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Estratégias Persuasivas da Arquitetura Barroca e suas Particularidades em uma Composição de Fachada Mexicana

Persuasive Strategies of Baroque Architecture and its Particularities in a Mexican Facade Composition

RESUMO

O propósito inicial deste artigo era apresentar a expressão de um modelo de fachada barroca mexicana, frente a conceitos e condições tanto da arquitetura barroca em geral como também de certos antecedentes espanhóis. Todavia, durante a investigação bibliográfica, especialmente alicerçada nas críticas do italiano Giulio Carlo Argan, percebeu-se que parte importante da caracterização da arquitetura barroca estava calcada apenas nas categorias da “persuasão” e da “imaginação” (ou “fantasia”). Apesar de suficientes para compreensão do espírito barroco, esses dois conceitos não conduzem objetivamente a estratégias compositivas que pudessem servir de parâmetro analítico. Por conseguinte, o artigo seguiu um caminho mais longo, passando por uma revisão bibliográfica que culminou na hipótese de seis estratégias persuasivas da arquitetura barroca. Embora essa parte do trabalho tenha autonomia frente ao que se seguiu, as avaliações das fachadas mexicanas dela dependem integralmente e, portanto, a derradeira parte não poderia ser publicada sem a primeira. Em seguida, o trabalho acompanhou a passagem do barroco à Espanha, como natural percurso até a América, revelando uma prática renascentista espanhola denominada “Plateresco”, imprescindível à compreensão do barroco religioso mexicano. Por fim, os dois conteúdos, das estratégias persuasivas barrocas e da composição plateresca espanhola, somaram-se para construir o substrato teórico que permitiu uma aproximação mais cuidadosa em relação ao objeto do trabalho. O resultado, apesar de heterogêneo, poderá servir como um novo ponto de partida para outras pesquisas sobre a arquitetura barroca.

PALAVRAS-CHAVE:
Barroco mexicano; Teoria do barroco; Arquitetura barroca

ABSTRACT

The initial purpose of this monograph was to present the expression of a Mexican Baroque facade model, facing the concepts and conditions of Baroque architecture in general, but also certain Spanish antecedents. However, during the bibliographic investigation, especially based on the criticism of the Italian Giulio Carlo Argan, it was noticed that an important part of the characterization of Baroque architecture was based only on the categories of “persuasion” and “imagination” (or “fantasy”). Although sufficient to understand the Baroque spirit, these two concepts do not objectively lead to compositional strategies that could serve as an analytical parameter. Therefore, the article followed a longer path, going through a literature review that culminated in the hypothesis of six persuasive strategies of baroque architecture. Although this part of the work is autonomous from what followed, the evaluations of the Mexican facades depend entirely on it and, therefore, the last part could not be published without the first. Then, the work followed the passage from the Baroque to Spain, as a natural route to America, revealing a Spanish Renaissance practice called “Plateresco”, essential to the understanding of the Mexican religious Baroque. Finally, the two contents, the baroque persuasive strategies and the Spanish plateresque composition, were added to build the theoretical substrate that allowed a more careful approach to the object of the work. The result, despite being heterogeneous, could serve as a new starting point for further research on Baroque architecture.

KEYWORDS:
Mexican Baroque; Baroque Theory; Baroque Architecture

INTRODUÇÃO

Sonha o rico sua riqueza que trabalhos lhe oferece; sonha o pobre que padece sua miséria e pobreza; sonha o que o triunfo preza, sonha o que luta e pretende, sonha o que agrava e ofende e no mundo, em conclusão, todos sonham o que são, no entanto ninguém entende. Eu sonho que estou aqui de correntes carregado e sonhei que noutro estado mais lisonjeiro me vi. Que é a vida? Um frenesi. Que é a vida? Uma ilusão, uma sombra, uma ficção; o maior bem é tristonho, porque toda a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são.2 2 Barca (2007, p. 74-75).

Na peça A vida é sonho, do século XVII, o espanhol Calderón de La Barca3 3 Ibid. conta a insólita história do príncipe Segismundo. Quando da gravidez de sua mãe, foi anunciada a profecia de que ele seria nefasto ao reino. Seu pai, o rei Basílio, tomado pelo medo, mandou construir, antes que Segismundo nascesse, uma torre de pedra em um local afastado, que serviria de moradia ao filho, alienado do mundo real e sob companhia intermitente de um amigo e criado de seu pai, Clotaldo. Quando o príncipe atingiu a idade adulta, o rei passou a ser assombrado pelo remorso de ter privado o filho da realidade, cogitando que a profecia poderia nunca ter se concretizado. Clotaldo propôs entorpecer Segismundo e levá-lo ao castelo, desacordado, para lhe contar que tudo o que passara na torre havia sido um sonho e sua condição real era a de príncipe. Todavia, a dificuldade de Segismundo em lidar com esse novo contexto o conduziu a um assassinato, o que pareceu, ao rei, um indício da veracidade do antigo agouro. Então, decidiu por ministrar novamente um narcótico ao filho e o reconduzir de volta à torre, onde acordaria acorrentado. Em vista disso, Clotaldo construiu para o príncipe outra narrativa: a de que o espaço do sonho não era, pois, aquele local ermo, mas a lembrança de sua vida na corte. Dessa confusão onírica surgiram as duas décimas aqui apresentadas.

A história de Segismundo tem sua narrativa própria e, em certa medida, fechada, mas dentre outros temas comparecem alguns que seriam caros a toda expressão artística barroca: a ilusão, a fantasia, a surpresa e o desconcerto de encarar a realidade como um sonho materializado. Longe de ser uma prática de excessos gratuitos, a arquitetura barroca era retórica para envolver e conduzir o sujeito a um mundo à parte de sua vida cotidiana, com mais encanto, no qual a banalidade não teria vez.

De que maneira isto se pôs em prática no espaço arquitetônico? Quais as condições e expressões da arquitetura barroca? Com algum estudo, pode-se perceber que as feições que se encontram na Itália são distintas das que foram produzidas no sul da Alemanha e mesmo do que se concebeu em território português no Brasil. O barroco, como outras manifestações artísticas, possuía uma plasticidade (no sentido do que é maleável) que o permitia incorporar, ou melhor, se deixar contaminar, por certas tradições de construir e viver, por certas simbologias e intensidades da vida pública. Conhecer essas diferentes expressões, longe de ser um exercício de pura erudição, da aquisição de um repertório que tem em si mesmo sua finalidade, é uma forma de emancipação cognitiva, uma vez que é através da diferença que se manifesta a consciência de si. Logo, quanto mais se conhece a respeito de contextos distintos, mais apto se está para refletir sobre sua própria condição. O contato com o outro dissolve a ideia de normalidade e faz discernir melhor entre o típico e o particular.

A esse respeito, escreveram Marx e Engels em A Ideologia Alemã, vinculando a construção da linguagem à consciência e esta à experiência de vida:

O “espírito” sofre, desde o início, a maldição de estar “contaminado” pela matéria, que, aqui, se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em suma, sob a forma de linguagem. A linguagem é tão antiga quanto a consciência - a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e que, portanto, também existe para mim mesmo; e a linguagem nasce, tal como a consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens.4 4 Marx e Engels (2007, p. 34-35).

[…] os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.5 5 Ibid., p. 94.

Isso justifica, em um contexto brasileiro, o estudo das produções estrangeiras. Ao contrário do que uma reflexão apressada poderia concluir, para se tomar consciência de nossa própria identidade, é preciso confrontá-la com outras, de modo a extrair o que ela tem de particular. Entender outro contexto, portanto, é sempre um dos caminhos fundamentais para a compreensão do que mais imediatamente nos rodeia e define.

No cenário latino-americano, talvez o Brasil seja o país que mais se mantém culturalmente alheio e isolado de seus vizinhos. Isso se explica, de um modo inicial, por sua distinta colonização, de matriz portuguesa e não espanhola, o que lhe conferiu uma língua falada e costumes próprios. Por outro lado, sua dimensão continental possibilitou, no campo da arquitetura, que em cada período uma linguagem construtiva se dispersasse excessivamente. Ao se deslocar entre capitais distantes, como João Pessoa e Rio de Janeiro, separadas por quase dois mil quilômetros de território, e confrontar suas arquiteturas, percebem-se semelhanças, um conjunto de reincidências compositivas, que faz crer em uma normalidade de estilo ou prática. É difícil perceber que trata-se de uma arquitetura brasileira, para além de barroca, classicista ou decorrente do Movimento Moderno do século XX. Apenas verificando que em outros contextos a expressão se modifica sensivelmente poder-se-ia tomar consciência dessa especificidade local e, portanto, de seu valor. O valor nasce justamente com a diferença. Como aferir o valor do que é local sem estabelecer uma comparação com suas variantes em outras conjunturas territoriais e, por isso, culturais?

No que respeita a arquitetura barroca, interessa verificar como as fantasias espaciais se materializaram, como possibilitaram o compartilhamento de uma certa imagem onírica que desconcerta e, por isso, persuade a aproximar-se e participar. Como se manifestou a arquitetura barroca nos territórios vizinhos ao Brasil?

Los dos grandes Virreinatos de Nueva España y Nueva Granada son los dos centros creadores de la cultura virreinal y en ellos el arte florece como en parte alguna. Pasada la época de las grandes catedrales no por eso la arquitectura religiosa perde vigor ni se debilita. Órdenes tan pujantes como La Compañía de Jesús promueven con inusitada riqueza la construcción de iglesias barrocas, que surgen por todas partes con la exuberancia de las plantas tropicales. Como sucede en España, y especialmente en Andalucía, el siglo XVIII supera en osadía, liberdad, fantasia y capricho a todo lo que hasta entonces se había hecho y podía pensar la imaginación más desbordada. Cuando en Europa el barroco iba poco a poco mitigándose para entrar en um renovado clasicismo, en Andalucía y México el barroco alcanzaba las máximas cimas de intrepidez y los más altos puntos de alambicamiento. 6 6 Chuecha Goitia (1985, p. 39).

Como exercício, decidiu-se aqui analisar uma expressão do antigo Vice-reinado da Nova Espanha na América, atualmente o México, na esperança de que a revelação de seu específico barroco auxilie na percepção da própria prática arquitetônica dos séculos XVII e XVIII, mas também se estabeleça como mais um parâmetro para a avaliação, em trabalhos posteriores, do valor do barroco brasileiro.

A metodologia estabelecida acompanhou o seguinte fluxo: em um primeiro momento, pensou-se necessário revisar os conceitos estabelecidos na literatura específica sobre arquitetura barroca, de modo a extrair-lhe as condições de existência; em segundo lugar, visto que parte das influências da arquitetura erudita no México se originaram da Espanha, tratou-se de verificar alguns antecedentes, como cuidado para não deixar escapar condições particulares da colonização; por fim, realizou-se a aproximação com a arquitetura barroca mexicana, atentando-se especialmente a um modelo de fachada que amadureceu no século XVIII e nos pareceu representativa da identidade do barroco local frente ao que se produziu na Europa ou no Brasil. Essa fachada não apenas incorpora um elemento construtivo e decorativo que lhe serve de assinatura, a estípite, como um tratamento global das superfícies que mostra uma maneira própria de materialização do onírico.

