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Hemiplegia alterna tipo Weber sem lesão peduncular

Assistente de Clínica Neurológica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Prof. Adherbal Tolosa)

SUMÁRIO

O A. apresenta a observação anátomo-clinica de uma paciente portadora de hemiplegia esquerda e paralisia do motor ocular comum direito. O diagnóstico de síndromo peduncular tipo Weber, feito em face da sintomatologia apresentada, não foi confirmado pela necroscopia, na qual foi encontrada hemorragia do lobo temporal direito, que comprimia a cápsula interna e extravasara para o espaço subaracnóideo adjacente, englobando o tronco do motor ocular comum direito, produzindo a sintomatologia referida. Comentando a observação e procurando explicar o mecanismo de produção dos sintomas encontrados, o A. discute a possibilidade que teriam esses sintomas de orientar o diagnóstico anatômico para a verdadeira localização da lesão havida, chamando a atenção, particularmente, para a desproporção entre a paralisia total do motor ocular comum direito e a pouca intensidade dos fenômenos paralíticos no hemicorpo esquerdo.

SUMMARY

The author reports a case of left hemiplegia and paralysis of the right oculomotor nerve. The clinical diagnosis of peduncular lesion was not confirmed by necroscopic examination, which evidenced hemorrhage in the right temporal lobe compressing the internal capsula; the right root of the oculomotor nerve was included by the blood overflowed in the subarachnoidal space; these findings accounted for the clinical feature of the case. In order to explain the symptoms, the author emphasizes the disparity between the total paralysis of the right oculomotor nerve and the mild degree of the motor impairment in the left limbs.

A originalidade de um caso clínico que tivemos a oportunidade de observar, em face da discordância havida entre o diagnóstico neurológico e o quadro anátomo-patológico, motivou esta apresentação.

Trata-se de B. M. D., brasileira, solteira, preta, com 50 anos de idade, internada na Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina (Prof. A. Tolosa). Em 30 de agosto de 1945, a doente teve tonturas; no dia seguinte, pela manhã, caiu ao solo inconsciente. Recuperou a consciência algumas horas depois, respondendo com dificuldade às perguntas e queixando-se de forte cefaléia. Foi internada no Pronto Socorro do Hospital das Clínicas em estado de semi-inconsciência, informando apenas, com bastante dificuldade, que tinha cefaléia e de que não podia abrir os olhos devido a essa dor. O exame clínico-neurológico mostrava: estado semicomatoso, pálpebras cerradas; apagamento dos traços fisionômicos na hemiface esquerda, sem desvio da boca. Tensão arterial: mx. 270 e mn. 150 mms. de mercúrio; temperatura: 36,2°; pulso 84; frequência respiratória 20. Rigidez da nuca e sinal de Brudzinski. Hemiplegia discreta à esquerda, sem sinal de Babinski. Hipertonia muscular moderada e generalizada, sendo o tono maior à direita. Reflexos osteotendinosos dos membros presentes e normais. Reflexos cutaneoplantares: presente e normal à direita e ausente à esquerda. Ptose da pálpebra direita, com desvio do globo ocular para o mesmo lado. Midríase paralítica no olho direito, com ausência dos reflexos pupilares. Foi feito o diagnóstico de síndromo de Weber. Foi submetida a sangria de 500 cc, tendo sido feitas, nesse dia e nos que se seguiram, medicação vasodilatadora. Manteve-se afebril nesse período, porém a frequência dos batimentos cardíacos era muito irregular, tendendo à taquicardia, até 120-140 batimentos por minuto. Removida para a Clínica Neurológica em 7 de Setembro, apresentava-se obnubilada e sonolenta, bocejando frequentemente. Suas respostas eram demoradas e difíceis, porém conscientes e lúcidas. Conseguimos apurar que sempre tivera saúde regular, nada sentira nos últimos meses, nada referindo que se pudesse relacionar ao estado que então apresentava.

