Acessibilidade / Reportar erro

Precarização do trabalho da enfermeira: militância profissional sob a ótica da imprensa

Precarización del trabajo de enfermeras: militancia profesional bajo la óptica de la prensa

Resumo

Objetivo

Analisar a militância profissional de enfermeiras frente à precarização do trabalho apresentada pela mídia impressa baiana nas décadas de 1970 e 1980.

Métodos

Pesquisa histórico-documental, com abordagem qualitativa, cuja fonte foi o jornal baiano A Tarde. O recorte temporal abarca marcos históricos como a criação do Conselho Federal de Enfermagem e suas seções regionais (1973); a criação do Sindicato dos Enfermeiros do Estado da Bahia (1981); e a aprovação da Lei do Exercício Profissional (1986). O contexto nacional era o período da ditadura militar, que adotava um modelo de proteção social e caminhava para a abertura política Utilizou-se os termos de busca “Enfermeira” e “Enfermeiro”, resultando em 24 reportagens. A análise de conteúdo na modalidade temática embasou a organização dos dados.

Resultados

A militância profissional de enfermeiras frente à precarização do trabalho se fez presente na mídia por meio das entidades representativas, evidenciada pelos seguintes aspectos: Desvalorização da força de trabalho, marcada pela baixa remuneração e substituição de enfermeiras por pessoal sem qualificação adequada; Sobrecarga de trabalho, evidenciada pelo subdimensionamento e qualificação deficiente; e busca por determinação legal da jornada de trabalho e do piso salarial.

Conclusão

As enfermeiras utilizaram-se da mídia para denunciar e conscientizar a sociedade sobre os determinantes da precarização do trabalho, porém, as ações efetivas de combate foram pouco abordadas. A atuação militante esteve concentrada no âmbito das entidades representativas, não sendo evidenciado um movimento coletivo das enfermeiras.

Ativismo político; Política; Jornalismo; Emprego; Enfermeiras e Enfermeiros

Resumen

Objetivo

Analizar la militancia profesional de enfermeras frente a la precarización del trabajo presentada por los medios de comunicación impresos del estado de Bahía en la década de los setenta y ochenta.

Métodos

Investigación histórica y documental, con enfoque cualitativo, cuya fuente fue el periódico bahiano A Tarde. El recorte temporal abarca marcos históricos como la creación del Consejo Federal de Enfermería y sus secciones regionales (1973), la creación del Sindicato de Enfermeros del Estado de Bahía (1981) y la aprobación de la Ley de Ejercicio Profesional (1986). El contexto nacional era el período de la dictadura militar, que adoptaba un modelo de protección social y caminaba hacia la apertura política. Se utilizaron los términos de búsqueda “enfermera” y “enfermero”, que dio como resultado 24 reportajes. La organización de los datos se basó en el análisis de contenido en la modalidad temática.

Resultados

La militancia profesional de enfermeras frente a la precarización del trabajo se hizo presente en los medios de comunicación a través de las entidades representativas, evidenciada por los siguientes aspectos: desvalorización de la fuerza de trabajo, marcada por la baja remuneración y reemplazo de enfermeras por personal sin la cualificación adecuada; sobrecarga de trabajo, demostrada en el subdimensionamiento y cualificación deficiente; y la búsqueda de determinación legal de la jornada de trabajo y del piso salarial.

Conclusión

Las enfermeras utilizaron los medios de comunicación para denunciar y concientizar a la sociedad sobre los determinantes de la precarización del trabajo, pero las acciones efectivas del combate fueron poco abordadas. La actuación militante estuvo concentrada en el ámbito de las entidades representativas y no se observó un movimiento colectivo de enfermeras.

Activismo político; Política; Periodismo; Empleo; Enfermeros

Abstract

Objective

To analyze the professional militancy of nurses in the face of the precariousness of the work, presented by the Bahian print media in the 1970s and 1980s.

Methods

Historical-documentary research, with a qualitative approach, whose source was the Bahia newspaper A Tarde. The time continuum includes historical landmarks, such as the: creation of the Federal Nursing Council and its regional sections (1973); creation of the Union of Nurses of the State of Bahia (1981); and the approval of the Professional Exercise Law (1986). The national context was the period of the military dictatorship, which adopted a model of social protection and moved towards a political opening. The search terms “Enfermeira” and “Enfermeiro” were used, resulting in 24 reports. The content analysis in the thematic modality supported the organization.

