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Seminoma em testículo ectópico invadindo o canal vertebral: Síndrome de lesão dos plexos lombar e sacro

Resumos

É relatado um caso de seminoma em testículo ectópico de evolução longa e atípica. Revelada incidentalmente no decurso de uma operação de hérnia inguinal, a neoplasia permaneceu muda por mais 9 anos. O início da sintomatologia neurológica, monoplegia crural do lado da ectopia, coincidiu com uma operação de varizes mal indicada, porquanto estas eram o resultado da suplência periférica à oclusão da veia ilíaca comprimida pelo tumor. A neoplasia que evoluiu por contiguidade pelos troncos e gânglios linfáticos do testículo, após comprimir os plexos lombar e sacro invadiu o canal raquidiano produzindo uma síndrome da cauda equina. Estes fatos - longo tempo de evolução da moléstia ocorrido sem qualquer sinal mórbido, a sintomatologia evoluindo por etapas, o crescimento por contiguidade e a não existencia de metástases, a forma laminar do tumor, colando-se ao plano profundo da fossa ilíaca e por isso não sendo palpável, a coincidência da modificação do quadro neurológico com a realização do ato cirúrgico, dificultando o diagnóstico - tornam o caso raro, interessante e instrutivo.


A case of semiríoma in ectopic testis of long and atypical evolution is reported. This neoplasm was incidentally noticed 9 years before, during an operation of inguinal hernia since been symptonfree. The first neurological symptons (crural monoplegia on the same side of the ectopia) followed a wrongly indicated operation of varices. In reality, varicose veins were consequent to the compression of the illiac vein by the tumor. The neoplasm progressed along the lymphatic vessels and lymph nodes of the testis, compressed lumbar and sacral plexuses and then invaded the vertebral canal, producing a syndrome of the cauda equina. The authors point out the facts that make the present case a rare and instructive one: the evolution of the neoplasm was characterized by its length, freedom of symptomatology during a long period, and grouth by contiguity; there was an absence of metastases; the tumor had a laminar shape and was adherent to the deep wall of the fossa illiac, which impossibilitate its palpation; and finally, the coincidence of modification of the neurological picture soon after the perfomance of an operation.


ILivre-docente e assistente de Neurologia na Fac. Med. Univ. S. Paulo

IIAssistente de Neurologia na Fac. Med. Univ. S. Paulo

RESUMO

É relatado um caso de seminoma em testículo ectópico de evolução longa e atípica. Revelada incidentalmente no decurso de uma operação de hérnia inguinal, a neoplasia permaneceu muda por mais 9 anos. O início da sintomatologia neurológica, monoplegia crural do lado da ectopia, coincidiu com uma operação de varizes mal indicada, porquanto estas eram o resultado da suplência periférica à oclusão da veia ilíaca comprimida pelo tumor. A neoplasia que evoluiu por contiguidade pelos troncos e gânglios linfáticos do testículo, após comprimir os plexos lombar e sacro invadiu o canal raquidiano produzindo uma síndrome da cauda equina. Estes fatos - longo tempo de evolução da moléstia ocorrido sem qualquer sinal mórbido, a sintomatologia evoluindo por etapas, o crescimento por contiguidade e a não existencia de metástases, a forma laminar do tumor, colando-se ao plano profundo da fossa ilíaca e por isso não sendo palpável, a coincidência da modificação do quadro neurológico com a realização do ato cirúrgico, dificultando o diagnóstico - tornam o caso raro, interessante e instrutivo.

SUMMARY

A case of semiríoma in ectopic testis of long and atypical evolution is reported. This neoplasm was incidentally noticed 9 years before, during an operation of inguinal hernia since been symptonfree. The first neurological symptons (crural monoplegia on the same side of the ectopia) followed a wrongly indicated operation of varices. In reality, varicose veins were consequent to the compression of the illiac vein by the tumor. The neoplasm progressed along the lymphatic vessels and lymph nodes of the testis, compressed lumbar and sacral plexuses and then invaded the vertebral canal, producing a syndrome of the cauda equina.

The authors point out the facts that make the present case a rare and instructive one: the evolution of the neoplasm was characterized by its length, freedom of symptomatology during a long period, and grouth by contiguity; there was an absence of metastases; the tumor had a laminar shape and was adherent to the deep wall of the fossa illiac, which impossibilitate its palpation; and finally, the coincidence of modification of the neurological picture soon after the perfomance of an operation.

