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Qualidade de vida de cardiopatas durante a gestação e após o parto

Resumo

Objetivo

Analisar as mudanças na qualidade de vida em pacientes cardiopatas durante a gestação e após o parto, e estudar as correlações das características sociodemográficas e clínicas com medidas de qualidade de vida no puerpério.

Métodos

Estudo prospectivo que incluiu 33 gestantes selecionadas por amostra não probabilística. O instrumento de pesquisa foi o questionário SF-36. Para a comparação das médias dos escores dos domínios do SF-36 foi utilizado o test t de Student e o coeficiente de Spearman para possíveis correlações.

Resultados

Comparada à gestação, houve melhora na avaliação de qualidade de vida após o parto, exceto nos domínios estado geral de saúde e vitalidade. A variável planejamento da gestação indicou correlação positiva com o domínio saúde mental e negativa com aspectos emocionais no puerpério.

Conclusão

Após o parto houve melhora na qualidade de vida. Não planejar a gestação contribuiu melhorou a saúde mental, mas agravou os aspectos emocionais no puerpério.

Qualidade de vida; Gestação; Cardiopatias

Abstract

Objective

Analyze the changes in the quality of life of cardiac patients during pregnancy and after birth and study the correlations between the sociodemographic and clinical characteristics and quality of life measures during the postpartum period.

Methods

This prospective study included 33 pregnant women selected through non-probabilistic sampling. The research instrument was the SF-36 questionnaire. To compare the mean domain scores of the SF-36, Student’s t-test was used, as well as Spearman’s coefficient for possible correlations.

Results

In comparison with the pregnancy, the assessed quality of life improved after birth, except in the domains general health status and vitality. The variable pregnancy planning indicated a positive correlation with the mental health domain and a negative correlation with emotional aspects in the postpartum period.

Conclusion

After birth, the quality of life improved. Not planning the pregnancy contributed to improve the mental health, but aggravated the emotional aspects in the postpartum period.

Quality of life; Pregnancy; Heart diseases

Introdução

A gravidez é um momento singular na vida de uma mulher com repercussões socioeconômicas, psíquicas, fisiológicas e sexuais. No entanto, a associação da gestação a uma doença cardíaca potencializa os riscos obstétricos e fetais durante o ciclo gravídico-puerperal.(11. Regitz-Zagrosek V, Blomstrom Lundqvist C, Borghi C, et al. ESC Guidelines on the management of cardiovascular diseases during pregnancy: the Task Force on the Management of Cardiovascular Diseases during Pregnancy of the European Society of Cardiology (ESC). Eur Heart J. 2011; 32:3147-97.)

A ocorrência de doenças cardiovasculares na gestação oscila entre 0,2% a 4% em países ocidentais(22. Weiss BM, von Segesser LK, Alon E, Seifert B, Turina MI. Outcome of cardiovascular surgery and pregnancy: a systematic review of the period 1984- 1996. Am J Obstet Gynecol. 1998; 179(Pt 1):1643-53.) e as complicações estão relacionadas à ocorrência de eventos tromboembólicos, insuficiência cardíaca, arritmias, dentre outras.(33. Roos-Hesselink JW, Ruys TP, Stein JI, Thilén U, Webb GD, Niwa K, Kaemmerer H, Baumgartner H, Budts W, Maggioni AP, Tavazzi L, Taha N, Johnson MR,Hall R; ROPAC Investigators. Outcome of pregnancy in patients with structural or ischaemic heart disease: results of a registry of the European Society of Cardiology. Eur Heart J. 2013; 34(9):657-65.)No Brasil, a incidência de cardiopatia na gestação supera as estatísticas internacionais com o índice de 4,2%.(44. Sociedade Brasileira de Cardiologia. [Brazilian Consensus about cardiopathy and pregnancy: guidelines of the Brazilian Cardiology Society to pregnancy and family planning of the women with heart disease]. Arq Bras Cardiol. 1999; 72 Supl 3:1-25. Portuguese.) Esse percentual é atribuído à elevada incidência de doença reumática que acomete mulheres em idade reprodutiva e representa 80% das cardiopatatias na gestação, em países em desenvolvimento.(55. Watkins DA, Sebitloane M, Engel ME, Mayosi BM. The burden of antenatal heart disease in South Africa: a systematic review. BMC Cardiovasc Disord. 2012; 12:23.)

