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Cuidados domiciliares : interação do enfermeiro com a pessoa idosa/família

Resumos

OBJETIVO: Compreender o processo de interacção com a pessoa idosa e família no domicílio desenvolvido pelos enfermeiros. MÉTODOS: Estudo de natureza qualitativa, Grounded Theory, em uma comunidade onde 40% da população têm idade igual ou superior a 65 anos. A coleta dos dados foi pela observação não participante das práticas de enfermagem, durante 41 visitas domiciliárias e entrevistas semiestruturadas às enfermeiras, pessoa idosa e família. RESULTADOS: Emergiram as categorias: organização estrutural dos cuidados domiciliares, avaliação diagnóstica em contexto e intervenção terapêutica em contexto. CONCLUSÃO: A categoria central foi "Construindo a relação em contexto domiciliar" pelo fato da relação da enfermeira com o idoso e a família ser central em todo o processo de cuidados. A relação é simultaneamente o contexto de todos os cuidados, assim como é um instrumento terapêutico.

Cuidados de enfermagem; Assistência domiciliar; Visita domiciliar; Saúde do idoso


OBJECTIVE: To understand the interaction process between the elderly and the family and the nurses during home care. METHODS: Grounded theory qualitative study in a community where 40% of the population is aged 65 or above. The collection of data was made via the non-participating observation of nursing practice during 41 home visits and semi-structured interviews to nurses, the elderly and the family. RESULTS: the following categories emerged - structural organization of at-home care, diagnostic assessment in context and therapeutic intervention in context. CONCLUSION: the central category was "Building the relationship in an at-home context", due to the fact that the relationship between the nurse, the elderly and the family is central across the entire care process. The relation is, simultaneously, the context for all the care and a therapeutic instrument.

Nursing care; Home housing; House visit; Health of the elderly


OBJETIVO: Comprender el proceso de interacción de los enfermeros con la persona anciana y la familia en el domicilio. MÉTODOS: Estudio de naturaleza cualitativa, Grounded Theory, realizado en una comunidad donde el 40% de la población tiene una edad igual o superior a 65 años. Para la recolección de los datos se usó la observación no participante de las prácticas de enfermería, durante 41 visitas domiciliarias y entrevistas semiestructuradas realizadas a las enfermeras, persona anciana y familia. RESULTADOS: Emergieron las categorías: organización estructural de los cuidados domiciliarios, evaluación diagnóstica en el contexto e intervención terapéutica en el contexto. CONCLUSIÓN: La categoría central fue "Construyendo la relación en el contexto domiciliario", por el hecho de ser la relación de la enfermera con el anciano y la familia el centro en todo el proceso de cuidados. La relación es simultáneamente el contexto de todos los cuidados, así como el instrumento terapéutico.

Cuidados de enfermería; Atención domiciliaria de salud; Visita domiciliaria; Salud del ancianos


ARTIGO ORIGINAL

Cuidados domiciliares: interação do enfermeiro com a pessoa idosa/família

Esperança Alves GagoI; Manuel José LopesII

IMestre em Ciências de Enfermagem pelo ICBAS, Universidade do Porto. Doutoranda da Universidade de Évora. Prof. Coordenadora da Escola Superior de Enfermagem, Universidade do Minho – Braga – Portugal

IIDoutor em Ciências de Enfermagem pelo ICBAS, Universidade do Porto, Diretor da Escola Superior de Enfermagem de S. João de Deus da Universidade de Évora – Portugal, Diretor do Centro de Investigação em Ciências e Tecnologias da Saúde

Autor Correspondente

RESUMO

OBJETIVO: Compreender o processo de interacção com a pessoa idosa e família no domicílio desenvolvido pelos enfermeiros.

MÉTODOS: Estudo de natureza qualitativa, Grounded Theory, em uma comunidade onde 40% da população têm idade igual ou superior a 65 anos. A coleta dos dados foi pela observação não participante das práticas de enfermagem, durante 41 visitas domiciliárias e entrevistas semiestruturadas às enfermeiras, pessoa idosa e família.

