinguir “animus” e “anima”, na epístola 58.14 (Cazarini de Freitas, 2016, p. 74), entre o princípio da força vital (anima), presente em todos os seres animados ou viventes (animantia), incluindo as plantas, e o princípio, digamos, da força interior (animus), característico dos seres que têm impulso (impetus) para o movimento, ou seja, o gênero animal (animalia), incluindo a espécie humana.

Assim, Lucrécio, no Livro III (v. 94-176), faz a distinção entre psykhe (anima) e nous (animus), porém, os concebe corpóreos e interconectados, identificando este último com a mente (mens), reduto da intelecção da vida, que é, como os pés e as mãos, um membro com localização específica, o centro do tórax. A anima é o sopro vital, constituído de minúsculos corpos primordiais de calor distribuídos pelo organismo, sustentação da existência, largamente identificada com o chamado “último suspiro”. A tradução é acurada e apurada, mas os textos latino e português não bastam para situar o leitor na discussão, então, se vale o tradutor da nota mais longa dentre todas (Gonçalves, 2021GONÇALVES, R. T. (trad.) (2021) Sobre a natureza das coisas. Lucrécio. Belo Horizonte, Autêntica., p. 474-5, n. 187).

A argumentação de Lucrécio torna-se ainda mais complexa, de difícil apreensão, e isso não se deve à opção pelo verso na tradução, mas porque seria necessário parafrasear o autor latino para tentar esclarecer seu pensamento. Essas duas instâncias dos seres viventes - animus & anima - convergem para uma só coisa (III, 424: unum inter se coniunctaque res est) e, a seguir, formula-se conexão ainda mais intricada com o corpo (III, 557: conexu corpus adhaeret). A conclusão sobre a indissociabilidade de mente (acepção ampla) e corpo é, contudo, claríssima.

Afinal, as potências vivazes de ânimo e corpo

prevalecem e fruem da vida somente conjuntas;

nem sem o corpo, contudo, a natura do ânimo pode 560

por si só processar os sentidos da vida, nem mesmo

desprovido de ânima, o corpo tem ser e sentido.

Denique corporis atque animi vivata potestas

inter se coniuncta valente vitaque fruuntur;

nec sine corpore enim vitalis edere motus 560

sola potest animi per se natura nec autem

cassum anima corpus durare et sensibus uti.

Essa previsível dificuldade de se fazer entender, Lucrécio atribui repetidas vezes à indigência da língua latina (III, 260: patrii sermonis egestas), como ainda se queixará, praticamente nos mesmos termos, um século depois, Sêneca, na epístola 58.1: “Como nós somos pobres de palavras, melhor até, indigentes, eu nunca tinha entendido tão bem até o dia de hoje” (Cazarini de Freitas, 2016, p. 69: quanta verborum nobis paupertas, immo egestas sit, numquam magis quam hodierno die intellexi). Que a obra de Lucrécio é referência para Sêneca, pode-se constatar pela citação, por exemplo, do verso “hoc se quisque modo [semper] fugit” (III, 1068) em Sobre a tranquilidade da alma 2.14, construindo argumento similar sobre a insatisfação do ser humano com a própria vida: “Como diz Lucrécio: ‘Assim, cada um sempre foge de si mesmo’” (Cazarini de Freitas, 2014, p. 200).

O autor do De rerum natura vê-se com frequência na necessidade de sustentar suas proposições com observações empíricas, formuladas como descrições vivazes, por exemplo, quando, na contemplação de partículas em suspensão nos raios de sol adentrando um cômodo escuro, evoca os corpos primordiais em seus movimentos imprevisíveis no vazio (II, 112-22). E ainda quando, ao refutar a imortalidade da alma, imagina que, sendo um corpo atingido por golpe tão forte que o corte ao meio, também a anima será partida em duas, contrariando, assim, sua suposta natureza eterna (III, 634-41). Tal bipartição só é possível porque os corpos são permeados de vazio, exceto os sólidos corpos primordiais e eternos (I, 510: sunt igitur solida ac sine inani corpora prima).

