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O método psicanalítico e a doutrina de Freud: Roland Dalbiez. Dois volumes com 638 páginas. Tradução e prefácio do Dr. José Leme Lopes. AGIR Editora, Rio de Janeiro, 1947

ANÁLISES DE LIVROS

O método psicanalítico e a doutrina de Freud. Roland Dalbiez. Dois volumes com 638 páginas. Tradução e prefácio do Dr. José Leme Lopes. AGIR Editora, Rio de Janeiro, 1947

Dividindo a obra em dois volumes - o primeiro dedicado à exposição de fatos e o segundo à discussão doutrinária - Dalbiez expõe com rigorosa exatidão o pensamento de Freud e as vantagens do método psicanalista, delimitando com precisão o campo de aplicação deste processo terapêutico. Pondo ao serviço da doutrina freudiana seus conhecimentos filosóficos e grande facilidade expositiva e didática, Dalbiez valoriza todos os fatos e argumentos em favor das idéias de Freud, discutindo as doutrinas que lhe são contrárias, sempre baseado em rigorosa seleção de exemplos destinados a servir de base indutiva à compreensão da psicanálise. Freudiano que segue à risca as grandes linhas mestras traçadas pelo criador da psicanálise, o autor, sem enveredar pela heterodoxia, discute a teoria de Freud assinalando suas facetas passíveis de crítica, atenua certos exageros primitivos da doutrina e esclarece questões obscuras cuja interpretação vinha sendo motivo de controvérsias pela deficiente exposição que delas fizeram Freud e seus discípulos diretos. Assume a crítica, assim, um caráter imparcial que lhe empresta valor de forte arrimo com o qual a doutrina freudiana e, principalmente, o método psicanalista adquirem novo valor.

No primeiro volume, os capítulos iniciais são dedicados ao estudo dos fatos da psicopatologia da vida cotidiana - atos sintomáticos, atos perturbados e atos inibidos - e do sonho, elementos que permitem a familiarização com os mecanismos psicológicos atinentes ao psiquismo inferior e com os métodos - interpretativo e associativo - de Freud. O capítulo referente ao sonho é particularmente ilustrativo, já pela exemplificação bem adequada, já pela seqüência expositiva, sendo estudadas as várias teorias que o explicavam antes de Freud, as diretrizes do método freudiano de análise, o dinamismo, os elementos, as fontes e os mecanismos de elaboração dos sonhos: condensação, deslocamento, dramatização, simbolização e elaboração secundária. À teoria da sexualidade é dedicado longo capítulo no qual, após discriminação preliminar das aplicações dos métodos genético e comparativo ao instinto sexual, são estudadas as aberrações sexuais, a sexualidade infantil, as transformações da puberdade, os instintos de vida e de morte na concepção freudiana.

Conhecidas estas preliminares básicas, aborda Dalbiez a teoria geral das neuroses, estudando-lhes a psicologia, a etiologia e a terapêutica. Nos capítulos seguintes, são justificadas as particularizações e modificações feitas nesta teoria geral para sua aplicação a diferentes neuroses e mesmo a várias psicoses. Neste capítulo, Dalbiez teve que fazer ligeira concessão aos limites que traçara para o plano geral do livro, assumindo o papel, não de simples expositor e comentador, mas o de defensor da doutrina freudiana, ao combater as idéias de Clérambault a propósito do automatismo mental. De grande interesse para os neurologistas é o estudo psicanalítico da histeria. Babinski, definindo o pitiatismo como o conjunto de perturbações passíveis de serem produzidas pela sugestão e suscetíveis de desaparecer pela persuasão, designando-o como "simulação inconsciente ou subconsciente" e atribuindo-o à ação de elementos afetivos que fixam a idéia mórbida e lhe dão a potência da realização plástica, abriu, no entender de Dalbiez, o caminho para a interpretação psicanalítica da histeria. Aceito que a realização psicoplástica histérica recebe seu impulso de fontes afetivas e, por outro lado, que dos choques afetivos freqüentemente resultam desejos recalcados, a doutrina freudiana explica o sintoma histérico como a realização disfarçada de um desejo recalcado. "Sendo o sintoma a satisfação substitutiva de um desejo, compreende-se porque Freud fale a esse propósito da vantagem primária da doença e da fuga na doença". O que, para Freud, carateriza esta neurose é a conversão: a energia afetiva recalcada converte-se em sintoma somático. Daí a necessidade da terapêutica psicanalista como tratamento de base, etiológico, em todos os casos de histeria.