RESULTADOS: Emergiram as categorias: organização estrutural dos cuidados domiciliares, avaliação diagnóstica em contexto e intervenção terapêutica em contexto.

CONCLUSÃO: A categoria central foi "Construindo a relação em contexto domiciliar" pelo fato da relação da enfermeira com o idoso e a família ser central em todo o processo de cuidados. A relação é simultaneamente o contexto de todos os cuidados, assim como é um instrumento terapêutico.

Descritores: Cuidados de enfermagem; Assistência domiciliar; Visita domiciliar; Saúde do idoso

RESUMEN

OBJETIVO: Comprender el proceso de interacción de los enfermeros con la persona anciana y la familia en el domicilio.

MÉTODOS: Estudio de naturaleza cualitativa, Grounded Theory, realizado en una comunidad donde el 40% de la población tiene una edad igual o superior a 65 años. Para la recolección de los datos se usó la observación no participante de las prácticas de enfermería, durante 41 visitas domiciliarias y entrevistas semiestructuradas realizadas a las enfermeras, persona anciana y familia.

RESULTADOS: Emergieron las categorías: organización estructural de los cuidados domiciliarios, evaluación diagnóstica en el contexto e intervención terapéutica en el contexto.

CONCLUSIÓN: La categoría central fue "Construyendo la relación en el contexto domiciliario", por el hecho de ser la relación de la enfermera con el anciano y la familia el centro en todo el proceso de cuidados. La relación es simultáneamente el contexto de todos los cuidados, así como el instrumento terapéutico.

Descriptores: Cuidados de enfermería; Atención domiciliaria de salud; Visita domiciliaria; Salud del ancianos

INTRODUÇÃO

Os idosos são o segmento da população que, tendencialmente e de forma progressiva, mais carecem de cuidados. Esta constatação prende-se ao fato do envelhecimento acarretar inexoravelmente alguma diminuição da funcionalidade. O fenômeno do envelhecimento demográfico tem amplitude mundial, prevendo-se que, em 2025, existam 1,2 biliões de pessoas com mais de 60 anos, representando mais de 20% da população mundial (1).

Portugal é um país em acelerado processo de envelhecimento, contribuindo para isso a ocorrência de dois fenômenos: o aumento da esperança média de vida e a diminuição da taxa de fecundidade e, consequentemente, da natalidade. De acordo com as projeções demográficas, estima-se que, em 2050, a população idosa represente 32% do total da população (2). Este estudo foi realizado na região Norte do País, no Centro de Saúde de Vila Nova de Famalicão.

Dentre as várias estratégias estruturadas de prestação de cuidados vem ganhando importância crescente, o que se convencionou designar por domiciliação dos cuidados ou cuidados domiciliários. Estes correspondem aos cuidados prestados aos indivíduos e às famílias em seus locais de residência e têm por finalidade promover, manter ou recuperar a saúde, maximizando o nível de independência ou minimizando os efeitos da deficiência ou da doença terminal (3).

Sendo assim, os enfermeiros têm uma posição privilegiada para atingir sua finalidade reduzindo o número de hospitalizações e o consumo medicamentoso e também respeitando o ambiente do cuidado domiciliar, que é considerado "[…] como o espaço social e físico das interações e interdependências dos seres humanos […]" (4)

Nos cuidados domiciliários, o enfermeiro imerge no espaço cultural e vivencial de cada família, o que exige uma grande capacidade de adaptação, mas também de compreensão das diferentes particularidades de cada um desses espaços no sentido de conquistar a confiança das pessoas cuidadas, o que lhe permitirá utilizar todos os recursos em prol do projeto terapêutico. Esta situação implica que "[…] o cotidiano do trabalho exige reflexão sobre a necessidade de se adotar comportamentos e posturas inovadoras […]"(5).