CONDIÇÕES E ESTRATÉGIAS PERSUASIVAS DO BARROCO ARQUITETÔNICO

Retomemos agora a história do termo “barroco”. Croce remete a origem da palavra à etimologia filosófica escolástica: “barroco” é um tipo particular de silogismo, que tem a aparência mas nenhum conteúdo de verdade (veja-se o velho exemplo: beber tira a sede, o sal faz beber, portanto o sal tira a sede). Calcaterra (Problema del barroco, 1945) propõe uma origem literária: em francês, “baroque” é o termo técnico de ourivesaria que designa a pérola de formação irregular. Tanto a primeira quanto a segunda interpretação interessam à busca pelo significado do termo. “Barroca” é a forma que tem a aparência, mas somente a aparência, de verdade; e, portanto, não é nem quer ser a representação do verdadeiro, mas um modo de valer-se das aparências da verdade para outro fim, que é e só pode ser um fim de “persuasão”; e é uma forma anômala em relação àquela que se pensa que seja a estrutura “regular” ou geométrica da natureza.7 7 Argan (2004, p. 266).

Uma das dificuldades comuns da análise das práticas arquitetônicas é passar do reconhecimento à conceituação. Nesse sentido, é mais fácil identificar uma linguagem arquitetônica qualquer que defini-la sem recorrer, de imediato, a exemplos práticos. Quando alguém se encontra impotente diante de uma situação desse tipo, é recorrente dizer que algo se enquadra em determinada prática quando se assemelha a certo grupo de objetos. Embora este recurso demonstre consciência em relação ao tema (o que é positivo), é também testemunho de uma dificuldade de ajuizamento que impede tanto o alargamento do assunto quanto o seu aprofundamento. Como saída para esse problema, em vez de definir as características invariantes dos objetos, pode-se recorrer ao exercício do reconhecimento de certas condições sem as quais aquilo que se discute não se manifesta. De certa maneira, este foi o método que o crítico italiano Giulio Carlo Argan8 8 Id. (1973, 2004). utilizou nas discussões a respeito do barroco.

O esforço para definir condições mínimas de existência da arquitetura barroca precisa considerar a relação entre elas. Isoladamente, cada uma de quaisquer categorias poderá apontar para manifestações arquitetônicas muito distintas. Apenas em conjunto elas estreitam as possibilidades e conduzem à compreensão da linguagem. Argan9 9 Id. (1973, 2004). aponta para duas delas em relação ao barroco: a “persuasão” (ou “retórica”) e a “imaginação” (ou “fantasia”). Na verdade, é preciso entender que a fantasia está a serviço da persuasão, ou seja, é o modo através do qual a persuasão acontece. Distintas arquiteturas, como o classicismo da Roma pré-cristã ou o gótico das catedrais medievais, são persuasivas, mas conseguem isso por meio de outros artifícios que não a fantasia.

O tema da persuasão é quase sempre atrelado a condições sociais em que uma entidade dominante delibera por ampliar sua influência e prestígio junto ao povo sem recorrer a artifícios de opressão explícita, como o seria um sistema de leis e a respectiva força militar que garantisse seu cumprimento. Na verdade, a persuasão tem uma amplitude de efeito muito maior e duradoura que o medo, pois implica em convencer o povo de que a entidade dominante deve ser preservada e fortalecida para o bem de todos e, portanto, é o próprio povo que a enaltece e defende. Os governos absolutistas e as organizações religiosas foram as instituições que mais fortemente se utilizaram desse instrumento vinculado à arquitetura e, desse contexto, nutriu-se o barroco.

Esse convencimento, no caso da arquitetura e do urbanismo, traduz-se em um convite à integrar-se a algo poderoso. Nada mais sedutor àquele que materialmente pouco possui do que a esperança de fazer parte de alguma coisa que supera sua vida. Por isso, a arquitetura barroca precisava ser uma demonstração de força (de um tipo específico, encantadora, e não opressora) e, ao mesmo tempo, não apenas destruir às barreiras que separam a população do edifício, mas fazer-se um convite transfigurado em pedras e tijolos:

Não há dúvida de que esse valor ambiental é transmitido por meio de alguns processos bem específicos de ilusionismo espacial, isto é, da determinação de um espaço imaginário verossímil. E isso se dá precisamente porque o convite, transmitido por meios visuais, é simplesmente um convite a entrar ou integrar-se.

O mesmo convite é expresso pelas fachadas das igrejas da época. A igreja não é mais um templo, um monumento isolado: percorre-se uma rua e encontra-se uma igreja, da qual muitas vezes só se vê a fachada. Obviamente essa fachada deve manifestar de modo sintético, em um único plano, o sentido monumental do edifício - ainda que modesto -, porque uma igreja é sempre, como instituição, um monumentum. E, como tal, ela deve distinguir-se não só dimensionalmente mas também plástica e volumetricamente das fachadas das outras casas que formam a parede da rua. […] o tema da persuasão é simplesmente o convite a entrar ou ao menos sentir-se partícipe do ambiente sagrado, já que, se essa é a espacialidade da fachada, “entra-se” na igreja simplesmente passando diante dela.10 10 Id. (2004, p. 41-42).

Por outro lado, como anunciado anteriormente, outras práticas arquitetônicas também surgiram como frutos de uma necessidade persuasiva. Na Roma pré-cristã, os fóruns (praças), cercados de edificações institucionais, tinham por motivação a construção de um certo orgulho romano e, mais que isso, a naturalização da existência do Estado como princípio de organização coletiva. Portanto, o espaço arquitetônico representava a continuidade de uma lógica entendida como positiva e universal: sem aquele Estado forte, Roma não seria possível. De modo análogo, nos maiores feudos medievais, a possibilidade de construção de uma catedral gótica não servia como instrumento de opressão, mas como persuasão àquela comunidade em relação a uma ordem também entendida como natural: se Deus é uma força redentora e o edifício religioso o representa, será um orgulho construí-lo e dele usufruir. Logo, qualquer ideia de que a presença do templo gótico, de dimensões colossais, oprimia a população, será falsa no ponto de partida, pois ele era o convite que aprofundava e prolongava temporalmente a relação do povo com a igreja, sem o ônus da insurreição que adviria de um gesto de coação.

Na Roma pré-cristã, essa persuasão era resultado da manifestação da ordem geométrica nas formas urbanas e arquitetônicas, decodificada facilmente por uma sintaxe de repetição e uniformidade. Nas catedrais góticas, em uma visão próxima a um observador da época, geralmente iletrado, eram os relevos figurativos e os vitrais que persuadiam, contando passagens bíblicas que enalteciam certas virtudes e condenavam determinadas práticas. Ao mesmo tempo, adentrar o espaço fechado era participar de uma cena em que as pessoas percorriam a região de penumbra ao chão enquanto admiravam o espaço iluminado no alto, próximo às abóbadas, denominado, por isso, clerestório (do inglês clear story): para guiar-se perante as incertezas da vida, dever-se-ia olhar para o alto, para o poder transcendente. Mas nenhum desses são meios através dos quais a persuasão barroca se dava.

A chave da lógica da arquitetura barroca, entretanto, não está na adoção de um novo vocabulário, mas em uma sintaxe que organizava os elementos já existentes de modo a suscitar o encantamento com a capacidade humana de subverter a naturalidade da ordem preestabelecida:

Pero no debemos olvidar que la arquitectura, y precisamente la arquitectura barroca, no inventa las formas fundamentales del edificio, las toma de la antiguëdad. Hace una arquitectura de columnas, de arcos, de cúpulas, de arquitrabes, de pilastras, o sea de elementos que se toman de la antigüedad em su aspecto tipológico y se supone que poseen em sí mismos la capacidade de manifestar, representar y construir el espacio. Mas ¿de donde se toman esos elementos? Se disse que de los monumentos antiguos, los monumentos de Roma. 11 11 Id. (1973, p. 16).

Na realidade, o repertório formal do barroco é o mesmo codificado pelos tratados clássicos do século XVI. Aliás, representa uma restrição, se comparado aos “caprichos” e “bizarrias” do maneirismo tardio; só Borromini e Guarini tentam modificá-lo, mas permanecendo quase sempre no âmbito das variantes. Ao contrário, o que muda profundamente, e em várias direções, é o processo associativo ou combinatório, a sintaxe da composição arquitetônica. E isso é compreensível: se a arquitetura deve ser persuasiva, se deve servir-se de palavras conhecidas para dizer coisas novas, então tudo pode ser modificado, exceto o vocabulário.12 12 Id. (2004, p. 41).

Percebe-se que qualquer tentativa de persuasão só pode ser bem-sucedida se a linguagem falada for entendida pelo seu público. Portanto, inventar um vocabulário próprio seria fatal para a empreitada. Assim, é no âmbito sintático que a linguagem barroca alcança seu objetivo, organizando os elementos arquitetônicos conhecidos de modo inesperado e, por isso, criando surpresa e encantamento. Esta é a segunda condição da arquitetura barroca: a materialização da fantasia, daquilo que pode ser compreendido, mas não se esperava encontrar no mundo real:

É sabido que as poéticas barrocas aspiram à ilusão e ao encantamento, e é claro que a primeira é o meio que conduz ao segundo. Mas agora sabemos que a ilusão, como fato psicológico e visual, não é tanto o prolongamento quanto a mudança de uma condição “normal”, e que precisamente essa alteração determina o choque emotivo que suscita a maravilha. […] O motivo do encantamento não reside apenas no espetáculo de coisas novas e inesperadas, mas também no fato de ver realizado algo que se imaginara ou que podia ter sido imaginado. O que mais surpreende, pois, é a técnica que traduz em algo real aquilo que a mente, com audácia, imaginou como possível. Admira-se, enfim, o prodígio da ação humana, que não tem limites diante de suas possibilidades.13 13 Ibid., p. 97.

Deve-se observar que o referido encantamento ocorre por meio de algum tipo de fantasia que estimula o artista a produzir. Não é mais o encanto da ordem regular da Roma pré-cristã, ou da colossal verticalidade das catedrais góticas, ou de qualquer outro efeito produzido por arquiteturas anteriores. No barroco, o encantamento se dá após materializada a fantasia de engendrar formas e espaços complexos sem se deixar conduzir a resultados destituídos de graça. Ao contrário, a arquitetura barroca opera as sugestões de movimento, ambiguidades e teatralidade com grande coesão. Como teria sido possível, com tão difícil articulação espacial, escapar de um resultado visual infeliz? Essa é a questão que o objeto barroco provoca como fonte do encantamento:

Nos domínios infinitos da imaginação, além da prática barroca da verossimilhança - ou seja, do direcionamento da arte para a expressão daquilo que simulava a realidade através do engano dos olhos, através da sugestão mágica, do ilusionismo óptico, mecanismos que abririam a arte para as dimensões ocultas da existência, para sua elevação a patamares superiores da mente humana, para a incorporação de miragens fantásticas -, também se firmaria como operação artística por definição o exercício ilimitado da fantasia, ação que serviria para romper implacavelmente a realidade sensível, expondo um mundo muito mais atraente, muito mais sedutor, um universo de alucinações intermináveis, de eternas ilusões. Assim, longe da natureza racionalizada, a poética barroca se libertaria totalmente através da imaginação.14 14 Baeta (2012, p. 134).