Results

The professional nurse militancy confronted by the precariousness of work was present in the media through the representative entities, evidenced by the following aspects: devaluation of the workforce, marked by low remuneration and replacement of nurses by personnel without adequate qualification; work overload, evidenced by understaffing and poor qualification; and the search for legal determination of the working day and minimum wage.

Conclusion

Nurses used the media to denounce and make society aware of the determinants of the precariousness of work, but the effective actions of combat were minimally approached. The militant activity was concentrated in the scope of the representative entities, but did not demonstrate a collective movement of the nurses.

Political activism; Politics; Journalism; Employment; Nurses

Introdução

O trabalho, segundo a filosofia marxista,11. Marx K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural; 1996.Vol 1. é compreendido como a interação entre o homem e o mundo natural, com o objetivo de transformar a natureza para alcançar determinado propósito que satisfaça suas necessidades. No campo da saúde, o objeto central reside em atender às necessidades individuais e coletivas, visando à promoção e manutenção da vida. Produz-se saúde por meio do ‘trabalho vivo em ato’, ou seja, o cuidado à vida é obtido no exato momento em que o trabalho humano é executado.22. Merhy EE, Franco TB. Trabalho em saúde [Internet]. Rio de Janeiro: EPJV/FIOCRUZ; 2005. [citado 2019 Abr 15]. Disponível em: http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2014/setembro/23/Trabalho-em-Saude-Merhy--Franco.pdf.
http://portalarquivos2.saude.gov.br/imag...

Assim, o trabalho da enfermeira se insere no campo da saúde enquanto produtor de serviço com valor de troca, em um processo histórico de construção das práticas de cuidado. Na sua origem, a enfermagem era exercida majoritariamente por mulheres e sua prática vinculada aos afazeres domésticos, de modo que, mesmo após a inserção dessa profissional no mercado de trabalho, o baixo valor social e financeiro a ela atribuído guarda relação com a desvalorização do trabalho feminino.33. Melo CM, Carvalho CA, Silva LA, Leal JA, Santos TA, Santos HS. [Nurse workforce in state services with direct management: Revealing precarization]. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2016;20(3):1-8. Portuguese. Com o desenvolvimento profissional e qualificação do ensino outras características foram associadas à enfermagem como ser amistosa, ter capacidade de tomar boas decisões e realizar multitarefas.44. Marcinowicz L, Andersson EK, Bohman DM, Hjelm M, Skarbaliene A, Shpakou A, Kalinowska P, Jamiolkowski J. Nursing students’ perception of the professional nurse’s role in four European countries. Int Nurs Rev. 2018 Oct 31. doi: 10.1111/inr.12494.

Assim, a construção da imagem profissional é contínua e depende do contexto histórico em que se insere.44. Marcinowicz L, Andersson EK, Bohman DM, Hjelm M, Skarbaliene A, Shpakou A, Kalinowska P, Jamiolkowski J. Nursing students’ perception of the professional nurse’s role in four European countries. Int Nurs Rev. 2018 Oct 31. doi: 10.1111/inr.12494. No recorte temporal deste estudo, o contexto das últimas décadas da ditadura e seu caminhar para a reabertura política influenciaram a criação das entidades representativas da profissão e maior participação das mulheres na política e na mídia.55. Sousa RC. Associativismo feminino e participação política: um estudo sobre as bases sociais de apoio à Ditadura Militar em Curitiba (1964-1985). Rev Est Históricos. 2018;31(65):389-412.

Contudo, os anos 1970 foram difíceis para o mercado de trabalho na área de saúde, cujo modelo estava em transformação devido ao que se tornaria o movimento de reforma sanitária nos anos 1980. Nesse ínterim, diante do contexto de desvalorização profissional e precarização das condições de trabalho em enfermagem, o engajamento político e a participação em entidades representativas podem apontar novos caminhos, além de contribuir para a elaboração de estratégias promotoras de valorização e reconhecimento profissional.