Noutros momentos, o poeta recorre a certo humor, uma ironia corrosiva, como quando pretende desacreditar que o sentido da visão esteja no animus, alocando-o nos olhos mesmos: “...se os nossos olhos são portas, parece / que, arrancados os olhos, o ânimo então poderia / discernir melhor as coisas, sem os batentes” (III, 367-9). E há muitas como esta. Apesar do que diz em sua Nota sobre a seriedade de Lucrécio (Gonçalves, 2021GONÇALVES, R. T. (trad.) (2021) Sobre a natureza das coisas. Lucrécio. Belo Horizonte, Autêntica., p. 19), não falta humor também ao tradutor, que brinca com a imagem das almas penadas: “Mas por que elas fazem isso ou por que tanto penam / não se pode dizer” (III, 730-1). É hilária a projeção fantasiosa de um morto, parado, em pé, ao lado do próprio corpo, vendo a si mesmo ser consumido pelas chamas ou dilacerado pelas feras (III, 870-93).

Em uma publicação recente, Laughing Atoms, Laughing Matter (Gellar-Goad, 2020), a veia satírica de Lucrécio é salientada, a começar pelos corpos primordiais chorando de rir da hipótese de Anaxágoras, filósofo do século V AEC, de que as coisas se compõem de minúsculas partículas de si mesmas (I, 915-20), por exemplo, ossos feitos de ossinhos. Dá-se ainda mais conta da irrisão da passagem quando se é informado logo à frente (II, 963-90) de que os corpos primordiais carecem de sensações.

Eles [os átomos] nos revelam que ser um bom leitor desse poema é pensá-lo criticamente, sendo crítico e sarcástico ao mesmo tempo. Essa passagem do antropomorfismo dos átomos é um dos muitos momentos em que o De rerum natura exibe sacadas jocosas contra oponentes e contra crenças e comportamentos que entram em conflito com um estilo de vida epicurista. (Gellar-Goad, 2020, p. 2, minha tradução)2 2 They show us that to be effective readers of this poem is to think critically and to be critical and sarcastic all at once. This instance of atomic anthropomorphism is one of a great number of moments where De Rerum Natura presents comic mockery of its opponents and of beliefs and behaviors that conflict with an Epicurean lifestyle.

Este poeta não é um fingidor. Confiando mais na musa da épica Calíope, invocada no último dos seis livros (VI, 92-5), do que no apelo inicial dirigido a Vênus, confessa ambicionar uma coroa de louros pelo ineditismo da empreitada de “livrar o espírito da sujeição religiosa” (I, 932: religionum animum nodis exsolvere pergo) e revela seu estratagema (I, 935: ratione), hoje um topos literário, detalhado duas vezes na obra (I, 935-42 e IV, 10-7).

Isso contudo, não sem nenhuma razão, eu conduzo;

como quando às crianças os médicos tétrico absinto

tentam administrar, primeiro em volta da taça

passam na borda o líquido mel, tão doce e dourado,

para que possa a idade infantil insensata enganar-se

té os lábios, de tal maneira que beba o amargo 940

líquido absinto e assim conduzida, mas não enganada,

possa então a criança convalescer, recobrada.

id quoque enim non ab nulla ratione videtur;

sed veluti pueris absinthia taetra medentes

cum dare conantur, prius oras pocula circum

contingunt mellis dulci flavoque liquore,

ut puerorum aetas improvida ludificetur

labrorum tenus, interea perpotet amarum 940

absinthi laticem deceptaque non capiatur,

sed potius tali facto recreata valescat;

Seria, então, o leitor do De rerum natura uma criança inocente a ser levada pela mão ou uma mente sagaz, mais propriamente um cão de caça farejando os modestos rastros (I, 402: vestigia parvua) deixados pelo autor até alcançar a verdade, como é retratado Mêmio (I, 402-9)? As analogias com animais não param por aí e talvez mereçam ser lidas em uma chave satírica. O autor se apresenta diante de Epicuro, no proêmio do Livro III, como uma andorinha frente a um cisne ou como um frágil cabritinho face a um possante cavalo, deixando rastros (III, 4: ficta vestigia) que se encaixam nas pegadas firmes do filósofo dono de uma mente divina.