Por fim, posta a necessária articulação entre a imaginação e a persuasão, resta compreender como isso se manifestava no espaço físico. Uma das grandes dificuldades a esse respeito é que, como a arquitetura barroca pressupunha a liberdade sintática, não deveria existir uma gramática visual para definir essas operações. Em geral, os críticos do barroco evitam qualquer esforço nesse sentido, entendendo que violentaria a própria poética dessa arte. Por outro lado, como uma prática encerrada em seu contexto histórico, é possível olhar para o passado e encontrar padrões de composição.

O norueguês Christian Norberg-Schulz apontou para o fato de que o homem barroco reunia os conflitos históricos que o precederam e isso, de específicas formas, se materializava no espaço. O homem barroco seria, antes de tudo, pleno de potência, justamente por conseguir articular, em vez de negar, todas as visões do passado: a organização sistemática do espaço renascentista, o dinamismo maneirista, a qualidade transcendente da Idade Média e a presença antropomórfica da Roma pré-cristã.15 15 Norberg-Schulz (2007, p. 167). Esse acúmulo de conflitos, coesionados na totalidade da obra, terminava se manifestando por meio de oposições visuais ou da sugestão de movimento:

Dado que es sintética, la arquitectura barroca se catacterizava, al mismo tiempo, por la diferenciación y la integración formal. Las composiciones barrocas son ricas y complejas, pero también poseen um diseño majestuoso y comprehensivo. No son fáciles de comprender en una época como la nuestra, que carece del espíritu grandioso típico del Barroco.

El carácter comprehensivo barroco puede interpretarse tambíen como una síntesis de opuestos: espacios y masa, movimiento y quietud, estrechez y extensión, proximidad y distancia, vigor y gracia, grandiosidad y delicadeza, ilusión y realidad, obra del hombre y obra de la naturaleza.

[…] En este contexto deberá entenderse el concepto de extensión infinita y de forma “abierta”, así como los métodos desarrollados para concretar estas ideas, en especial da ars combinatoria espacial de Guarini, basada en la interdependencia y la interpenetración de las “células”. La célula unificada fue una invención de Borromini, así como el muro ondulado, que expresaba la nueva importancia fundamental del espacio.16 16 Ibid., p. 167-168.

Observando esses conflitos, pode-se iniciar uma lista de estratégias reincidentes para a configuração do espaço arquitetônico barroco, ainda que com a consciência de que elas não precisam aparecer associadas em um mesmo edifício. Algumas delas já foram apontadas por Norberg-Schulz, a saber: a alternância de temas opostos, a interpenetração de espaços (“células”) e a parede ondulada - embora aqui reivindique-se o direito de reinterpretá-las. A lista que se segue, de táticas compositivas de arquiteturas barrocas, é, portanto, uma elaboração preliminar, sujeita a toda sorte de reformulações, adições e supressões derivadas de críticas a ela direcionadas:

  1. Ilusionismo - mudança de perspectiva óptica, ou de escala do conjunto ou elementos em relação ao que se intui ou espera como representação do real. Em geral, o efeito de encantamento decorre do momento em que a ilusão se dissipa;

  2. Congestão ou Tautologia - repetição com proximidade de um mesmo elemento como colunas, óculos, frontões, nichos, entablamentos e cornijas, como artifício retórico, amplificando o efeito que o elemento teria caso em repetição regular e distanciada;

  3. Interpenetração - fusão ou concorrência de formas ou espaços;

  4. Antagonismo - alternância entre volumes ou superfícies de naturezas distintas, como volumes retilíneos e curvos, curvas côncavas e convexas, superfícies lisas e rugosas;

  5. Teatralidade Cinética - sequência de compressão e descompressão dos espaços, bem como rotações de focos visuais e mudanças de perspectivas do sujeito em movimento;

  6. Teatralidade Ornamental - cenografia dramática com pinturas figurativas ou elementos sinuosos (em relevo ou planares), de modo que o excesso dificulte a percepção dos contornos de volumes e espaços ou ofereça uma distração a eles.

Não é necessário, portanto, que um edifício barroco tenha grande intensidade de ornamentação, como se costuma imaginar. Os métodos para causar a impressão de estar diante de uma fantasia materializada podem ser de outra natureza. Inclusive, é importante também anotar que algumas dessas estratégias não nasceram com o Barroco. No período tardio do Renascimento, no final do século XV, já há registros de pinturas ilusionistas vinculadas à arquitetura (em francês, trompe-l’oeil), como a que simula um coro ao fundo do altar da Igreja de Santa Maria junto a São Sátiro, em Milão, de Donato Bramante. Essas experiências pontuais passaram ao Maneirismo com maior recorrência e, finalmente, foram aprimoradas e mesmo naturalizadas nos séculos XVII e XVIII, período do Barroco no Ocidente Católico.

Como exemplo da primeira estratégia, de ilusionismo, pode-se citar a Galeria do Palácio Spada (Figura 1), projetada por Francesco Borromini. Em um espaço curtíssimo, Borromini conseguiu dar a ilusão de profundidade e altura. A antevisão, a partir do pátio lateral do palácio, descoberto, é a razão de ser da galeria, visto que ela não conduz a nenhum ambiente de permanência. Percorrê-la destrói a ilusão, porque o piso que pensa-se plano é uma rampa, assim como as abóbadas do teto. As paredes opostas também não são paralelas, mas postas em convergência. Além disso, as colunas que parecem reduzir dimensionalmente apenas por efeito de perspectiva, o que era de se esperar, na verdade sofrem uma redução dimensional real, tanto em altura como em largura.

Figura 1
Galeria do Palácio Spada, arquiteto Francesco Borromini.

Outro exemplo de ilusionismo óptico do período barroco são os forros com pinturas chamadas “de quadratura”, que geram a impressão de continuidade das paredes da igreja até um plano celeste, a partir da definição de um único ponto de fuga. Os casos mais sofisticados desse tipo de pintura talvez sejam a do forro da Igreja de Santo Inácio de Loyola, em Roma, de Andrea Pozzo, e a do forro da Igreja de São Pantaleão, em Veneza, de Giovanni Fumiani.

Há ainda outras formas de ilusionismo, aparentemente mais simples mas muito inteligentes, como replicar um objeto já conhecido, normalmente de pequenas dimensões, mas em uma escala colossal. Foi o que fez Lorenzo Bernini quando projetou o baldaquino da Catedral de São Pedro. Os baldaquinos são geralmente pequenas estruturas de madeira cobertas de tecido para proteger um trono fixo ou móvel (quando em deslocamentos pela cidade). Bernini se utilizou desse mobiliário conhecido dando-lhe uma escala arquitetônica e, por isso surpreendente. Observar o Baldaquino de São Pedro à distância, a partir da porta de entrada da catedral, gera a impressão de se estar diante de um objeto de dimensões experimentadas. Com a aproximação, a ilusão se desfaz, gerando o encantamento. Portanto, embora seja um procedimento ilusório, como o da Galeria do Palácio Spada, a manipulação da escala é inversa.

A respeito da segunda estratégia, a congestão ou tautologia, poder-se-ia voltar ao caso da galeria do Palácio Spada. Nela, Borromini acentua a retórica do espaço barroco com o uso ostensivo das colunas, de tal forma que se torna impossível ver as paredes atrás delas.

Outro exemplo de congestão, ainda que menor, ocorre na Igreja de Santa Maria in Campitelli, de Carlo Rainaldi. Na fachada (Figura 2), as colunas também comparecem em uma quantidade e mesmo proximidade de modo muito mais efusivo e retórico do que um arquiteto do Renascimento poderia conceber. Do mesmo modo, na porção central do pavimento superior, a janela reentrante é coroada por um arco que, por sua vez, está encimado por um frontão duplo. Portanto, o tema do coroamento também entra na composição de modo redundante. No interior, a visão do altar é composta por uma cenografia de ao menos 14 elementos verticais, entre colunas e pilastras, em uma tautologia que amplifica a força de cada coluna pela presença das demais, como um arvoredo de pedra (Figura 3).

Figura 2
Igreja de Santa Maria in Campitelli, arquiteto Carlo Rainaldi.

Figura 3
Igreja de Santa Maria in Campitelli, arquiteto Carlo Rainaldi.

O tema da interpenetração talvez seja o mais raro dentro das experiências espaciais barrocas, utilizada pelos arquitetos com mais habilidade técnica, que marcavam presença nos canteiros de obras, visto que suas concepções desafiavam os melhores mestres estucadores e canteis. Esse era o caso de Francesco Borromini e Guarino Guarini. A gênese dos espaços é a transformação em cima de formas geométricas já conhecidas, mas que são superpostas, dilatadas e rotacionadas com liberdade e fantasia:

Cuando Borromini “diseña” S. Carlino comienza con un rectángulo, después curva los contornos, agrega capillas que luego serán también óvalos, etc., o sea que se produce uma transformación continua de la forma que evita los estratos planimétricos diversos, cada uno de los cuales supera al precedente. […] no existe uma “praxis” separada; la matéria adquiere um valor, no alcanza ningún “diseño” dado a priori, más aún, es un valor que sin lugar a dudas es superior a cualquier “diseño” dado a priori.17 17 Argan (1973, p. 26).

Além do exemplo da Igreja de San Carlo alle Quattro Fontane, citada por Argan, a cúpula de Sant’Ivo alla Sapienza (Figura 4), também de Borromini, apresenta o processo de interpenetração de espaços com geometrias distintas: um triângulo de pontas com cortes convexos e um trifólio. Isto se soma ao artifício ilusionista de transformar as pontas convexas do triângulo, marcado na cornija, nos gomos côncavos da cúpula, fazendo com que a diversidade posta na linha de cornija se transforme em uma unidade convergente. Como uma realidade se transformou na outra? Essa é a dúvida que gera o encantamento.

Figura 4
Sant’Ivo alla Sapienza, arquiteto Francesco Borromini.

Como explicou Argan, isso só é possível porque o projeto não é um processo linear, no qual a conceituação é dada antes do desenho. Ao contrário, o processo de conceituação envolve o desenho, e este irradia sua energia de volta às ideias iniciais, transformando-as, de modo que o conceito só surge com o projeto concluído. Não se trata, portanto, de colocar as ideias em prática, mas de, através da prática, construir as ideias.

O antagonismo, colocado por Norberg-Schulz como “síntese de opostos”, não é uma demonstração de incertezas. Ao contrário, é a crença indubitável na capacidade criativa do homem, capaz de conciliar, com coesão e harmonia, o que pareciam ser características de mútua aversão. No caso da pequena igreja de Sant’Andrea al Quirinale (Figura 5), de Bernini, o visitante é recebido por um muro côncavo, que acolhe ao mesmo tempo em que alarga aquele trecho da rua, estreita demais para a boa apreciação do monumento. Por outro lado, o pequeno nártex e a escadaria de entrada tomam a forma oposta - convexa -, criando uma tensão que captura a atenção do observador, apesar das pequenas dimensões do edifício.