Estudos comprovam que a sociedade tem visão negativa das profissões da área de enfermagem e que as enfermeiras não possuem a tradição de comunicar à sociedade a importância da sua atuação, tampouco informações esclarecedoras sobre a profissão, contribuindo para a manutenção da invisibilidade e o desconhecimento acerca da sua prática.66. Nageshwar V. Public Perception of nursing as a profession. Int J Res Applied Sci Biotechnol. (IJRASB). 2018; 5(5):15-19. Repensar o status da profissão perpassa pela reflexão que a sociedade tem dessa categoria e da imagem que os próprios profissionais mantêm sobre si.

Nessa perspectiva, destaca-se a contribuição da mídia para a manutenção dessa imagem, tendo em vista que os diversos meios de comunicação atuam como instrumentos formadores de opinião pública. A mídia tem a capacidade de interligar a profissão e o grande público, apresentando informações que colaboram com a construção da imagem profissional que a sociedade tem da enfermeira.

Ante ao exposto, o estudo teve como objetivo analisar a militância profissional de enfermeiras frente à precarização do trabalho apresentada pela mídia impressa baiana nas décadas de 1970 e 1980.

Métodos

Pesquisa histórica com abordagem qualitativa, baseada na teoria da História Social.77. Barros JD. O projeto de pesquisa em história: Da escolha do tema ao quadro teórico. Petrópolis: Vozes; 2017. Foram utilizadas como fonte de dados as reportagens publicadas no Jornal A Tarde, principal meio de comunicação impresso veiculado no estado da Bahia no período delimitado pelo estudo, as décadas de 1970 e 1980.88. Miranda NM. Jornalistas em cena, artistas em pauta: Análise da cobertura jornalística dos espetáculos teatrais baianos realizados pelos jornais A Tarde e Correio da Bahia na década de 90 [dissertação]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 2001. Foram selecionadas as reportagens que abordavam a militância profissional de enfermeiras no campo do trabalho.

O estudo voltou-se para estado da Bahia, unidade federativa reconhecida historicamente pela presença de força militante e atuação política engajada de enfermeiras baianas,99. Almeida DB, Silva GT, Freitas GF, Padilha MI, Almeida IFB. [Discursive archaeology: constituting knowledge of militant nurses in trade associations]. Rev Bras Enferm. 2018;71(3):1194-201. Portuguese.

10. Almeida DB, Silva GT, Queiros PJ, Freitas GF, Almeida IF. [Life story of Josicélia Dumêt Fernandes, teacher and nurse]. Rev Enferm UERJ. 2017; 25(1):1–5. Portuguese.

11. Almeida DB, Silva GT, Queiros PJ, Freitas GF, Almeida IF. [Lúcia Esther Duque Moliterno: knowing the life story of a militant nurse]. Rev Enferm UERJ. 2017;25:e13345:1-5.Portuguese.
-1212. Oliveira NL. História das diretoras da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (1946-1956) [dissertação]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 2016. além de ser o estado que congrega o maior número de enfermeiras no nordeste e quarta no país,1313. Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). Enfermagem em números [Internet]. Salvador; COFEN; 2018. o que pode demonstrar a expressividade da pesquisa.

Os determinantes que motivaram a escolha do recorte temporal foram: Criação do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) e suas seções regionais (COREN), em 1973, órgão regulamentador e fiscalizador da profissão; criação do Sindicato dos Enfermeiros do Estado da Bahia (SEEB), em 1981, órgão com reponsabilidade legal para atuar em defesa dos direitos trabalhistas e aprovação da Lei do Exercício Profissional, em 1986.

No cenário nacional, destaca-se a participação política da sociedade civil organizada na Reforma Sanitária, movimento social iniciado em meados de 1970, marcado por denuncias aos problemas do setor saúde e por propostas de transformação do sistema de saúde vigente.1414. Rodriguez Neto E. A reforma sanitária e o sistema único de saúde: suas origens, suas propostas, sua inplantaçäo, suas dificuldades e suas perspectivas. Brasil. Ministério da Saúde. Coordenação de Informação, Educação e Comunicação. Núcleo de Estudos em Saúde Pública – NESP Incentivo à Participação Popular e Controle Social no SUS: textos técnicos para conselheiros de saúde. Brasília: IEC; 1994. p.7-17.