Há uma escalada da ironia. No proêmio do Livro V, Epicuro é apresentado como um deus (v. 8: deus ille fuit), não porque compartilhe da natureza divina, mas parece ser um deus (v. 19: nobis deus esse videtur) pelo conforto espiritual que traz com suas palavras (v. 21: dulcia permulcent animos solacia vitae). Conforme a “Carta a Meneceu” §135, tendo-se alcançado a ataraxia, vive-se como um deus entre os mortais (Epicuro, 2020, p. 90). Dessa forma, não há ninguém de equiparável estatura para louvar tamanha majestade (V, 6). Porém, quando se manifesta tanta modéstia do autor, já se contam mais de 4500 versos do poema. Será Lucrécio divino? O eu-poético diz ter mais razão do que a pítia, profetiza de Febo-Apolo (V, 111-2), e promete muito conforto em doutas falas (v. 113: multa tibi expediam doctis solacia dictis). Esse “ego” um pouco inflado extravasa mais adiante, quando trata do ineditismo da sua empreitada como tradutor do epicurismo para o latim (v. 337: nunc ego sum in patrias qui possim vertere voces). Mas, atenção, Epicuro não foi e não é um deus, morreu como qualquer humano, como consta dos versos 1042-4 do Livro III, onde ocorre a única menção nominal ao filósofo na obra.

No repertório lexical especializado do poema, a ser tomado como terminologia epicurista em latim, ocorre no verso 292 do Livro II o termo “clinamen” (Dicionário Houaiss: clinâmen). O vocábulo, equivalente a “parenklisis” em grego, sem registro nos textos supérstites de Epicuro, é o substantivo que designa o mínimo desvio oblíquo no movimento descendente dos corpos primordiais, declinação estocástica, indeterminável no tempo e no espaço, imperceptível declive propiciador das colisões de partículas simples e sua decorrente conciliação (concilium) em novos corpos compostos. Tal axioma do “dinamismo espontâneo da matéria atômica” (Reis, 2020, p. 34) permite acolher o livre-arbítrio nesse sistema filosófico materialista.

O autor latino recorre a verbos derivados de “clino” (II, 221: declino; II, 243: inclino), que significa “pender”, daí que a mais natural solução em português - “declinar” - exija do leitor algum grau de conhecimento de etimologia latina e da carga semântica do prefixo “de”, derivado da preposição que sinaliza afastamento de cima para baixo, sem implicar queda vertical ou movimento perpendicular. Isso tudo para expor a complexa sutileza da tradução de um poema de caráter didático, que se propõe alta literatura & manual de instrução. No projeto tradutório sob crítica, verifica-se consistência na abordagem etimológica, apoiada em notas esclarecedoras, ainda que sintéticas, contudo, uma proposta de mais amplo alcance possivelmente optasse pelo verbo “desviar”, que parece funcionar bem em parte substancial das ocorrências na passagem “O cliname dos átomos” (II, 216-93).

Outro termo fundamental é “simulacro” (no plural latino, simulacra; em grego, eidola), imagem resultante de emanações dos corpos, “como se fossem membranas a se descolarem da superfície das coisas” (IV, 31-2: quasi membranae summo de corpore rerum / dereptae), que afetam o ânimo (animus), ativam os sentidos (sensus) e impulsionam a vontade (voluntas). Tais imagens podem ser verdadeiras ou falsas, como nos sonhos, a culpar-se o animus, não os olhos. Simulacra vagam pelos ares em suas tênues texturas e, como se agregam ao acaso até mesmo formas distintas, geram imagens fantasiosas, assim é que se explicam os centauros e similares. Por mais insólito que pareça o argumento, a formulação latina e a respectiva tradução seduzem.