Neste sentido, o "[…] saber construído e utilizado na prática quotidiana das enfermeiras[…]" (6) foi o impulso para a realização deste estudo com as seguintes questões: como os enfermeiros desenvolvem este processo? Que saberes de enfermagem estão subjacentes a esse cuidar? Como os enfermeiros organizam e estruturam os cuidados domiciliários? Que estratégias utilizam para serem aceitos no ambiente íntimo e privado das pessoas alvo dos cuidados de saúde? Quando ou como os enfermeiros sentem que já são aceitos pelas pessoas que cuidam? Como os enfermeiros mobilizam os vários recursos, materiais e humanos, de forma a obter respostas à complexidade de situações que se deparam? Que intervenções terapêuticas desenvolvem nesses contextos?

A criação da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (7) reflete as preocupações políticas sobre a necessidade das respostas de cuidados de saúde na comunidade, particularmente, no que se refere aos idosos com dependência funcional.

Sendo assim, a capacidade funcional surge "[…] como um novo paradigma de saúde, particularmente relevante para o idoso"(8) . Neste sentido, o que determina o bem-estar da pessoa idosa é sua autonomia, ou seja, a capacidade que ela tem de gerir sua vida em nível social, de lazer e outras.

Assim, a manutenção da autonomia e/ou a redução de déficit funcional requer um trabalho multidisciplinar, mas, que, historicamente e em nossos contextos, é parte integrante do trabalho realizado pelos enfermeiros.

De acordo com a teoria geral de Orem (9), os enfermeiros são designados como agentes de autocuidado terapêutico, quando as pessoas, por si só, não têm capacidade de desenvolver o autocuidado. São estes profissionais de saúde os elementos chave nas orientações individuais, familiares e comunitárias, nas decisões importantes em saúde, com competências na implementação de intervenções de promoção da saúde, no diagnóstico de fatores constrangedores de ordem socioeconômica da família e na orientação do idoso e sua família para as instituições competentes (10).

O domicílio funciona como uma unidade de saúde, fora dos muros das instituições formais de saúde, do conforto, do espaço e dos recursos materiais e humanos. No ambiente domiciliário, o enfermeiro defronta-se com várias contingências, nomeadamente, o fato de não pertencer ao contexto nos quais os cuidados vão desenvolver-se. É alguém estranho em um espaço privado. Também tem a necessidade de adequar as intervenções terapêuticas, entendidas como um "[…]conjunto de intervenções específicas de enfermagem e com potencialidades terapêuticas demonstradas." (11)

A adequação das intervenções resulta da promoção da participação da pessoa idosa/família na prática dos cuidados domiciliares. A promoção desta participação poderá ser vista à luz do pressuposto, referido por Orem (9), que o autocuidado não é inato, é uma conduta que se aprende e vive-se.

Em relação ao objetivo dos cuidados domiciliares, Rice (12) identifica providenciar ao idoso e família a compreensão, o apoio, o tratamento, as informações e os cuidados que necessitam para gerir com sucesso as necessidades de saúde no domicílio. Existem lacunas entre o desenvolvimento do conhecimento sobre a promoção à saúde e a prevenção da doença e sua aplicação prática.

Na literatura, não foram encontrados estudos com a finalidade de conceitualizar o processo de interação dos enfermeiros com a pessoa idosa e a família nos cuidados de saúde desenvolvidos no domicílio.

Diante do exposto, surgem várias interrogações, no entanto, esta pesquisa foi desenvolvida baseada na seguinte questão: Como se desenvolve o processo de cuidados de enfermagem à pessoa idosa/família no domicílio?

Portanto, os objetivos deste estudo foram:

1 – Compreender como os enfermeiros organizam e estruturam as visitas domiciliares.

2 – Identificar as estratégias desenvolvidas pelos enfermeiros para que sejam aceitas no ambiente íntimo e privado das pessoas alvo dos cuidados de saúde.

3 – Compreender as atitudes observadas/sentidas, pelos enfermeiros durante a interação com a pessoa idosa-família e que indicam que já são aceitas pelas pessoas cuidadas.

4 – Identificar como os enfermeiros mobilizam os vários recursos, materiais e humanos, para obterem respostas à complexidade de situações que se lhes deparam.