Para o autor,1414. Rodriguez Neto E. A reforma sanitária e o sistema único de saúde: suas origens, suas propostas, sua inplantaçäo, suas dificuldades e suas perspectivas. Brasil. Ministério da Saúde. Coordenação de Informação, Educação e Comunicação. Núcleo de Estudos em Saúde Pública – NESP Incentivo à Participação Popular e Controle Social no SUS: textos técnicos para conselheiros de saúde. Brasília: IEC; 1994. p.7-17. a década de 1980 foi de grande impulsão para a Reforma Sanitária devido à ampla mobilização da sociedade na luta pelo direito à saúde. Essa fase histórica foi caracterizada como um tempo de reformas que reverberou nas políticas sociais e na vida da sociedade, marcada pela democratização social e econômica, sincrônica à democratização política.

Por se tratar de um estudo documental e que utiliza documentos públicos e de livre acesso, houve a dispensa da submissão do projeto de pesquisa ao Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos (CEPSH), conforme normas e diretrizes estabelecidas pelo referido órgão e definidas na Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.

Os dados foram coletados entre setembro e outubro de 2017, por meio do levantamento de notícias publicadas no jornal A Tarde, disponíveis para acesso a partir de computadores localizados na Biblioteca Pública do Estado da Bahia. Todo o acervo do periódico encontra-se digitalizado, e assim, as buscas foram realizadas em todas as 7.300 edições do jornal, publicadas diariamente, no período de 01/01/1970 a 31/12/1989, utilizando-se os termos “Enfermeira” e “Enfermeiro”, totalizando 1.666 reportagens. Destas, 53 abordavam a militância profissional de enfermeiras, dentre as quais 24 apresentavam a militância profissional de enfermeiras no campo do trabalho. As demais publicações abordavam a militância profissional no campo da formação (16 reportagens) e da institucionalidade (28 reportagens), as quais não serão discutidas no presente estudo.

A análise e interpretação do material seguiram a proposta da análise de conteúdo, na modalidade temática.1515. Franco ML. Análise de conteúdo. 4a ed. Brasília (DF): Liber Livro; 2012. Após decodificação do material foram obtidas seis unidades de análise, as quais foram organizadas e agrupadas por temas, dando origem a três categorias, conforme demonstrado na figura 1.

Figura 1
Categorias temáticas e unidades de análise correspondentes

É ainda relevante salientar que a utilização do termo enfermeira, no feminino, ocorreu por opção pessoal dos autores desse estudo. A partir do entendimento destes, os determinantes de contexto da gênese da profissão percorrem aspectos relacionados ao gênero e às influências religiosa e militar, as quais evidenciam a divisão social e sexual do trabalho no campo da enfermagem. Assim, a figura feminina, juntamente com as diversas questões imbricadas com este gênero no transcorrer da história, traz elementos para a compreensão do desenvolvimento da profissão enfermeira e do modo como esta é reconhecida na atualidade.

Resultados

Apreendeu-se que a militância profissional das enfermeiras se fez presente na mídia no combate à precarização do trabalho, evidenciada pelos seguintes aspectos: Desvalorização da força de trabalho; Sobrecarga de trabalho; e Jornada de trabalho e Piso salarial. O quadro 1 apresenta uma amostra dos achados, recortes jornalísticos, que exemplificam as Categorias temáticas.

Quadro 1
Precarização do trabalho da enfermeira

Discussão

As evidências apresentadas podem servir de subsídio para a categoria refletir sobre a importância da sua atuação, bem como acerca da necessidade de maior envolvimento nos espaços coletivos das organizações representativas. As enfermeiras precisam se conscientizar do seu papel e compreender os interesses que permeiam o exercício profissional, de modo que se sintam incentivadas a se mobilizarem pelo reconhecimento social e financeiro da profissão.

Os resultados apontam que, no período investigado, a enfermagem brasileira enfrentava uma grave crise no âmbito do trabalho. A priorização dos interesses mercadológicos em detrimento da qualidade de assistência prestada, o não cumprimento da legislação existente e a ausência de determinação legal que contemplasse a qualificação necessária para o exercício profissional emergiram como determinantes para a precarização do trabalho.

O período político era complexo e, no contexto da saúde, os profissionais e a população sofriam com a maior ênfase dada no ordenamento jurídico da saúde e nas políticas sanitárias adotadas pelos governos militares, que excluíam qualquer participação social.1616. Ramos BE, Miranda Netto EB. [Historic of the health normative system in Brazil: an analysis of the construction of health legal system after 1988]. Rev Debates. 2018;11(1):43-66. Portuguese.