Seminoma é tumor maligno das células germinativas que ocorre tanto nos testículos em situação normal, como nos ectópicos, sendo, porém, mais frequente nestes últimos1 1 . Cantó, A. e Pataro, V. F. - Degeneración maligna del testículo ectópico. Contribución a su estudio. Semana Méd. (Buenos Aires) 45: 474-484 (março, 31) 1938. . Esta maior porcentagem está de acordo com a lei de Ladouble pela qual todo órgão malformado ou em situação anormal está exposto a toda classe de enfermidades. A malignidade do seminoma advém da grande capacidade proliferativa de suas células e da produção de metástases, as quais se localizam de preferência nos gânglios mediastinais, nas costelas e vértebras.

No caso presente, o doente fora operado em 1936 e o tumor continuou sua evolução, produzindo a síndrome neurológica de compressão dos plexos lombar e sacro na fossa ilíaca esquerda, invadindo, depois, o canal vertebral. Esta última complicação, pelo que pudemos apreender da bibliografia consultada, não fora ainda assinalada, pois não se tratava de metástase vertebral que comprimisse a medula, mas de invasão do canal pelo tumor, através dos orifícios de conjugação. A neoplasia evolveu lentamente e somente 9 anos depois de seu início, é que surgiram sinais neurológicos; iniciados estes, o quadro sintomatológico assumiu feição rápida. Um conjunto de circunstâncias, atinentes umas ao fato de ser difícil a anamnese - paciente estrangeiro e expressando-se mal - outras às limitações usuais do nosso meio hospitalar - fazendo com que ignorássemos até o desfecho letal, a natureza da primeira intervenção cirúrgica a que o doente fora submetido, tornaram difícil o diagnóstico topográfico e etiológico. Relataremos o caso, respeitando a ordem cronológica das ocorrências, e comentando-as no intuito de mostrar as diversas sequências da observação e as razões da dificuldade do diagnóstico exato.

Em 19 de agosto de 1943, um de nós foi chamado à 4.a Enfermaria de Cirurgia de Homens da Santa Casa de S. Paulo (Serviço do Prof. Benedito Montenegro), para examinar o paciente J. M., operário, romeno, com 47 anos de idade, que apresentava uma monoplegia crural esquerda após operação de varizes. Relatava o doente que, em fevereiro do mesmo ano, sem causa aparente, começou a sentir dor intensa e contínua, localizada ao nível do grande trocânter esquerdo que, em pouco tempo, irradiou-se ao longo de todo o membro, predominando nas articulações do joelho e tornozelo sem se acompanhar de hipertermia. Alguns dias depois, observou pequeno edema maleolar à esquerda, que aumentava continuamente. Permaneceu acamado por 20 dias e como não desaparecessem os sintomas, procurou um médico, que explicou a dor como uma ciática e o edema como proveniente de varizes que apresentava, bem visíveis, em todo o membro inferior esquerdo. Foi operado dessas varizes, relatando que, depois dessa intervenção, não pôde mais mover o membro inferior esquerdo, guardando o leito durante os cinco meses que mediaram entre a operação e a internação na Santa Casa. Durante esse tempo o edema aumentou, tomando todo o membro.

Ao exame notava-se grande assimetria dos membros inferiores: o esquerdo se apresentava aumentado de volume de um modo global, desde a arcada crural. No terço inferior da perna o edema se apresentava com caráter linhificado, duro e recoberto por pele violácea, seca e descamante (fig. 1). Na região íngüino-abdominal esquerda apresentava uma cicatriz com cerca de 6 cents, de comprimento e disposta paralelamente à arcada crural correspondente à operação sofrida pelo paciente havia alguns anos e que, segundo sua informação, visara a correção de uma hérnia.


Na face súpero-interna da coxa havia outra cicatriz, também linear, em direção horizontal, com mais ou menos 10 cmts, de comprimento e coloração rosada. Na face interna da articulação do joelho esquerdo, logo acima do côndilo medial do fêmur havia outra cicatriz, também rosada, disposta horizontalmente e com comprimento de 4 cmts. mais ou menos. Estas duas últimas cicatrizes resultavam da operação para o tratamento das varizes, realizadas em fevereiro de 1943. O paciente não podia mover todo o membro inferior esquerdo, a não ser leve flexão da perna sobre a coxa. A movimentação passiva fazia-se sem dor a não ser a abdução da coxa, que era dolorosa ao nível do grande trocânter do fêmur. Reflexos patelar e aquilino ausentes. Diminuição da sensibilidade táctil na face interna da coxa e na face ântero-interna da perna. Nada havia de anormal no outro membro inferior, assim como no resto do corpo.

