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WILHELM VON HUMBOLDT: PARALELOS COM O CÍRCULO DE BAKHTIN E CONTRIBUIÇÃO PARA A QUESTÃO DA DIVERSIDADE LINGUÍSTICA

RESUMO

Wilhelm von Humboldt foi um teórico de peso na formação da linguística europeia e da russa. Seu pensamento influenciou amplamente a Escola de São Petersburgo, matriz do Círculo de Bakhtin. Não à toa, conceitos centrais para Mikhail Bakhtin e Valentin Volóchinov dialogam com o pensamento do teórico alemão. Neste artigo, expressamos essa relação através do paralelo entre os conceitos humboldtianos “visões de mundo” e “dualismo”, por um lado, e os aplicados por Bakhtin e Volóchinov “ideologia do cotidiano” e “dialogismo”, por outro. Nosso intuito é facilitar a recepção das ideias de Humboldt pelo público brasileiro, já familiarizado com o Círculo de Bakhtin. Após a exposição teórica, elencaremos excertos de duas conversas com especialistas russos e brasileiros da linguística, educação e ciência sobre a preservação da diversidade linguística, para demonstrar que a concepção de Humboldt sobre a mesma como sendo uma riqueza intelectual está presente nas falas desses especialistas – inclusive, dos brasileiros. Pretendemos, com o artigo, deixar apontada a importância de o Brasil receber mais ampla e aprofundadamente as ideias de Humboldt.

Wilhelm von Humboldt; círculo de Bakhtin; dialogismo; visões de mundo; diversidade linguística

ABSTRACT

Wilhelm von Humboldt was an important theorist in the formation of European and Russian linguistics. His thinking largely influenced the St. Petersburg School, the headquarters of the Bakhtin Circle. No wonder, Mikhail Bakhtin and Valentin Voloshinov central concepts dialogue with the thinking of the German theorist. In this article, we show this relationship through the parallel between the Humboldtian concepts ‘worldviews’ and ‘dualism’,on the one hand, and those applied by Bakhtin and Voloshinov – ‘behavioral ideology’ and ‘dialogism’, on the other. Our aim is to facilitate the reception of Humboldt’s ideas by the Brazilian public, already familiar with the Bakhtin Circle. After the theoretical presentation, we will quote the content of two conversations on the preservation of linguistic diversity to demonstrate that Humboldt’s conception of it as an intellectual wealth is presented in the speeches of both Russian and Brazilian specialists in the fields of Linguistics, Education and Sciences. We intend, with the article, to highlight the importance for Brazil receiving and deeper understanding Humboldt’s ideas.

Wilhelm von Humboldt; Bakhtin Circle; dialogism; worldviews; linguistic diversity

Introdução

Wilhelm von Humboldt foi um dos primeiros teóricos a pavimentar a estrada da linguística ocidental. Muitas correntes nasceram inspiradas em suas ideias e, na Rússia, ele é considerado o fundador da linguística geral. Sua influência sobre pensadores russos estudados no Brasil, como Mikhail Bakhtin e Valentin Volóchinov, é substancial. Contudo, no Brasil ainda perdura uma lacuna na recepção das obras de Humboldt: pouco de sua obra foi traduzida até o momento e poucos são os estudos e menções à Humboldt em nossos cursos acadêmicos de Linguística.

Na presente tarefa, nos propusemos a explorar duas ideias humboldtianas, as “visões de mundo” e o “dualismo” (Weltansichten e Dualis), por meio do cotejo dos conceitos de Volóchinov e Bakhtin “ideologia do cotidiano” e “dialogismo”. Ao relacionar Humboldt aos dois autores, nossa intenção é aumentar a visibilidade e o interesse pelas ideias do filósofo da linguagem alemão no Brasil, especialmente pela relevância da teoria humboldtiana para um tema sensível a nosso país – a diversidade e preservação linguística – e, ao mesmo tempo, contribuir para os estudos bakhtinianos.