Neste mesmo capítulo, sobremodo útil do ponto de vista da psicopatologia, há pequena parte destinada à "epilepsia psicógena", expressão que, no dizer do próprio autor, "provavelmente chocará alguns espíritos". Apesar de todo o esforço de Dalbiez, as provas aduzidas para demonstrar a etiologia psicógena para o mal comicial não são convincentes. As fontes bibliográficas em que se amparem são já bastante antigas, anteriores às recentes conquistas da eletrencefalografia. A pretensa etiologia psicógena da epilepsia, admitida pelos psicanalistas, não resiste à crítica, simplesmente porque nos casos relatados não houve prova eficiente de se tratar realmente de epilepsia. Mesmo no único exemplo reproduzido por Dalbiez - caso relatado originalmente por Reede - o diagnóstico sindrômico não foi bem esclarecido: os fatos relatados levam mais ao diagnóstico de histeria ou de verdadeira simulação consciente que ao de epilepsia. Aliás, Dalbiez não se sente muito à vontade nesta parte de seu livro, como se conclui do seu remate final: "Este caso ilustra muito claramente o que os psicanalistas chamam epilepsia psicógena. Deixamos ao leitor julgar, de acordo com a concepção sintomática da epilepsia a que se filie, se a doente de Reede era ou não epiléptica. Sempre restariam fenômenos convulsivos com perda de consciência produzindose há mais de quinze anos, e que foram liqüidados em seis meses pela psicanálise".

Conhecidos os fatos relativos ao psiquismo inferior e ao psiquismo mórbido, os últimos capítulos deste primeiro volume são dedicados ao psiquismo superior e ao papel atribuído por Freud ao instinto sexual na gênese e desenvolvimento - sublimação - da arte, das formas de moral e dos sentimentos religiosos. Termina êste volume a concepção freudiana da estruturação do psiquismo.

