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Síndrome parkinsoniana na cisticercose cerebral. Estudo anátomo-clínico de um caso

Case report of Parkinson's syndrome in cerebral cysticercosis

REGISTRO DE CASOS

Síndrome parkinsoniana na cisticercose cerebral. Estudo anátomo-clínico de um caso

Case report of Parkinson's syndrome in cerebral cysticercosis

José Lamartine de AssisI; Evandro Pimenta de CamposII; L. C. Mattosinho FrançaIII

ILivre Docente de Neurologia na Fac. Med. da Univ. de São Paulo (Prof. A. Tolosa)

IIAssistente do Departamento de Anatomia Patológica da Fac. de Med. da Univ. de São Paulo (Prof. L. da Cunha Motta)

IIIMonitor do Departamento de Anatomia Patológica da Fac. Med. da Univ. de São Paulo (Prof. L. da Cunha Motta)

RESUMO

Os autores registram um caso cujo quadro clínico, desde o início, foi constituído por uma síndrome parkinsoniana associada a hipertensão intracraniana, tendo aparecido posteriormente síndrome de Parinaud e, no estádio final, hipertermia resistente à medicação. A interpretação clínica foi a de um processo inflamatório crônico, com aracnoidite bloqueante da fossa posterior, e invasão ou compressão do mesencéfalo e porção posterior do diencéfalo. Os dados de laboratório não facilitaram o diagnóstico etiológico.

O exame necroscópico mostrou numerosos cisticercos nos hemisférios cerebrais e um grande cisticerco racemoso na face ventral do tronco cerebral, cuja vesícula mais rostral media 25 mm de diâmetro. Esta localizava-se na fossa interpeduncular e produzia compressão das bases do pedúnculo, subtálamo e porção mamilar do hipotálamo. À volta de porções necrosadas do cisticerco foi encontrada leptomeningite crônica produtiva. A substância negra e os corpos mamilares mostravam grande redução do número de células nervosas.

SUMMARY

From the onset the clinical picture developed into a Parkinson's syndrome associated to intracranial hypertension and, later, Parinaud's syndrome; at the final stage there was also high fever, resistant to all medication. The clinical interpretation was that of a chronic inflammatory process (with blocking arachnoiditis of the posterior fossa) and invasion or compression of the mesencephalon and lower diencephalon. The laboratory findings did not clarify the etiology of the disease.

Post-mortem study showed numerous cysticerci in the hemispheres besides a large racemous one at the ventral aspect of brain-stem. The most rostral vesicle of the latter measured about 25 mm. in diameter, was filling the interpeduncular fossa, and caused wide deslocation of the bases pedunculi, subthalamus and mammillary portion of the hypothalamus. Chronic proliferative leptomeningitis was surrounding necrosed portions of cisticerci. The substantia nigra and the mammillary nuclei showed great reduction in the number of nerve cells.

Em que pese a freqüência com que é observada em nosso meio a cisticercose cerebral, julgamos de interesse comunicar este caso, em virtude da forma clínica não habitual assumida pelo mesmo. A evolução foi muito rápida (3 meses). 0 quadro neurológico constituiu a expressão de várias síndromes, dentre as quais se destacou, desde o início, a parkinsoniana. Finalmente, o diagnóstico etiológico em vida foi difícil por falta de elementos subsidiários sugestivos.

OBSERVAÇÃO

M. F. S., 26 anos, sexo feminino, branca, doméstica, examinada em 24-11-1953,. no Serviço de Neurologia (Reg. HC 350.994). Anamnese - A doença atual iniciou-se há um mês e meio, com crises diárias e súbitas de tremor, que principiavam nos membros inferiores e depois atingiam os superiores, sem que houvesse queda ou perda de consciência; esses acessos tinham duração variável da tempo e iniciavam-se à esquerda. As pernas foram ficando amortecidas (sic) e fracas (sic), até que, há um mês, a enferma não pôde mais ficar de pé, nem andar. E' de notar que, desde o início da doença atual, os movimentos ativos dos membros foram-se tornando lentos. Desde o começo a paciente tornara-se sonolenta, sintoma este que se intensificou progressivamente. Há 3 meses, cefaléia moderada, principalmente frontal.

Antecedentes familiares: A mãe teria sofrido de crises convulsivas cujas características não foram bem explicadas; o pai era alcoólatra crônica e teria apresentado episódios alucinatórios e delirantes; 4 irmãs vivas e sadias. Antecedentes pessoais: Há alguns anos, antes do início da moléstia atual, a paciente vinha apresentando ataques periódicos com característicos das crises de tipo histérico; a enferma sempre fora nervosa, irritável, hiperemotiva e muito temerosa, reagindo sempre com quadro depressivo aos menores estímulos que lhe fossem desagradáveis; durante ns menstruações essas manifestações neuróticas pioravam e surgiam cefaléia e vômitos; esses distúrbios datam desde a menarca, que teria ocorrido aos 15 anos de idade.

