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Aspectos da metodologia em psicologia médica

AULAS E CONFERÊNCIAS

Aspectos da metodologia em psicologia médica

Thomaz de A. Collet; Silva Filho

Chefe da Secção de Psiquiatria do Instituto de Biotipologia Criminal da Penitenciária do Estado de São Paulo

Deixando de lado a, concepção clássica de Psicologia, como sendo a parte da Filosofia que se ocupa do. estudo da "alma", desde a época de Wundt a Psicologia passou a tomar corpo como ramo autônomo do conhecimento, aproximando-se das ciências naturais. Sem entrar em considerações históricas que nos levariam à mais remota antigüidade, onde iríamos encontrar os conceitos de Hipocrates a corroborar o pensamento moderno de Personalidade Total, é neste sentido que hoje em dia as várias correntes psicológicas procuram estudar os processos psíquicos.

Aproximada das ciências naturais por se tratar de investigação de processos individuais, geralmente humanos, a Psicologia passou a se utilizar dos métodos e técnicas da Medicina para o estudo da personalidade; daí o nome de Psicologia Médica dado a essa direção que, desde o século passado, tomou tanto vulto.

Cumpre assinalar também a fase da chamada Psicologia Científica, em que a aplicação de testes psicométricos e psicotécnicos, baseados na finalidade mensurativa dôs processos psíquicos, pretendia a aproximação dos fenômenos psíquicos com os elementos das ciências físicas e matemáticas, como se aquilo que não pudesse ser traduzido em números não fosse também objeto científico. Procuraram-se medir os valores psíquicos, geralmente divididos em elementos ou categorias, através dos testes, para levantamentos estatísticos e apreciações exatas, estabelecendo-se, assim, a Psicofisica a partir dessas premissas mecanicistas sob influência positiva.

Atenuados esses dois pontos de vista extremos, de um lado a Psicologia Clássica, especulativa, desligada inteiramente das ciências naturais pela sua finalidade e metodologia fundamentalmente especulativas, e, de outro, a chamada Psicologia Científica ou Psicofisica, cuja finalidade era a identificação dos processos psíquicos aos elementos da natureza física, a Psicologia Médica surgiu da colaboração da Biologia com as chamadas ciências morais. Para isso, como já dissemos, foi na Medicina e especialmente na Psiquiatria, que a Psicologia encontrou amparo e passou a tomar a direção objetiva e definida que atualmente apresenta.

Vejamos, pois, como se situa, o mais exatamente possível, a Psicologia Médica, entre a Biologia, que é ciência natural, e as chamadas ciências morais. Para isso procuraremos estudar a evolução da personalidade em sua diferenciação de valores.

FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE

Partindo do plasma germinal, desde o momento da concepção, verificamos que a célula ovo tem como característica principal a energia de que é dotada, energia essa que é a própria viola eque se apresenta com algumas características e finalidades bem marcadas. As características são reveladas pela representação dos elementos herdados e as finalidades são expressas pelas direções do desenvolvimento, isto é, pelas determinações instintivas. Chamaremos, de acordo com Von Monakow e Mourgue, de "hormé" a essa unidade vital, constituída de lastro heredológico e de energia instintiva, partindo daí o desenvolvimento da personalidade.

Várias são as teorias a respeito dos elementos potencialmente inscritos nessa "hormé" primitiva constituindo tema sobre cuja solução se debatem as principais correntes filosóficas. Apenas referiremos a questão do monismo e dualismo.

Deixando de lado a especulação metafísica clássica, em que se debate a relação "corpo" e "alma", forçoso é que consideremos o problema de saber se a "hormé" é uma unidade da qual se diferenciam os valores que irão integrar a personalidade, ou se esses valores já estão distintos, embora indiferenciados e latentes, caso em que a "hormé" seria não mais uma unidade e sim um todo integrado de partes.