A doença reumática, por sua vez, é considerada a determinante etiológica mais importante das valvopatias, uma vez que a cicatriz do processo inflamatório que afeta todos os seguimentos do coração, durante os surtos de febre reumática, causa deformação das valvas cardíacas.(66. Wilkins GT, Weyman AE, Abascal VM, Block PC, Palacios IF. Percutaneous balloon dilatation of the mitral valve: an analysis of echocardiographic variables related to outcome and the mechanism of dilatation. Br Heart J. 1988; 60:299-308.)

As alterações cardiovasculares associadas à gravidez e o período pós-parto podem contribuir para deterioração clínica nestas pacientes e, muitas vezes, para o diagnóstico inicial de uma doença valvar.(77. Sartain JB; Anderson NL; Barry JJ; Boyd PT; Howat PW. Rheumatic heart disease in pregnancy: cardiac and obstetric outcomes. Intern Med . 2012; 42(9):978-84.) Neste período, o volume de sangue circulante aumenta em torno de 30 a 50% e concomitantemente há redução substancial da resistência vascular sistêmica e diminuição da pressão sanguínea. Essas alterações começam no primeiro trimestre e atingem o pico em 24 semanas de gestação, com aumento adicional no pós- parto imediato.(11. Regitz-Zagrosek V, Blomstrom Lundqvist C, Borghi C, et al. ESC Guidelines on the management of cardiovascular diseases during pregnancy: the Task Force on the Management of Cardiovascular Diseases during Pregnancy of the European Society of Cardiology (ESC). Eur Heart J. 2011; 32:3147-97.)

Contudo, na prática clínica, presume-se que as alterações hemodinâmicas que ocorrem durante a gestação, associadas à limitação das atividades diárias, podem ter impacto na qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS) dessas mulheres, apesar de qualidade de vida ser um conceito subjetivo e, como tal sua avaliação depende da perspectiva da cada indivíduo, em diferentes dimensões da vida.

A despeito da relevância da temática, pouca atenção tem sido dada à QVRS de gestantes portadoras de cardiopatias. Os estudos, em sua maioria, investigam qualidade de vida na gestação em mulheres saudáveis, adolescentes ou relacionando-a a outros processos patológicos.(88. Tirado MC, Bortoletti FF, Nakamura MU, Souza E, Soárez PC, Castelo Filho A, et al. [Quality of life of pregnant women infected with the human immunodeficiency virus (HIV) in the city of São Paulo]. Rev Bras Ginecol Obstet. 2014; 36(5):228-32. Portuguese.

9. Taşdemir S, Balci E, Günay O. Comparison of life quality of pregnant adolescents with that of pregnant adults in Turkey. Ups J Med Sci. 2010; 115(4):275-81.
-1010. Tendais I, Figueiredo B, Mota J, Conde A. [Physical activity, health-related quality of life and depression during pregnancy]. Cad Saúde Pública. 2011; 27(2):219-28. Portuguese.) No tocante à doença cardíaca o enfoque tem sido direcionado para as repercussões cardiovasculares e os desfechos clínicos da gestação.(1111. Brickner ME. Cardiovascular management in pregnancy: congenital heart disease. Circulation. 2014; 130(3):273-82.,1212. Heart disease in pregnancy: cardiac and obstetric outcomes. Subbaiah M; Sharma V; Kumar S; Rajeshwari S; Kothari SS; Roy KK; Sharma JB; Singh N. Arch Gynecol Obstet. 2013; 288(1):23-7.)

Nessa perspectiva, definiram-se como objetivos: analisar as mudanças na qualidade de vida em pacientes cardiopatas durante a gestação e após o parto, e estudar as correlações das características sociodemográficas e clínicas com medidas de qualidade de vida no puerpério.

Métodos

Trata-se de estudo descritivo, exploratório e prospectivo, realizado em ambulatório de ginecologia e obstetrícia de hospital público do interior de São Paulo. Uma amostra não probabilística foi formada por pacientes que compareceram ao ambulatório de ginecologia e obstetrícia da referida instituição, no período de novembro de 2011 a maio de 2014.