A desvalorização da força de trabalho da enfermeira evidenciou-se após denúncias de baixa remuneração e substituição por pessoal de nível médio e até mesmo sem qualificação para o desempenho de tais funções, como era o caso dos atendentes de enfermagem.

O predomínio de mulheres na profissão, a divisão social e técnica do trabalho, a ausência de legislação sobre o piso salarial e jornada de trabalho, a existência de um exército de reserva e a incipiente organização política das enfermeiras contribuem para redução do valor da força de trabalho e, consequentemente, favorecem a desvalorização profissional.33. Melo CM, Carvalho CA, Silva LA, Leal JA, Santos TA, Santos HS. [Nurse workforce in state services with direct management: Revealing precarization]. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2016;20(3):1-8. Portuguese.

O trabalho da enfermeira tem origem no trabalho doméstico, historicamente atribuído a mulheres e desvalorizado social e economicamente. Assim, embora a profissionalização da enfermagem tenha concedido às enfermeiras um status de profissão e operado mudanças na sua prática, o mercado de trabalho manteve a estrutura de dominação social baseada na relação de gênero, conservando as condições de subordinação.1717. Lopes MJ. O trabalho da enfermeira: nem público, nem privado feminino, doméstico e desvalorizado. Rev Bras Enferm. 1988;41(3-4):211–7.

Além disso, as qualificações do feminino, entendidas socialmente como relacionadas à enfermagem através dos afazeres domésticos, desqualificam os postos de trabalho, pois conduzem ao equivocado entendimento de que tais atividades podem ser realizadas aplicando-se apenas os conhecimentos inerentes às mulheres.1818. Marcondes WB, Otenberg L, Portela LF, Moreno CR. O peso do trabalho leve. Rev Ciênc Hoje. 1987;17(2):91–101. Tal concepção, somada aos interesses capitalistas, norteou a contratação de mão de obra na área da enfermagem que, conforme descrito nos resultados, chegou a contar com 70% de pessoal sem qualificação.

Com a expansão da rede de serviços de saúde no Brasil, houve uma demanda por profissionais de enfermagem para compor os novos postos de trabalho; porém, inúmeras instituições optaram pela contratação de mão de obra com custos inferiores, substituindo as enfermeiras por pessoal sem formação universitária.1919. Santos I, Souza AM, Galvão EA. Subsídios para formulação de uma política de profissionalização para o pessoal de enfermagem sem qualificação específica. Rev Bras Enferm. 1988;41(1):75–80 Assim, formou-se um enorme contingente de reserva de enfermeiras não inseridas no mercado de trabalho, as quais, diante de alguma oportunidade de contratação, sujeitavam-se à precarização dos vínculos e à baixa remuneração, pois, além de competirem com seus pares, enfrentavam a concorrência desleal com um grupo heterogêneo e menos qualificado.

O exército de reserva contribuiu ainda para reduzir o valor da força de trabalho, pois não existia concorrência entre os empregadores diante da oferta de profissionais. Agrava essa situação a incipiente organização política das enfermeiras, principalmente no que diz respeito ao engajamento sindical, o que dificultava a mobilização em prol da melhoria das condições laborais.2020. Santos TA. Valor da força de trabalho da enfermeira [dissertação]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 2012.

Nesse sentido, confirma-se o argumento de que a divisão técnica do trabalho na enfermagem não só contribui para a desvalorização do trabalho da enfermeira, como também coopera para a simplificação do trabalho da enfermeira e perda da singularidade entre as profissões.2020. Santos TA. Valor da força de trabalho da enfermeira [dissertação]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 2012. Fragmentar o trabalho em funções simples anula a diferença de atribuições entre enfermeiras e os demais profissionais, uma vez que indivíduos menos qualificados exercem a mesma função que outros, com formação superior.