Este exame, feito rapidamente, fora dificultado pela incompreensão do português por parte do doente e sua incapacidade em expressar-se bem. A concomitância do início do quadro mórbido com a operação de varizes e a existência de uma cicatriz de operação de hérnia cuja data de realização não se pôde apurar no momento do exame, chamaram a atenção do examinador, porquanto operações na face ântero-interna da parte superior da coxa, por um aprofundamento maior da incisão, podem incluir o crural usa cicatriz operatória. Esta hipótese explicava a perda súbita da motricidade do membro inferior no tocante à extensão da perna sobre a coxa, a impossibilidade da marcha, a abolição do reflexo patelar e a área de anestesia observada. Havia, contudo, outros sinais, que a compressão do crural não explicava, tais como a abolição do reflexo aquiliano e perda dos movimentos voluntários dos pedartículos e do pé, assim como diminuição da força muscular na flexão da perna sobre a coxa. O grande edema e, ainda mais, linhificado, poderia explicar a não obtenção da resposta do reflexo aquiliano, pela ação amortecedora do coxim edematoso impedindo que a pressão do martelo repercutisse sobre o tendão dos gémeos. Porém não explicaria a redução da motilidade. O diagnóstico de compressão cicatricial do nervo crural foi aceito como uma hipótese inicial, sendo pedida uma investigação elétrica dos músculos do membro inferior esquerdo.

O exame elétrico revelou o seguinte:

Conclusão: Inexcitabilidade de todos os nervos motores do membro inferior esquerdo. R. D. cadavérica nos territórios musculares subordinados aos nervos crural, obturador e ciático-poplíteo externo. R. D. total grave nos territórios musculares partencentes aos nervos ciático e ciático-poplíteo interno (C. V. Savoy).

Com este resultado, a hipótese de lesão do nervo crural pelo tecido cicatricial foi abandonada completamente, pois ficara provado de maneira irrefutável que também os nervos ciático e obturador estavam ilesos. Seria difícil compreender um processo patogênico que lesasse, em conjunto, esses troncos nervosos, tão separados entre si. Os nervos crural e obturador nascem no interior do músculo psoas, formados pelos ramos provenientes das 2.a, 3.a e 4.a raízes lombares; o primeiro desce na face externa do psoas pela goteira que o mesmo forma com o músculo ilíaco, o segundo caminha pela face interna, cruza a articulação sacro-ilíaca ao longo da parede externa da bacia e sai da mesma pelo canal subpubiano. O crural, à medida que desce, aproxima-se da artéria ilíaca externa, caminhando atrás do peritônio e ganha a coxa cruzando o bordo pubiano. Por seu lado, o ciático, formado pelas quatro raízes superiores do plexo sacro, no interior da pequena bacia, sob o músculo piramidal, dirige-se para baixo e para trás, atravessa a grande chanfradura ciática, seguindo, depois, seu trajeto vertical pela face posterior da coxa.

Se os troncos nervosos estão muito distantes, o mesmo não ocorre com as raízes que os formam, pois elas saem do canal raquidiano pelos orifícios de conjugação de vértebras contíguas. Nessa região um processo tumoral as poderia lesar em conjunto, explicando o resultado obtido ao exame elétrico. A hipótese dum processo lesando as raízes constituintes dos plexos lombar e sacro explicaria a monoplegia crural. O processo patogênico capaz de produzir, em nosso caso, essa lesão, deveria ser neoplástico, porém a palpação profunda do abdomen, feita acurada e repetidamente, não denunciava qualquer formação tumoral que, pelos sintomas, deveria ser extensa. Mais próximas ainda se encontram as mesmas raízes dentro do canal raquidiano, formando, quasi contíguas, a cauda-de-cavalo. Contudo, não seria lícito pensar em hipuropatia, cujo quadro sintomatológico é tão diferente do que foi descrito.

O caso que evolvia lentamente, modificou-se em 2 de setembro, quando o doente começou a queixar-se de dores no pé direito, as quais, logo nos dias seguintes, abrangiam todo o membro correspondente e aumentaram de intensidade, exacerbando-se com a tosse e o espirro. Conjuntamente sobrevieram distúrbios esfinctéricos com incontinência urinária.