Inicialmente, faremos um panorama de Humboldt na formação da linguística russa, mencionando o contexto no qual estavam inseridos os membros do Círculo, para justificar a aproximação entre Humboldt, Bakhtin e Volóchinov. Relacionaremos publicações europeias atuais para reafirmar a importância do teórico alemão, especialmente em relação a seu pioneirismo no terreno dialógico, que é o princípio fundamental de nossos autores russos. Será possível, a partir desse panorama, traçar paralelos entre os conceitos humboldtianos supracitados – as “visões de mundo” e o “dualismo” – e a “ideologia do cotidiano” e o “dialogismo” do Círculo.

Por último, para afirmar a atualidade das ideias de Humboldt e sua coerência tanto dentro do cenário linguístico russo quanto do brasileiro, apresentaremos excertos de duas conversas com especialistas de ambos os países nas áreas da linguística, educação e ciência, a título de ilustrarmos a circulação dos conceitos aqui trabalhados nas duas sociedades. O tema das conversas é a preservação da variedade linguística nesses países que, apesar de geograficamente distantes, possuem em comum o fato de seus vastos territórios abrangerem muitos povos étnica e linguisticamente distintos e sobre os quais as línguas oficiais, russo e português, exerceram supremacia por muitos anos. A fala desses especialistas argumenta sobre a importância de preservarmos a diversidade linguística das duas nações, de modo que ficará patente tanto a pertinência da visão humboldtiana para a Rússia e o Brasil atuais, quanto a conveniência em aprofundarmos, neste último, a recepção de Humboldt.

Em suma, por meio deste artigo, demonstraremos que os conceitos de Humboldt “visões do mundo” e “dualismo” guardam relação com ideias de Bakhtin, de Volóchinov, e possuem afinidade com ideias que circulam no discurso científico de linguistas contemporâneos russos e brasileiros. Nossa demonstração aponta para a importância de Humboldt nos estudos bakhtinianos e na discussão da diversidade e preservação linguística, que é atual e necessária tanto para a Rússia quanto para o Brasil. Na próxima seção, recuperaremos um pouco da história de Humboldt na Europa e na Rússia, com vistas a explorar sua influência sobre o Círculo de Bakhtin.

Wilhelm von Humboldt na Europa e Rússia: visão diacrônica e atual

Humboldt foi, além de linguista, um estadista pioneiro na educação: a primeira universidade de Berlim foi fundada e dirigida por ele. Em consonância com seus estudos, Humboldt fundou o primeiro departamento de linguística comparativa na Europa, liderado pelo famoso linguista Franz Bopp.

Segundo o pesquisador Bernhard Hurch (2004)HURCH, B. Die Formierung der grammatischen Analyse: die Rolle des Baskischen auf dem Weg Humboldts als Grammatiker: Einige editorische Anmerkungen zu den frühen bascologischen Arbeiten. ASJU, XXXVIII-1, p. 333-351, 2004. Disponível em: https://ojs.ehu.eus/index.php/ASJU/article/view/8877/8189. Acesso em: 10 mar. 2022.
https://ojs.ehu.eus/index.php/ASJU/artic...
, da Universidade austríaca Graz, Humboldt não apenas refletiu e filosofou sobre o fenômeno linguístico, como também sistematizou o estudo das línguas. Seu trabalho abrangeu as áreas da fonologia e prosódia, morfologia e sintaxe, estudos histórico-comparativos (diacrônicos), tipologia, mudanças e classificação linguística, gramaticalização e a relação entre língua e cultura. Com isso, ajudou a constituir a linguística moderna: “Humboldt foi um linguista no sentido moderno do termo. Ele ajudou a constituir a linguística como a conhecemos”1 1 Todas as traduções neste artigo são nossas. (HURCH, 2004HURCH, B. Die Formierung der grammatischen Analyse: die Rolle des Baskischen auf dem Weg Humboldts als Grammatiker: Einige editorische Anmerkungen zu den frühen bascologischen Arbeiten. ASJU, XXXVIII-1, p. 333-351, 2004. Disponível em: https://ojs.ehu.eus/index.php/ASJU/article/view/8877/8189. Acesso em: 10 mar. 2022.
https://ojs.ehu.eus/index.php/ASJU/artic...
, p. 334).2 2 Original: Humboldt war Linguist, im ganz modernen Sinne. Ja, er hat wesentlich beigetragen, die Linguistik im moderne Sinne zu konstituiren. (HURCH, 2004, p. 334).