5 – Identificar as intervenções terapêuticas desenvolvidas pelos enfermeiros nos contextos domiciliares.

MÉTODOS

Pesquisa de abordagem qualitativa indutiva, baseada no método da Grounded Theory (13), que se adapta à criação de uma teoria derivada indutivamente dos dados. Ou seja, a teoria é construída e desenvolvida de forma provisória e é verificada por meio da coleta sistemática de dados e de sua constante análise. A razão desta opção pauta-se na ausência de teorização sobre o processo de interação dos enfermeiros com a pessoa idosa e família no contexto domiciliar.

O estudo foi desenvolvido em quatro freguesias da cidade de Vila Nova de Famalicão (VNF)- Portugal pertencentes ao mesmo Centro de Saúde. Dos 136458 utentes inscritos no centro de saúde, 58,8% pertenciam às comunidades estudadas. Destes, 12,7% eram pessoas com idade igual ou superior a 65 anos.

Em consonância com o método selecionado, optou-se pela amostragem teórica, sendo interrompida a coleta de dados no momento que se verificou que não eram acrescentados novos dados.

Neste estudo, os informantes foram os enfermeiros do Centro de Saúde (CS) de Vila Nova de Famalicão, que prestavam exclusivamente cuidados de saúde domiciliar há, pelo menos, um ano consecutivo no mesmo contexto geográfico, assim como os idosos e família a quem prestavam cuidados domiciliários. Participaram do estudo seis enfermeiras e sete pessoas idosas e respectivas famílias, indicadas pelas enfermeiras. A coleta dos dados foi realizada por meio de observação não participante durante 41 visitas domiciliárias a pessoas idosas, em um período consecutivo de 2 meses, acompanhando as enfermeiras do Centro de Saúde.

A observação teve os seguintes objetivos: perceber como a visita domiciliar era preparada antecipadamente; compreender as várias situações imprevistas que a enfermeira era confrontada e como as resolvia; identificar as competências que as enfermeiras mobilizavam no processo de prestação de cuidados; estruturar o guia de entrevistas semiestruturadas.

Desta observação resultou o registro de notas de campo, feito por tópicos no trajeto entre os domicílios, por meio de descrição detalhada de cada tópico no fim de cada período de visita.

Também foram efetuadas 12 entrevistas semiestruturadas com as enfermeiras e sete com as pessoas idosas e família e decorreram em um intervalo de tempo de cerca de seis meses. As entrevistas com a pessoa idosa e familiar realizaram-se no domicílio. As com as enfermeiras realizaram-se em uma sala privativa do Centro de Saúde. Foram todas audiogravadas e, posteriormente, transcritas. A questão que se apresentou na entrevista foi solicitar que as enfermeiras "descrevessem suas práticas", também foram feitas algumas perguntas durante a entrevista para que o investigador clarificasse os aspectos que não estavam completamente explícitos. A entrevista com a pessoa idosa e família baseou-se na solicitação sobre a perceção destes em relação aos cuidados de enfermagem prestados no domicílio.

Em relação aos aspectos éticos, todo o processo decorreu respeitando os princípios éticos, como a confidencialidade, o anonimato e o Consentimento Informado, assinado pelos participantes do estudo ; assim como a autorização escrita pelo Diretor do Centro de Saúde.

Os dados foram analisados com recursos do método de análise comparativa constante. As técnicas e ferramentas de análise incluíram os procedimentos de codificação aberta, axial e seletiva. Na codificação aberta, entre as várias possibilidades, optou-se pela microanálise, que consistituiu na codificação de todo o texto palavra a palavra ou linha a linha. A codificação axial permitiu agrupar e relacionar os conceitos anteriormente identificados. Na codificação seletiva o refinamento do processo possibilitou identificar a categoria central com a qual todas as categorias e subcategorias estavam relacionadas.

A ferramenta de apoio utilizada, durante a análise de dados foi o Software NVivo8®.