Exame clínico-neurológico - Decúbito dorsal. Pele húmida e quente sem cicatrizes nem edemas. Panículo adiposo de regular abundância, bem distribuído. Língua saburrosa. Hálito ligeiramente cetônico. Apirética. Dentes em más condições. Tensão arterial: mx. 190 e mn. 105 mms. Hg. À ausculta do coração notava-se duplo sopro no foco mitral, irradiando para a região mesocardíaca. Taquicardia moderada, com 105 batimentos por minuto; choque da ponta palpável no 5.° espaço intercostal, dois centímetros para fora da linha hemiclavicular. Artérias radiais endurecidas, com elasticidade diminuída, batendo ritmicamente. Nenhuma alteração digna de menção nos aparelhos respiratorório e digestivo. Discreto predomínio dos traços fisionômicos à direita, com desvio da comissura labial para esse lado. Pálpebra direita ptosada; a abertura passiva mostrava o globo ocular desviado para fora, estando a pupila em midríase. O exame da linguagem permitiu concluir pela integridade da compreensão da palavra falada; não havia distúrbios da expressão oral. Não foi possível a pesquisa do equilíbrio na posição erecta, nem da marcha ou do equilíbrio estático dos membros superiores. Prejudicada a pesquisa da praxia pela falta de cooperação da paciente. Hemiparesia esquerda menos nítida na face e mais evidente no membro inferior que no superior. Das manobras deficitárias, só nos foi possível, devido à falta de cooperação, pesquisar a manobra do pé, positiva à esquerda. Prejudicadas as pesquisas da velocidade e da coordenação dos movimentos. À palpação e movimentação passiva notava-se discreta hipertonia no hemicorpo esquerdo, melhor evidenciada nos músculos flexores do membro superior e nos extensores do inferior. Ausência de hipercinesias. Reflexos cutaneoplantares ausentes de ambos os lados. Reflexos cutâneo-abdominais normais à direita; à esquerda, ausente o inferior e diminuídos o médio e o superior. Não foi possível a pesquisa dos reflexos corneopalpebrais, pois a paciente mantinha cerradas as pálpebras. Reflexos tendinosos e osteoperiósticos normais à direita. Reflexos medioplantar e aquileu abolidos à esquerda. Reflexo patelar diminuído à esquerda. Ainda desse lado, estavam abolidos os reflexos estilo-radial e bicipital, estando presente e normal o tricipital. Reflexos axiais da face normais. Reflexo mediopúbico sem resposta em nenhum dos lados. Ausência de clonos, trepidações, automatismos ou sincinesias. Ausência de reflexos superficiais ou profundos patológicos. Prejudicado o exame da sensibilidade, que era aparentemente normal, pois a paciente reagia pronta e igualmente a vários estímulos sensitivos. Paralisia total do nervo motor ocular comum direito, com ptose palpebral, midríase, estrabismo externo, abolição dos reflexos pupilares. Pequena escara de decúbito superficial na região do sacro; nenhuma alteração vasomotora. Eliminação das fezes e urina sem controle da vontade, não tendo sido possível apurar se havia incontinência.

Exames complementares - Dosagem de uréia no sangue: 1,03 grs. por litro. Exame do liquido cefalorraquidiano: punção lombar em posição deitada; pressão inicial 15 (manômetro de Claude); líquor homogeneamente hemorrágico, tornando-se límpido e xantocrômico após a centrifugação; reações de rotina prejudicadas pela presença de sangue; reações de Wassermann e Steinfeld negativas com 1 cc., após inativação. Exame neurocular: em O.D., desvio do globo para o lado temporal, estando a pupila em midríase paralítica; em O.E. normais as reações pupilares; fundos oculares com artérias estreitadas e veias de calibre aumentado. Dosagem da glicemia: 2,04 grs. por litro. Reações de Wassermann e Hinton no soro sangüíneo, negativas.

Terapêutica e evolução - Em vista das condições em que se achava a doente e do resultado dos primeiros exames, foi iniciada medicação vasodilatadora aliada à dieta acloretada e purgativos salinos, sendo feita inicialmente sangria de 300 cc. Para a hiperglicemia, foram administradas 20 unidades de insulina diariamente. Nova urometria, em 14 de setembro, mostrava uma redução da taxa de uréia sangüínea para 0,67 grs. por litro. O estado neurológico, porém, se mantinha inalterado e, sob o ponto de vista psíquico, havia alternativas de melhora e piora, permanecendo a doente, a maior parte do tempo, em profunda sonolência. A tensão arterial se mantinha dentro dos limites de 180 a 200 para a máxima e 100 a 105 para a mínima. Em 22 de setembro, nova urometria mostrou haver 1,32 grs. de uréia por litro de sangue. Foi feita nova sangria, sendo extraídos 400 cc. de sangue. Havia progressiva dificuldade em alimentar a paciente, pois o torpor se acentuava cada vez mais. Foram feitas punções lombares seriadas, sendo retirado líquor cada vez menos hemorrágico. O estado geral da doente continuou a agravar-se e, no dia 29 de setembro pela manhã, houve acentuada elevação térmica (39° C). O exame do aparelho respiratório mostrou a presença de sopro tubário em ambos os hemitórax e atrito pleural à direita. A tensão arterial caíra para 120 x 85. Havia taquicardia e taquipnéia. Bulhas cardíacas abafadas e ligeiro atrito pericárdico. A doente apresentava-se inconsciente, sem reagir aos estímulos e, na tarde desse dia, faleceu.