É no segundo volume que se encontram as opiniões de Dalbiez sobre o freudismo e sobre o método psicanalítico, baseadas em ampla documentação pessoal e em considerações doutrinárias de alto valor. Depois de defender a realidade do psiquismo inconsciente - base de toda a doutrina - e de ter estudado o dinamismo psíquico comparando as afirmativas de Freud com os resultados experimentais de Pavlov, o autor dedica vasto capítulo aos métodos freudianos de exploração do inconsciente, expondo minuciosamente as seqüências dos métodos associativo e simbólico, terminando-o por conclusões concernentes aos próprios métodos e às realidades psíquicas que eles permitem estudar. Nesta parte do trabalho há conselhos úteis aos psicanalistas a fim de que o método não seja alvo de desprezo por parte de outros especialistas. Não nos furtamos a uma longa citação, que mostra o cuidado com que se conduz Dalbiez: "Entre os obstáculos de ordem metodológica, mencionarei, em primeira linha, a impressão deplorável que as extravagâncias dos psicanalistas produzem sobre os pesquisadores sem preconceitos, mas que têm o culto da disciplina científica. Pode-se dizer, sem o menor exagero, que a psicanálise não tem piores inimigos que os psicanalistas. Como Kretschmer observa com razão: "o que torna muitas pessoas injustas em face da escola psicanalítica cujos méritos são, entretanto, imensos, o que contribuiu para lançar o descrédito sobre os resultados positivos eminentemente preciosos que ela obteve, foi a arbitrariedade, o dogmatismo, o descaso incompreensível que presidiram às suas demonstrações, à interpretação dos resultados obtidos" Claparède formulou as mesmas verificações em termos humorísticos: "Os psicanalistas parecem-me os corvos da psicologia. Eles veêm no escuro. É certamente uma grande vantagem, pois, nos subterrâneos de nosso subconsciente, como nas trevas da alma primitiva, passa-se sem dúvida muita cousa e eles descobriram múltiplas relações e fatos que haviam escapado aos outros psicólogos. Mas essa vantagem tem seu reverso: habituados à noite, eles parecem muitas vezes incapazes de suportar a luz e de expor suas concepções com clareza, sob uma forma racional que seja convincente para os que não são, como eles, convencidos previamente. Eles também perderam o sentido das gradações e parecem não mais distinguir uma hipótese de uma indução verossímil". Em face dos excessos freudianos, convém lembrar a velha máxima: abusus non tollit usum. Tendo sublinhado, nos capítulos anteriores, a importância capital que apresenta a distinção entre a metodologia psicanalítica, a sexologia científica da psicanálise e a filosofia freudiana da sexualidade, Dalbiez aborda o estudo da sexologia freudiana, dividindo o assunto em quatro secções: sexualidade e reprodução, evolução da sexualidade, desvios da sexualidade, especulações sexológicas de Freud. Nas conclusões desta parte, o autor, reconhecendo as qualidades de Freud como observador, o considera deficiente na aptidão para construções especulativas: sua sexologia, ao lado de resultados positivos eminentemente preciosos, contém grave fraqueza doutrinária, qual seja a da afirmativa da perversão polimorfa da infância, conceito que Dalbiez propõe substituir pelo de pervertibilidade polimorfa da infância. E, mais adiante: "Em sua sexologia, Freud procura reduzir a ordem à desordem, o essencial ao acidental, o normal ao anormal. Temos, pois, o direito de recriminá-lo, não só por sua grave deficiência fisiológica, mas por uma infidelidade caraterística à intuição, na qual repousa toda sua obra".

Terminam o livro capítulos dedicados à causalidade psíquica mórbida - nos quais Dalbiez estuda o dinamismo, o privilégio etiológico da sexualidade na gênese e a terapêutica das desordens psíquicas - e a situação da psicanálise em face da filosofia que dela decorre. As conclusões finais mostram bem a imparcialidade que carateriza todo o livro: "Muito faltou para que Freud soubesse traçar com precisão a fronteira que separa o pensamento superior realista do pensamento inferior derreista. Inumeráveis são em seus escritos os avanços do derreístico no terreno da especificidade dos valores. Devemos lamentá-lo, mas a eqüidade obriga a reconhecer que o primeiro explorador de um novo mundo não podia, levantar-lhe o mapa. Se se quer ter uma idéia da grandeza da obra de Freud, deve-se apontar em primeiro lugar a análise dos sonhos. Sòmente depois de Freud pôde-se filiar um sonho incomprensível para o próprio sonhador à sua estrutura intrapsíquica. Conhece a psicologia científica outros exemplos de um fenômeno psíquico tão comum, contemporâneo da humanidade, em todos os tempos incompreensível e enfim explicado? A obra de Freud é a análise mais profunda que conhece a história daquilo que no homem não é mais humano".

Este livro - "marco da literatura médico-psicológica" como o classifica no prefácio o Dr. José Leme Lopes, que o traduziu primorosamente - será lido com proveito por todos os médicos, sejam ou não especialistas. Os que sejam leigos no assunto terão, em excelente fonte, um balanço completo da obra de Freud e aprenderão a indicar os seus casos para a terapêutica psicanalítica; os que já se iniciaram na psicanálise encontrarão, de maneira altamente didática, admirável síntese crítica do método psicanalítico e da doutrina freudiana; os psicanalistas terão à sua disposição elementos precisos para a separação entre o método e a doutrina - separação indispensável para que teorias científicas e, o que é pior, construções metafísicas não sejam apresentadas no mesmo plano que os fatos - e para argumentação segura contra os que pretenderem negar o valor da psicanálise,

O. Lange

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Set 1947
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