Figura 5
Sant’Andrea al Quirinale, arquiteto Gian Lorenzo Bernini.

Além das oposições de curvas na entrada, Bernini instala um pórtico plano, alto e robusto o suficiente para fazer frente ao volume cilíndrico da igreja. Côncavo contra convexo, plano contra curva: por causa desses antagonismos, suscita-se a surpresa por um inesperado resultado de solidariedade entre os elementos da composição.

Embora as estratégias até aqui apresentadas sejam de algum modo teatrais, há uma em que o sujeito é colocado em uma arena de experiências visuais em concatenada sequência, para as quais o corpo em deslocamento é submetido a estímulos de modo muito mais envolvente. Por isso, uma teatralidade cinética. Nessa condição, o sujeito, ao mover-se, se surpreende com a cena, mas, logo em seguida, é levado a outro ponto do percurso, no qual outra visão inesperada o faz maravilhado e novamente estimulado a caminhar. Isso pode ocorrer na escala de um edifício, mas é no meio urbano onde alcança sua máxima potência. Esse é o caso da Praça de São Pedro (Figura 6), no Vaticano. Como projetada por Bernini, a Praça era a recompensa após o percurso por uma de duas estreitas ruas em meio ao casario. Parte desse efeito de surpresa não é mais possível, após a abertura da Via della Conciliazione, no final da década de 1930. A praça, formada por dois ambientes, um elíptico e outro trapezoidal, está circunscrita por quatro fileiras paralelas de colunas que, à medida que o sujeito se desloca, alternam a sensação de permeabilidade e enclausuramento. Ao mesmo tempo, chegando ao recinto elíptico, não pelo centro, mas nas proximidades dos focos, o perímetro termina por se colocar parcialmente em frente à fachada da catedral sem, todavia, se sobrepor à cúpula, que, por isso, passa a ser o centro das atenções.

Figura 6
Praça de São Pedro, arquiteto Gian Lorenzo Bernini.

Por fim, o derradeiro estratagema, menos presente na arquitetura barroca romana do século XVII, é o que se utiliza da profusão decorativa para que o sujeito não perceba com clareza os contornos do espaço - ou porque a ornamentação os encobre, ou porque ela é tão efusiva que tira a atenção, com encantamento, de todo o resto. Daí sua condição de teatralidade ornamental. Por outro lado, não é apenas a existência do ornamento em grande quantidade que dará ao espaço seu caráter barroco. Faz-se necessário que essa ornamentação venha carregada de dramaticidade e fantasia e, mais que isso, esteja comprometida com a construção de uma narrativa transcendente. Quando a ornamentação, ainda que intensa, é gratuita e perde o decoro para com a ficção proposta, denota não mais o espírito barroco, mas o que se denominou rococó. Portanto, é menos a cor de fundo branca o que caracteriza o rococó, mas seu caráter frívolo, isto é, despreocupado com a cena.

Essa prática barroca de ornamentação intensa é mais característica do Sul da Alemanha e da Península Ibérica e suas colônias. A tradição barroca germânica misturava pinturas a elaborados trabalhos de estucaria, com resultados claros e coloridos, embora dramáticos, como observa-se na Abadia de Ottobeuren (Figura 7), tornada realidade pela imaginação do arquiteto Johan Fischer. Distintamente, o barroco de matriz ibérica tem o douramento em salientes relevos talhados em madeira como uma das suas marcas (embora o ouro compareça como inegável catalizador da teatralidade, o resultado espacial se estrutura mais nos relevos esculpidos na madeira do que em seu revestimento e, portanto, dele não é inteiramente dependente).

Figura 7
Abadia de Ottobeuren, arquiteto Johan Michael Fischer.

Seja por meio do estuque, da talha, dos pigmentos ou do aspecto da madeira - nua ou dourada -, a exuberância visual, nesse caso, não pode ser entendida como excesso, pois não vai além da conta. Distintamente, se encontra na justa medida da teatralidade requerida pela cena, na demanda de distrair o olhar em relação aos contornos da cavidade arquitetônica. Por conta disso, não se pode compreender um barroco desse tipo cogitando que o ornamento tenha surgido em um momento posterior do projeto, após a concepção da caixa mural. Essa estratégia só alcança sua plenitude porque a ornamentação é decoro (de decere, ou seja, ser adequado) e, portanto, algo que nasce juntamente com o espaço ou, melhor, é tão espacial quanto as paredes e o teto. O ornamento barroco não é depositado sobre as superfícies, mas delas é constituinte inseparável desde o nascimento.

Algumas dessas estratégias foram combinadas de um modo peculiar no barroco produzido na América Hispânica, aqui cabendo a tarefa de apresentar sua expressão na arquitetura religiosa mexicana.

ESPECIFICIDADES HISPÂNICAS E HISPANO-AMERICANAS: DO PLATERESCO AO BARROCO ESTÍPITE

A direta aplicação de preceitos barrocos advindos de interpretações de experiências italianas ao repertório construído na América e, em especial, no México, poderá ser esclarecedora - no sentido de trazer à luz semelhanças de condições conceituais e mesmo de estratégias compositivas. Por outro lado, alguma coisa de importante se perderá, fruto das especificidades de matriz espanhola e de antecedentes pré-colombianos. Visto que o itinerário de análise até aqui desenvolvido teve início na Península Itálica, é lúcido passar à Espanha no caminho à América. Na verdade, considerando a brevidade deste ensaio, não será possível ampliar o esforço de genealogia do barroco mexicano às influências dos nativos, sobretudo Astecas, com sua cultura arquitetônica de intensos traços decorativos. Entretanto, o que poderá ser observado é que mesmo em território castelhano a ornamentação era viva e conduziria fatalmente a transformações na estrutura compositiva italiana que não poderiam ser negligenciadas.

A ocupação islâmica na Espanha se deu por mais de setecentos anos, do século VIII ao século XV. O trecho muçulmano da Península Ibérica - quase a totalidade, com exceção do litoral norte - passou a ser denominado Al-Andaluz. Após alguns séculos, não se tratava mais de um povo invasor, mas nativo. Gerações de cidadãos de Al-Andaluz jamais conheceram outro território e, dessa forma, sua arquitetura adquiriu, como era de se esperar, a condição de naturalidade para aquela região. A linguagem apresentava intensa decoração planificada, com desenhos de natureza geométrica, evitando as figuras humanas, animais ou fantásticas, que poderiam frutificar em adoração.

Por volta do século XII, a região de presença católica ao norte foi ampliada, absorvendo a prática do românico e, no século seguinte, do gótico. Por ter passado menos tempo ocupada pelos muçulmanos, as arquiteturas católicas dessa porção da península se assemelham mais ao que poderia ser encontrado na França. Do século XII, destaca-se a Catedral de Santiago de Compostela, em sua feição românica - hoje com uma exuberante fachada barroca. Do século XIII, as catedrais de Oviedo, de León e de Burgos. No centro-sul da Espanha, por outro lado, a presença islâmica se prolongou, fazendo da arquitetura dessa cultura a marca local. Apesar das questões bélicas de cunho político, a arquitetura espanhola da Idade Média saiu vitoriosa, absorvendo, em variados graus, as duas influências. Logo, o gótico tardio espanhol tem a marca ornamental do Islão, o que seria a base com a qual o Renascimento naquele território precisaria lidar:

A arquitetura do Renascimento oferece na Espanha peculiaridades muito distintas. Ainda que as formas da arquitetura italiana sejam conhecidas e estudadas, não são aceitas tal e como se utilizavam na Itália, adaptando-se ao contexto cultural hispânico. Na Espanha não se entende o Renascimento como uma ruptura relacionada ao imediato passado medieval, senão como culminação de um processo evolutivo no que se concretizam formas e ideias que timidamente floresceram na última fase da Idade Média.

Caracteriza-se em princípio esta arquitetura por dois aspectos básicos. Por uma parte a manutenção das formas estruturais góticas que persistirão por todo século XVI, salvo nas escolas maneiristas andaluzas e na arte oficial. Por outra, a primazia que se confere ao aspecto decorativo do edifício, pois, ainda utilizando-se o repertório ornamental italiano e inclusive seus sistemas de ordenação, a distribuição desta decoração é de raízes góticas, concretamente herdada da arte hispano-flamenga, do que evidentemente se guarda a afeição pela profusão decorativa que caracteriza a primeira fase do Renascimento hispânico, ou plateresco.18 18 Chuecha Goitia (1996a, p. 56).

A arquitetura renascentista espanhola que se convencionou chamar de Plateresco é uma experiência em grande parte decorativa, aplicada a construções existentes, de espacialidade e estrutura góticas (embora existam também construções inteiramente novas). As maiores expressões dessas intervenções se concentram em portadas e suas fachadas de acesso. O que geralmente caracteriza essas superfícies é uma repartição ortogonal bastante rígida, com as marcações verticais mais acentuadas que as horizontais, e um elevado grau de elementos ornamentais sem relevo exagerado, situados nos requadros da trama ou sobre componentes lineares. Essa tessitura de elementos decorativos lembrava, aos que batizaram essa prática, os trabalhos de ourivesaria que, na Espanha, denomina-se platería - em referência à palavra “prata” em castelhano (plata):

[…] o plateresco em sentido estrito corresponde ao primeiro terço do século XVI, caracterizando-se pela manutenção das estruturas góticas. Prolifera a minuciosa decoração que enriquece os enquadramentos de vãos e emprega-se sistematicamente a coluna abalaustrada de clara raiz lombarda. Na decoração seguem-se os modelos e a organização de candelabro do Quattrocento italiano, predominando os grotescos [grutescos], formados por caprichosas combinações de formas vegetais e animais reais ou fantásticos, ou cabeças e dorsos humanos, e que, conforme a organização a candelabro, dispõem-se simetricamente a um lado e outro de um tronco central. Outros motivos como lauréis, grinaldas, sereias, crateras, etc., abundam igualmente. Predomina nestes edifícios, portanto, a riqueza decorativa, obra maravilhosa de entalhadores e escultores que obriga o espectador a examinar o edifício como se de uma obra de ourivesaria [platería] se tratasse.19 19 Ibid., p. 59. Indicações de alternativas à tradução entre colchetes.

Na descrição de Chueca Goitia,20 20 Ibid. é importante destacar duas nomenclaturas: grotesco (ou grutesco) e candelabro. No campo da filosofia estética, algo grotesco é o que se presta ao riso, que é caricato, ridículo ou de proporções desarmônicas ou desequilibradas. Por outro lado, na história da arquitetura, deu-se esse nome também a certos ornamentos de relevo pouco saliente, que se utilizavam de figuras vegetais, animais, humanas, ou fantásticas para preencher paredes, pilares ou pilastras, em caráter decorativo, evitando o vazio. Não tem necessária relação, nesse caso, com qualquer coisa assustadora ou desprovida de beleza:

Hacia el año 1480 se produce um hallazgo arqueológico en Roma que despierta el interés de todos los artistas: el descubrimiento de pinturas antiguas de la época de los emperadores en la Domus Aurea neroniana. […] Las salas donde se ofrecían aquellas pinturas de la época augustea, por estar bajo el suelo, oscuras y llenas de humedad, se consideraron como bodegas o grutas, por lo que se las denominó, con expresión italiana, GROTTE. De ella se deriva el nombre con el que será conocida esta forma ornamental en los distintos idiomas: grotteschi, grutesque, grotteske, y GRUTESCO.21 21 Fernández Arenas (1979, p. 8).