Exame clinico - Bom estado geral e de nutrição. Temperatura axilar: 37, 5°C Pulso: 120 bat./min, com características normais. Pressão arterial: 110-70 mm Hg (manômetro Tycos). Nada mais de importante no exame clínico.

Exame neuropsiquiátrico - A paciente mantém-se sonolenta a maior parte do tempo. Ao ser solicitada, abre os olhos e responde bem às perguntas que se lhe fazem, caindo imediatamente depois no estado de letargia anterior. Relatou com precisão sua história mórbida e seu passado. Está bem orientada auto e alopsiquicamente e não exibe idéias delirantes nem desordens de percepção. Fala, linguagem e praxia normais.

A paciente mantém-se em decúbito dorsal no leito e não consegue mudar de posição com seus próprios recursos. A fácies é caracterizada por um grupo de sinais que lembram o que se vê na encefalite letárgica e no parkinsonismo: sonolência acentuada, hipomimia, pálpebras cerradas, boca entreaberta, pele brilhante e umidecida por hipersecreção sebácea e sudorípara. Pesquisa do equilíbrio prejudicada. A paciente movimenta os membros de modo ativo e lento quando solicitada. Não parece haver ataxia, embora a pesquisa seja prejudicada em parte. Nítido déficit motor nas extremidades proximais dos quatro membros, verificáveis pelas manobras clássicas e predominando nos inferiores. Hipertonia do tipo extrapiramidal em todos os grupos musculares do corpo, com exagero dos reflexos de postura de Foix e Thévenard nos pés, especialmente do lado esquerdo. Não há tremores nem hipercinesias. Ausência de sinais piramidais de libertação. Regime geral de hiperreflexia; reflexo nasopalpebral vivo, e bem assim o reflexo palmomentoniano à direita. Baixa de visão, com edema de papila incipiente em ambos os lados. Paralisia do olhar vertical para cima. Paresia do abducente direito. Paresia facial bilateral de tipo periférico (?). Parece não haver alterações da sensibilidade na face, sendo que a parte motora do trigêmeo também parece normal. Olfatório, troclear e motor ocular comum, normais. A paciente deglute bem, porém não conseguimos examinar de modo conclusivo e eficiente os territórios do IX e X nervos cranianos. Os nervos VIII, XI e XTI estão normais. Esfincteres e trofismo, normais. O exame da sensibilidade não permitiu conclusão definitiva.

Exames complementar es - 1) Liqüido cefalorraquidiaiw. a punção suboccipital não permitiu a retirada de quantidade suficiente de liquor. A punção lombar no decúbito lateral revelou: pressão inicial 12 cm de água (manômetro de Claude); liquor límpido e incolor; 26 células por mm» (linfomononucLeares) ; proteínas 25 mg/100 ml; glicose 52 mg/100 ml; reação de Pandy, levemente positiva; reações de fixação de complemento para lues e cisticercose, negativas. Em virtude da hipertensão intracraniana não foram repetidas as punções raquidianas. 2) Reações de Wassermann, Kahn e Kline no sangue, negativas. 3) Exame hematológico: desvio à esquerda; neutrófilos com granulações tóxicas; não há leucocitose, porém, é de notar eosinofilia de 8%. 4) Craniograma normal. 5) Exame neurocular: papila de coloração róseopálida, com discreta elevação dos bordos no polo superior e no setor nasal superior, e apagamento discreto dos bordos nas mesmas regiões, em ambos os olhos; artérias e arteríolas estreitadas difusa e moderadamente. Conclusão: edema incipiente de papila e da retina justapapilar em ambos os olhos. 6) Eletrencefalograma: suspeita de foco frontal direito; as anormalidades frontais são muito discretas. O eletrencefalograma repetido com eletródio basal não apresentou modificações em relação ao anterior. 7) Carótido-angiografia cerebral direita: normal.

Evolução - A paciente foi piorando rápida e progressivamente, em particular a consciência, por isso que na última semana que precedeu o óbito ela entrou em torpor profundo, quase não reagindo aos estímulos externos, tendo surgido acentuada hipertermia, pois a temperatura, que oscilava ao redor de 37,5°C, se elevou subitamente e permaneceu em torno de 40°C, chegando, na fase final, a 41,5°C, sem responder a qualquer terapêutica antitérmica. O óbito ocorreu estando a paciente em estado comatoso e com acentuada hipertermia, em 12-12-1953.