Também é impossível ignorar a formulação latina “machina mundi” (V, 96), isto é, “a máquina do mundo”, retomada na história da literatura ocidental tantas vezes, não menos importante no Brasil, agraciado com o poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade, para além de “Os Lusíadas” de Camões e “A Divina Comédia” de Dante, e ainda com a síntese, por assim dizer, de Haroldo de Campos em “A máquina do mundo repensada”. Não é anunciada, no Livro V, uma “revelação” da máquina do mundo, mas não é outra coisa o que acontece. Chocantes - e sarcásticos - os versos 95-109: a ingente massa também é mortal.

único dia trará seu fim; após muitos anos

sustentadas, ruirão a máquina e a massa do mundo.

Nem me escapa ao ânimo o quanto uma coisa tão nova a

mente perturbe: o exício futuro do céu e da terra,

e pra mim quão difícil é convencer com palavras.

Tal como ocorre quando algo insólito trazes diante 100

dos ouvidos sem que se possa trazer para a vista,

nem ao tangível das mãos, a mais sólida via da crença

para ganhar os peitos humanos e os templos da mente.

Falo, contudo. A coisa em si dará fé às palavras

se, por acaso, com graves motos nascidos da terra

vires subitamente todas as coisas tremendo.

Possa a fortuna regente de tudo manter à distância,

possa a razão nos persuadir, muito mais do que os fatos,

que tudo pode, vencido, acabar num horríssono estrondo.

una dies dabit exitio, multosque per annos

sustentata ruet moles et machina mundi.

nec me animi fallit quam res nova miraque menti

accidat exitium caeli terraeque futurum,

et quam difficile id mihi sit pervincere dictis;

ut fit ubi insolitam rem adportes auribus ante 100

nec tamen hanc possis oculorum subdere visu

ne iacere indu manus, via qua munita fidei

proxima fert humanum in pectus templaque mentis,

sed tamen effabor. dictis dabit ipsa fidem res

forsitan et graviter terrarum motibus ortis

omnia conquassari in parvo tempore cernes.

quod procul a nobis flectat fortuna gubernans,

et ratio potius quam res persuadeat ipsa

succidere horrissono posse omnia victa fragore.

Destoando da suposta unanimidade de que a natureza é feita à perfeição (V, 198-9), o eu-poético faz uma lista das falhas. Tampouco é o paraíso da harmonia, pois vive-se em certame, com secas e inundações (V, 380-2). À parte as impagáveis inserções irônicas, é grave o tom geral do discurso poético. Vê-se pela censura atribuída à voz da Natureza contra o sempre insatisfeito ser humano: “Pois o que mais eu possa inventar, maquinar, que te agrade / não existe: tudo é agora tal como foi sempre” (III, 944-5: nam tibi praeterea quod machiner inveniamque, / quod placeat, nil est: eadem sunt omnia semper). O livro VI, um almanaque de curiosidades revisitadas pela razão epicurista, desfecho da obra, evidentemente inacabada, é um legado cru e desesperançoso das pestilências que assolam os viventes, da peste de Atenas em particular. Se há corpos primordiais fundamentais para a vida, também há os que são fatais (VI, 1093-5).

De rerum natura não é um poema melífluo. O título mais afinado seria “Sobre a realidade da vida”. Ele contesta a hipótese da criação divina. Não há uma Providência como no estoicismo. A pedra angular desse edifício epicurista é o verso 150 do Livro I, tradução irreparável em um harmonioso hexâmetro datílico brasileiro: “coisa nenhuma jamais vem do nada por ato divino” (nullam rem e nilo gigni divinitus umquam).