O termo candelabro também carece de explicação, visto que intuitivamente poderá nos remeter ao objeto de metal capaz de comportar uma linha de esbeltas velas de cera para iluminação. No caso da ornamentação renascentista, chama-se de decoração em candelabro, ou no italiano a candelieri, uma linha de elementos em relevo no sentido horizontal ou vertical, normalmente aplicada em pilares, pilastras e portais, mas também podendo aparecer em quaisquer componentes salientes de natureza linear. Não se trata, portanto, da imitação da figura de um candelabro, com seus braços convergindo para um suporte central, mas apenas nos diz que foi aplicado ao objeto arquitetônico um tipo de ornamento em linha, vinculado a um elemento saliente da composição:

Estos motivos se despliegan horizontalmente en forma de frisos o verticalmente a modo de pilastras o columnas, según fórmula tomada de la Domus Aurea. En ambos casos se trata de composiciones a candelieri, a candelabro, forma compositiva que perdurará largo tiempo y es uno de los principios estructurales de la decoración grutesca. 22 22 Ibid., p. 11.

Essas estratégias decorativas são importantes, pois vão perdurar e transpor o Atlântico e o Renascimento, misturadas a outras linguagens. Todavia, há ainda uma outra característica do Plateresco que interessa na conformação da arquitetura em sua escala paisagística: essa ornamentação, não raras vezes, se conformava como um plano de adensamento decorativo apenas em volta da entrada do edifício, contrastando com paredes laterais mais lisas, com menos ou nenhuma decoração. O resultado disso na paisagem era de um grande retábulo, à semelhança dos painéis decorados que servem de fundo aos altares dos interiores das igrejas católicas. Isto, contudo, é um paralelo meramente formal no que se refere ao Plateresco, visto que poderia ocorrer em edifícios de utilização laica.

Pode-se observar esse resultado em alguns edifícios e intervenções platerescas no início do século XVI, pelas mãos de arquitetos como Juán de Álava e Enrique Egas. Ao primeiro, coube a fachada da igreja do Convento de San Esteban (Figura 8), em Salamanca, enquanto o segundo foi responsável pela Hospedaria dos Reis Católicos (Figura 9), em Santiago de Compostela. Os dois são representantes da chamada escola salmantina, com arquitetos que atuaram principalmente nas províncias de León, onde se encontra Salamanca, e Galícia, na qual se localiza Santiago de Compostela.23 23 Chuecha Goitia (1996a, p. 59).

Figura 8
Portada do Convento de San Esteban, em Salamanca, arquiteto Juán de Álava.

Figura 9
Portada da Hospedaria dos Reis Católicos, em Santiago de Compostela, arquiteto Enrique Egas.

Assim como a arquitetura islâmica alimentou essa expressão do Renascimento espanhol chamada Plateresco, a cultura e gosto pela decoração terminou refletindo também em um Barroco espanhol muito mais ornamentado que o italiano. Seria precipitado afirmar que o Plateresco culminaria no Barroco espanhol, mas não seria leviano concluir que ele é sintoma de uma tradição de intensa decoração na arquitetura, da qual possivelmente o espanhol não conseguiria se desvencilhar.

Não é incomum encontrar atrelado às experiências barrocas espanholas mais carregadas de ornamentos, de natureza bastante tridimensional - ao contrário dos grutescos utilizados no Plateresco -, a alcunha Churrigueresco, uma referência ao arquiteto José Benito Churriguera. Embora Churriguera tenha projetado edifícios inteiros, são alguns de seus retábulos religiosos que construíram sua fama, para o bem ou para o mal:

El calificativo que se manejaba en esse momento para caracterizar a la arquitectura española del siglo XVIII en su faceta más exaltada, era “churrigueresco”, acuñado despectivamente y difundido por los críticos ilustrados españoles de finales del siglo XVIII (Ponz, Bosarte, Llaguno). A pesar de la poca precisión y objetividad que revistió el nacimiento del término dieciochesco [referente ao século XVIII], su uso se mantiene en la historiografía del arte español, pero restringido en su aplicación a aquellas obras coetáneas de la actividad de José Benito Churriguera, caracterizadas por el empleo de la columna salomónica. 24 24 Gómez Martínez (1997, p. 24).

Como é possível notar pela descrição de Gómez Martínez25 25 Ibid. e pela imagem do retábulo do Convento de San Esteban (Figura 10), a congestão de elementos decorativos tem a coluna salomônica como destaque. Ela reaparece em outras obras de José Benito Churriguera, como o retábulo do Sagrário da Catedral de Segóvia (os sagrários são, para a cultura espanhola, o equivalente às capelas do santíssimo sacramento para a cultura portuguesa: o local onde ficam guardadas as hóstias consagradas). No referido Sagrário de Segóvia, embora de modo menos tautológico, as colunas salomônicas constituem o ponto de destaque da composição. Deve-se notar, todavia, um componente que aparece de modo muito discreto e é totalmente secundário nas composições de Churriguera: a estípite. Esse termo se origina do latim stipes, com o significado literal de “estaca”.26 26 Cf. Escudero (2014). Trata-se de um ornato em forma de tronco de pirâmide invertido, que pode aparecer literalmente nessa forma geométrica, transfigurado em contornos humanos ou combinações de outros elementos (Figura 11). A caracterização mais geral da estípite é, portanto, sua natureza tridimensional com um afunilamento do topo em direção à base.

Figura 10
Retábulo do Convento de San Esteban, em Salamanca, arquiteto José Benito de Churriguera.

Figura 11
Exemplos de estípites.

Apenas um olhar muito apurado é capaz de detectar as estípites nos retábulos de Churriguera, o que leva a concluir que não podem ser elas as condições de existência de um chamado “Barroco Churrigueresco” - ao menos com o rigor do vínculo entre esse arquiteto e sua efetiva produção. Na parte superior do retábulo de San Esteban, acima das colunas salomônicas, existem dois elementos verticais mais lisos, cujos coroamentos recebem ornatos que os alargam visualmente naqueles pontos, podendo ganhar, nessa interpretação, a silhueta de estípites, ainda que a forma base não corresponda a isso. Por outro lado, se analisado com rigor, as únicas estípites presentes nesse retábulo se concentram no nicho da porção central, em escala menor (Figura 12). No retábulo do Sagrário da Catedral de Segóvia, existe uma estípite em cada uma das ombreiras do portal, de modo muito discreto. Em resumo: o esbanjamento ornamental, de caráter bastante saliente, aliado às colunas salomônicas e, talvez, ao douramento das superfícies, são características mais reincidentes e destacadas na obra de Churriguera do que o uso de estípites.

Figura 12
Detalhe do mesmo retábulo, onde é possível identificar delgadas estípites (ornamento em forma de estaca - tronco de pirâmide invertido) nas laterais do nicho.

Essa questão é importante na aproximação ao Barroco mexicano, conquanto se verá associado a ele tanto o termo Churrigueresco quanto a estípite, considerados por alguns historiadores como temas indissociáveis:

[…] el churrigueresco cambia el suporte habitual del barroco, o sea la columna, bien salomónica o cilíndrica, pero cubierta de ornatos, por el estípite, um soporte de sección cuadrada o rectangular, formado por múltiples elementos: pirámides y prismas truncados, paralelepípedos, cartones sobrepuestos, medallones, guirnaldas, ramos, festones. Todo el adorno está esculpido a base de vegetales sobre fondos geométricos. El estípite es aislado o se adhiere al pano del retablo: entonces le llamamos pilastra-estípite. Su génesis sigue um desarrollo ascendente em complicación, como en todo barroco: es tímido al principio, audaz después, loco al final.

El introdutor del estípite em la Nueva España parece haber sido Jerónimo de Balbás, que trabajó en el altar de los Reyes de la catedral de México, a partir de 1718, y ejecutó después el “ciprés” y otras partes del templo metropolitano. 27 27 Toussaint (1990 [1948], p. 148).

No Retábulo de los Reyes, na Catedral do México (Figura 13), de Jerónimo de Balbás, é possível constatar a mesma exuberância ornamental dos altares de José Benito Churriguera. Não seria ilícito, em uma visão panorâmica, filiar um ao outro. Todavia, Balbás substituiu as colunas salomônicas por colunas-estípites, que passaram a ser os elementos característicos do barroco mexicano em seus exemplares de fachadas mais exuberantes. O que se percebe, portanto, é um objeto híbrido, o que faz com que a utilização da alcunha churrigueresco seja imprecisa:

Los grande pioneiros del estudio del arte novohispano, Manuel Toussaint y Francisco de la Maza, llamaban “churrigueresca” a esta modalidad, siguiendo la costumbre española de hace varias décadas. Después se sustituyó por la designación “barroco estípite”. Este término es más preciso, ya que realmente no hay obras en México que corresponden al estilo de José Benito Churriguera y sus seguidores. El churrigueresco se manifiesta aquí como una influencia indirecta, entre otras influencias, y mezclándose con rasgos particularmente novohispanos. 28 28 Carr (1995, p. 65).

Figura 13
Retablo de los Reyes, na Catedral do México, arquiteto Jerónimo de Balbás.

Um marco na transposição das estípites para fachadas de pedra é o Sagrário Metropolitano do México, projetado por Lorenzo Rodriguez. Por outro lado, ali a cenografia tridimensional do retábulo de Balbás se converte em uma fachada de tendência planiforme, a exemplo das portadas e frontispícios platerescos espanhóis, embora com muito mais relevo em sua decoração.