O dualismo admite separação de corpo e psiquismo, permitindo, assim, desde que essa separação é primária, apenas uma relação paralela ou concomitante de dois campos (psique e soma). 0 monismo defende uma relação íntima, de causalidade, dos campos psíquico e somático, que seriam originàriamente a mesma coisa (unidade), podendo, pois, serem reduzidos, em suas expressões, sob o ponto de vista genérico, a essa mesma unidade.

E' preciso, entretanto, que consideremos o monismo pelo menos sob dois pontos de vista: o monismo dialético evolutivo e o monismo evolutivo a partir de uma "hormé" integrada "a priori", isto é, em que os valores da personalidade já se apresentariam em íntima relação de causalidade, de sentido e de significado na própria "hormé".

No primeiro caso, os valores psíquicos e somáticos, partindo da unidade "formativa" (somática), teriam uma diferenciação dialética (evolução constante para resolução de contradições ou conflitos) ; isto quer dizer que. a partir da primeira diferenciação ("instinto formativo" e soma), os demais valores se formariam em evolução dialética, ultrapassando as contradições ou conflitos. E' este um conceito materialista (marxista), cuja principal objeção deve ser feita quanto ao passo dialético "corpo-psiquismo". Pensamos que as esferas de valores têm relação de integração1 1 Para muitos essa integração é a própria negação do monismo. E' uma questão de conceito. Entretanto, pensamos que, sob o ponto de vista compreensivo, é a única maneira de se conceber cientificamente a personalidade total. sob o ponto de vista compreensivo. Não é, pois, a "hormé" uma unidade objetiva.

Assim sendo, sob este ponto de vista, o monismo evolutivo a partir de valores potencialmente inscritos e integrados "a priori" sob a forma de "hormé", parece a solução mais aceitável, mais compreensível na explicação genética da formação da personalidade.

A partir desse conceito é que procuraremos esboçar a personalidade humana, cujas expressões, à medida que se vão diferenciando, se integram sob forma manifesta, isto é, vão-se relacionando entre si e com os elementos mesológicos de maneira a se estabelecerem vínculos de dependência e controle entre os valores, sendo, assim, ao mesmo tempo, objeto das ciências naturais (causalidade) e morais (significado).

A primeira manifestação energética da "hormé", em sua evolução, se faz através do "instinto formativo", com a diferenciação somática, formando-se o embrião, depois o feto e o indivíduo. Esse embrião estabelece as primeiras relações, situacionais, com o organismo materno, na vida intrauterina, recebendo as características congênitas, enriquecendo, assim, o patrimônio endògeno, heredológico, de que se constituirá no momento da concepção.

Durante a vida intra-uterina o instinto formativo é aparentemente dominante. A orientá-lo, em sua finalidade e sentido, a consciência biológica (sob o ponto de vista de valores pertencente a um nível muito mais diferenciado) se revela, trazendo implícito o "instinto de conservação" ainda não manifesto em sua forma mais diferenciada.

Formam-se no embrião e no feto, terminando no indivíduo, os órgãos, aparelhos e sistemas, elementos somáticos que se revelam, em sua gênese, como as primeiras diferenciações da personalidade e que constituirão, como veremos, seus "valores instrumentais".

Após a expressão formativa, em cuja evolução somática o último dos elementos a evolver é o sistema nervoso, ainda em plena fase de desenvolvimento, aparecem os outros valores, que só podem realizar suas finalidades na dependência dessas estruturas, numa determinada fase de evolução genética. Esses valores, que propriamente vinculam o indivíduo ao âmbito das ciências morais (relação de finalidade, significado e sentido), e que surgem sob o aspecto biológico (ciências naturais), são os instintos propriamente ditos.

Deixando de lado as inúmeras classificações dos instintos, separamo-los apenas em três grupos: Instinto a serviço do indivíduo - de conservação; Instinto a serviço da espécie - de reprodução ou sexual; Instinto de interesse social - instinto social. A esta classificação, de finalidade, ainda de acordo com Monakow e Mourgue, podemos acrescentar o instinto cósmico e religioso, de sentido transcendental.