Nessa ocasião, revendo a sintomatologia neurológica, e com o auxílio de um intérprete, foi possível esclarecer certos fatos até então ignorados. Relatou o doente que, em 1936, fora operado de hérnia inguinal esquerda, tendo-lhe sido, nessa ocasião, retirado o testículo ectópico desse lado, e não sabendo explicar a razão desta ablação. O exame físico mostrou: Abdomen plano, com cicatriz umbelical mediana e deprimida. Parede levemente edemaciada e dura. Não havia ascite nem circulação colateral. Do lado esquerdo havia grande empastamento ganglionar na região inguinal, de consistência mole e muito dolorosa à palpação. A pele que cobre essa região se apresentava regularmente quente mas não hiperemiada. À palpação superficial do abdômen não se provocava dor nem eram verificadas resistências anormais. À palpação profunda conseguia-se notar, nas fossas ilíacas, os cólons, pastoso e indolor à direita e gargarejante à esquerda. À percussão, som timpânico, não havendo sinais de ascite. Fígado percutível do 5.° intercosto para baixo e não palpável abaixo do rebordo costal. O ponto cístico doloroso à palpação. Ausência do testículo esquerdo.

Exame neurológico: Psiquismo íntegro, porém deprimido. Inteligência medíocre e memória má, para fatos recentes e remotos. Não se recordava da infância e mesmo dos acidentes da moléstia, Afetividade conservada. Atitude em decúbito obrigatória, dorsal ou lateral direita, antálgica, com os membros inferiores em adução, as pernas fletidas sobre as coxas e estas sobre a bacia, pois a abdução ou a extensão do membro inferior aumentava a dor ao longo do ciático. Marcha impraticável.

Motricidade voluntária e força muscular completamente abolidas no membro inferior esquerdo, com o qual não realizava movimento algum. Com o direito realizava bem os movimentos da articulação coxo femural, com alguma restrição os da articulação do joelho e apresentava diminuição sensível dos movimentos de flexão, extensão, adução, abdução e rotação do pé e pedartículos. Neste membro a força muscular estava grandemente diminuída aos movimentos do pé e pedartículos, pouco diminuída na perna e conservada na coxa. Esta diminuição da força muscular, mais evidente na extremidade, tornava francamente positiva a manobra do pé de cadáver e nítida a de Barre na qual a perna caía depois de oscilar amplamente. Na prova de Mingazzini era positiva a componente do quadríceps, enquanto que a do psoas estava normal. Do lado direito, ataxia motora no membro inferior, de tipo sensitivo. A motricidade voluntária do tronco, membros superiores e cabeça estava conservada, assim como o tono. Nos membros inferiores, nítida hipotonia evidenciada pela flacidez muscular, exagero da motilidade passiva e do balanço passivo da articulação tibiotársica e a posição caída do pé. Do lado esquerdo, abolidos todos os reflexos osteotendinosos e cutâneos do membro inferior, com excepção do componente superior do mediopubiano. Do lado direito também abolidos quase todos os reflexos osteotendinosos; patelar diminuído e presente o dos adutores da coxa. Dos cutâneos estavam abolidos o cutaneoplantar e os cremastéricos superficial e profundo. No tronco, membros superiores e face os reflexos estavam normais.

Sensibilidade subjetiva: dores contínuas em todo o membro inferior direito, localizadas principalmente no trajeto do ciático e que se exaltavam com os movimentos. No membro inferior esquerdo a dor, muito forte no início da moléstia, não se fazia sentir agora, estando esse membro como "morto". Objetivamente, perturbações na sensibilidade superficial, com caráter radicular, abrangendo os membros inferiores e o períneo. À esquerda, havia anestesia completa das sensibilidades superficiais nas partes correspondentes à totalidade da inervação de L3 a S5 e parcialmente de L2; à direita, anestesia no território de S3 a S5 (vide fig. 2). Nos dois membros, nas áreas restantes, até ao nível da espinha ilíaca, havia hiperestesia. Todas as formas de sensibilidade profunda inalteradas no membro inferior direito, a não ser a sensibilidade segmentar, que estava abolida nos dois últimos pedartículos. No membro inferior esquerdo assinalava-se: anestesia segmentar ao nível das articulações dos pedartículos, tibiotársica e joelho; anestesia vibratória desde os pedartículos até a rótula e hipoestesia ao nível dos côndilos femurais; anestesia à pressão profunda da massa muscular da pantorrilha e do tendão de Aquiles; perda da sensibilidade visceral ao nível dos testículos,


Perturbações tróficas: escaras de decúbito nas duas regiões trocantéricas, na face medial do tornozelo esquerdo e na face ântero-interna do joelho direito, todas pequenas, não medindo mais que dois centímetros de diâmetro. Edema bastante desenvolvido e generalizado a todo o membro inferior esquerdo. No terço inferior, o edema se revestia de caráter especial, apresentando-se duro, linhificado, coberto por pele com coloração violácea escura, extremamente seca e descamativa, com o aspecto peculiar aos processos varicosos.