A esse ponto, percebe-se que o Retábulo de los Reyes guarda em si a potência para um barroco-estípite mas, por outro lado, também contém elementos churriguerescos, com tendência a outro tipo de desenvolvimento. De fato, isto se dá em duas direções opostas: para fora dos templos, aprimora-se a prática da fachada-retábulo de origem plateresca (agora barroca), mas com forte presença de estípites, ganhando conotações de retábulos urbanos ou de grandes marcos na paisagem ainda rural (no caso das vilas mineradoras, de ocupação rarefeita); e para dentro dos templos, os retábulos tendem a se expandir em talhas ou estuques dourados, explorando a teatralidade de um modo envolvente e, em muitos casos, perdendo as estípites de Balbás. Manuel Toussaint29 29 Toussaint, op. cit. chamou o primeiro de Churrigueresco e o segundo de Barroco Exuberante. Já Manuel González Galván, fazendo uma revisão da taxonomia de Toussaint, denominou o primeiro Barroco Estípite e o segundo Ultrabarroco:

El nombre de "Churrigueresco", aunque justamente honra al conformador de la pilastra, no siempre puede aplicarse de manera arbitraria o indiferente a obras de otros arquitectos que hi emplearon y difundieron, y quienes en realidad la impusieron, perfeccionaron y dieron crédito. […] Gloria de México es poseer la más extraordinaria cantidad, calidad y variedad de pilastras estípites de que país alguno pueda ufanarse; en ello no tiene rival y por esto se ha llamado estilo nacional, al barroco estípite. […] Es importante constatar cómo el barroco, en este momento de aparente falta de lógica constructiva, es sin embargo, lúcido y en el fondo clasicista, tanto en las directrices compositivas que emplea, como en la persistencia de elementos clásicos y en los detalles de molduración. […] La pilastra estípite lo prueba, al ser el último apoyo arquitectónico en que un estilo histórico emplea, de manera sistemática y novedosa, la herencia clásica; basta ver sus molduracíones, sus capiteles siempre corintios o compuestos, sus basas áticas o toscanas y la propia presencia del estípite. […] La modalidad tuvo su manifestación del primer tercio a fines del siglo XVIII y duró unos escasos cincuenta años.30 30 González Galván (1961, p. 54-56).

El término de “ultrabarroco”, inventado por el Dr. Atl para denominar el delirio final alcanzado por el barroco mexicano, especialmente en la obra de retablos, es muy adecuado […] a las últimas producciones en las que el estípite definidor desaparece o se desintegra a tal grado que se hace irreconocible al perder sus perfiles geométricos, distorsionado por excesos imaginativos. […] En ninguno de los estilos anteriores, alimentados por elementos clasicistas, se había dado jamás un fenómeno de inversión tan notable como el acontecido en el intercolumnio ultrabarroco; […] animado por la religiosidad barroca, hace su revolución, se abandera en el interestipite, avanza arrollando lo que le rodea, deja en segundo plano las pilastras, se hincha, las desplaza y llega a componer todo en tomo a los símbolos y hornacinas con esculturas.31 31 Ibid., p. 56-57.

Como já colocado, um exemplo importante do Barroco Estípite descrito por González Galván é o Sagrário Metropolitano do México (Figura 14), no qual são justamente as estípites os principais elementos da composição, que nutrem a fachada-retábulo de significado.

Figura 14
Fachada do Sagrário Metropolitano, ao lado da Catedral do México, arquiteto Lorenzo Rodriguez.

Por outro lado, é importante notar, na descrição de González Galván,32 32 Ibid. que o que ele denominou como Ultrabarroco não é um arranjo espacial necessariamente ausente de estípites, mas que as coloca em um plano focal secundário, possibilitando que os ornamentos entre elas tomem conta do conjunto, alastrando-se como uma fantasia descontrolada. Um caso notável é o da capela-mor da Basílica de Ocotlán (Figura 15), em Tlaxcala: nela, notam-se, sim, as estípites, mas elas têm importância muito menor na composição, cedendo lugar às folhagens ornamentais, nichos e esculturas, em uma profusão de informações que tira a atenção dos contornos espaciais e elementos estruturantes.

Figura 15
Capela-mor da Basílica de Ocotlán, em Tlaxcala, México.

Esse Ultrabarroco tem parentesco com algumas pontuais experiências brasileiras, a exemplo do interior da Igreja da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco, no Rio de Janeiro, ou da Igreja da Ordem Primeira de São Francisco de Salvador. Nada, porém, parece tão singular e com uma identidade tão profunda com a cultura barroca mexicana quanto as fachadas recobertas de estípites, como grandes retábulos. Por isso, como derradeira etapa desta investigação, os esforços concentrar-se-ão em analisar algumas fachadas do Barroco Estípite mexicano à luz de tudo o que foi revelado até este ponto.

QUATRO FACHADAS DO BARROCO ESTÍPITE MEXICANO

Como dito anteriormente, a condição para a existência do barroco arquitetônico é o estímulo à imaginação que conduz, por sua vez, a um objeto que gera encantamento e persuade o sujeito a participar do espaço - contextualizado por um conjunto de valores sociais que aspiram ao poder, religioso ou laico. A situação da população mexicana nativa era, no século XVIII, já de uma geral conversão ao catolicismo, mostrando a eficaz empreitada da igreja católica na América Hispânica. Por outro lado, o problema da atração de fiéis não é nunca uma questão concluída, visto que cada nova geração sofre todo tipo de estímulos e dúvidas, devendo ser conquistada como se muito do trabalho que historicamente se desenvolveu nunca tivesse sido posto em prática. Desse modo, as estratégias de sedução da religião, em especial no que concerne ao espaço arquitetônico, precisam ser renovadas de tempos em tempos, falando a linguagem de cada época. Esse é o contexto de renovação do século XVIII na América Hispânica (e também Portuguesa), que vai exigir do barroco todo o seu poder de persuasão.

Também se colocou aqui, de um modo bastante experimental, seis estratégias espaciais que o barroco arquitetônico utilizava para persuadir: ilusionismo, congestão ou tautologia, interpenetração, antagonismo, teatralidade cinética e teatralidade ornamental. Importa verificar em que medida essas categorias de práticas arquitetônicas aparecem no Barroco Estípite mexicano, com interesse particular em suas fachadas.

O tema da fachada religiosa no meio urbano ou na paisagem rural é reforçado de diversas maneiras. A primeira delas é a condição de excepcionalidade do edifício monumental frente às construções residenciais, efeito que, por si, já é capaz de seduzir. Além disso, mesmo no dia a dia da Roma barroca, nem todos paravam para entrar nas igrejas. Portanto, a igreja precisava sair do recinto fechado e tocar os fiéis ao ar livre. Arquitetonicamente, isso é resultado de um trabalho de tentar alcançar o deslumbramento por meio das fachadas:

As fachadas, como já se disse, não são mais a seção de uma perspectiva nem a superfície terminal de um bloco plástico; como fato visual, pertencem mais à rua ou à praça que ao edifício de que fazem parte. Borromini chegou até a conceber fachadas deslocadas em relação ao eixo da igreja e sem nenhuma correspondência com o interior. Inserida na parede de uma rua, a fachada da igreja se destaca dos edifícios vizinhos e serve de chamariz: convida o passante a entrar.33 33 Argan (2004, p. 121).

Além dessa questão cara ao edifício religioso, em qualquer contexto, existem duas tradições a ela somadas que desembocam na fachada-retábulo mexicana. A primeira, como se viu, refere-se a algumas experiências de fachadas do Plateresco espanhol, que, tendo como tema recorrente a intervenção em construções góticas, precisavam criar uma unidade formal para dar sentido à ação de edificar. Com isso, algumas das fachadas mais importantes do Plateresco, em especial da Escola Salmatina de construtores, terminaram adquirindo a feição de retábulos, mesmo em construções laicas. E mais: a específica composição dessas fachadas migrou ao México em um processo de transformação contínuo e surpreendente. Trata-se da estratégia de subdividir o plano em requadros ortogonais, nos quais os elementos verticais paralelos ganham uma importância visual maior, decorados por fileiras de ornatos intitulados grutescos - em um processo já existente na Itália Renascentista, da qual absorveu a alcunha de a candelieri.

A segunda tradição, da qual se ressentirá aqui de maiores explicações, remete ao próprio modo do nativo mexicano pré-colombiano lidar com os espaços abertos em momentos de celebração. As arquiteturas rituais Astecas possuíam espaços fechados mínimos, ficando a população espalhada nas praças fronteiras. Como forma de adaptação, as primeiras arquiteturas católicas missioneiras na região passaram a lidar com o espaço aberto de um modo diferente do que sucedia na Europa: entendiam que as celebrações poderiam ocorrer ao ar livre, em grandes átrios, desde que tivessem como pano de fundo a fachada da igreja que, nessa condição, ganhava ares de retábulo:

Para além do fato de solucionar a grave questão da falta de espaço nas igrejas erguidas para os indígenas, que deveriam ser convertidos e catequizados, o átrio, paradoxalmente, seria um artifício arquitetônico muito melhor adaptado à herança cultural e espiritual autóctone do que a cavidade interior das basílicas cristãs: os claustrofóbicos aborígenes estavam acostumados a assistir a seus rituais pré-colombianos a céu aberto; na verdade, a população nativa não compreenderia e não aceitaria, de imediato, o ato impositivo de se vivenciar grandes ambientes fechados para a oração e a missa, temendo-os, inclusive - preferindo formas exteriores de culto, que estariam impregnadas das tradições locais de atribuir caracteres especiais aos lugares.34 34 Baeta (2011, p. 522).

Logo, a importância da fachada como elemento de um simbolismo autônomo, já existente na Roma barroca, ganha um reforço significativo com o Plateresco e a cultura mexicana da vida no espaço externo. Com isso, embora se considere que a arquitetura não possa ser entendida sem o vazio interior que justifica o edifício, o referido contexto permite avaliar as fachadas barrocas mexicanas com muita autoridade frente ao interior, ainda que ele seja de uma exuberância notável e tenha, portanto, seu garantido lugar na história. Por outro lado, não é raro encontrar críticas em relação à prática da análise de fachadas, no que concerne ao universo da teoria da arquitetura, pelo entendimento de que isso conduziria à perda da compreensão do caráter de totalidade do edifício. Bruno Zevi responde a isso no que talvez seja seu livro mais rigoroso, Architectura in nuce:

[…] a paisagem, uma vez humanizada, composta por um artista, entra em pleno direito na arquitetura e na sua história: um mastro ou um menir, uma nascente de água ou um poste telegráfico ou telefônico colocados na natureza alteram-na vitalizando a paisagem, impregnando-a de imagens de arte. São elementos arquitetônicos sem cavidade interna, cuja presença todavia diminui, ou dilata, ou concentra, e como que acentua um espaço, destruindo ou exaltando as linhas e as massas, os dados da natureza. Por outras palavras, como dizia Eliel Saarinen em 1948, é necessário conferir um significado mais alargado ao espaço, não o limitando ao interior envolvido pela estrutura, mas estendendo-o até ao que envolve as construções e é por elas formado. O exocosmo, o universo que nos circunda, coincide com o endocosmo, o mundo interior.35 35 Zevi (1996, p. 77).

Considerando, pois, as fachadas das igrejas barrocas mexicanas num especial campo da história da arquitetura, devemos verificar alguns desses objetos na expectativa de que nos falem deles próprios. Para fim desse exercício, que poderá ser alargado em outros estudos, limitar-nos-emos à análise das fachadas de quatro igrejas:

  1. Igreja da Santíssima Trindade (Figura 16), na Cidade do México, cuja fachada teria sido construída entre 1755 e 1783. Especula-se (sem provas) que poderia ter sido de autoria de Lorenzo Rodriguez, embora ele tenha falecido em 1774, antes da conclusão da fachada;36 36 Toussaint, op. cit., p. 151.

  2. Igreja de San Francisco Javier (Figura 17), em Tepotzotlán, cuja fachada teria sido construída entre 1760 e 1762, obra de “diversos artífices, seguramente”;37 37 Ibid., p. 156.