Enquanto na Europa Humboldt ficou mais conhecido como pensador, diplomata e filósofo político, na Rússia ele é amplamente reconhecido como linguista. Foi considerado o fundador da linguística geral (em russo: óbschieie iazykoznániie) e formou as ideias de dois importantes intelectuais russos: o linguista Aleksandr Potebniá3 3 Aleksandr Potebniá (1835-1891) foi um dos primeiros teóricos de linguística na Rússia (que, à época, incluía a Ucrânia). Filósofo, folclorista e literato, foi membro-correspondente da Academia Russa Imperial de Ciências de São Petersburgo e aplicou as ideias de Humboldt em corpora eslavo. Especializou-se em filosofia da linguagem, fonética histórica eslava e etimologia. Seu nome se tornou central no debate estético do século XX, em razão dos questionamentos que foram feitos às suas ideias pelos formalistas russos e pelo estruturalismo. e o filósofo Gustav Chpiet4 4 Gustav Chpiet (1879-1937) foi um filósofo ucraniano-russo, psicólogo, teórico da arte e intérprete (conhecia 17 idiomas). Foi seguidor de Edmund Husserl e introduziu na Rússia a fenomenologia husserliana. (autores citados nas obras de Bakhtin e Volóchinov). No Brasil, a especialista e tradutora do Círculo Sheila Grillo remonta o panorama da influência de Humboldt tanto sobre Potebnia e Chpiet, quanto sobre a linguística geral russa e sobre o Círculo de Bakhtin. Na introdução à Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem, de Valentin Volóchinov, Grillo (2017GRILLO, S. Marxismo e filosofia da linguagem: uma resposta à ciência da linguagem do século XIX e início do século XX. In: VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 7-79., p. 18) aponta que:

[...] a influência do pensamento humboldtiano sobre as teorias da linguagem na Rússia e na União Soviética pode ser atestada por meio da leitura da obra Istória iazikoznánia (História da linguística), de 2008, em que Humboldt é apontado como o fundador da linguística teórica, criador de um sistema da filosofia da linguagem no século XIX e precursor de quase todas as posições do Curso de linguística geral, de Ferdinand de Saussure. Diferentemente dessa visão, no Brasil, a exposição dos princípios saussurianos que originaram os estudos sincrônicos praticados no século XX costumam aparecer no início dos manuais de linguística (Lopes, 1995; Borba, 1998), nos quais os trabalhos de Humboldt não constam da bibliografia (...) com a exceção de “Estudos pré-saussurianos” de Faraco, 2007.

As ‘visões de mundo’ de Humboldt inspiraram o relativismo linguístico dos americanos Sapir e Whorf, cuja ideia fundamental, proposta em 1930, é a da imagem linguística do mundo na qualidade de um grande modelo que difere de um povo para outro, pois tem suas próprias formas e categorias prescritas pela cultura. Benjamin Whorf concluiu que as regras da linguagem e normas da cultura são desenvolvidas em conjunto, afetando recíproca e constantemente umas às outras.

Em consonância a esses três teóricos, no final do século XX desenvolveu-se, nas universidades russas de Moscou e São Petersburgo, a escola de Linguoculturologia (SCHIUKINA, 2021), disciplina de análise comparativa em estudos sócio e etnolinguísticos. Essa escola investiga a mútua influência entre língua e cultura: analisa como a cultura se reflete e refrata na linguagem e como a linguagem é formada sob a influência da cultura.

A partir desses dados, vemos como Humboldt é considerado um pensador fundamental na Rússia. Na Europa, de maneira geral, tem havido um movimento de recuperação da filosofia humboldtiana da linguagem, por meio da publicação de reedições de obras de Humboldt e de estudos inéditos sobre o autor, realizados por pesquisadores de várias nacionalidades.

