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Homenagem

Em janeiro do corrente ano completou 80 anos de idade um dos maiores neuropsiquiatras da atualidade - Karl Kleist - continuador de Wernicke e de Kraepelin nas investigações para a conceituação dos distúrbios psíquicos como dependentes de desorganização, funcional ou orgânica, das estruturas encefálicas. Um grupo de psiquiatras paulistas - liderado por Aníbal Silveira - quis homenagear êsse infatigável pesquisador contribuindo para a divulgação de seus estudos.

Associando-se a esta homenagem, Arquivos de Neuro-Psiquiatria saúda o estudioso cujo longo esfôrço científico tem por alvo, não a simples descrição clínica que lhe daria oportunidade para fácil e encantador palavreado, mas e especialmente a árdua e metódica análise dos distúrbios mentais, procurando objetivar conceituações fisiopatológicas localizatórias, visando dar à Psiquiatria a mesma objetividade que é inerente à Neurologia.

O. Lange

Am 31. Januar feierte Prof. Karl Kleist seinen 80. Geburtstag. Unermüdlich in seiner Forschungsarbeit und Bestreben die Geisteskrankheiten zu erklären, hat Prof. Kleist die Lehre der psychischen Funktionen bzw. Störungen als Ergebnis der Mitwirkung bestimmter Hirnsysteme entwickelt. Einigen hiesigen Psychiatern von São Paulo - unter der Leitung von Aníbal Silveira - wünschten bei diesem festlichen Anlass ihm die vorliegende Festschrift als Ausdruck ihrer tiefen Verehrung und Bewunderung zu widmen.

Indem sie sich an diese Ehrung anschliessen haben die Herausgeber von Arquivos de Neuro-Psiquiatria den Vorzug einen der hervorragendesten Psychiater unserer Zeit zu begrüssen. Prof. Kleist strebte in seinem Schaffen danach nicht nur eine Fülle von Krankheitsbildern zu beschreiben sondern sich vielmehr der tiefgehenden und ausgedehnen Analyse der Geistestörungen zu widmen und ist dabei zu ganz neuen fruchtbaren Feststellungen gekommen. Prof. Kleist durch die neuen Begriffe die er in der Hirnpathologie und Psychopathologie geschaffen, hat das Verdienst der Psychiatrie dieselbe wissenschaftliche Grundlage und Objektivität die der Neurologie zu Grunde liegen, verliehen zu haben.

O. Lange

KARL KLEIST

Karl Kleist completou 80 anos. Mais de meio século, tôda uma vida dedicada à pesquisa e solução dos problemas da Neurologia e da Psiquiatria. Investigador apaixonado, não encontrou tempo para escrever um tratado de Psiquiatria, uma obra didática que divulgasse sua experiência e suas concepções e servisse de roteiro seguro à formação dos neuropsiquiatras. Isto explica, em parte, porque suas idéias não tiveram ainda a consagração e divulgação que merecem.

Ao mesmo tempo um cultivador profundo da Neurologia e da Psiquiatria, Kleist é o mais proeminente representante da corrente científica orientada pelo ponto de vista biológico-positivo na consideração dos fenômenos anímicos. Para êle que, na corrida em busca do conhecimento científico retomou a tocha de Wernicke que já antes estivera nas mãos de Griesinger, a Neurologia e a Psiquiatria formam um único território onde os fenômenos falam uma mesma linguagem e são regidos pelas mesmas leis. Êle vê a Psiquiatria como neurologista e a Neurologia como psiquiatra. "Quando estou em frente a um doente mental" - disse-me êle certa vez - "vejo o cérebro". Na sua pesquisa os estudos de patologia cerebral e psicopatologia influenciam-se e enriquecem-se mùtuamente. Daí a sua obra ser muitas vêzes mal compreendida ou mal interpretada por aquêles que não possuem uma sólida base de conhecimentos em ambos os setores médicos.

A fim de permitir uma visão evolutiva, que facilitará compreender a posição de Kleist na história da Neuropsiquiatria, apresentaremos resumidamente os dados mais importantes da vida e da obra de Kleist.