Nessa própria diferenciação hierárquica e cronológica dos valores instintivos há integração, isto é, relação de dependência e controle; pertanto, em suas finalidades eles se imbricam e se interdependem. Assim, o instinto sexual é essencialmente da espécie, porque sem êle temos o seu desaparecimento (ausência de procriação), entretanto, é existencialmente do indivíduo (orgasmo), ligando-se à conservação (desejo de posse e de ser possuído). O mesmo se passa em relação aos instintos social e transcendental, que dependem, para sua expressão, do desenvolvimento natural dos outros dois hierarquicamente inferiores.

A personalidade assim formada, vitalista, integrada com a diferenciação somática, apresenta, entretanto, outro aspecto, que é sua outra forma de expressão. E' o que muitos autores chamam de psiquismo superior, ou "faculdades da alma" dos clássicos, que as distinguiam em elementos, no que foram seguidos pelos associacionistas.

Assim que surgem as manifestações instintivas, já mesmo nas suas mais primitivas disposições, o indivíduo sofre do meio ambiente uma série de frustações, de coartações e de privações, que exigem um ajuste dessas energias até então dirigidas apenas pelo vitalismo primitivo. O indivíduo, que na fase intra-uterina recebia do organismo materno todo o amparo, no momento do nascimento vê-se bruscamente em contacto com outro ambiente, hostil às suas tendências e que exige adaptação. A personalidade então lança mão de outra esfera de valores, até agora apenas vislumbrada (consciência biológica dirigindo a orientação e formação do embrião). Depois o "princípio do prazer" deverá ser substituído pelo "princípio da realidade" e o indivíduo passa a ser integrado também por esses novos valores, que são função de sua relação com o mundo, apresentando-se em sua totalidade e expressando-se pela conduta.

Nesse afloramento dos valores que permitirão a adaptação ao real, que se pode designar de "esfera da orientação e causalidade" (Monakow e Mourgue), as disposições endógenas, próprias do indivíduo passam, até certo ponto, a ser função das condições mesológicas, consideradas tanto sob o ponto de vista circunstancial (momento do tempo), como e principalmente sob o ponto de vista situacional (ambiente, relações interpessoais, educação) e histórico.

Assim é que surge a esfera da consciência, manifesta ou latente, como diferenciação da chamada "consciência biológica", cuja expressão se faz através das várias formas de conduta que é a resultante ativa da personalidade total e mais ou menos integrada.

OBJETO E FINALIDADES

Assim esboçada a formação da personalidade, conhecida a sua estrutura, temos em nossas mãos o objeto da Psicologia. E' óbvio que pela raiz biológica de seus valores está ela intimamente ligada ao campo da Medicina. Por outro lado, em função de seus valores morais, como vimos, principalmente expressos pela "esfera da orientação e causalidade" ou da "consciência", pertence às ciências morais.

A finalidade da Psicologia Médica é resolver "situações-problemas", isto é, de orientar, prevenir ou curar. A personalidade deverá ter a sua forma de expressão o mais adaptada possível ao real com um mínimo de sofrimento para o indivíduo. O objeto das investigações psicológicas é a conduta (expressão da personalidade total) e o objetivo é o diagnóstico, isto é, o conhecimento melhor possível da "situação-problema", que constitui o plano vivencial.

Como acabamos de expor, a personalidade é integrada de 3 principais grupos de valores: somáticos, instintivos e de adaptação ao real.

Vejamos, pois, quais as orientações metodológicas que nos permitem investigá-los, deixando, entretanto, as técnicas e correntes doutrinárias para as palestras que serão proferidas ulteriormente.

Antes, porém, de estudarmos essas orientações metodológicas, procuraremos analisar o que chamamos de "vivência", que é a unidade psíquica integral, considerada subjetivamente no tempo e no espaço. E' a unidade psico-biológica em determinada situação.