Nesse contexto, o especialista alemão Jürgen Trabant menciona o renascimento das ideias de Humboldt no continente, especialmente de 2017 adiante. Em 2017, por exemplo, foi lançado um número especial da revista anglófona “Fórum de estudos em línguas modernas” (tradução livre de Forum for Modern Language Studies), fruto de um simpósio sobre Humboldt na universidade Queen Mary, em Londres, Reino Unido. No referido volume, especialistas exploram conceitos humboldtianos para discutir variedade linguística, multiculturalismo e neocolonialismo. Debatem, com base em Humboldt, a importância da preservação das línguas nacionais em relação à hegemonia do inglês como a língua franca do mundo globalizado e questões que estão na ordem do dia sobre imigração e política linguística na União Europeia.

A exemplo da popularidade de Humboldt em diversos países europeus, Trabant cita, no artigo “Visões de mundo em desaparecimento” (Vanishing worldviews, 2017), um defensor francês das ideias humboldtianas: o poeta, tradutor e professor de linguística e literatura em Paris VIII Henri Meschonnic (1932-2009), cujo artigo “Pensando Humboldt hoje” (Penser Humboldt aujourd’hui, 1995) salienta a relevância de Humboldt para o final do século XX. Trabant apoia-se em Meschonnic para afirmar que a importância da filosofia humboldtiana da linguagem em realidade virou o século: o conceito ‘visões de mundo’ é muito relevante para o tratamento correto do plurilinguismo (a coexistência de várias línguas num dado espaço) na União Europeia do século XXI. As visões de mundo justificam a isonomia das vinte e quatro línguas oficiais de seus países-membro; tais línguas dão acesso à riqueza intelectual do mundo (der Reichtum der Welt, outra ideia humboldtiana), pois constituem variadas abordagens culturais.

Passamos, agora, a nos deter na influência que Humboldt exerceu sobre a escola de São Petersburgo e a afinidade entre as ideias do alemão e do Círculo de Bakhtin.

A influência de Humboldt sobre a escola de São Petersburgo e sobre o ‘paradigma dialógico’ do Círculo de Bakhtin

As ideias de Mikhail Bakhtin e Valentin Volóchinov devem ser consideradas dentro do contexto histórico da escola linguística de São Petersburgo (Petrogrado ou Leningrado, à época), cidade-matriz do Círculo. A recepção de Humboldt nesta escola foi intensa, reforçando os paralelos entre as ideias deste e de Bakhtin e Volóchinov. Foi sob a influência de linguistas alemães, inclusive de Humboldt, que a escola de São Petersburgo desenvolveu seu dialogismo.

Segundo Vermeulen (2002)VERMEULEN, H.F. Ethnographie und Ethnologie in Mittel-und Osteuropa. Völkerbeschreibung und Völkerkunde in Russland, Deutschland und Österreich (1740-1845). In: DONNERT, H. (ed.). Europa in der Frühen Neuzeit. Band 6: Mittel-, Nord und Osteuropa. Köln: Böhlau Verlag, 2002. p. 397-409., a Academia de Ciência de São Petersburgo tem servido, desde o século XVIII, como elo entre cientistas de diferentes nações e gerações, contexto em que adveio a cooperação germano-russa. Fundada por Pedro Grande em 1724, a academia virou um centro de conhecimento ocidental na Rússia. Visava explorar o império russo e deu origem a novas visões acerca deste, inclusive à ideia de descrição dos povos (Völkerbeschreibung), disseminada por Humboldt5 5 Humboldt, como teórico de seu tempo, buscava construir uma “imagem” de cada povo (para ele, sinônimo de nação) por meio do reconhecimento de traços culturais específicos e correspondentes a cada nação – Völkerbeschreibung ou “descrição dos povos”, em tradução livre. Essa pesquisa foi concebida por Humboldt como um projeto antropológico, desenvolvido por meio de estudos linguísticos. Mais sobre o tema, ver Chabrolle-Cerretini (2014). e formulada dentro do projeto de Leibniz6 6 Polímata e filósofo alemão do século XVII/XVIII. Leibniz baseou-se na ideia de que a composição lexical de uma língua contém fatos que atestam a vida de um povo; a finalidade era esclarecer a história primitiva das nações por meio do estudo de seus respectivos idiomas. O projeto rendeu dois grandes resultados: a criação de uma nova disciplina científica, a etnografia, e o nascimento dos estudos comparativos e da lexicografia comparativa (LOBANOVA, 2018).