Outro ponto abordado diz respeito às denúncias de sobrecarga de trabalho em decorrência da baixa qualidade dos profissionais praticantes da enfermagem e da quantidade insuficiente de pessoal para o atendimento da demanda. O contexto produtivo faz surgir o fluxo tensionado, que emerge na contradição entre a tensão do fluxo de produção e a redução da mão de obra. O paradigma do fluxo tensionado2121. Durand JP. A refundação do trabalho no fluxo tensionado. Tempo Soc. 2003;15(1):139–58. torna-se evidente diante da cobrança desproporcional para o atendimento da demanda em relação às condições ofertadas, gerando sobrecarga e intensificação do trabalho.

Verifica-se, novamente, o efeito da desvalorização do trabalho da enfermeira diante da perda de espaço para outros profissionais. Essa prática, além de resultar na baixa qualidade dos serviços prestados, também contribui para a sobrecarga do trabalho da enfermeira, que passa a acumular tarefas diante da inexistência de outros profissionais com a mesma formação.

Ademais, diante de quantitativo insuficiente, a enfermeira sofre com a intensificação da jornada de trabalho, materializada não apenas pelo aumento da produção em um menor período laboral, mas também pelo acúmulo de vínculos empregatícios para compensar os baixos salários e pelo cumprimento de horas extras para sanar o déficit de profissionais.2020. Santos TA. Valor da força de trabalho da enfermeira [dissertação]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 2012.

Destaca-se ter sido justamente com o propósito de combater essa precarização que as enfermeiras engendraram uma luta pela regulamentação da jornada de trabalho e remuneração mínima. Estudos assinalam que a luta pela determinação da jornada de trabalho visa à conservação do único bem que as enfermeiras possuem e apresenta-se como uma das formas de impedir a desvalorização da força de trabalho.2222. Santos TA, Silva OS, Melo CM, Costa HO. [Meaning of the regulation of work day in nursing]. Rev Enferm UERJ. 2013;21(2):265–8. Portuguese. Nesse sentido, essa reivindicação deve vir acompanhada de melhores salários, a fim de evitar o desgastante acúmulo de vínculos e evitar outras formas de precarização.

Embora as enfermeiras tenham conquistado avanços, a precarização do trabalho persiste como um problema cuja solução ainda demanda grande empenho da categoria. As enfermeiras continuam vivenciando longas jornadas, sobrecarga de trabalho e vínculos precários, além de receberem os salários mais desiguais e injustos na comparação com os demais profissionais da área da saúde.2323. Silva MC. O Conselho Federal de Enfermagem no desenvolvimento de Políticas Públicas do Sistema Único de Saúde: Perspectivas e Desafios. Enferm em Foco. 2016;7(Esp):77-80. Isso revela a importância do envolvimento da categoria em projetos políticos amplos que visem à melhoria da qualidade de trabalho da enfermagem de forma global, dado que a precarização se processa de forma complexa e multifatorial. Ao optarem por não se envolverem com as questões políticas, as enfermeiras pactuam com o modelo que está posto e perdem a capacidade de reagir contra as diversas formas de exploração do trabalho.

Como mostram os resultados, a militância das enfermeiras contra as formas de precarização foi evidenciada após denúncias e movimentos realizados pelas organizações profissionais, notadamente Associação e Conselho. O sindicato dos enfermeiros, órgão responsável por atuar em defesa dos direitos trabalhistas, não teve suas atividades divulgadas pelo jornal de forma significativa, revelando a fragilidade da organização política dessa categoria.

Cabe salientar que o SEEB foi criado apenas em 1981,2424. Alcântara IP, Luckesi MA, Paiva MS. Contando uma bela história: A trajetória da ABEn - Bahia. Rev Bras Enferm. 2001;53(4):271–7. durante o governo militar, quando havia significativa supressão de movimentos reivindicatórios. Tal fato pode justificar a frívola representação do sindicato pelo jornal, embora pareça mais assertivo concluir que a reduzida valorização atribuída à entidade sindical decorresse de uma característica da enfermagem,2525. Gomes ML, Santos TC, Luz M, Gomes B, Cristina T, Santos F. Construindo a identidade sindical das enfermeiras no rio de janeiro (1978-1984). Texto Contexto Enferm. 2005;14(4):488–97.,2626. Carvalho VL, Guimarães CM. Enfermagem e sindicalismo em Goiás: análise do período 1982-2004. Rev Bras Enferm. 2007;60(2):155–60. neste caso, possivelmente associada à frágil consciência política da categoria, ao medo de repressão e aos estigmas sociais que associam o sindicalismo à subversão.2525. Gomes ML, Santos TC, Luz M, Gomes B, Cristina T, Santos F. Construindo a identidade sindical das enfermeiras no rio de janeiro (1978-1984). Texto Contexto Enferm. 2005;14(4):488–97.