RESULTADOS

Neste processo, adquiriu particular relevância a interação que era desenvolvida entre as enfermeiras e a pessoa idosa/família. Por essa razão, a categoria central desta teoria substantiva foi denominada "construindo a relação em contexto domiciliar".

Uma teoria é mais que o conjunto de resultados, ela deverá explicar o fenômeno que se pretende compreender(13). Assim, em uma teoria dessa natureza (i.e., teoria substantiva), a compreensão do fenômeno exige o conhecimento do contexto. Este permitirá a compreensão da teia de relações das diversas categorias entre si e destas com a categoria central.

As pessoas idosas observadas neste estudo, 18 eram do sexo masculino e 23 do feminino e a média de idade foi de 78 anos. As habilitações das pessoas idosas do sexo masculino foi maioritariamente o primeiro ciclo do ensino básico e do feminino a maioria não tinha qualquer escolarização. O estado civil de viuvez foi o que mais caracterizou as pessoas idosas do sexo feminino e casado no sexo masculino. As mulheres eram todas aposentadas e apresentavam alterações da funcionalidade devidas principalmente a alterações das estruturas e/ou das funções corporais (14).

O apoio para estas pessoas provinha de familiares como sobrinhas, esposas e filhas. Também observamos uma boa relação entre vizinhos nomeadamente na colaboração com os cuidadores e com a pessoa idosa em pequenas tarefas.

A rede social formal, como as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) e as organizações católicas, sempre que solicitadas, ofereciam ajuda em nível de cuidados de higiene, fornecimento de alimentação e cuidados com as roupas. As habitações, em sua maioria, estavam inseridas em ambiente rural, tinham saneamento básico, eletricidade, água e também um pequeno quintal. Nestas residências, foram observadas algumas barreiras de acesso, como por exemplo, escadas ou pisos irregulares.

A distância dos domicílios visitados ao CS era variável, podendo distar até seis quilômetros, no entanto o número médio de visitas programadas pelas enfermeiras para um período de cerca de quatro horas era de 16 visitas.

A média de idade das enfermeiras informantes era de 35 anos, quatro eram licenciadas e duas especialistas em saúde comunitária. Em média, já prestavam cuidados domiciliares há nove anos e eram profissionais há 13 anos.

A relação da enfermeira com o idoso e família assumiu um papel central em todo o processo de cuidados, razão pela qual se constituiu como a categoria central. A relação é simultaneamente o contexto de todos os cuidados e também um instrumento terapêutico. Assumiu-se como um processo contínuo e progressivo, que se inicia quando da referenciação da pessoa idosa como alvo dos cuidados de enfermagem e se prolonga no tempo, mesmo após o problema inicial que originou a referencia ter sido solucionada.

A indefinição do tempo de duração desta relação com a pessoa idosa é motivada, pelo fato do processo de envelhecimento ser caracterizado por mudanças fisiológicas que vão exigindo adaptações progressivas em nível do autocuidado. As enfermeiras mantêm as visitas domiciliares, embora com uma periodicidade mais reduzida, desenvolvendo um papel de suporte e prevenção.

No contexto da relação que se vai desenvolvendo, as enfermeiras encontram o ambiente necessário a obtenção dos dados de que carecem para a compreensão das necessidades de cuidados dos idosos. Assim, à medida que o tempo decorre, a resposta das enfermeiras extravasa o objetivo inicial (curativo) e passa a incluir outras dimensões, com recurso a outras estratégias de intervenção e com outros objetivos terapêuticos.

Sendo assim, esta progressividade da relação e, consequentemente, do processo de cuidados é dependente da aceitação e dos laços de confiança que se desenvolveram entre as enfermeiras e as pessoas cuidadas. Situação percebida pelas enfermeiras por sinais como, ser-lhes dado conhecimento em que local pode encontrar a chave da porta de entrada, ser convidada para entrar em outros compartimentos da casa que não o quarto onde se desenvolvem os cuidados. Também pelo do ambiente não estar tão "arrumado", como se a enfermeira fosse uma visita, por partilharem as alegrias ou tristezas que surgem no ambiente familiar.