Humboldt influenciou os linguistas de São Petersburgo a se inclinarem para a pesquisa universalista, tal seja, aquela que não dava preferência a nenhuma língua ou grupo linguístico em particular. A pretensão dos estudos humboldtianos era abordar a multiplicidade de línguas em sua maior cobertura geográfica e histórica possível, opostamente à direção apresentada por Bopp e Grimm à época, cujo foco era quase exclusivamente indo-europeu.

Apesar de o linguista alemão nunca haver se referido diretamente à escola linguística de São Petersburgo, conhecia sua existência: na obra Sobre a língua Kawi da ilha Java (Über die Kawi Sprache auf der Insel Java), menciona 18 vezes a revista Memórias da Academia Imperial de Ciências de São Petersburgo (Mémoires de l’Académie Impériale des sciences de St.-Petersbourg / Zapíski Sankt-Pieiterbúrgskoy Impierátorskoi Akadiémii Naúk) (LOBANOVA, 2018LOBÁNOVA L.P. Proiékt óbschiego iazykoznániia V. von Gúmboldta v kontiékstie stanovliéniia nóvoi naúki o iazykié v Giermánii XIX vieka. In: HUMBOLDT v. V. Kontsiéptsiia óbschiego iazykoznániia: tsiéli, sodierzhániie, struktúra. O projeto de linguística geral de Humboldt no conceito de formação de uma nova ciência da linguagem na Alemanha do século XIX. In: HUMBOLDT v. V. O conceito de linguística geral: objetivos, conteúdo, estrutura. Tradução, introdução e notas de L.P. Lobánova. Moscou: Lenand, 2018. p. 7-192.).

Foi nesse contexto de enorme influência das ideias de Humboldt sobre a escola de São Petersburgo que as bases para o desenvolvimento da linguística dialógica do Círculo foram lançadas, aponta Andrea Karsten (2014)KARSTEN, A. Schreiben im Blick: Schriftliche Formendersprachlichen Tätigkeitausdialogischer Perspektive. Berlim: Lehmmans Media Verlag, 2014.. Segundo a autora, a definição humboldtiana da língua como energeia (atividade criadora ininterrupta e que envolve a interação discursiva, segundo estudos de Hilgert, 2012HILGERT, J. G. Die Gesprächskonstruktion nach dem Energeia- Konzept von Humboldt. Pandaemonium Germanicum, São Paulo, v. 15, n. 20, p. 194-211, 2012.) foi diretamente responsável pelo desenvolvimento do conceito de dialogismo que se manifestava não apenas em Bakhtin e Volóchinov, como também em Lev S. Vygotsky, psicólogo proponente da Psicologia Cultural-Histórica, e Lev P. Iakubinski, representante do Formalismo Russo.

Ao afirmar que “ela própria [a língua] não é um produto (érgon), mas sim uma atividade (energeia)” (HUMBOLDT, 2006a, p. 98)8 8 Original: Sie selbst ist kein Werk (Ergon), sondern eine Thätigkeit (Energeia). (HUMBOLDT, 2006a, p. 98). , o teórico marca oposição à ideia de língua como um sistema de formas relativamente estáveis; ao invés, assumiu-a como um contínuo e constante tecer de sentidos, cuja busca semântica se refletia na criação e adaptação de formas gramaticais e lexicais. Por meio da assimilação e reprodução dessas formas pelo outro, elas entram para o fluxo linguístico e se concretizam como o sistema da língua. O conceito energeia pressupõe a relevância da interação discursiva na constituição de uma língua.