Karl Kleist nasceu em 31 de janeiro de 1879, em Mühlhausen, na Alsácia, onde viveu sua juventude e fêz os estudos ginasiais. A inclinação para as ciências biológicas e do espírito dirigiu-o para o estudo da Medicina, particularmente para a Neurologia e Psiquiatria. Estudou de 1897 a 1902 em Strassburg, Heidelberg, Berlim e München, onde recebeu o diploma de médico e o título de doutor com um trabalho de caráter anatômico-experimental sôbre o gânglio espinal. Realizou sua formação de especialista na Clínica Neurológica e Psiquiátrica de Halle, de 1903 a 1908, como assistente de Ziehen, Wernicke e Anton. Importante estímulo recebeu êle, também, do fisiólogo Tschernack, do psicólogo Ebbinghaus e do neuropatologista Liepman.

Wernicke, que em 1905 faleceu vítima de um acidente, exerceu forte influência sôbre a formação científica de Kleist, apesar de ter sido de um ano apenas a convivência que mantiveram. A identidade de pontos de vista na compreensão dos problemas neuropsiquiátricos fêz com que Kleist continuasse os ensinamentos de Wernicke, de quem se orgulha de ser o único discípulo no campo da Psiquiatria. Kleist manteve os princípios fundamentais da forma de pesquisa de Wernicke, considerando os fenômenos psicopatológicos sob o prisma da patologia cerebral. Dêsse período são os trabalhos sôbre a afasia de condução (Leitungsaphasie), tendo descrito o primeiro caso dêste tipo de afasia que fôra previsto por Wernicke teòricamente, sôbre a apraxia inervatória, sôbre as psicoses corêicas e sôbre os distúrbios psicomotores nos enfermos mentais.

Em 1908 e 1909 trabalhou em Frankfurt a.M. com Edinger e Arien Kappers no Instituto Neurológico, com Marbe e F. e O. Schultze no Instituto de Psicologia; em seguida, durante um semestre, trabalhou em histopatologia com Alzheimer, em München, quando então conheceu Kraepelin e a sua Psiquiatria. Na primavera de 1909 tornou-se Docente livre e chefe de Clínica no Serviço de Psiquiatria de Erlangen, sob a direção de G. Specht, onde completou a sua formação com o conhecimento da Psiquiatria hospitalar e dos pacientes crônicos e esquizofrênicos incuráveis. Neste período, surgem os fundamentos de tôda a obra ulterior de Kleist no campo da Neuropsiquiatria.

O método de aplicar os conhecimentos da patologia cerebral para a compreensão das manifestações psicopatológicas dos enfermos mentais, e vice-versa, provou ser o mais fértil no esclarecimento dos problemas neuropsiquicos. Utilizando seus conhecimentos sôbre a afasia para estudar os distúrbios da fala e do pensamento dos enfermos mentais, Kleist descreveu o agramatismo e a alteração paralógica do pensamento; a seguir estabeleceu as bases para a compreensão da esquizofrenia, separando-a em diferentes enfermidades sistematizadas, segundo o modêlo das moléstias neurológicas heredo-degenerativas; isolou a paranóia da involução e estudou as psicoses pós-operatórias. Kleist introduziu novo ponto de vista para a consideração dos complexos sintomáticos empregando, pela primeira vez, os princípios fundamentais da compreensibilidade psicológica de Dilthey, que Jasper ulteriormente fundamentou e utilizou como método para a pesquisa psicopatológica. Referimo-nos à classificação dos complexos sintomáticos, segundo sua correlação com a vida psíquica normal, em três grupos: o dos homônimos, que seriam próximos da vida psíquica normal; o dos heterônimos, que seriam estranhos a ela; o dos intermediários, compreendidos entre os anteriores. Esta divisão apresenta implícita a intenção de realizar uma psicopatologia de base compreensiva, que Kleist colocou em paralelo com sua divisão dos complexos sintomáticos e formas de enfermidade em dois grupos segundo a localização do aparelho cerebral que os determina: os decorrentes de lesões do córtex cerebral e os devidos a lesões do tronco do encéfalo. Kleist delineou novos elementos para a classificação da psicose maníaco-depressiva e das psicoses com ela aparentadas, as assim chamadas psicoses degenerativas.

Com o desencadear da primeira guerra mundial, Kleist trabalhou em um hospital de campanha durante o período de 1914-1916, onde aprendeu e exerceu atividade neurocirúrgica, simultâneamente com a atividade clínica; algumas de suas intervenções neurocirúrgicas foram feitas sob a direção de Schmieden que mais tarde se tornou seu colega de Universidade. O abundante material constituído por ferimentos crânio-cerebrais estudado nesse período deu-lhe a experiência que utilizou para escrever a sua "Patologia Cerebral".