A vivência se manifesta pelo sentido da existência. E', portanto, a síntese existencial da personalidade em determinada situação cronológica. Deve ser considerada como um corte transversal da personalidade. Se a personalidade se manifesta sob a forma objetiva de conduta, ela se apresenta subjetivamente como momentos vivenciais. Constituem, pois, as vivências, o conteúdo da conduta e é nesse sentido que também as pesquisas psicológicas são dirigidas.

Temos, pois, dois aspectos fundamentais da personalidade considerados no momento do tempo: a conduta e a vivência. Conduta e vivência, entretanto, se identificam se não quisermos distinguir forma e conteúdo, pois que, quem fala em "gestalt" (forma), admite sua estrutura (conteúdo vivencial).

Vejamos, pois, as orientações metodológicas gerais aplicadas ao estudo das vivências.

A primeira corrente psicológica, que se inclui no campo essencialmente descritivo, é o chamado Associacionismo.

O conceito de elemento é sem dúvida uma tentativa de identificação do campo da Psicologia ao campo das Ciências Físicas. Em fins do século passado esse critério foi dominante. A vida mental seria formada por uma série de elementos que, associados como um mosaico, seriam responsáveis pela maior ou menor higidez psíquica. Era essa uma tentativa de se reduzir às leis mecânicas o funcionamento animico. Logo se verificou, entretanto, que a vida psíquica não se compõe de elementos. Essa tese teve resultados perniciosos que até hoje persistem em tratados de Psicologia e Psiquiatria, tendo influído em vários pesquisadores, dentre os quais alguns eméritos, como Bleuler, que, no conceito da "Esquizofrenia", apenas escapa do associacionismo puro com a introdução de conceitos dinâmicos como os de "autismo" e "ambivalência".

Com a decadência do pensamento atomistico surge a Psicologia da Forma, a "Gestalt-theorie", atribuindo à totalidade uma função sintética originária. A chamada "Escola Berlinense", principalmente com as investigações de Köhler, firmou o conceito de totalidade.

A psicologia dos elementos, entretanto, não ficou apenas no campo doutrinário. Várias pesquisas biológicas passaram a ser feitas, procurando-se estabelecer no sistema nervoso, especialmente nas áreas corticais do cérebro, os pontos ou regiões a que corresponderiam os elementos psíquicos observados na expressão mental. Essas pesquisas foram feitas principalmente em relação à Psicopatologia, saindo daí a chamada Escola Mecanicista, que encontra atualmente em Kleist um discípulo eminente. Os feridos de guerra, traumatizados no crânio e pacientes portadores de tumores cerebrais constituem o maior campo de investigações.

Como falhou a Psicologia dos Elementos, cedendo lugar à Gestalt, também o Mecanicismo foi sendo substituído pelo Organicismo. Se não há regiões correspondentes a elementos, há, dizem os organicistas, sistemas funcionais, ainda não perfeitamente isolados sob o ponto de vista anatômico e histológico, correspondentes não a elementos mas a valores que se vão diferenciando. Há, pois, "localizações cronógenas", isto é, correspondência genética somato-psíquica. Como vemos, os organicistas pertencem mais à orientação genética, constituindo a base de uma das escolas psiquiátricas hoje enfaticamente defendida em Paris, o Neo-Jacksonismo.

A Fenomenologia de Jaspers é, sem dúvida; a orientação descritivo-compreensiva de maior valor na metodologia psicológica. Ela se caracteriza pela descrição do fenômeno psíquico "em si", isto é, pela compreensão vivencial do estado animico. Para isso é preciso que o observador seja capaz de penetrar o psiquismo do observando, para que com êle possa sentir e vivenciar o seu estado animico. Se esta situação é geralmente plausível em se tratando de indivíduos normais e neuróticos, o problema toma aspectos os mais difíceis em relação às psicoses, sejam endógenas, tóxicas ou orgânicas. O problema da penetrabilidade e do contacto em relação à melancolia endògena, à esquizofrenia ou à paranoia, seria relacionado a disposições análogas do observador.