Analogamente a Humboldt, os autores do paradigma dialógico tratam, segundo Karsten, não da língua como sistema (Sprache, em alemão, e iazyk em russo), senão do fenômeno discursivo (Rede – alemão; riétch – russo). Quando Humboldt define a língua como energeia, avança no campo da interação discursiva, que é um processo dialógico constante; toda a ideia de um sistema linguístico fechado e acabado (érgon) só é possível em um recorte ocasional, que forja de maneira apenas artificial o congelamento do processo incessante de criação e mudança linguística. A interação discursiva é a ideia básica do paradigma dialógico aplicado à área da linguística.

A seguir, discorreremos sobre o paralelo entre as visões de mundo de Humboldt e a ideologia do cotidiano segundo Volóchinov. A primeira está baseada em mecanismos da consciência que, combinada à interação discursiva, produzem a língua como a grande fonte simbólica de uma cultura; a última é definida como a interação verbal cotidiana, por meio da qual se materializa o elo entre indivíduos e as ideologias formalizadas do regime sociopolítico e das esferas da ciência, arte, religião, filosofia, jurídica etc. Os dois conceitos partem do pressuposto que as diversas manifestações da esfera cultural vivem, sobretudo, pela encarnação em material linguístico.

Segundo Volóchinov, a interação verbal é composta de signos ideológicos, em especial a palavra. O signo nasce da comunicação entre dois organismos socialmente organizados: é o terreno comum desses organismos e a fronteira entre ao menos duas consciências. Humboldt, por outro lado, concebe as visões de mundo segundo uma coloratura neokantiana: os mecanismos e categorias de representação, por meio dos quais a consciência simboliza o contato do organismo com a experiência.

As simbolizações produzidas pela consciência estão encarnadas na língua, de acordo com Humboldt, e a interação discursiva faz com que esse processo individual de simbolização linguística da experiência (energeia) seja ratificado pelo entendimento do outro. Por isso, segundo o teórico alemão, a língua uniformiza a diversidade de experiências sensoriais e de representações individuais internas sob conceitos intercambiáveis (palavras). Consequentemente, um povo unificado sob uma mesma língua possui um “ponto de vista” que lhe é particular, enquanto coletivo, e que alinha a simbolização individual da experiência à desse coletivo. Por meio das visões de mundo e da ideologia do cotidiano (momento em que se ratificam ideologias intermediárias entre as bases econômicas e a superestrutura), Humboldt e Volóchinov convergem sobre o papel basilar da língua na fundamentação das instituições sociais.

Dualismo e dialogismo

Humboldt foi, na tradição idealista, responsável por desenvolver o papel da língua no processo de simbolização dos referentes do mundo pela consciência, tanto a nível individual (criação da palavra) quanto coletivo (visões de mundo, o inventário linguístico-conceitual nacional). Segundo a crítica, empregou a Revolução Copernicana de Kant na filosofia da linguagem e remeteu a formação da palavra às faculdades mentais e categorias de representação daquele. Os produtos desse processo de simbolização mediam a relação do sujeito com o mundo. Durante sua pesquisa sobre a manifestação do dual em diversas línguas, o filósofo da linguagem alemão teorizou formulações expressamente dialógicas.

Segundo Humboldt (1963HUMBOLDT, W. v. Schriften zur Sprachphilosophie: Werke in fünf Bänden III. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963. [1827].[1827], p. 137), “no organismo invisível do espírito [mente], nas leis do pensamento, na classificação de suas categorias está a raiz da dualidade”, afirmação que especifica o dualismo como representação. O dualismo é a conceitualização da dicotomia “profunda e prototipicamente enraizada: na sentença e na resposta, no sentar-se e levantar-se, no ser e o não-ser, no Eu e no Mundo”9 9 Original: In dem unsichtbaren Organismus des Geistes, den Gesetzen des Denkens, der Classification seiner Kategorien aber wurzelt der Begriff der Zweiheit noch auf eine viel tiefere und ursprünglichere Weise: in dem Satz und Gegensatz, dem Setzen und Aufheben, dem Sein und Nicht-Sein, dem Ich und der Welt. (HUMBOLDT, 1963[1827], p. 137). . Para o teórico, nossa interpretação é elementarmente estruturada por dicotomias.