Recapitulando, para melhor compreensão, notamos que o paciente fora operado, em 1936, de uma hérnia do lado esquerdo, tendo sido extraído o testículo esquerdo, que era ectópico. Nenhuma ocorrência adveio até fevereiro de 1943, quando apareceu uma sintomatologia álgica no membro inferior esquerdo, acompanhada de pequeno edema maleolar. Em março desse ano, submeteu-se a operação de varizes e, então, abruptamente, instalou-se uma monoplegia crural, a qual permaneceu estacionária até setembro. Nessa época iniciaram-se sintomas motores e sensitivos no outro membro inferior, antecedidos de dores e incontinência de urina. O exame clínico evidenciou falta de testículo esquerdo, gânglios inguinais enfartados e grande edema linhificado no membro inferior desse lado. Fomos informados pelo próprio doente que o testículo ectópico fora extirpado durante a operação de hérnia. Não soubera dizer do estado desse órgão, informando somente que nenhum tratamento posterior fora instituído. Sabe-se que nos casos de hérnia e testículo ectópico é aconselhada a extirpação deste último no intuito de curar a hérnia e evitar uma possível degeneração cancerosa2 2 . Pace, J. M. e Cabot, H. - A histological study in twenty-four cases of retained testis in the adult. Surg. a. Obst. 63: 16 (julho) 1936. . Nada nos induzia a pensar ter havido, nessa época, uma degeneração cancerosa, porquanto o paciente não fora irradiado posteriormente e um grande período de tempo se passara - 9 anos - sem que qualquer sintoma o molestasse.

O exame neurológico, realizado em setembro mostrou: à esquerda, perda completa da motricidade do membro inferior, hipotonia muscular, arreflexia e anestesia no território das raízes L2 a S5; à direita, diminuição da força muscular no pé e perna com positividade das manobras deficitárias do pé de cadáver, de Barre e da componente do quadríceps na manobra de Mingazzini, ataxia de tipo sensitivo, hipotonia, abolição do reflexo aquileano e diminuição do patelar, anestesia no território radicular de S3 a S5. Havia, ainda, dor quando o paciente tossia ou espirrava.

O quadro neurológico acima resumido corresponde ao de uma síndrome de cauda equina de caráter compressivo, cuja etiologia mais comum é a neoplástica, podendo, contudo, ser devida à compressão em casos de espinha bífida, aracnoidite crônica ou hérnia do núcleo pulposo. Nesta síndrome, o quadro clínico é variável, dependendo do local e da extensão do processo compressivo.

A hipuropatia apresentada pelo paciente J. M. tinha, contudo, evolução anômala e sintais incomuns. O início se deu de modo brusco, originando rapidamente uma monoplegia maciça. Ora, um processo compressivo para lesar todas as raízes lombares e sagradas de um lado deveria, se estivesse localizado dentro do canal raquidiano, lesar também algumas raízes do lado oposto. Contudo esse fato só ocorreu 8 meses após o início dos primeiros sintomas. Estes, se bem que álgicos, não apresentavam os caraterísticos dos da hipuropatia, pois não se localizavam na coluna vertebral e não se influenciavam pelo tossir e espirrar; este tipo de dor só ocorreu no 8.° mês de evolução mórbida. Durante esses 8 meses o processo estacionou sob forma de monoplegia crural; somente depois desse lapso de tempo se estendeu para o outro lado, produzindo paralisias, paresias, distúrbios da sensibilidade e perturbações esfinctéricas; estas últimas só apareceram no período final, com o agravamento do quadro. O diagnóstico de hipuropatia, a rigor, só podia ser feito neste período terminal.

A evolução da sintomatologia, enquanto as alterações se radicavam apenas no membro inferior esquerdo, fazia pensar num processo compressivo, lesando as raízes lombares e sacras dentro da bacia. No entanto, o exame objetivo do abdômen não demonstrando processo tumoral algum, desautorizava essa hipótese porquanto uma neoplasia capaz de o determinar deveria forçosamente ser de grande volume e, por conseguinte, ser palpável. Estava nosso raciocínio neste impasse: tínhamos à frente uma síndrome de cauda equina de evolução atípica e com um cortejo sintomatológico completamente anômalo, impossível de ser explicado por um processo compressivo intra-raquidiano. Impunha-se então o exame do líquido céfalo-raquidiano com as provas manométricas:

Punção lombar em decúbito lateral direito. Manobras manométricas de Stookey anormais, indicando estar parcialmente bloqueado o canal raquidiano. Líquor límpido e xantocrômico, tendo-se formado retículo fibrinoso. Citologia: 2,3 células por mm3. Albumina: 0,60 grs. por litro. Reação de Wassermann negativa com 1 cc.