Em 1916 foi convidado para o cargo de professor da Universidade de Rostock, onde prosseguiu nas suas observações de esquizofrênicos e descreveu as psicoses ocorridas na epidemia de influenza de 1918-1919; como decorrência dêsse estudo e do anterior sôbre as psicoses pós-operatórias, criou o conceito de "labilidade sintomática", contribuição importante para a compreensão das reações exógenas.

Em 1920 foi convidado para a Universidade de Frankfurt a.M, recusando, em 1923, convite para lecionar na Universidade de Leipzig, na época uma das mais cobiçadas da Alemanha, para não perder o material de suas observações com nova mudança. Estabeleceu os fundamentos de duas novas enfermidades clínicas: o "estado crepuscular episódico" e o "estado hípnico episódico". Nesse período colaborou no planejamento e construção, modelar para a época, de uma nova clínica para as moléstias do sistema nervoso.

Em 1933 publicou a sua "Patologia Cerebral", cuja feitura prolongou-se por 12 anos, empreendimento monumental visando correlacionar os distúrbios psicopatológicos fundamentais com os campos arquitetônicos cerebrais, procurando chegar a um plano funcional do cérebro. Êste livro mais do que uma patologia cerebral, é tôda uma psicopatologia de base neurológica; não é apenas uma imensa reunião de fatos clínicos, minuciosamente observados, mas ao mesmo tempo uma riquíssima fonte de concepções psicofisiológicas e patológicas, que não encontra correspondência em qualquer outra obra do gênero. Os conceitos de apraxia construtiva, agrafia construtiva, vigilidade, eu-pessoal, eu-social, entre muitos outros, possuem um decisivo valor heurístico, cuja evidência decorre do material analisado.

Esta obra, que por si só seria suficiente para glorificar qualquer pesquisador, não esgotou, porém, a fôrça criadora do seu autor. Mal terminara de escrevê-la, lançou-se Kleist, e agora com o concurso de seu assistente K. Leonhard, à tarefa de completar sua doutrina sôbre a esquizofrenia e as psicoses degenerativas ou fasofrenias. Em sucessivos trabalhos, feitos em colaboração com seus assistentes, Kleist publicou o resultado dos estudos catamnésticos, em que não só descreveu unidades clínicas precisas como procurou demonstrar a base heredológica dessas enfermidades, utilizando a anamnese heredológica como critério para diagnóstico diferencial; no Congresso Internacional de Psiquiatria, realizado em setembro de 1957, em Zurich, como relator principal do tema sôbre as esquizofrenias, resumiu todo seu trabalho neste campo.

Dentro da confusão reinante no que diz respeito às psicoses endógenas, é a orientação de Kleist a única que permite à Psiquiatria um progresso real como ciência médica; ela representa o esfôrço mais completo para reunir os ensinamentos dos dois maiores mestres da Psiquiatria alemã: Wernicke e Kraepelin. A contribuição de Kleist e seus colaboradores constitui a mais séria tentativa para a superação clínica e analítica do sistema nosológico kraepeliano, e é tanto mais significativa quando consideramos a impossibilidade de se poder cultivar uma Psiquiatria clínica das psicoses endógenas com as teorias psicanalítica e antropológicas. Os estudos psicanalíticos e os estudos antropológico-fenomenológicos permanecem nosològicamente indeterminados, enquanto que as esquizofrenias e fasofrenias descritas por Kleist são realidades clínicas, talvez passíveis, como êle próprio o deseja, de serem aperfeiçoadas com a observação de maior material clínico; entretanto, o importante é que elas têm um valor heurístico que as correlaciona com a patologia cerebral. Em 1953 Kleist publicou a sua classificação das enfermidades neuropsíquicas, coroando o objetivo de uma vida inteira: o de fundir a Neurologia e Psiquiatria em uma especialidade única, a Neuro-psiquiatria.