Cumpre destacar que as entidades profissionais são de suma importância e representam uma perspectiva de mudança, pois se configuram como espaços de agregação e organização dos trabalhadores, podendo favorecer a criticidade e o entendimento do contexto no qual a categoria se insere.2727. Almeida DB, Silva GT, Queirós PJ, Freitas GF, Laitano AD, Almeida SS, et al. [Portuguese nursing: history of the life and activism of Maria Augusta Sousa]. Rev Esc Enferm USP. 2016;50(3):498–504. Portuguese.

O estudo teve como limitação a utilização apenas do material escrito, dado que o material icnográfico não foi objeto de análise. Como as imagens publicadas pelo jornal possuem o intuito de ilustrar a ideia descrita pela reportagem, a análise destas poderia resultar em achados complementares.

Conclusão

A militância atuou no combate à precarização do trabalho da enfermeira, expressa sob forma de desvalorização profissional, sobrecarga de trabalho e luta por definição de jornada de trabalho e piso salarial. A desvalorização do trabalho foi caracterizada ainda por baixa remuneração e substituição de enfermeiras por profissionais sem qualificação adequada, motivada principalmente por interesses mercadológicos, existência de contingente de reserva de enfermeiros e incipiente organização política da categoria. Destaca-se que a desvalorização é multifatorial e envolve também a sobrecarga de trabalho, pois a perda de espaço para outras categorias profissionais resultou em denúncias de baixa qualidade do serviço, sobrecarga e intensificação da jornada de trabalho. Desse modo, a regulamentação da jornada de trabalho e determinação de piso salarial configuraram-se como possibilidade de proteção da força de trabalho das enfermeiras. No que tange a cobertura jornalística, verificou-se que as enfermeiras comunicaram à sociedade as condições precárias de trabalho, mas pouco fizeram para efetivamente transformar essa realidade. A militância se concentrou apenas no âmbito das entidades de classe, comandada, em sua maioria, pelas representantes dessas organizações, não sendo evidenciado um movimento coletivo das enfermeiras.

Agradecimentos

Ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração dos Serviços de Enfermagem – GEPASE por ter oportunizado as discussões e construções coletivas.