Estes resultados, mostrando a existência de um processo compressivo intra-raquidiano alterando a hidrodinâmica do líquor e modificando sua composição química, impunham o exame radiológico da coluna vertebral contrastada com lodipina:

Punção suboccipital em decúbito lateral direito. Pressão inicial 6. Foram injetados 3 cm3 de iodipina a 20% para fins radiológicos. Líquor límpido e incolor. Citologia: 0,2 células por mm3. Albumina: 0,10 grs. por litro. Reações de Pandy e Nonne negativas. Reação do benjoim coloidal 00000.00000.00000.0. Reação de Takata-Ara negativa. Reação de Wassermann negativa.

A Iodipina injetada parou completamente "entre L3 e L4 desenhando aspecto típico de tumor do canal vertebral ao nível de L4" (fig. 3).


Ficava assim demonstrada a existência de um processo tumoral intra-raquidiano ao nível de L3, comprimindo as raízes da cauda equina. A negatividade da reação de Wasserman descartava a etiologia luética. A sintomatologia e a evolução da moléstia não se enquadravam bem nas descrições clássicas das hipuropatias, porém os resultados das provas manométricas, as alterações do liqüido céfalo-raquidiano obtido por punção lombar em oposição com a normalidade do líquor retirado por via cisternal e o resultado da iodomielografia, impunham o diagnóstico e a terapêutica. A laminectomia foi indicada.

Operação: Incisão mediana de uns 15 cmts. de comprimento. Ressecção das apófises espinhosas de L2, L3, afastamento lateral dos músculos paravertebrais, sendo a libertação dos arcos vertebrais feita com rugina. A hemostasia dos vasos da região foi feita com soro fisiológico, quente e compressão. Destruídos os arcos vertebrais, encontrou-se ao nível de L3 para fora da dura-mater uma massa tumoral de aspecto gelatinoso situada mais para o lado esquerdo da linha mediana e que se, prolongava até o orifício de conjugação, atravessando-o. Retirado o tumor na sua parte intra-raquidiana, a dura-mater foi aberta, não se tendo verificado tumoração no espaço intradural. Em seguida fechou-se a dura-mater com seda, tendo sido feito um curativo seco e deixado um dreno no espaço paravertebral.

Pósoperatório: Nesse dia o paciente não dormiu bem porque sentia "queimação" ao nível das escaras. O pulso era fino, batendo 120 vezes por minuto. Pressão arterial 100 x 70. No segundo dia após a operação foi feito curativo, estando estacionário o estado geral. No quarto dia adveio um quadro clínico de insuficiência hepática aguda vindo a falecer em franca icterícia.

Necropsia: SS-18.852/43 - Dr. Antonio Cardoso de Almeida - "Cavidade abdominal: topograficamente, nada digno de nota. As vísceras da cavidade apresentam-se todas aderentes entre si por um véu conjuntivo pouco espesso que cede à tração, deixando ver por transparência as vísceras subjacentes, consequência provável de uma infecção peritonial pregressa. Na parede anterior, correspondendo à incisão ilíaca esquerda, notam-se dobras peritoniais devidas à sutura aí realizada. Nessa região as aderências são mais intensas. Fígado de volume aproximado ao normal, de consistência muito diminuída, fazendo com que o órgão se deforme quando colocado sobre a mesa de inspecção. Ao corte mostra-se de cor amarelada e apagamento total das estruturas. Diagnóstico: atrofia amarela subaguda. Na fossa ilíaca esquerda verifica-se a existência de grande massa tumoral (fig. 4). que atinge em profundidade o osso ilíaco, em extensão, da arcada crural até a 3.a vértebra lombar, envolvendo nesse ponto os elementos nervosos, no ponto de saída no canal vertebral. Como foi dito acima, essa massa invade ainda pelos orifícios de conjugação o próprio canal da medula, sem contudo penetrar na dura-mater. Na raiz superior da coxa esquerda verifica-se a continuidade do processo tumoral, determinando deslocamento da artéria femural esquerda e oclusão completa da veia femural correspondente. Para cima da região ocupada pelo tumor, essa veia apresenta-se trombosada e completamente ocluída. A veia safena interna da coxa, mostra-se também trombosada. Na sua porção superior, onde é circundada pelo processo tumoral, não é possível encontrar traços da mesma. O nervo crural e o fêmuro-cutâneo atravessam também as zonas ocupadas por essa massa tumoral. O exame microscópico mostrou tratar-se de Seminoma" (fig. 5).