Estabeleceu-se como critérios de inclusão: ser gestante cardiopata a partir do segundo trimestre de gestação e estar realizando o pré-natal na instituição. A escolha desse período deu-se em virtude do aumento do volume sanguíneo, que atinge o pico em 24 semanas de gestação e chega a ser 40% maior que o volume pré-gravídico.(11. Regitz-Zagrosek V, Blomstrom Lundqvist C, Borghi C, et al. ESC Guidelines on the management of cardiovascular diseases during pregnancy: the Task Force on the Management of Cardiovascular Diseases during Pregnancy of the European Society of Cardiology (ESC). Eur Heart J. 2011; 32:3147-97.)Os critérios de exclusão foram: indisponibilidade para participar das duas entrevistas do estudo e incapacidade de comunicação verbal autorreferida.

Deste modo, foram selecionadas 39 participantes e destas 33 completaram o estudo. A descontinuidade de cinco gestantes ocorreu devido ao não comparecimento ao retorno institucional no puerpério e à ocorrência de aborto espontâneo sofrido por uma paciente.

Os dados foram coletados por meio de entrevistas individuais em ambiente privativo e antes da consulta médica, em dois momentos: o primeiro contato com as gestantes (M1) ocorreu durante a gestação a partir do segundo trimestre; e o segundo (M2) 40 dias após o parto, no retorno ambulatorial. Dados sociodemográficos, clínicos e obstétricos foram coletados durante as entrevistas, realizadas em ambiente privativo. E, quando necessário mediante consulta ao prontuário.

A avaliação de qualidade de vida foi obtida pelo Medical Outcomes Survey Short Form (SF-36), em sua versão validada para o português.(1313. Ciconelli RM, Ferraz MB, Santos W, Meinão I, Quaresma MR. [Brazilian-portuguese version of the SF-36. A reliable and valid quality of life outcome measure]. Rev Bras Reumatol. 1999; 39(3):143-50. Portuguese.) Este instrumento consta de 36 ítens, sendo que 35 ítens estão agrupados em oito domínios: capacidade funcional (10 ítens), aspectos físicos (quatro), dor (dois), estado geral de saúde (cinco), vitalidade (quatro), aspectos sociais (dois), aspectos emocionais (três), saúde mental (cinco)e mais uma questão de avaliação comparativa entre a avaliação da condição de saúde atual do indivíduo e a condição há um ano. Cada domínio deste instrumento apresenta valores em uma escala de zero a 100, com maiores valores indicando melhor estado de saúde percebido.

As variáveis quantitativas foram analisadas em termos de médias e desvios- padrão e as classificatórias apresentadas em tabelas contendo frequências absolutas (n) e relativas (%). Os escores do SF-36 foram expressos como medianas e amplitudes interquartílicas. Para a comparação das médias dos escores do SF-36 foi utilizado o test t de Student. As correlações de Spearman foram obtidas entre os domínios do SF-36 e as variáveis: idade, nível de instrução, renda mensal familiar, planejamento da gravidez e idade gestacional. Os dados foram analisados no programa Statistical Package for the Social Sciencies (SPSS), versão 19.0. Valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significante.

O estudo foi registrado no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Medicina de Botucatu sob o registro 3911 2011.

Resultados

Trinta e três gestantes participaram do estudo, apresentando idade média de 27,4 anos (intervalo de 14 a 43), sendo que 18,1% tinham menos de 20 anos, 45,5% tinham entre 21 e 30 anos e 36,4% tinham acima de 31 anos. Praticamente a metade das participantes (51,5%) concluiu o ensino médio e somente duas (6,1%) o ensino superior.

No que se refere a união conjugal, a maioria tinha companheiro (27; 81,8%), ou seja, era casada e amasiada. Além disso, observa-se que mais da metade das entrevistadas (69,7%) eram progenitoras. Dessa amostra, 15 participantes (65,2%) referiram ter apenas um filho, seis (26%) dois e as demais três (8,7%).

Do total de participantes, 15 (45,4%) não possuíam atividade profissional com vínculo empregatício, por serem estudantes (3; 9,0%), do lar (10;30,4%) e estarem desempregadas (2;6,0). Das participantes empregadas, 12 (36,4%) exerciam atividades profissionais manuais não especializadas e seis (18,2%) encontravam-se afastadas por problemas de saúde.

A renda familiar média foi de 1.502,00 (DP= ± 857,33), sendo o mínimo de R$ 300,00 e o máximo de R$ 4.000,00, demonstrando a grande variabilidade econômica dessa amostra.

No que se refere às variáveis clínicas e obstétricas (Tabela 1), 11 (33,3%) gestantes sofreram abortos prévios a esta gestação e 23 (69,7%) não planejaram a atual gestação. Além disso, 23 também (69,7%) já tinham engravidado, e destas, a maioria (73,9%) mais de uma vez. A idade gestacional média foi de 27 semanas (DP=± 2,69).