Dirigiu Kleist a Clínica Neuropsiquiátrica da Universidade de Frankfurt a.M. até 1950, quando foi aposentado. Mas êle não descansa. Com entusiasmo e dinamismo mantém a direção do Instituto de Pesquisa de Patologia Cerebral e Psicopatologia que, embora instalado no edifício da Clínica Neuropsiquiátrica, tem autonomia em face da Universidade, e continua seus estudos com o auxílio de colaboradores financiados pela "Deutsche Forschungsgemeinschaft"; comparece diàriamente ao Instituto, periòdicamente revê o trabalho realizado pelos assistentes, controlando pessoalmente os menores detalhes. Quando voltado para êste fim, Kleist esquece o tempo, muitas vêzes para desespêro dos seus auxiliares; êle não compreende que outro interesse possa se sobrepor à procura do conhecimento. Nesse sentido, êle tem sempre o apoio dessa figura simpática e amável que é a sua espôsa, Luísa Kleist, identificada com êle e a sua obra e que polarizou a sua vida em tôrno da pessoa do marido, protegendo-o de todos os problemas e solicitações externas que ela possa resolver.

Com seus colaboradores, entre os quais orgulho-me de ter sido incluído, o comportamento de Kleist reveste-se de caráter paternal: não só sabe exigir dos assistentes como procura por todos os meios estimular, auxiliando-os nas dificuldades, inclusive nos problemas particulares, mesmo os de natureza delicada; sua atuação em benefício de assistentes judeus, durante o infeliz período nazista, tornou-o credor da admiração e amizade de numerosos especialistas que conseguiram sobreviver com a transferência para o exterior.

Além da atividade no Instituto, Kleist ainda ministra cursos semestrais para médicos e estudantes. Tive oportunidade de assistir ao curso semestral de inverno de 1957-1958 que versou sôbre "Cérebro e alma", tema que tem sido objeto de suas especulações desde os bancos escolares. Já em 1951 publicara um trabalho com o mesmo título expondo suas idéias sôbre o tema. O trabalho de maior fôlego que Kleist ainda espera publicar sôbre êste assunto sintetizará a experiência de sua vida na apreensão e compreensão biológica dos processos psíquicos. Será o seu testamento, como êle próprio expressou-se.

Podemos dizer que tôda a obra de Kleist não foi outra coisa que a pesquisa para elucidar o caráter da correlação da atividade anímica com a atividade cerebral. Compreende-se, por isso, porque não apresentam importância saliente, no conjunto de sua obra, os distúrbios do sistema nervoso periférico e da medula de um lado, e os distúrbios psicogenéticos do outro.

O Prof. Karl Kleist é uma pessoa simples nos gestos e atitudes, assim como na conversação, sem qualquer afetação e sem procurar causar efeitos. Gosta de conversar sôbre temas de filosofia, arte e história, quando deixa transparecer grande cultura geral e invejável memória; na abordagem dos problemas científicos é objetivo e tem particular ogeriza às discussões teóricas. Apesar de sua inclinação para os estudos filosóficos, Kleist não tolera os que procuram atingir a solução dos problemas neuropsíquicos partindo de sistemas filosóficos: "Uma casa não se constroi pelo telhado", disse-me certa vez caracterizando a sua posição. A pesquisa psicopatológica deve ser uma pesquisa científica e, como tal, corresponder às exigências e peculiaridades da ciência.

A visão retrospectiva da obra de Kleist denota a colocação laboriosa dos materiais com que erigiu o edifício das concepções e demonstra a delimitação segura que desde o início êle traçou para o seu trabalho. É admirável seguir o caminho por êle percorrido para a aquisição dos fatos fundamentais e o seu desenvolvimento progressivo e coerente até a maturidade das idéias. Estas evidenciam o seu extraordinário sentido para a observação do essencial, a profunda inteligência em que se unem harmônicamente a atividade de análise e síntese e a capacidade de crítica, impulsionados por extraordinária capacidade de trabalho. Para manter-se sem desvio em sua diretriz, defrontou-se com as maiores oposições críticas; mas, dada atenacidade e perseverança na consecução do objetivo, característico de sua personalidade, Kleist não se deixou abalar nem se desviar de sua rota. Apesar de ainda hoje o seu trabalho no campo das psicoses endógenas ser objeto de crítica e objeções, êle e seus discípulos estão convictos de que suas idéias terminarão por se impor.

Neste momento em que as sociedades neuropsiquiátricas de São Paulo comemoram o octogésimo aniversário de Karl Kleist, formulamos os votos de que êle viva ainda muitos anos e mantenha acesa a luz com que há mais de meio século procura iluminar os mais obscuros problemas da Neuro-psiquiatria.

José Longman

  • Homenagem

  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Dez 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 1959
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