Trata-se, aqui, de uma capacidade de vivenciar uma realidade exterior; a vivência da realidade exterior, dependendo dessa realidade, pode ser compreendida ou percebida. Quando a vivência dessa realidade exterior é possível, isto é, quando há penetração, dizemos que compreendemos e então podemos fazer uma descrição fenomenològica compreensiva. Entretanto, quando não há possibilidade de penetração, há descrição fenomenològica percebida, que não pode ser interpretada.

A compreensão é apanágio das ciências morais, pois implica em identificação vivencial, ao passo que a descrição percebida ou "explicativa" pertence às ciências naturais. No primeiro caso há uma "explicação por motivos", que é a compreensão; no segundo caso há relação de "causalidade'', que é a explicação. E', pois, a fenomenologia uma orientação metodológica fundamental descritiva e compreensiva.

A Psicologia Existencial de Biswanger é a aplicação da "analítica existencial" de Husserl em Psiquiatria, postulando que não se deve procurar compreender o homem doente através dos sintomas e sim os sintomas através da existência enferma.

A chamada "analítica existencial" de Husserl, complemento da fenomenologia de Jaspers, parte do princípio de que a existência humana é função do "estar-no-mundo" e que, portanto, todas as diversidades dependem dessa situação existencial. Assim, diz êle, as vivências que caracterizam o indivíduo são aquelas que decorrem de uma situação originária, primeira e pessoal, daquele indivíduo. As demais não são essenciais. São as vivências originárias que devem ser pesquisadas - o irredutível é o "essencial-imanente" de Husserl. Essas são as vivências que fenomenològicamente devem ser descritas porque são características.

Há, sem dúvida, aproximação, neste particular, do conceito de figura e fundo das categorias de Goldstein, nascidas das experiências de Kõhler sobre a Gestalt.

Êsse aspecto fenomenològico existencial do essencial, entretanto, precisa ser estendido ao ser total, pelo menos sob um aspecto que o abranja de forma sentida e de penetração, para depois, através do interesse do contacio entre o observador e o observando, pode ser atingido em sua imanência.

Heidegger introduziu o conceito de "inquietude" 2 2 "Inquietud" é o termo castelhano, usado por Lopez Ibor, que se poderia traduzir por: inquietação ou intranqüilidade. "Inquietude" parece, entretanto, ter um significado mais vital. ou "preocupação" como o campo essencial do ser e de interesse geral, que tem a sua representação no "humor", cujo significado toca tanto o polo biológico como o aspecto moral da personalidade. 0 "humor", em sua dinâmica, seria o elo de contacto, a porta de penetração e, em suas variações, se apresenta fenomenològicamente sob as formas de: angústia, tristeza, ansiedade, intranqüilidade, indiferença, alegria, euforia, excitação, etc.

Essas as principais orientações descritivo-compreensivas da Psycologia Médica. Deixamos de falar, porque serão tratadas em palestras especiais, sobre a Psicologia de Forma, que sob o aspecto "ativista" será referida no Behaviorismo, o mesmo sucedendo em relação à Psicologia Objetiva de Bech-terew, que junto com a Reflexologia de Paulow serão tratadas também especialmente. Sobre a Psicanálise também nos abstemos de falar agora, pois o assunto será tratado em palestras futuras.

Abordaremos agora o Neo-Jacksonismo que é, ao mesmo tempo, uma orientação genética e explicativa. Esta doutrina nasceu de uma tentativa de adaptação, à Psiquiatria, dos conceitos de Jackson, emitidos em fins do século passado, em relação à patogenia dos quadros neurológicos; a principal publicação a esse respeito foi feita por Ey e Rouart. No tratado de Monakow e Mourgue, sobre "A Introdução Biológica aos Estudos da Neurologia e Psiquiatria", de 1928, o assunto é abordado de maneira eficiente. São três os princípios fundamentais do Neo-Jacksonismo: 1) Noção de hierarquia das funções psíquicas e nervosas; 2) Noção de funções globais e funções parciais; 3) Noção de dissolução.