Tabela 1
Variáveis clínicas e obstétricas das gestantes cardiopatas

Outro dado evidenciado refere-se ao fato da maioria das gestantes (87,9%) não terem participado de grupos de planejamento familiar e não utilizarem método contraceptivo (84,8%). Em relação à etiologia das cardiopatias, 14 (42,4%) gestantes tiveram como patologia de base predominante as valvopatias, seguida da febre reumática (30,3%). Arritmias (12,2%), prolapso da valva mitral (6,0%), miocardiopatias (6,0%) e cardiopatia congênita (3,0%) foram menos frequentes.

Os resultados das medidas de QVRS obtidas pela aplicação do SF-36 estão apresentados na tabela 2. No primeiro momento (M1), correspondente ao período gestacional, a mediana dos domínios apresentou variação entre 33 e 72; e no M 2 (puerpério) entre 50 e 90. Após o parto houve melhora estatisticamente significante (p<0,05) em todos os domínios, exceto estado geral de saúde (p=0,4010) e vitalidade (p=0,1060). Menor melhora foi observada em aspectos sociais, estado geral de saúde e saúde mental, respectivamente. Em relação ao domínio dor, apesar da diferença estatisticamente significativa (p=0,037) houve pouca variabilidade após o parto, sem alteração da mediana.

Tabela 2
Medidas de qualidade de vida, relacionadas à saúde de gestantes cardiopatas durante a gestação (M1) e após o parto (M2)

Na tabela 3, ao se correlacionar os domínios do SF-36 com a variável planejamento da gravidez, utilizando-se o Coeficiente de Correlação de Spearman, houve correlação estatisticamente significante positiva como o domínio saúde mental (p=0,0277), mas negativa com aspectos emocionais (p=0,0202), após o parto. As demais correlações realizadas com variáveis idade, nível de instrução, renda e idade gestacional não foram apresentadas, em virtude de não apresentarem resultados estatisticamente significantes.

Tabela 3
Correlações lineares estimadas entre os domínios do SF-36 e a variável planejamento da gestação após o parto

Discussão

Os limites dos resultados do estudo referem-se ao tamanho amostral, apesar do amplo período de coleta de dados. Fato que pode ser atribuído às características regionais de atendimento da instituição onde foi realizada a pesquisa e o número reduzido de gestantes com cardiopatia foram dificuldades enfrentadas. Ademais, a realização das entrevistas em apenas dois momentos talvez não seja suficiente para retratar a magnitude de alterações passíveis de ocorrerem durante a gestação e o puerpério.

A avaliação de qualidade de vida tem sido um indicador utilizado para nortear práticas assistenciais e auxiliar na definição de estratégias de políticas públicas, no âmbito de promoção de saúde e prevenção de doenças. Porém, há uma escassez de estudos que avaliam qualidade de vida em gestantes de alto risco, portadoras de cardiopatia, apesar da relevância da temática, principalmente em países em desenvolvimento onde a febre reumática ainda não foi erradicada.

Predominaram, neste estudo, mulheres adultas, com companheiro, na faixa etária entre 21 e 30 anos e com nível médio completo de ensino. Dado em consonância com pesquisa realizada com gestantes saudáveis, em que o nível de instrução da maioria das participantes foi superior a 11 anos.(1414. Lapolla A, Di Cianni G, Di Benedetto A, Franzatti I, Napoli A, Sciacca L, et al. Quality of life, wishes and needs in women with gestacional diabetes: Italian DAWN Pregnancy Study. Int J Endocrinol. 2012; 2012:784726. doi: 10.1155/2012/784726.) O nível de instrução das gestantes é um dado relevante, haja vista que além de refletir a condição socioeconômica da mãe, está associado à mortalidade neonatal, principalmente em países em desenvolvimento.(1414. Lapolla A, Di Cianni G, Di Benedetto A, Franzatti I, Napoli A, Sciacca L, et al. Quality of life, wishes and needs in women with gestacional diabetes: Italian DAWN Pregnancy Study. Int J Endocrinol. 2012; 2012:784726. doi: 10.1155/2012/784726.,1515. Carvalho PI; Pereira PMH; Frias PG; Vidal SA; Figueiroa JN. [Risk factors for neonatal mortality in hospital coort of live births]. Epidemiol Serv Saúde. 2007; 16(3):185-94. Portuguese.)