Referências

  • 1
    Marx K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural; 1996.Vol 1.
  • 2
    Merhy EE, Franco TB. Trabalho em saúde [Internet]. Rio de Janeiro: EPJV/FIOCRUZ; 2005. [citado 2019 Abr 15]. Disponível em: http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2014/setembro/23/Trabalho-em-Saude-Merhy--Franco.pdf
    » http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2014/setembro/23/Trabalho-em-Saude-Merhy--Franco.pdf
  • 3
    Melo CM, Carvalho CA, Silva LA, Leal JA, Santos TA, Santos HS. [Nurse workforce in state services with direct management: Revealing precarization]. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2016;20(3):1-8. Portuguese.
  • 4
    Marcinowicz L, Andersson EK, Bohman DM, Hjelm M, Skarbaliene A, Shpakou A, Kalinowska P, Jamiolkowski J. Nursing students’ perception of the professional nurse’s role in four European countries. Int Nurs Rev. 2018 Oct 31. doi: 10.1111/inr.12494.
  • 5
    Sousa RC. Associativismo feminino e participação política: um estudo sobre as bases sociais de apoio à Ditadura Militar em Curitiba (1964-1985). Rev Est Históricos. 2018;31(65):389-412.
  • 6
    Nageshwar V. Public Perception of nursing as a profession. Int J Res Applied Sci Biotechnol. (IJRASB). 2018; 5(5):15-19.
  • 7
    Barros JD. O projeto de pesquisa em história: Da escolha do tema ao quadro teórico. Petrópolis: Vozes; 2017.
  • 8
    Miranda NM. Jornalistas em cena, artistas em pauta: Análise da cobertura jornalística dos espetáculos teatrais baianos realizados pelos jornais A Tarde e Correio da Bahia na década de 90 [dissertação]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 2001.
  • 9
    Almeida DB, Silva GT, Freitas GF, Padilha MI, Almeida IFB. [Discursive archaeology: constituting knowledge of militant nurses in trade associations]. Rev Bras Enferm. 2018;71(3):1194-201. Portuguese.
  • 10
    Almeida DB, Silva GT, Queiros PJ, Freitas GF, Almeida IF. [Life story of Josicélia Dumêt Fernandes, teacher and nurse]. Rev Enferm UERJ. 2017; 25(1):1–5. Portuguese.
  • 11
    Almeida DB, Silva GT, Queiros PJ, Freitas GF, Almeida IF. [Lúcia Esther Duque Moliterno: knowing the life story of a militant nurse]. Rev Enferm UERJ. 2017;25:e13345:1-5.Portuguese.
  • 12
    Oliveira NL. História das diretoras da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (1946-1956) [dissertação]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 2016.
  • 13
    Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). Enfermagem em números [Internet]. Salvador; COFEN; 2018.
  • 14
    Rodriguez Neto E. A reforma sanitária e o sistema único de saúde: suas origens, suas propostas, sua inplantaçäo, suas dificuldades e suas perspectivas. Brasil. Ministério da Saúde. Coordenação de Informação, Educação e Comunicação. Núcleo de Estudos em Saúde Pública – NESP Incentivo à Participação Popular e Controle Social no SUS: textos técnicos para conselheiros de saúde. Brasília: IEC; 1994. p.7-17.
  • 15
    Franco ML. Análise de conteúdo. 4a ed. Brasília (DF): Liber Livro; 2012.
  • 16
    Ramos BE, Miranda Netto EB. [Historic of the health normative system in Brazil: an analysis of the construction of health legal system after 1988]. Rev Debates. 2018;11(1):43-66. Portuguese.
  • 17
    Lopes MJ. O trabalho da enfermeira: nem público, nem privado feminino, doméstico e desvalorizado. Rev Bras Enferm. 1988;41(3-4):211–7.
  • 18
    Marcondes WB, Otenberg L, Portela LF, Moreno CR. O peso do trabalho leve. Rev Ciênc Hoje. 1987;17(2):91–101.
  • 19
    Santos I, Souza AM, Galvão EA. Subsídios para formulação de uma política de profissionalização para o pessoal de enfermagem sem qualificação específica. Rev Bras Enferm. 1988;41(1):75–80
  • 20
    Santos TA. Valor da força de trabalho da enfermeira [dissertação]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 2012.
  • 21
    Durand JP. A refundação do trabalho no fluxo tensionado. Tempo Soc. 2003;15(1):139–58.
  • 22
    Santos TA, Silva OS, Melo CM, Costa HO. [Meaning of the regulation of work day in nursing]. Rev Enferm UERJ. 2013;21(2):265–8. Portuguese.
  • 23
    Silva MC. O Conselho Federal de Enfermagem no desenvolvimento de Políticas Públicas do Sistema Único de Saúde: Perspectivas e Desafios. Enferm em Foco. 2016;7(Esp):77-80.
  • 24
    Alcântara IP, Luckesi MA, Paiva MS. Contando uma bela história: A trajetória da ABEn - Bahia. Rev Bras Enferm. 2001;53(4):271–7.
  • 25
    Gomes ML, Santos TC, Luz M, Gomes B, Cristina T, Santos F. Construindo a identidade sindical das enfermeiras no rio de janeiro (1978-1984). Texto Contexto Enferm. 2005;14(4):488–97.
  • 26
    Carvalho VL, Guimarães CM. Enfermagem e sindicalismo em Goiás: análise do período 1982-2004. Rev Bras Enferm. 2007;60(2):155–60.
  • 27
    Almeida DB, Silva GT, Queirós PJ, Freitas GF, Laitano AD, Almeida SS, et al. [Portuguese nursing: history of the life and activism of Maria Augusta Sousa]. Rev Esc Enferm USP. 2016;50(3):498–504. Portuguese.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    May-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    9 Nov 2018
  • Aceito
    16 Abr 2019
Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo R. Napoleão de Barros, 754, 04024-002 São Paulo - SP/Brasil, Tel./Fax: (55 11) 5576 4430 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: actapaulista@unifesp.br