COMENTÁRIOS FINAIS

O interesse desta observação reside no fato da necropsia ter adicionado elementos capazes de explicar toda a sintomatologia e a evolução da moléstia, fatos que não fora possível explicar clinicamente. Posteriormente, conseguimos apurar, no Hospital onde fora feita a operação de hérnia em junho de 1936, que fora extirpada, nessa época, "parte de massa tumoral proveniente de degeneração de testículo ectópico no canal inguinal esquerdo, estendendo-se à cavidade abdominal". Dessa remoção o paciente não fora informado e tampouco fora feito um tratamento radioterápico para eliminação ou tentado novo ato cirúrgico para extirpação completa da neoplasia. A radioterapia deveria ter sido instituída porquanto os seminomas respondem bem a essa terapêutica. Béclère4 4 . Béclère, A. - Le seminóme du testicule et le seminóme de l'ovaire. Presse Méd. 42: 1.513 (setembro, 29) 1934. , por primeiro, chamou a atenção sobre a esquisita sensibilidade do seminoma e de suas metástases gauglionares e viscerais. Constituem os raios X, atualmente, um valioso agente de cura, não só como coadjuvante indispensável da intervenção cirúrgica, senão adquirindo um papel primordial nas metástases não passíveis de intervenção. Cabot e Berkson5 5 . Cabot, H. e Barkson, J. - cit. por Moraes Barros, C. e Motta Pacheco, A. A. - Dois casos de seminoma. S. Paulo Méd. 14: 97-104 (setembro) 1941. , da Clinica Mayo, demonstraram que a sobrevida aumenta com a irradiação e que esta deve ser precoce. Também é incompreensível que o achado de u'a massa tumoral não levasse os cirurgiões a nova operação por outra via com a finalidade de extirpação completa da neoplasia.

Após esta primeira intervenção, a neoplasia que não havia ainda produzido sintomatologia alguma, consistindo somente um achado operatório, continuou muda por mais 9 anos. Este é um fato raro. Os seminomas são tumores malignos, pois se originam das células germinativas indiferenciadas que, normais nas gônadas antes da separação dos sexos, aí permanecem em estado latente após essa separação. Este fato, exposto por Meyer 6 6 . Meyer, R. - Ovarialtumorem und Geschletlichkeit - Klin. Wochenschr. 2: 2.237, 1930, cit. por Kirshbaum, J. D. e Jacobs, M. B. - Disgerminoma of the testicle. Surg. Gynecol. a. Obst. 71: 291-301 (setembro) 1940. , explica seu rápido crescimento e malignidade. Outro fato digno de menção é a grande capacidade dessa neoplasia em produzir metástases 7 7 . Ewing, J. - Neoplastic Diseases, 1 vol., 4.ª edição, W. B. Saunders Co., Philadelphia e Londres, 1941, pág. 859-861. que se localizam preferencialmente nos gânglios linfáticos mediastinais e às vezes nas costelas e vértebras, mas que podem afetar as vísceras e mesmo a pele. No caso presente, apesar do dilatado espaço de tempo entre a primeira operação e o início dos sintomas, não houve formação de metástases, tendo o tumor evoluído por contiguidade. Essa evolução é explicada pela disposição dos troncos e gânglios linfáticos do testículo8 8 . Ibarz, P. L. - Tumores malignos primitivos dei testículo. Publicação do Inst. Anat. Patol. da Fac. Med. Montevideo, Ed. V. Brum, 1934, págs. 12-19 e 25-29. , cujos troncos coletores ganham a fossa ilíaca, remontando até a região lombar, onde ocupam a lâmina dos vasos espermáticos, verdadeiro conglomerado vásculo-linfoganglionar situado na face profunda do peritônio. Do lado esquerdo os linfáticos terminam nos gânglios pré-aórticos situados na saída da artéria mesentérica inferior, nos gânglios justa-aórticos e retro-aórticos que se estendem em cadeia para cima até a origem dos vasos renais e para baixo até o ponto em que a artéria ilíaca é cruzada pelo uréter. Esta topografia ganglionar pode ser desbordada pelo cáncer que invade também a cadeia ganglionar ilíaca por via retrógrada. Estes dados permitem-nos entender o crescimento do seminoma, sua localização e as formações encontradas na superfície do rim durante a autopsia. As metástases dos gânglios supraclaviculares e as viscerais se explicam pela passagem de células neoplásticas pelo canal toráxico e corrente sanguínea, fato que não se deu neste caso. Esta invasão ganglionar é de diferentes graus podendo, como no caso em apreço, tomar a fossa ilíaca e a região paravertebral, formando uma verdadeira capa neoplástica que rodeia, infiltra e extrangula os vasos. Vimos que na autopsia foi encontrada urna grande massa tumoral de grande largura e extensão porém de pequena espessura (aproximadamente 2 cmts) situada profundamente. Esta forma e disposição explica a negatividade da palpação profunda, feita repetidas vezes, e o início da sintomatologia - dor e edema - por compressão de raízes nervosas e plexos e oclusão da veia femural. O segundo ato operatorio - ligamento da safena - feito intempestivamente no intuito de curar varizes que eram a única via de retorno possível ao sangue, circulação colateral periférica devida à obliteração das veias profundas, veio aumentar de muito o edema. Nessa ocasião ocorreu uma coincidência curiosa que redundou num erro diagnóstico: o advento brusco duma monoplegia no mesmo lado que a intervenção sem que existisse qualquer relação patogênica entre uma e outra. A neoplasia, depois de ter evoluído por 9 anos sem dar sintomatologia, produziu rapidamente dores radiculares e monoplegia crural para depois estacionar nessa sintomatologia por mais 6 meses, quando, por invasão do canal raquidiano, pelo orifício de conjugação, veio a produzir uma síndrome de cauda eqüina.