Algumas questões menores na edição, mas que cabem em uma crítica: o texto latino pode apresentar alguma incongruência com a tradução em português, como é o caso do verso 267 do Livro III, em que está impresso em latim “color”, mas a tradução é “calor”, e do verso 955 do mesmo livro, em que o vocativo latino seria “balatro”; no verso 588 do Livro III, permanece um ponto de interrogação, mas a reformulação do trecho em vernáculo a torna dispensável; a nota 35 é desnecessária: o termo “corporis” no v. 606 do Livro I não se refere aos corpos primordiais, mas ao corpo composto dessas unidades mínimas; a nota 289 seria mais útil antecipada, referindo-se ao v. 381 do Livro V, quando aparece a primeira referência a “membra” na acepção de “elementos da natureza”. São raros os hipérbatos, inescapáveis talvez em função da métrica, que levam a repetir a leitura e a conferir o latim.

Não se trata de um guia de estudos da obra de Lucrécio, do qual carecemos no Brasil até hoje. As 401 notas do final do volume tomam apenas 24 páginas, o que indica como são sucintas, embora muito úteis. Em razão disso, esta edição pode ser acompanhada da leitura, por exemplo, de Ler Epicuro e os epicuristas (Gigandet, A.; Morel, P-M., 2011GIGANDET, A.; MOREL, P-M. (orgs.) (2011) Ler Epicuro e os epicuristas. Tradução de Edson Bini. São Paulo, Edições Loyola.), em que Lucrécio é citado com frequência, com as devidas referências aos versos nos respectivos livros. Também fique avisada a gente leitora que a edição não adentra o debate do gênero literário além de uma alusão, na Nota do tradutor, ao “improvável” poema épico e didático (Gonçalves, 2021GONÇALVES, R. T. (trad.) (2021) Sobre a natureza das coisas. Lucrécio. Belo Horizonte, Autêntica., p. 19). Artigos recentes que abordam o tema são de fácil acesso, como a recente entrevista da filósofa Barbara Cassin à revista Gragoatá, da Universidade Federal Fluminense (UFF), porém em francês, sob o título “Comment philosophe le poème?” (Lavelle, P.; Cassin, B., 2022LAVELLE, P.; CASSIN, B. (2022) Entretien avec Barbara Cassin. Comment philosophe le poème? Gragoatá 27, n.57, p. 16-22.).

Ao encerrar o livro, a sensação é de total deslumbre com a leitura do que é, acima de tudo, um poema. E é assim que o tradutor espera que ele seja lido, como já afirmou em lives comentando a publicação, ao mesmo tempo em que propõe uma performance de voz e corpo. Compartilho o trecho que li repetidas vezes, em voz alta, sem me cansar, sobre o momento da “viagem astral” de Epicuro (I, 72-9).

Eis que a vívida veia da alma venceu e ainda

foi além das flamejantes muralhas do mundo,

toda a imensidão viajou em espírito e mente,

donde nos conta, vencedor, o que pode gerar-se,

e o que não pode, qual a razão pra que todas as coisas

tenham finito poder e bem fincada fronteira.

E, por sua vez, a religião sob os pés submetida

é esmagada e nos iguala aos céus a vitória.

ergo vivida vis animi pervicit, et extra

processit longe flammantia moenia mundi

atque omne immensum peragravit mente animoque,

unde refert nobis victor quid possit oriri,

quid nequeat, finita potestas denique cuique

quanam sit ratione atque alte terminus haerens.

quare religio pedibus subiecta vicissim

obteritur, nos exaequat victoria caelo.