O conjunto sintomático apresentado pela paciente impunha o diagnóstico de lesão peduncular, única capaz de determinar um quadro hemiplégico com paralisia do motor ocular comum do lado oposto. O início brusco, os sinais de irritação meníngea, a presença de sangue no líquor e as condições circulatórias da paciente orientaram o diagnóstico etiológico para hemorragia do pé do pedúnculo cerebral direito, com extravasamento para o espaço aracnóideo. O estado de sonolência em que se manteve durante os vinte e três dias de observação era justificável pela elevada taxa de uréia sangüínea. A necroscopia, porém, demonstrou não ser exato o raciocínio clínico, pois não havia qualquer lesão nos pedúnculos cerebrais.

Exame anátomo-patológico do cérebro: Cortes frontais passando pelos polos temporais mostram, no lobo temporal direito, massa hemorrágica, medindo 24 mms. de altura por 32 mms. de largura, massa essa contornada no seu rebordo látero-inferior por uma camada de córtex medindo 5 mms. de espessura. Essa massa abre-se para a superfície no ângulo ínfero-interno coincidente com a fissura hipo-campal e destrói a substância branca dos giros temporais médio e inferior, hipo-campal e fusiforme. Anteriormente, a massa hemorrágica não ultrapassa o polo temporal. No corte que passa pelo quiasma óptico, a massa hemorrágica mede um máximo de 35 mms. de altura e 50 mms. de largura; acham-se destruídos os giros temporais - médio e inferior e o giro hipocampal; destruição total do núcleo amigdalóide e substância perfurada anterior; compressão da parte inferior do putâmen; ligeira compressão do lado direito do quiasma óptico (Fig. 1). No corte que passa pela calota mesencefálica, a massa hemorrágica tem por medidas máximas, 25 mms. de largura. Localiza-se na substância nervosa que constitui o teto do corno inferior do putâmen e chega medialmente até a face lateral da cápsula interna, no seu segmento lentículo-talâmico (Fig. 2). O referido corno ventricular mostra-se ocluído por compressão e invasão da massa hemorrágica. A extremidade posterior da massa hemorrágica atinge o plano frontal que passa pelo nível de desembocadura do aqueduto de Silvio no 3.° ventrículo. Cavidades ventriculares moderadamente dilatadas com exceção do corno inferior do ventrículo lateral direito, que se acha ocluído e comprimido pela massa hemorrágica. Na face inferior do encéfalo existe coleção sangüínea coagulada, subaracnóidea, localizada entre o lobo temporal direito, de um lado, e hipotálamo e face orbitária do lobo frontal, do outro (porção inferior da fissura lateral de Silvio); este coágulo sangüíneo englobava e comprimia o nervo motor ocular comum direito (Fig. 3). (Drs. G. Elejalde e O. Aidar).




Comentários

O diagnóstico topográfico das afecções neurológicas, cujo principal sintoma é a hemiplegia piramidal, baseia-se essencialmente na extensão e proporcionalidade da paralisia dos segmentos atingidos e na presença de outros sinais neurológicos caraterísticos da lesão de diferentes níveis do eixo encefalomedular. É classicamente conhecido o conceito das hemiplegias alternas, nas quais, além da paralisia total ou parcial de metade do corpo, há paralisia de um ou mais nervos cranianos do lado oposto, acompanhada ou não de sinais sensitivos, cerebelares e extrapiramidais de um ou outro lado, tudo devido a uma única lesão. A evidenciação clínica desse tipo de hemiplegia orienta imediatamente o diagnóstico para uma afecção do tronco encefálico, onde se localizam os núcleos e as raízes dos vários nervos cranianos. Conforme o nervo atingido, será facilitada a localização mais precisa do segmento lesado - pedúnculos cerebrais, protuberância ou bulbo. Entre as hemiplegias alternas, uma das mais caraterísticas e que exterioriza a lesão do pé do pendúnculo cerebral, é a hemiplegia alterna tipo Weber. Esse conjunto sintomático foi encontrado em nossa paciente e motivou o diagnóstico acima referido.