A relação de confiança e aceitação da presença dos enfermeiros permite que surjam mudanças de atitudes que promovam o bem-estar das pessoas cuidadas.

A solidez da categoria central "Construindo a relação em contexto domiciliar" é obtida pela relação e articulação com suas categorias satélites, "Organização estrutural dos cuidados domiciliares", "Avaliação em Contexto" e "Intervenção em Contexto", que também se relacionam e articulam entre si.

Na figura seguinte (Fig.1), são apresentadas de forma esquemática a dinâmica de inter-relação e articulação, entre a categoria central e as categorias satélites e, concomitantemente, as inter-relações e articulações entre estas últimas.


O processo de construção da relação não se desenvolve por intermédio de etapas sequenciais lineares e hierárquicas, mas antes por uma atitude profissional flexível que é gerida por meio de um plano de trabalho que está dependente de ser uma primeira visita ou visitas de continuidade em que as enfermeiras constroem e reconstroem a avaliação e adaptam as intervenções às situações de saúde-doença que se vão confrontando, assim como da disponibilidade e abertura que vão sentindo por parte dos sujeitos alvo de seus cuidados.

Todavia, cada uma dessas "etapas" (categorias), tem características muito próprias que são explicitadas a seguir, ainda que por, limitação de espaço, tenha sido possível fazer apenas a categoria "organização estrutural dos cuidados domiciliares".

Organização Estrutural dos Cuidados Domiciliares

A organização estrutural dos cuidados domiciliares consiste nas atividades desenvolvidas pela enfermeira, ainda dentro do Centro de Saúde, no sentido de preparar o processo de cuidados para um conjunto de pessoas ao longo de um dia de visitas domiciliares. Para efeito, a enfermeira começa reunindo a informação necessária, socorrendo-se de várias fontes de informação, tais como: registos pessoais e conhecimento global das pessoas que cuida, cartas de alta, solicitações dos utentes e solicitação do médico de família. A diversidade de fontes resulta da diversidade de situações com que antevê que se irá confrontar, mas também de ser primeira visita ou visita de continuidade. Em função das informações recolhidas e que se constituem na prática como os elementos necessários à primeira avaliação diagnóstica, a enfermeira planeja o seu dia de trabalho. Isto demonstra a inter-relação entre esta categoria e a avaliação em contexto. Em verdade, esta avaliação antecipatória poderá ser modificada pelos dados recolhidos em contexto.

Para além das fontes de informação ja referidas e com o objetivo de planificar o dia de trabalho, a enfermeira equaciona outras variáveis, nomeadamente: o alvo dos cuidados de enfermagem, materiais clínicos e a dispersão geográfica.

A Figura 2 apresenta esquematicamente a diversidade de fatores tidos em conta nesta fase do processo de cuidados, bem assim como a complexidade de relações entre eles.


Na organização dos cuidados, as enfermeiras têm algumas condicionantes fundamentais como o alvo dos cuidados, a dispersão geográfica e os materiais clínicos necessários para a prestação dos cuidados. Estes últimos são decididos, de acordo com os cuidados de enfermagem previstos e também com a experiência das enfermeiras em antecipar situações imprevistas.

O alvo dos cuidados de enfermagem determina os cuidados a serem desenvolvidos no domicílio, assim como a definição das prioridades. Estas, por sua vez, permitem decidir o circuito geográfico a ser feito e, paralelamente, os materiais clínicos a serem selecionados para a visita domiciliar. Três possibilidades colocam-se às enfermeiras relativamente como alvo dos cuidados: a pessoa idosa/família que ainda não tinha sido alvo de cuidados no domicílio, que foram designadas como primeira visita; a pessoa idosa/família que já foi visitada e carecia de continuidade de cuidados; e, finalmente, a pessoa idosa-família que teve visitas de continuidade, mas, na qual ocorreu qualquer eventualidade que exigiu uma visita fora do período que a enfermeira tinha definido.