Autópsia (SS. 36962) - Exame macroscópico: O encéfalo1 1 No restante da autópsia nada foi observado de particular. pesou 1.300 g, apresentando volume aumentado e sulcos de compressão ao redor das tonsilàs cerebelares. Na face ventral do tronco cerebral, nota-se um citicerco racemoso, cuja vesícula mais rostral é globosa, mede cerca de 2 cm de diâmetro e situa-se na fossa interpeduncular; suas demais vesículas divergem da linha mediana, havendo duas que, acompanhando o sulco pontobulbar, vão localizar-se na cisterna magna. Além desse, há vários cisticercos típicos, um deles calcificado, encontrados na leptomeninge das fissuras cerebrais laterais, fissura hipocampal esquerda e córtex do giro frontal médio direito (fig. 1). Leptomeninge fortemente espessada ao longo da face ventral do tronco cerebral, fissuras hipocampais e fissuras cerebrais laterais. Aos cortes frontais do cérebro, nota-se discreta e uniforme dilatação dos ventrículos laterais, sendo o epêndima granuloso e fosco nas paredes laterais do corpo desses ventrículos e nas colunas do fornix. A fossa interpeduncular, abrigando a vesícula maior do cisticerco racemoso, apresenta-se deformada por afastamento lateral das bases do pedúnculo e subtálamo (fig. 2), e deslocamento dorsal e rostral da porção mamilar do hipotálamo, a qual foi comprimida de modo a se transformar em delgada lâmina adaptada à vesícula, como um dedo de luva. Aos cortes do rombencéfalo nada digno de nota.



Exame microscópico: Material fixado em formol a 10%; colorações pelos métodos hematoxilina-eosina, hematoxilina fosfotúngstica, Perls e nitrato de prata (Ungewitter). Todos os fisticercos apresentam características histológicas típicas, ü racemoso apresenta-se necrosado em sua maior parte; dos outros, apentis um estava necrosado. A volta dos cisticercos não necrosados, nota-se discreta cápsula fibrosa, ao passo que, em torno dos necrosados, há neutrófilos degenerados, numerosos gigantócitos tipo corpo estranho, por fora dos quais se vê cápsula de tecido conjuntivo denso, infiltrado por linfócitos, plasmócitos e grandes mononuc

leares, células estas igualmente abundantes na leptompninge circunjacente (fig- 3). As artérias vizinhas apresentam acentuado processo de endarterite, com redução de sua luz. O tecido nervoso apresenta grande redução do número de células na substância negra e região mamilar do hipotálamo, notando-se, no subtálamo, um pequeno foco de amolecimento anêmico e algumas hemorragias perivasculares. No córtex cerebral e no núcleo lenticular notam-se alargamento de alguns espaços perivasculares e a presença de alguns macrófagos contendo pigmento hemossiderótico. Diagnóstico: cisticercose cerebral múltipla, com cisticerco racemoso na leptomeninge da face ventral do tronco do encéfalo.


COMENTÁRIOS

O caso tem não só interêsse clínico e anátomo-patológico como anátomo-clínico. E' de notar a evolução rapidíssima da sintomatologia, a forma clínica não habitual assumida pela cisticercose, além das várias síndromes neurológicas observadas. A síndrome de hipertensão intracraniana, o comprometimento de nervos cranianos e a dificuldade para a obtenção de liqüido cisternal, são compreensíveis pela leptomeningite crônica da base com vesículas cisticercóticas na face ventral do tronco do encéfalo e na cisterna magna. As síndromes de Parinaud e parkinsoniana poderiam ser explicadas por lesões da mesma natureza ao nível do mesencéfalo e subtálamo, acompanhadas de endarterite das artérias vizinhas, pelo amolecimento anêmico do subtálamo e pela grande redução do número de células na substância negra e na região mamilar do hipotálamo. A hipertermia final, acentuada, progressiva e rebelde a tôdas as terapêuticas provàvelmente se deve ao comprometimento do hipotálamo, atingindo vias termorreguladoras. Finalmente, outro ponto de interêsse no caso foi a dificuldade do diagnóstico etiológico, em vida, por falta de elementos subsidiários mais sugestivos.

Trabalho apresentado no Departamento de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina em 7 de junho 1954. Recebido para publicação em 13 setembro 1954.

Clínica Neurológica - Hospital das Clínicas - São Paulo

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    No restante da autópsia nada foi observado de particular.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Abr 2014
    • Data do Fascículo
      Mar 1955
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