O exame anátomo-patológico, no entanto, não só demonstrou a integridade dos pedúnculos cerebrais, como também evidenciou claramente a lesão que se responsabilizara pela sintomatologia encontrada, lesão essa que, pela extensão assumida e pela invasão do espaço aracnóideo, poderia ter levado ao êxito letal muito precocemente. As dificuldades havidas à consecução de um perfeito exame neurológico, e a inutilidade que teria qualquer outra orientação terapêutica em face da lesão apresentada, além da nitidez do quadro neurológico apresentado, parecem-nos bastantes atenuantes para o erro diagnóstico cometido. A revisão da observação feita durante a vida da paciente permitiu-nos, mais tarde, verificar uma série de pequenos detalhes que, julgados de pequena importância ou nem considerados devidamente na ocasião, poderiam ter justificado, se não uma impugnação, ao menos uma dúvida ao diagnóstico inicialmente feito. Sobre esses detalhes faremos breves comentários.

A destruição quase total do lobo temporal direito não foi denunciada, ao menos de maneira flagrante, ao exame neurológico, talvez pela relativamente pequena repercussão que essa lesão teria no funcionamento do sistema nervoso central. Não foi encontrada qualquer perturbação da audição, o que é admissível pela provável representação bilateral dessa função sensorial. A destruição da substância branca dos giros temporais médio e inferior é de pouca significação clínica. Caberia talvez aqui uma explicação para o estado de sonolência em que permaneceu a paciente, o que, por ocasião do exame, julgamos ser atribuível à uremia. A destruição dos giros hipocampal e fusiforme, que deveria ser acompanhada de alterações olfatórias, infelizmente não fôra comprovada clinicamente, pois não foi feito exame das funções olfativas da paciente que, provavelmente, seria prejudicado pelas condições em que esta se achava.

O fato de a hemiplegia predominar no segmento caudal é plenamente justificado pela compressão exercida pela massa hemorrágica na cápsula interna, num ponto correspondente às partes média e principalmente posterior do seu braço posterior, onde trafegam as fibras do sistema piramidal destinadas respectivamente aos membros superior e inferior. A lesão anatômica estava situada de maneira a comprimir através do putâmen, o segmento retrolenticular do andar inferior da cápsula interna. A lesão peduncular, causadora habitual do síndromo de Weber quando a paralisia do motor ocular comum é total, está situada no pé do pedúnculo cerebral próximo à linha mediana, pois por aí passam as fibras radiculares do terceiro par craniano antes de emergirem desse segmento do tronco encefálico. Quando a paralisia do motor ocular comum é parcial, não atingindo todos dos músculos oculares, geralmente a lesão se situa mais para trás e para fora, traduzindo-se clinicamente por sinais extrapiramidais e sensitivos, além da hemiplegia alterna. De acordo com a disposição das fibras do sistema piramidal nos pedúnculos cerebrais, a lesão na parte medial do pé do pedúnculo atinge de preferência as fibras do feixe geniculado e as que se destinam ao segmento cefálico, que são as mais internamente situadas, dando ao referido síndromo uma caraterística oposta ao quadro encontrado em nosso exame. Este seria, a nosso ver, o mais importante detalhe que, na ocasião do exame neurológico, não mereceu maior atenção.

Estão relativamente afastadas do processo hemorrágico e foram, portanto, pouco interessadas por ele, as regiões do joelho e braço anterior da cápsula interna. Não foram encontrados clinicamente quaisquer sinais que demonstrassem a compressão havida sobre o putâmen. A lesão do nervo motor ocular comum direito se deu pelo derrame hemorrágico no espaço subaracnóideo situado entre o lobo temporal e o giro subcaloso, englobando o tronco desse nervo e causando a sua paralisia. Houve, anatomicamente, ligeira compressão do quiasma óptico; as condições em que examinamos a paciente não permitiram a evidenciação de tal compressão, que podia ter determinado uma hemianopsia homônima esquerda.

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  • Hemiplegia alterna tipo Weber sem lesão peduncular

    J. A. Caetano da Silva Jr.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 1946
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