Pessoa idosa – família primeira visita: a referenciação dessa pessoa poderá ser feita por meio de carta de alta enviada por uma instituição hospitalar, ou seja, resultante de um internamento da pessoa idosa e sua posterior alta com necessidade de cuidados continuados, ou por indicação do médico de família, ou ainda de solicitação direta de um familiar. A informação que, normalmente, é obtida está relacionada com o diagnóstico médico e necessidades de cuidados em nível curativo.

Pessoa idosa-família visita de continuidade: neste caso, existe um conhecimento cumulativo resultante das visitas anteriores, que permite compreender a situação saúde/doença, mas também o contexto sociofamiliar. Este conhecimento permite uma planificação dos cuidados que respondem à solicitação primária, mas, que respondem concomitantemente a outras necessidades que entretanto foram detectadas. As intervenções das enfermeiras incluem agora, para além das dimensões estritamente curativas, a orientação, prevenção, promoção e vigilância de saúde.

Situações urgentes: Esta situação ocorre quando surge qualquer complicação no tempo que medeia entre uma visita e outra, não estando, portanto, prevista. Como exemplo, a ausência de urina no coletor, uma exteriorização de um cateter ou algo de anormal, que é sentido ou observado pela pessoa idosa e/ou família e que precisa da intervenção direta da enfermeira. Estes casos, normalmente, são sinalizados por telefone, contato que a enfermeira na primeira visita disponibiliza.

Os materiais clínicos necessários dizem respeito ao conjunto de instrumentos cirúrgicos, compressas, adesivos, solutos, materiais de penso com ação terapêutica, material de punção, material de cateterização, entre outros. A decisão sobre a seleção deste material clínico é dependente do conhecimento que a enfermeira tem sobre as várias situações de saúde/doença que depara durante a visita, salvaguardando também a possibilidade de haver situações imprevisíveis que lhe podem surgir no decorrer desse complexo processo, que é atribuído com a designação de cuidados de enfermagem previstos e cuidados de enfermagem imprevistos.

A dispersão geográfica é outro problema que as enfermeiras precisam equacionar, de forma a rentabilizar o tempo que está definido pelas chefias do CS, assim como a disponibilidade de carro e seu motorista. Após esta análise, desenvolvem seu plano estabelecendo as prioridades em necessidades de saúde e, posteriormente, com seus conhecimentos da área geográfica e, com a opinião do motorista, é definido o circuito a ser realizado.

DISCUSSÃO

Nesta abordagem metodológica, a discussão foi realizada, cotejando os conceitos descobertos com os semelhantes de outros estudos. Assim, com base nos dois conceitos referidos salientam-se algumas das características do conceito central, "Construindo a relação em contexto familiar". Assim, a relação começa antes do 1º encontro e prolonga-se além do requerido pelo tratamento, funciona como contexto dos cuidados, logo facilitadora da avaliação sistemática. Como cuidado em si mesmo, o processo de construção da relação é progressivo, dependendo em grande parte da evolução da confiança, e, finalmente, este é um processo flexível.

Estas características estão presentes em alguns dos estudos mais recentes desenvolvidos em Portugal, embora em contextos diferentes. Por conseguinte, no estudo de Lopes (11), também no de Sapeta (15), de Frias (16) e de Oliveira (17), estão patentes as dimensões antecipatórias, ou seja, de fato a enfermeira recolhe informação, por meio das mais diversas formas e fontes, sobre as pessoas a quem vai prestar cuidados, iniciando, assim, a relação com as mesmas.

Nesses estudos, ficou evidenciada a dupla dimensão da relação, contexto dos cuidados e cuidado em si mesma. Vale salientar todavia que, contrariamente aos estudos referidos, este desenvolveu-se em contexto domiciliar. Logo, apesar das semelhanças, adquire particularidades dignas de realce, pois a enfermeira age como uma antropóloga, ou seja, precisa conhecer as particularidades de cada uma das famílias com quem contata e adaptar a sua intervenção com os mesmos.