Outro dado relevante evidenciado na presente investigação refere-se ao fato da maioria das participantes ter companheiro e não utilizar métodos contraceptivos. A indicação de contracepção, nestas pacientes, tem como objetivo reduzir a morbidade e letalidade materno-infantil no ciclo gravídico-puerperal.(1616. Regitz-Zagrosek V, Gohlke-Bärwolf C, Iung B, Pieper PG. Management of cardiovascular diseases during pregnancy. Curr Probl Cardiol. 2014; 39(4-5):85-151.)

A utilização de contraceptivos hormonais de baixo risco e alta eficiência é o preconizado na literatura para estas participantes. Não obstante, para portadoras de lesões valvares há restrições à utilização do dispositivo intra-uterino, devido ao risco de infecção e sangramento. Em portadoras de cardiopatias de alto risco a indicação é a contracepção, por meio da laqueadura tubárea.(1717. Tedoldi CL. [Guidelines of the Brazilian Society of Cardiology for heart disease pregnancy carries woman]. Arq Bras Cardiol. 2009; 93(6 Supl 1):e110-78. Portuguese.) No contexto desta pesquisa há que se considerar a possibilidade dessas mulheres terem engravidado por não se adaptarem ao método indicado ou não terem acesso a outros. Além disso, aspectos subjetivos, culturais e psicossociais, que permeiam a gestação de alto risco, também devem ser considerados.

Com relação à etiologia das cardiopatias, as valvopatias foram à principal complicação, provavelmente associada à ocorrência de febre reumática na infância. Resultado em consonância com estudo brasileiro, realizado em hospital especializado em cardiologia, com 650 gestantes cardiopatas. Nesse estudo, 50% das participantes apresentavam valvopatia reumática.(1818. Avila WS, Rossi EG, Ramires JAF, Grinberg M, Bortolotto MR, Zugaib M, et al. Pregnancy in patients with heart disease: Experience with 1,000 cases. Clin Cardiol. 2003; 26(3):135-42.)

Na presente investigação buscou-se investigar a QVRS das gestantes com cardiopatia em virtude da complexidade clínica e obstétrica destas pacientes, que podem repercutir na percepção de QVRS. Durante a gestação, dentre os oito domínios do SF-36, os piores avaliados foram aspectos emocionais (33,3), sociais (37,5) e vitalidade (40). Os demais domínios apresentaram variação entre 50 (dor) e 72 (saúde mental). Resultados divergentes foram obtidos em estudo que investigou QVRS em gestantes cardiopatas, atendidas em hospital público e de alta complexidade em cardiologia. Nessa pesquisa transversal os domínios com pior avaliação foram saúde/funcionamento e socioeconômico; e com melhor avaliação o psicológico/espiritual e família.(1919. Meneguin S, Xavier CL. [Quality of life in pregnant with heart disease]. Qualidade de vida em gestantes com cardiopatia. Texto contexto enferm. 2013; 22(3):811-18. Portuguese.) Tais dados evidenciam que aspectos econômicos, socioculturais, psicológicos e de saúde influenciam a percepção das dimensões de qualidade de vida, neste momento peculiar e especial na vida de uma mulher.

Ao se comparar as medidas de QVRS após o parto, constatou-se que houve melhora em todos os domínios do SF-36, exceto para aspecto geral de saúde e vitalidade. As questões do domínio vitalidade do SF-36 estão relacionadas a vigor, energia, cansaço e esgotamento. No que se refere ao domínio aspecto geral de saúde as questões objetivam avaliar a percepção do paciente em relação à sua saúde global. Nesse sentido, podemos levantar a hipótese que os resultados deste estudo foram influenciados pelas demandas que a maternidade exige da mulher, neste período, possivelmente também associadas à cardiopatia.

Porém, estes resultados são divergentes de estudo prospectivo realizado com 245 gestantes no terceiro trimestre em que a gravidez foi associada à pior percepção geral de saúde em mulheres com diabetes mellitus tipo I e gestacional. Após o parto, piora significativa dos aspectos físicos e emocionais foi observada somente em mulheres com diabetes gestacional.(2020. Dalfrá MG, Nicolucci A, Bisson T, Bonsembiante B, Lapolla A. Quality of life in pregnancy and post-partum: a study in diabetic patients. Qual Life Res. 2012; 21(2):291-8.)