  3. Igreja de Santa Prisca (Figura 18), em Tasco, construída entre 1751 e 1758, cujos arquitetos foram “uno llamado Durán - Diego Durán, que aparece en el padrón de 1754, o Miguel Custódio Durán, a quien hemos mencionado antes - y Juan Caballero”;38 38 Ibid., p. 155.

  4. Basílica de Ocotlán (Figura 19), em Tlaxcala, cuja data de construção da fachada não é precisa, mas que teria sido da segunda metade do século XVIII,39 39 Chuecha Goitia (1985, p. 51). e da qual também não se conhece a autoria, embora existam especulações de que o templo teria sido “ejecutado por mano de un índio en el interior: Francisco Miguel, según se dice”.40 40 Toussaint, op. cit., p. 156.

Figura 16
Igreja da Santíssima Trindade, na Cidade do México.

Figura 17
Igreja de San Francisco Javier, em Tepotzotlán.

Figura 18
Igreja de Santa Prisca, em Tasco.

Figura 19
Basílica de Ocotlán, em Tlaxcala.

Ainda que se esteja aqui qualificando essas construções dentro da modalidade do Barroco Estípite, a Igreja de Santa Prisca, a mais antiga das quatro, só absorve a estípite nos cunhais do módulo sineiro inferior, em uma forma elaborada, como pilastra-nicho.41 41 González Galván, op. cit., p. 64. Além disso, é a única em que as colunas salomônicas, típicas do estilo de José Benito Churriguera, se fazem presentes, ainda que de um modo muito tímido - em quatro linhas ao centro da fachada, denunciando talvez um dos últimos momentos em que foi preferida frente à estípite.

As igrejas da Santíssima Trindade, na Cidade do México, e de San Francisco Javier, em Tepotzotlán, possuem uma semelhança surpreendente. A partir delas será possível observar certos padrões que persistirão nas demais. Importa notar, ao centro, a fachada-retábulo com intensa ornamentação, na qual quatro linhas paralelas verticais de pilastras-estípite organizam a composição. Nessa questão existe o precedente dos grutescos a candelieri do Plateresco, que representam uma estratégica tautológica com efeito retórico. Por outro lado, a exuberância dessas linhas verticais termina enquadrando o conjunto em uma forte teatralidade ornamental típica do barroco, juntamente com a porção central deste retábulo de pedra, na qual se destaca uma linha de elementos no eixo vertical central, formada por uma porta, um óculo, nichos e medalhões. Essa fenestração no eixo central será outra característica reincidente. Um terceiro ponto importante é o fato de que um maior destaque para esse plano ornamentado se dá em antagonismo com a base da torre, muito mais lisa. A rugosidade só reaparece nos módulos sineiros e no coroamento.

Manuel Toussaint diria que a igreja de San Francisco Javier é tão extraordinária dentro do conjunto do Barroco Estípite (que ele prefere nomear, como já dito, Churrigueresco) que “aunque desapareciesen todos los demás, él solo bastaria para darle honra y prez”.42 42 Toussaint, op. cit., p. 156.

Nos casos das fachadas das igrejas de Santa Prisca e de Ocotlán, as mesmas três características se repetem: tautologia da pilastra-estípite, teatralidade ornamental, e antagonismo entre os módulos central e sineiros - rugosos - e as bases das torres - lisas. Todavia, o efeito de antagonismo se fortalece pelo fato de que, em cada um desses templos, foram construídas duas torres em vez de uma, e de uma verticalidade incomum para os padrões de várias práticas barrocas mundo afora. No contexto em que se inserem, seja o urbano atual ou o de vilas rarefeitas durante o século XVIII, o efeito hipnótico e sedutor dessas construções seguramente dotava o espaço que as envolve de uma certa atmosfera barroca.

Talvez o resultado formal de Ocotlán seja o mais elaborado dos quatro exemplos, principalmente pelo uso de colunas (espacialmente autônomas) nas torres em vez de pilastras (aderidas às paredes), resultando numa expressão muito mais movimentada e com mais áreas sombreadas frente ao outro fator notável: de que todo esse trabalho ornamental (este sim, Churrigueresco, mesmo com as estípites) não é feito em pedra, mas em alvenaria revestida com algum tipo de argamassa pintada de branco.

La técnica es imperfecta: estos estípites, estas estatuas no han sido talhados en piedra, sino elaborados a mano, en lo que se llama mampostería [alvenaria]. De ahí que sea necesario blanquearlos a la cal cada año, después de la estación de las lluvias. Por eso ofrece un aspecto de azúcar. Nada más atractivo, más conmovedor que esta gran fachada que flanquean dos torres, elevadas como aguijones al cielo azul, desde que nos vamos acercando a la colina em que se levanta el santuário. 43 43 Ibid., p. 156.

Não se sabe se as igrejas da Santíssima Trindade e de San Francisco Javier tiveram construídas apenas uma torre por questões de limitação orçamentária. Nesse caso, na fase de idealização provavelmente teriam como imagem a ser perseguida esse retábulo de pedra comprimido entre duas vigorosas massas com bases lisas. Ramón Gutiérrez já havia assinalado esse modelo (Figura 20), expressando-o como “la idea del retablo entre contrafuertes y torres”.44 44 Gutierréz (1997, p. 112).

Figura 20
Modelo de retábulo rugoso entre bases de torres lisas com módulos sineiros rugosos.

Uma acusação que poderá ser levantada é a de que os quatro exemplos foram escolhidos justamente para provar a tese de que se sistematizou um modelo dentro de uma prática barroca mexicana, mas que, diferentemente, esses quatro exemplos seriam aqueles que poderiam fugir de um conjunto arquitetônico que não respeitaria padrões. O escasso espaço de texto de um artigo, todavia, é o que justifica a circunscrição do campo de análise, que poderia ser ampliado a exemplares igualmente vinculados ao modelo, como a Igreja de São Francisco, em San Miguel de Allende (Figura 21), a igreja de Nuestra Señora de los Dolores (Figura 22), em Dolores Hidalgo, ou a catedral de Zacatecas (Figura 23), entre outras. No caso da catedral de Zacatecas, a construção permaneceu sem os módulos sineiros até o final do século XIX. Talvez justamente a demanda por seguir o modelo fosse tão forte que levou a comunidade eclesiástica local a terminar o templo.

Figura 21
Igreja de São Francisco, em San Miguel de Allende.

Figura 22
Igreja de Nuestra Señora de los Dolores, em Dolores Hidalgo.

Figura 23
Catedral de Zacatecas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

El propósito del arte barroco era simbolizar al mismo tiempo la rígida organización del sistema y su poder de persuasión y, en consecuencia, la arquitectura se presenta como una síntesis singular de dinamismo y sistematización. Si bien los edificios barrocos se caracterizan por la vitalidad plástica y la riqueza espacial, un estudio atento revela siempre una organización sistemática subyacente. Persuasión y propaganda sólo se tornan significativas en relación com un centro que represente los axiomas básicos del sistema. Los centros religiosos, científicos, económicos y políticos del siglo XVII eran focos de fuerzas radiantes que, vistas desde el centro mismo, no tenían limites espaciales. Por lo tanto, los sistemas de la época poseían un carácter abierto y dinámico y a partir de un punto fijo podía prolongárselos al infinito. En este mundo infinito, “movimiento” y “fuerza” son de importancia primordial. Se comprende entonces cómo los dos aspectos aparentemente contradictorios del fenómeno barroco, sistematicidad y dinamismo, forman una totalidad significativa.45 45 Norberg-Schulz (2007, p. 151).

O que se intentou no presente artigo foi apresentar condições e estratégias da arquitetura barroca em geral, até chegar em casos específicos mexicanos, de modo a revelar o que a fantasia e o encantamento lançam a um segundo plano: a sistematização que se constrói em cada época e lugar para tornar o mundo reconhecível e seguro.

Do mesmo modo que o humanismo do Renascimento não significou a separação com a fé católica, a aparente ausência de regras do barroco, caminho natural para o surpreendente, não significava a recusa à repetição. Essas questões têm sido mal compreendidas atualmente, talvez porque o período pós-Segunda Guerra Mundial tenha sido tomado por uma sensação de aprisionamento histórico - contra o qual todos deveriam lutar, destruindo tanto quanto possível qualquer autoridade de uma estrutura subjacente à realidade que conectaria a todos dentro de determinadas cultura e época. Em tempos anteriores, as questões de sistema e linguagem possivelmente eram encaradas de modo mais natural. A própria ideia de religião não pode existir sem uma estrutura que lhe dê segurança e sentido. Assim também ocorre com qualquer linguagem visual, a exemplo da barroca: se um conjunto extenso e aparentemente heterogêneo de objetos recebem a mesma alcunha, alguma coisa material deve unificá-los, ainda que seja muito mais como atitude frente ao contexto que como composição plástica.

Se a tentativa de elencar algumas maneiras de encaminhar o espaço barroco não foi leviana, pôde-se perceber como o modelo de fachada barroca reincidente no México consegue comungar de fatores universais desse caráter persuasivo. Isso não significa que se assemelhe plasticamente ao que os arquitetos europeus faziam. A congestão ou tautologia das obras romanas, nas quais coroamentos e suportes verticais se repetiam retoricamente, não se assemelha visualmente às pilastras-estípite do barroco mexicano. Ainda assim, a atitude de reforçar o que se coloca como importante é subjacente às duas práticas. Do mesmo modo, a teatralidade ornamental do barroco alemão, claro, planar e colorido não se aproxima, como efeito, das rugosas e monocromáticas fachadas mexicanas. Todavia, persevera como critério subjacente. Por fim, a ideia de antagonismo que se concretiza no barroco italiano como oposição entre côncavo e convexo, curva e contracurva, não é o modo como o modelo mexicano mostra sua energia. Nele, a alternância entre rugoso e liso, movimento e força, é que surpreende e suscita a maravilha.

Observou-se, inclusive, que toda a retórica barroca não pode renunciar a um forte lastro histórico, como o caso do grutescos a candelieri do Plateresco espanhol, que sobrevivem nas pilastras-estípites das fachadas-retábulo mexicanas.