Esta evolução anômala da neoplasia, não originando metástases mas aumentando por contiguidade - cousa rara nos seminomas - sua localização profunda na bacia e sua forma laminar, de grande largura e extensão e pequena espessura, pôde originar a sintomatologia rara descrita neste doente. Alguns incidentes - desconhecimento da degeneração neoplástica do testículo operado há 9 anos, início brusco da sintomatologia coincidindo com uma operação de varizes mal indicada e evolução por surtos - originaram erros diagnósticos que tornam o caso interessante e instrutivo.

Rua Correia Dias, 132 - S. Paulo

Trabalho apresentado à Secção de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina em 5 de março de 1944.

  • 1. Cantó, A. e Pataro, V. F. - Degeneración maligna del testículo ectópico. Contribución a su estudio. Semana Méd. (Buenos Aires) 45: 474-484 (março, 31) 1938.
  • 2. Pace, J. M. e Cabot, H. - A histological study in twenty-four cases of retained testis in the adult. Surg. a. Obst. 63: 16 (julho) 1936.
  • 4. Béclère, A. - Le seminóme du testicule et le seminóme de l'ovaire. Presse Méd. 42: 1.513 (setembro, 29) 1934.
  • 5. Cabot, H. e Barkson, J. - cit. por Moraes Barros, C. e Motta Pacheco, A. A. - Dois casos de seminoma. S. Paulo Méd. 14: 97-104 (setembro) 1941.
  • 6. Meyer, R. - Ovarialtumorem und Geschletlichkeit - Klin. Wochenschr. 2: 2.237, 1930,
  • cit. por Kirshbaum, J. D. e Jacobs, M. B. - Disgerminoma of the testicle. Surg. Gynecol. a. Obst. 71: 291-301 (setembro) 1940.
  • 7. Ewing, J. - Neoplastic Diseases, 1 vol., 4.ª edição, W. B. Saunders Co., Philadelphia e Londres, 1941, pág. 859-861.
  • 8. Ibarz, P. L. - Tumores malignos primitivos dei testículo. Publicação do Inst. Anat. Patol. da Fac. Med. Montevideo, Ed. V. Brum, 1934, págs. 12-19 e 25-29.
  • Seminoma em testículo ectópico invadindo o canal vertebral. Síndrome de lesão dos plexos lombar e sacro

    Oswaldo LangeI; J. M. Taques BittencourtII
  • 1
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    45: 474-484 (março, 31) 1938.
  • 2
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  • 4
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    42: 1.513 (setembro, 29) 1934.
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  • 7
    . Ewing, J. - Neoplastic Diseases, 1 vol., 4.ª edição, W. B. Saunders Co., Philadelphia e Londres, 1941, pág. 859-861.
  • 8
    . Ibarz, P. L. - Tumores malignos primitivos dei testículo. Publicação do Inst. Anat. Patol. da Fac. Med. Montevideo, Ed. V. Brum, 1934, págs. 12-19 e 25-29.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1944
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