Para responder o segundo objetivo deste estudo, foram feitas correlações do SF-36 com as variáveis idade, nível de instrução, renda e idade gestacional. No entanto, somente a variável planejamento da gestação apresentou correlação estatisticamente significante positiva com o domínio saúde mental e negativa com aspectos emocionais no puerpério. A gestação de alto risco traz para a mulher dificuldades de adaptações emocionais exigidas pelo novo papel e que podem ter repercussão após o parto, quando outras demandas são incorporadas à responsabilidade de ser mãe.(2121. Quevedo MP, Lopes CMC, Lefévre F. [The meanings of maternity to high-risk pregnant women with valvar heart disease and diabetes]. Rev Bras Crescimento Desenvol Hum. 2006; 16(1): 2-21. Portuguese.) Portanto, o manejo da gravidez nestas circunstâncias demanda a construção de uma assistência integral, humanizada, pautada no acolhimento e com continuidade no puerpério.

Neste contexto, destaca-se a importância das intervenções que devem ser realizadas pelos serviços de atenção primária, direcionadas à promoção da saúde, para que essas mulheres tenham o suporte necessário para cuidar de si e do concepto. Além disso, o estabelecimento de uma escuta ativa, aliada às práticas de comunicação também pode contribuir para o desvelamento de questões, ainda pouco compreendidas, e que levam uma mulher cardiopata engravidar, sem planejamento.

A importância do planejamento do momento mais adequado para engravidar em portadoras de cardiopatias fundamenta-se na premissa de que o tromboembolismo é considerado a principal causa de morte durante a gestação em cardiopatas.(2222. Horellou MH, Plu-Bureau G, Lepercq J. [Venous thromboembolism and pregnancy]. Rev Med Interne. 2015; 36(3):219-24.Review. French.,2323. Roche-Kelly E, Nelson-Piercy C. Managing cardiovascular disease during pregnancy: best practice to optimize outcomes. Future Cardiol. 2014; 10(3):421-33.) A doença valvar reumática favorece condições de risco à ocorrência deste evento na gestação, em valva natural e em prótese valvar. Neste contexto, a anticoagulação, muitas vezes inevitável, pode acarretar efeitos colaterais presumidos para a mãe e para o feto.(2424. Nanda S, Nelson-Piercy C, Mackillop L. Cardiac disease in pregnancy. Clin Med. 2012; 12(6):553-60.)

Dessa maneira, destaca-se a importância do planejamento familiar como parte integrante das ações de atenção à mulher, pautadas no princípio de integralidade de assistência. Este programa destina-se não somente a orientação de concepção, contracepção e sexualidade, mas também à prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. E difere do controle de natalidade, que tem como propósito somente instituir medidas para evitar a gravidez, desconsiderando a autonomia da mulher em relação aos seus direitos reprodutivos.

Embora o planejamento familiar seja considerado um dever do Estado, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) estas ações são desenvolvidas em alguns estados ou regiões, principalmente pela Estratégia de Saúde da Família (ESF) e instituições públicas.(2525. Moura LN Bezerra, Gomes KRO. [Family planning: use of the health services by young people with experience of pregnancy]. Ciênc Saúde Coletiva. 2014; 9(3):853-63. Portuguese.)

No entanto, ainda que presente nestes serviços de saúde, essa atividade, que deveria ser prioridade, acaba ocupando um plano secundário, em virtude da ênfase dada ao ciclo gravídico-puerperal, pelos profissionais de saúde.(2626. Osis MJ, Faúndes A, Makuch MY, Mello MB, Sousa MH, Araújo MJO. [Family planning in Brazil today: an analysis of recent research]. Cad Saúde Pública. 2006; 22(11):2481-90. Portuguese.) Fato que, provavelmente, justifique a pouca adesão das participantes, deste estudo, aos serviços de planejamento familiar.

Conclusão

Os resultados deste estudo indicam que a percepção de qualidade de vida relacionada à saúde em gestantes com cardiopatias melhorou após o parto na maioria dos domínios. A variação pouco expressiva do domínio dor no puerpério não alterou a mediana, apesar de estatisticamente significante. Na correlação com as variáveis sociodemográficas e clínicas, não planejar a gestação contribuiu para melhorar o domínio a saúde mental das participantes, mas agravou os aspectos emocionais, após o parto.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2016
  • Aceito
    14 Abr 2016
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