Não há trabalho de criação - e a tradução é um trabalho de criação - que não carregue consigo uma cadeia de referências e de relações. A crítica de tradução como prática de literatura comparada é uma opção corrente, mas que é possível contornar. Tem seu valor, porém, e para corroborar isso menciono que a inebriante e precisa formulação “flamejantes muralhas do mundo” (flammantia moenia mundi) evocará em muitos a tradução de Agostinho da Silva na tradicionalíssima coleção “Os Pensadores”, da antiga Abril Cultural. Foi com esse texto que pudemos contar por décadas: prosa agradável e anotada, útil, sem dúvida. Agora temos mais. A sedução do poema latino em vernáculo encantatório e acurado. Prazer de ler. Prazer de ouvir.3 3 Nota de agradecimento ao Prof. Dr. Beethoven Alvarez (UFF) pela troca de impressões, ao Prof. Dr. Rodrigo T. Gonçalves (UFPR) pela receptividade a críticas e à equipe da Archai-UnB pelo convite.

Resposta

Uma iniciativa a ser louvada, esta nova série de resenhas com respostas da revista Archai oferece um espaço precioso para resenhas cuidadosas e aprofundadas, espaço ainda pouco explorado em periódicos, embora já atraia o interesse de outros tipos de público em espaços como o do canal de YouTube de André Malta, “Isso aqui não é grego”, em que o professor da USP dedica vídeos inteiros a diversas obras em grego, latim e outras línguas de interesse dos classicistas.

Bastante satisfeito com o convite para inaugurar a seção com minha tradução de Lucrécio, vi-me ainda mais feliz com o trabalho minucioso e muito competente de Renata Cazarini de Freitas. A professora de língua e literatura latina da Universidade Federal Fluminense, também tradutora, entre outros, de Sêneca, e estudiosa do estoicismo, de tradução e recepção dos clássicos, propõe uma leitura que, como sugerido pelos editores, ultrapassa em profundidade e extensão o gênero de resenha jornalística (embora Renata tenha tido também uma carreira importantíssima como jornalista). Trata-se, enfim, de uma resenha acadêmica. E os pontos levantados me satisfazem como tradutor e leitor de Lucrécio, pois Renata, em poucas palavras, foi efetivamente aos pontos cruciais.

Há pouco a ser efetivamente respondido, mas uma das questões principais diz respeito a sua leitura do ritmo do hexâmetro datílico que eu proponho na tradução. Como afirmei em outro lugar recentemente, minha nota do tradutor na edição de Lucrécio é sucinta de propósito, justamente para evitar explicitar em muitos detalhes uma leitura especializada da proposta rítmica. O objetivo é deixar que a leitora e o leitor encontrem o ritmo subjacente por conta própria, ou mesmo não o encontrem. Em minha concepção, se eu impusesse uma pauta rítmica estrita para a leitura, poderia acabar forçando a atenção dos leitores para um aspecto que poderia diminuir a compreensão de um texto que, por si só, já é às vezes bastante complicado. Além disso, eu impediria exatamente o tipo de ambiguidade interpretativa de escansões como a que Cazarini de Freitas apresenta na p. 3 de seu texto:

O verso em português expõe a agência do tradutor-aedo, que opta por mimetizar a duração das sílabas latinas: sōbr(e) ă nă|tūrā | dās cōi|sās qu(e) ā|quī ĕu rĕ|vēlŏ. Se não é essa a explicação, prefiro esta conjectura, caso contrário, um arranjo métrico consonante com o verso 21 da tradução acomodaria bem a palavra “natureza”, com alongamento da primeira sílaba como tônica secundária (subtônica): sōbr(e) ă | nātŭ|rēză dăs | cōisăs qu(e) ă|quī ĕu rĕ|vēlŏ.