Giulio Carlo Argan, em seu ensaio El Concepto del Espacio Arquitectónico desde el Barroco a Nuestros Días, apresentou a ideia de que em cada época existiram arquitetos que seguiam uma certa ideia de espaço, com suas estratégias de composição recorrentes, e arquitetos que, sem abrir mão do vocabulário típico, transformavam a geometria de uma maneira peculiar. As obras idealizadas pelos primeiros, chamou de “arquitetura de composição”, enquanto aquelas com algo de insólito de “arquitetura de determinação formal”.46 46 Argan (1973, p. 17). Esclareceu também que o que dava sentido à segunda postura não era a fuga a outro lugar para refundar a arquitetura, mas a crítica. A diferença é que, para criticar, o artista deve manter-se, de algum modo, vinculado à prática que censura, mostrando que ela pode ser mais do que comumente se faz, ou seja, que está sendo subestimada. Aquele que foge para uma nova linguagem recria o ato da composição, embora distinta, a qual passa a reger a inédita prática, mantendo em situação confortável a arquitetura renunciada:

Hemos hablado del arte como imitación, como mímesis, pero el que quiere imitar reconoce la autoridad del objeto que imita. Por lo tanto, esa concepción que hemos llamado de la “arquitectura de composición” es una concepción con una base sistemática; una concepción que admite la existência de um sistema, ya sea el sistema del cosmos, el sistema de la naturaleza, o el sistema de las formas arquitectónicas expresadas por los monumentos antiguos y por los tratados. Pero de todas maneras admite el sistema y la autoridad del sistema. La arquitectura que hemos llamado de “determinación formal”, en cambio, no admite la autoridad del sistema y hace residir todo el valor del arte en la metodología del realizarse, del hacerse del arte. […] si él [o arquiteto de determinação formal] no realizara la crítica de la cultura existente y dominante en su época, si él quisiera inventar un modo totalmente libre para sus proprias formas, caería justamente en esa concepción de la arquitectura sistemática contemplativa de la que quiere liberarse. ¿Por qué? Ante todo, porque el concepto que este artista há debido eliminar es el concepto de invención. La invención es la creación. La creación es proponer algo totalmente nuevo, es ponerse em uma posición similar a aquella de la Divinidad que crea de la nada, el la mímesis, la imitación humana del acto divino, así como el arte que hemos llamado de “contemplación” o de “mímesis” - arte que admite el princípio de autoridad - se plantea como arte de imitación del gesto creativo divino.47 47 Ibid., p. 20-23.

O que interessa aqui deixar como questão em aberto para estimular a continuidade do debate é se essas atitudes, de “composição” e de “determinação formal”, não poderiam mutuamente transmutar-se a depender do contexto cultural no qual se inserem. Como visto neste estudo, as estratégias de composição da arquitetura barroca e o modelo consagrado de fachada do Barroco Estípite mexicano confluem para a ideia de sistema e, desse modo, de composição - de respeito a expressões consagradas, ainda que, em cada edifício se busque a variedade de tratamento necessária para responder à demanda por surpresa e encantamento. Por outro lado, o sistema criado no México é distinto daqueles instituídos em Roma ou no Brasil, de modo que, para os forasteiros, esse barroco mexicano surge repleto de crítica aos sistemas a ele externos. Nesse sentido, vistos de fora de seu contexto, nos parecem esforços de “determinação formal”.

Do mesmo modo, algumas experiências relativamente antigas e consistentes fora do contexto mexicano, ao adentrá-lo, causam um efeito de estranhamento frente ao sistema compositivo local, despontando como novidade, como manipulação plástica e consequente transformação do cânone, a enaltecer a capacidade humana de fantasia. Por isso, aparecem naquela cultura com um forte traço de “determinação formal”. Nesta condição se coloca a Capela del Pocito (Figuras 25 e 26), concebida pelo arquiteto Antonio Guerrero y Torres, e construída entre 1777 e 1791, na Cidade do México.48 48 Chuecha Goitia (1985, p. 76). Nela, observa-se íntima semelhança com uma planta de igreja presente no Terceiro Livro no Tratado de Arquitetura que Sebastiano Serlio publicou em 1552 (Figura 24) e, portanto, estaria, sob certo aspecto, vinculada ao espírito de sistema, de autoridade que os edifícios antigos teriam sobre os recentes. Por outro lado, Guerrero y Torres desenvolveu os volumes com liberdade, transformando uma planta romana em uma legítima, embora insólita, arquitetura barroca mexicana:

La Capilla del Pocito (1777-1791), que se hizo para cobrir el manantial que brotara donde se le apareció la Virgen a Juan Diego, es la obra cumbre de Guerrero. […] Guerrero tomó inspiración de um edifício romano cuya planta publica Serlio en su Tratado de Arquitectura, cuyo livro III tradujo Villalpando al español em 1560. Pero siendo el edifício antiguo una ruina no pudo Serlio imaginar las elevaciones, y el arquitecto mexicano, com la más soberana liberdad, la inventó. El pequeno edificio está organizado en tres espacios: vestíbulo, capilla y sacristia, que siguen un eje principal. Esto da lugar a tres cúpulas que se aprietan entre sí. No tiene apenas cornisas y las cúpulas parecen brotar del suelo, sin ruptura entre los cuerpos que las sustentan y su esfericidad. Éstas, a su vez, se sumergen en un antepecho-crestería [platibanda-coroamento] de movida silhueta. Es uno de los edificios más policromos de toda la arquitectura del Estado de México, pues además del tezontle [pedra local, de cor terrosa avermelhada] y la blancura de la piedra, antepechos y cúpulas está revestidos de azulejos blancos e azules formando espiguillas [escamas]. Casi todos los huecos son claraboyas estreladas y um conato de portada no rompe la tersura cilíndrica del cuerpo del vestíbulo. Todo queda envuelto em lo compacto de la massa escultórica general, dominada por la cúpula mayor.49 49 Ibid., p. 76-79, anotações nossas entre colchetes.

Figura 24
Planta de Igreja presente no Livro Terceiro do Tratado de Sebastiano Serlio, de 1552.

Figura 25
Planta da Capela del Pocito, Cidade do México, arquiteto Antonio Guerrero y Torres.

Figura 26
Capela del Pocito, Cidade do México.

O que a arquitetura barroca nos mostra não é o desequilíbrio e a negação do mundo, mas, ao contrário, a possibilidade de ser parte da coletividade e indivíduo simultaneamente: sistema e crítica. Os espaços oníricos não são tirados de um repertório transcendente, mas da própria história, manipulada para que mostre sua versão mais encantadora. Nesse sentido, a obra barroca não adota a mentira para enganar, mas para revelar, através do inabitual, uma verdade latente: que o ser humano tem como estímulo de vida superar-se.

FONTES ICONOGRÁFICAS

LIVROS, ARTIGOS E TESES

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  • ZEVI, Bruno. Architectura in nuce: uma definição de arquitectura. Lisboa: Edições 70, 1996.
  • 2
    Barca (2007BARCA, Calderón de la. A vida é sonho. São Paulo: Hedra, 2007., p. 74-75).
  • 3
    Ibid.
  • 4
    Marx e Engels (2007MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 34-35).
  • 5
    Ibid., p. 94.
  • 6
    Chuecha Goitia (1985CHUECA GOITIA, Fernando. Historia de la arquitectura occidental. Madri: Dossat, 1985. t. 8., p. 39).
  • 7
    Argan (2004ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 266).
  • 8
    Id. (1973, 2004).
  • 9
    Id. (1973, 2004).
  • 10
    Id. (2004, p. 41-42).
  • 11
    Id. (1973, p. 16).
  • 12
    Id. (2004, p. 41).
  • 13
    Ibid., p. 97.
  • 14
    Baeta (2012BAETA, Rodrigo Espinha. Teoria do barroco. Salvador: Edufba, 2012., p. 134).
  • 15
    Norberg-Schulz (2007NORBERG-SCHULZ, Christian. Arquitectura occidental. Barcelona: Gustavo Gili, 2007., p. 167).
  • 16
    Ibid., p. 167-168.
  • 17
    Argan (1973ARGAN, Giulio Carlo. El concepto del espacio arquitectónico desde el barroco a nuestros días. Buenos Aires: Nueva Visión, 1973., p. 26).
  • 18
    Chuecha Goitia (1996aCHUECA GOITIA, Fernando. História geral da arte: arquitetura III. Madri: Del Prado, 1996., p. 56).
  • 19
    Ibid., p. 59. Indicações de alternativas à tradução entre colchetes.
  • 20
    Ibid.
  • 21
    Fernández Arenas (1979FERNÁNDEZ ARENAS, José. La decoración grutesca: análisis de una forma. D’Art, Barcelona, v. 5, p. 5-20, 1979., p. 8).
  • 22
    Ibid., p. 11.
  • 23
    Chuecha Goitia (1996aCHUECA GOITIA, Fernando. História geral da arte: arquitetura III. Madri: Del Prado, 1996., p. 59).
  • 24
    Gómez Martínez (1997GÓMEZ MARTÍNEZ, Javier. Historicismos de la arquitectura barroca novohispana. Ciudad de México: Universidad Iberoamericana, 1997., p. 24).
  • 25
    Ibid.
  • 26
    Cf. Escudero (2014ESCUDERO, Lorenzo de la Plaza. Dicionário visual de arquitetura. Lisboa: Quimera, 2014.).
  • 27
    Toussaint (1990 [1948]TOUSSAINT, Manuel. Arte colonial en Mexico. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1990 [1948]., p. 148).
  • 28
    Carr (1995CARR, David Charles Wright. Las modalidades en los templos barrocos novohispanos. In: KUBLER, George; MARKMAN, Sidney David; CARR, David Charles Wright. Tres visiones norteamericanas sobre el Arte novohispano. Cidade do México: Textos Dispersos, 1995., p. 65).
  • 29
    Toussaint, op. cit.
  • 30
    González Galván (1961GONZÁLEZ GALVÁN, Manuel. Modalidades del barroco mexicano. In: Anales del Instituto de Investigaciones Estéticas, México, v. 8, n. 30, p. 39-68, 1961. DOI: 10.22201/iie.18703062e.1961.30.702.
    https://doi.org/10.22201/iie.18703062e.1...
    , p. 54-56).
  • 31
    Ibid., p. 56-57.
  • 32
    Ibid.
  • 33
    Argan (2004ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 121).
  • 34
    Baeta (2011BAETA, Rodrigo Espinha. Teatro em grande escala: a cidade barroca e sua expressão na América Hispânica. 2011. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011., p. 522).
  • 35
    Zevi (1996ZEVI, Bruno. Architectura in nuce: uma definição de arquitectura. Lisboa: Edições 70, 1996., p. 77).
  • 36
    Toussaint, op. cit., p. 151.
  • 37
    Ibid., p. 156.
  • 38
    Ibid., p. 155.
  • 39
    Chuecha Goitia (1985CHUECA GOITIA, Fernando. Historia de la arquitectura occidental. Madri: Dossat, 1985. t. 8., p. 51).
  • 40
    Toussaint, op. cit., p. 156.
  • 41
    González Galván, op. cit., p. 64.
  • 42
    Toussaint, op. cit., p. 156.
  • 43
    Ibid., p. 156.
  • 44
    Gutierréz (1997GUTIÉRREZ, Ramón. Arquitectura y urbanismo en iberoamerica. Madri: Cátedra, 1997., p. 112).
  • 45
    Norberg-Schulz (2007NORBERG-SCHULZ, Christian. Arquitectura occidental. Barcelona: Gustavo Gili, 2007., p. 151).
  • 46
    Argan (1973ARGAN, Giulio Carlo. El concepto del espacio arquitectónico desde el barroco a nuestros días. Buenos Aires: Nueva Visión, 1973., p. 17).
  • 47
    Ibid., p. 20-23.
  • 48
    Chuecha Goitia (1985CHUECA GOITIA, Fernando. Historia de la arquitectura occidental. Madri: Dossat, 1985. t. 8., p. 76).
  • 49
    Ibid., p. 76-79, anotações nossas entre colchetes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2022
  • Aceito
    08 Ago 2022
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