Hierarquia, das funções - "Tudo se passa como se, integrada no desenvolvimento do sistema nervoso e de todo o organismo, se verificasse uma evolução das funções da vida de relação, subordinando as fases primitivas e inferiores às organizações superiores".

Essa evolução se dá: 1) Do mais simples para o mais complexo; 2) Do mais automático para o mais voluntário; 3) Do mais organizado para o menos organizado; 4) 0 mais antigo é mais simples, mais automático e mais organizado.

Funções globais e funções parciais. Relações de integração - Esta concepção é, até certo ponto, corolário do princípio da hierarquia das funções. Admitindo uma evolução das funções de relação, partindo das mais simples para as mais complexas, numa relação de subordinação, vejamos qual a relação de integração 3 3 A noção de integração decorre de Scherrington, estabelecendo as relações entre funções nervosas. Essa noção vem sendo, entretanto, ampliada, admitindo-se que há integração de valores quando a relação se estabelece por vínculos de causalidade e de sentido. dessas funções no organismo e, mais particularmente, no sistema nervoso.

As funções de relação mais simples, como a motricidade voluntária, por exemplo, têm uma relação de integração com o sistema nervoso (sistema piramidal) perfeitamente definida; denomina-se essas organizações de "funções parciais" ou "instrumentais". As funções mais complexas e superiores, como as psíquicas, são energéticas, de síntese, não estando inscritas "instrumentalmente" em nenhum aparelho; entretanto, elas exercem ação controladora sobre as funções inferiores e que dependem de "aparelhos" ou "instrumentos" para o seu perfeito funcionamento. O psiquismo superior apresenta-se muito diferenciado e em constante organização para ter representação espacial definida; só pode ser situado no tempo.

A última das leis de hierarquia das funções é útil para a avaliação das funções "instrumentais" ou "parciais" e as "gerais". Os aparelhos nervosos e as "funções de relação instrumental" são as primeiras que terminam suas evoluções, ao passo que as "funções globais" ou "psíquicas" estão constantemente evoluindo.

Há alguma relação de integração entre as funções psíquicas superiores e o sistema do lobo frontal, ao passo que o "humor", em sentido largo, se relacionaria com sistemas dependentes das regiões tálamo-hipotalâmicas. As funções do real são menos organizadas e mais complexas que a timopsique, e assim por diante, embora não se possam desligar os seus vínculos de interdependência.

Dissolução - Se as funções superiores controlam, por uma relação de subordinação, as funções hierarquicamente inferiores, a dissolução dessas funções superiores deve ocasionar libertação do nível inferior. E' realmente o que se observa, tanto em relação às "funções instrumentais", como às "funções globais". Segundo Jackson, "a dissolução é o inverso da evolução", entretanto, não se dá exatamente o inverso, pois, na dissolução o nível estrutural evolutivo pode ou não ser inteiramente atingido.

Daí as várias formas de distúrbios psíquicos e neurológicos ou mistos. Deve-se notar, também, que, de acordo com esta teoria, os sintomas são divididos em positivos ou de libertação (nível subjacente) e negativos ou de carência (dissolução).

Assim, apresentado o núcleo da teoria "organo-dinamista" de Henry Ey no que interessa à Psicologia Médica, e ainda a respeito das orientações "genética ou de profundidade", com alguma semelhança com o Neo-Jacksonismo, cumpre salientar as idéias de Pierre Janet, cuja concepção dinâmica repousa sobre o conceito de "hierarquia das funções do real", mantidas por uma "tensão psicológica". Vemos pois que estas idéias são de profundidade (genética) e de valor dinâmico (tensão psicológica). As funções psíquicas são, para Pierre Janet, uma série de condutas, hierarquizadas, cujo conjunto seria mantido por uma tensão necessária, considerada no tempo, que permite a adaptação ao real, o que se faz em último grau, pela "percepção real dos objetos".