Para além de propor duas escansões (embora eu considere que a primeira não funciona tão bem do modo como eu concebo a leitura-performance do verso), Renata percebe corretamente que há possibilidade de acomodar a palavra “natureza” no lugar de “natura” no mesmo esquema rítmico. Essa é a vantagem de adotar um hexâmetro flexível nas substituições de pés ternários por binários, como acontece em grego e em latim, o que é diferente da solução de nosso mais prolífico hexametricista anterior, Carlos Alberto Nunes, que se manteve apegado a um hexâmetro holodatílico, caracterizado pela cadência ternária perpétua. Na flexibilização que adoto, se, por um lado, não tenho como de fato usar sílabas longas, posso, por outro lado, considerar em posições de longas todas as tônicas e subtônicas do verso, e deixar o ritmo subjacente do hexâmetro conduzir uma leitura (mesmo silenciosa) que se aproxime mais ou menos de uma marcação rítmica estrita. A vantagem é que, se for necessário, é possível escandir cada um dos versos e fazer com que ele funcione no molde do hexâmetro. A outra vantagem, ainda mais interessante, é que isso não é necessário para a fluidez rítmica da leitura performática.

No geral, não discordo de nada que Renata escreve. Sua leitura é tão fina que percebe minha posição crítica desde o início, posição que talvez eu mesmo não tenha percebido conscientemente: “O tradutor manifesta seu ponto de vista já na terceira linha da sua Nota (Gonçalves, 2021GONÇALVES, R. T. (trad.) (2021) Sobre a natureza das coisas. Lucrécio. Belo Horizonte, Autêntica., p. 19): ‘Quase sete mil e quinhentos versos organizados de forma a revelar a realidade...’ (grifo meu). Fica a dúvida: Quem a revela? Vênus? Epicuro? Lucrécio?”. Seu olhar de tradutora, classicista e jornalista muito bem treinada percebe em mim um apego talvez maior do que o decoroso por Lucrécio, algo de que, em retrospecto, não me arrependo e passo agora a confessar. Às vezes é necessária uma leitura externa para desvelar nossas próprias leituras.

Se há uma discordância, ela é de ordem bastante pessoal: Renata considera hilária a cena do morto velando o próprio caixão em seu próprio funeral, no livro III, vv. 870-93. Eu considero essa uma das imagens mais belas do poema, numa das seções mais poderosas, em que o poeta trabalha com ideias contrafactuais para mostrar a inutilidade de nosso medo da morte, por sua vez causa da maior parte das angústias da alma. A angústia causada pela autocomiseração do indivíduo que teme morrer e espera estar em espírito presente em seu próprio funeral, apesar de também bastante patética (há, de fato, algo entre báthos e páthos aqui), para mim parece ser uma das representações imagéticas mais pungentes do sofrimento causado pelo apego extremo: o contrário, a compreensão de que a vida, assim como todo o restante, acaba e de que nunca mais sofreremos, é o cerne do ensinamento epicurista, tão afinado aqui com diversas outras tradições do desapego, como o estoicismo e o zen-budismo. Mas, afinal, creio que Renata não tenha deixado de lado esse ensinamento, grande especialista de estoicismo que é, e pode ser que eu simplesmente não tenha aprendido a rir mais com Lucrécio. Aí, de novo, a pluralidade de interpretações e afetos que o poema permite e provoca é mais uma vez prova de sua riqueza, e, enfim, por sorte, ainda podemos concordar em discordar.

BIBLIOGRAFIA

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  • REALE, G. (2014) Léxico da filosofia grega e romana Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz, Marcelo Perine. São Paulo, Edições Loyola .
  • 1
    Sílabas longas são marcadas com o sinal macro (ˉ) sobre a vogal, já as breves, com a braquia (˘).
  • 2
    They show us that to be effective readers of this poem is to think critically and to be critical and sarcastic all at once. This instance of atomic anthropomorphism is one of a great number of moments where De Rerum Natura presents comic mockery of its opponents and of beliefs and behaviors that conflict with an Epicurean lifestyle.
  • 3
    Nota de agradecimento ao Prof. Dr. Beethoven Alvarez (UFF) pela troca de impressões, ao Prof. Dr. Rodrigo T. Gonçalves (UFPR) pela receptividade a críticas e à equipe da Archai-UnB pelo convite.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2022
  • Recebido
    11 Nov 2022
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