Também a progressividade e a flexibilidade do processo de construção da relação são comuns a vários estudos, tais como os de Peplau (18), Orlando (19) e de Exley and Allen (20).

Em relação ao conceito "Organização Estrutural dos Cuidados Domiciliares", destaca-se, por um lado, a multifocalidade e, por outro, a decisão clínica. Relativamente ao primeiro e à semelhança do estudo de Lopes (11), pode se afirmar que o foco de atenção central das enfermeiras é a pessoa para quem foram requeridos os cuidados, também é verdade que, de acordo com as circunstâncias, as enfermeiras podem focalizarem-se na interface pessoa idosa-família, nas várias organizações que interagem com aquela família, como outros profissionais, outras realidades comunitárias e outras contingências relacionadas com a gestão de materiais clínicos e circuito geográfico com limitações de tempo, do meio de transporte e de motorista. Sendo assim, este conceito é realçado, adquirindo características muito próprias, marcadas pelo contexto comunitário dos cuidados.

Embora a decisão clínica seja referida neste conceito como aquela que mais se evidência, todavia é transversal a todos os outros. As características da decisão clínica tal como surgem, aproximam-se do modelo proposto por Jesus (21), apesar deste ter sido desenvolvido em contexto hospitalar. Deste modo, à semelhança do referido modelo, podemos afirmar que também aqui se percebe a presença de " [...] dois contínuos permanentes, interagir e interverir, os quais, por sua vez, possibilitam três outros contínuos: conhecer o utente, resolver problemas e avaliar" (19). Também no estudo de Lopes (11), bem como no de Sapeta (15) estavam presentes o entrelaçado entre interagir e intervir.

As opções metodológicas deste estudo estão intimamente relacionadas com a ausência de teorização sobre o processo de interação dos enfermeiros com a pessoa idosa/família em contexto domiciliar. Sendo assim, emergiu como categoria central o que foi denominado "Construindo a relação em contexto domiciliar" pelo fato da relação da enfermeira com o idoso e família ser central em todo o processo de cuidados. Considera-se que a relação é simultaneamente o contexto de todos os cuidados, assim como é um instrumento terapêutico.

Neste sentido, a solidez desta categoria central "Construindo a relação em contexto domiciliar" foi obtida pela relação e articulação com suas categorias satélites, "Organização estrutural dos cuidados domiciliares", "Avaliação em Contexto e Intervenção em Contexto", que também se relacionam e articulam-se entre si.

Vale ressaltar que os conceitos, "Avaliação em Contexto e Intervenção em Contexto", que emergiram da análise de dados, deverão ser explicitados em outro artigo que, posteriormente, será submetido para publicação, com o objetivo de compreender o fenômeno em estudo com base na teoria fundamentada nos dados que emergiram deste estudo. Como limitação deste estudo, indutivo, ressalta-se o fato de não se aplicar o principio da transferibilidade, pois este só foi feito num contexto predominantemente rural e apenas em quatro feguesias na região do norte de Portugal.

CONCLUSÃO

1 – A organização e estruturação das visitas domiciliárias inicia-se dentro do CS, onde a enfermeira tem que equacionar as prioridades dos cuidados em relação às pessoas que vai cuidar, o tempo disponível, o trajeto geográfico a ser escolhido e os materiais de uso clínico.

2 – Identifica-se que as estratégias das enfermeiras para que sejam aceites no ambiente domiciliário passam pela adequação das intervenções e da aceitação da sua presença no espaço íntimo de cada pessoa idosa.

3 – As atitudes desenvolvidas são fundamentalmente a promoção da participação da pessoa idosa/família na prática dos cuidados domiciliar.

4 – Os enfermeiros mobilizam os vários recursos através do conhecimento que adquirem no contexto comunitário e no contexto individual de cada pessoa cuidada.

5 – As intervenções centram-se fundamentalmente na interação para construir de forma contínua a relação em contexto domiciliar.

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  • *
    Cuidados domiciliarios: interacción del enfermero con la persona anciana/familia
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      17 Dez 2011
    • Aceito
      01 Ago 2012
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