Cotejando a teoria de Janet e o Neo-Jacksonismo, notamos que o "organo-dinamismo" é mais genético e a teoria de Pierre Janet é mais dinâmica 4 4 A teoria de Pierre Janet é dinâmica, porém não deve ser confundida com a "psicodinàmica", cujo estudo foi introduzido de maneira científica por Freud e constitui a essência da Psicanálise. . Diríamos que o Neo-Jacksonismo é um organicismo evolutivo em que o fator tempo (localização cronógena) marca o ponto fundamental e a doutrina de Pierre Janet é prevalentemente um "organo-dinamismo" que, em virtude da limitação (formalismo) às "funções superiores", não atinge completamente o sentido de profundidade genético-evolutivo.

Muitos outros métodos são usados em Psicologia Médica, principalmente os decorrentes da orientação explicativa.

"Quando dizemos que um indivíduo está melancólico porque se alcoolizou, estamos indicando uma causa e explicando o efeito que é a depressão". A relação de causalidade entre o termo "álcool" è "estado depressivo" é explicado; dizemos que o álcool provocou, no indivíduo predisposto, algumas modificações fisiológicas do sistema nervoso central, levando o à depressão. Há, entretanto, uma dificuldade de se compreender a passagem do termo "álcool" ao termo "estado afetivo" porque são valores diferentes. 0 mesmo se dirá de um paciente que está eufórico porque sofre de uma meningo-encefalite difusa crônica luètica. Há explicação, porém há dificuldade de penetração para perfeita compreensão.

Entretanto, quando se diz que um indivíduo está deprimido e em sofrimento afetivo porque perdeu seu único filho, há uma relação de causalidade perfeitamente compreensível, penetrável, porque somos capazes de "vivenciar" seu estado de humor em função da causa.

Diremos que no primeiro caso há relação causai explicativa e no segundo caso há relação compreensiva genética.

Há ocasiões, entretanto, em que se pode explicar a causa e compreender genèticamente a relação dos tèrmos: se o indivíduo que se alcoolizou entrou em reação melancólica e crise de choro porque se lhe tirou a sobremesa, compreende-se e se explica; o "álcool" o tornou predisposto para essa manifestação reativa, porém (embora essa não seja a reação comum) compreende-se a relação entre os termos "retirar a sobremesa" e "reação melancólica".

Há, portanto, na orientação metodológica explicativa, dois processos: o da explicação pura e o da explicação compreensiva. Conforme o caso, essas duas modalidades variam com a possibilidade de penetração.

Várias são as correntes que se incluem na orientação explicativa. Poderíamos mesmo dizer que todas as que vimos, compreensivas e genéticas, aí estão incluídas.

O objetivo da Psicologia Médica, que é o de estabelecer o diagnóstico identificando "situações-problemas", será tanto mais satisfatório quanto mais próximos estiverem os tèrmos da relação estabelecida, permitindo, através da "vivência da realidade exterior", cada vez maior compreensão existencial.

Instituto de Biotipologia Criminal da Penitenciária do Estado de São Paulo

Palestra proferida no Curso de Especialização de Psicologia Médica, realizado em setembro-outubro de 1950, sob os auspícios do Centro de Estudos de Oftalmologia da Escola Paulista de Medicina.

  • 1
    Para muitos essa integração é a própria negação do monismo. E' uma questão de conceito. Entretanto, pensamos que, sob o ponto de vista compreensivo, é a única maneira de se conceber cientificamente a personalidade total.
  • 2
    "Inquietud" é o termo castelhano, usado por Lopez Ibor, que se poderia traduzir por: inquietação ou intranqüilidade. "Inquietude" parece, entretanto, ter um significado mais vital.
  • 3
    A noção de integração decorre de Scherrington, estabelecendo as relações entre funções nervosas. Essa noção vem sendo, entretanto, ampliada, admitindo-se que há integração de valores quando a relação se estabelece por vínculos de causalidade e de sentido.
  • 4
    A teoria de Pierre Janet é dinâmica, porém não deve ser confundida com a "psicodinàmica", cujo estudo foi introduzido de maneira científica por Freud e constitui a essência da Psicanálise.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 1951
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