No texto Sobre o dual (1963[1827]), Humboldt descreve três possíveis expressões linguísticas do dualismo, a saber, se no nome, no substantivo ou no pronome (o autor ressalta que mais de um tipo pode ser encontrado numa mesma língua). Há línguas em que nomes e substantivos conceitualizam em si a noção de dualidade semântica (por exemplo: alto/baixo Egito) ou dualidade natural (exemplo: na simetria corporal – dois olhos, duas orelhas, duas mãos etc.). Nos pronomes pessoais, o dualismo se expressa principalmente na primeira e a segunda pessoas, que conceitualizam a dicotomia entre Eu e o Outro.

Nesse ponto, o dualismo se implica em dialogismo. Humboldt (1963HUMBOLDT, W. v. Schriften zur Sprachphilosophie: Werke in fünf Bänden III. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963. [1827].[1827], p. 138) afirma que o dual ocupa uma posição mais decisiva na língua do que em qualquer outro lugar, pois toda fala suscita uma resposta e o falante sempre se dirige a um ouvinte: “falamos, mesmo quando apenas em pensamento, sempre com um outro, e mesmo quando nos dirigimos a nós mesmos, nos dirigimos a nós como a uma segunda pessoa (...)”10 10 Original: Der Mensch spricht, sogar im Gedanken, nur mit einem Andren, oder mit sich, wie mit einem Andren (...). (HUMBOLDT, 1963[1827], p. 138). . A fala e a resposta se fundamentam no dualismo eu versus o outro. Todas as conexões sociais se baseiam, nas palavras de Humboldt (1963HUMBOLDT, W. v. Schriften zur Sprachphilosophie: Werke in fünf Bänden III. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963. [1827].[1827]), na dualidade do conhecido (Einheimische, o Eu) versus do estrangeiro (Fremde. o Outro).

Para o filósofo da linguagem, o desdobramento dialógico do dualismo está na essência da língua, pois ela é condicionada pelo endereçamento que o Eu faz ao Outro, assim como à resposta desse Outro a mim. O pensamento tem uma propensão social, em suas palavras; o ser humano anseia por um Outro que corresponda ao Eu, pois apenas por meio da validação do interlocutor, um conceito se define e se lapida; apenas por meio do Outro um conceito se efetiva se fluxo da língua e, portanto, do pensamento. Aquilo que é enunciado pelo Eu precisa alcançar o entendimento do intelecto ‘estrangeiro’ do outro.

Muito embora Humboldt (1963HUMBOLDT, W. v. Schriften zur Sprachphilosophie: Werke in fünf Bänden III. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963. [1827].[1827], p. 138) não tenha usado o termo dialogismo em seus textos, vemos que o mesmo está contemplado na teorização do dualismo: “na essência da língua há um imutável dualismo; a própria possibilidade da fala é condicionada pelo endereçamento e pela resposta”11 11 Original: Es liegt aber in dem ursprünglichen Wesen der Sprache ein unabänderlicher Dualismus, und die Möglichkeit des Sprechens selbst wird durch Anrede und Erwiederung bedingt. (HUMBOLDT, 1963[1827], p. 138). . A responsividade dialógica da língua, por sua vez, é constituinte de todas as relações: “entre uma consciência e outra, não há outro meio além da língua”12 12 Original: Zwischen Denkkraft und Denkkraft aber giebt es keine andre Vermittlerin, als die Sprache. (HUMBOLDT, 1963[1827], p. 139). (HUMBOLDT, 1963HUMBOLDT, W. v. Schriften zur Sprachphilosophie: Werke in fünf Bänden III. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963. [1827].[1827], p. 139).

Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [1929].[1929], p.184), analogamente, teoriza que a fala é condicionada pelo endereçamento e pela resposta: “todo enunciado, mesmo que seja escrito e finalizado, responde a algo e orienta-se para uma resposta (...) a palavra é uma ponte que liga o eu ao outro”. Assim como Humboldt, o autor russo afirma que o falante, mesmo quando apenas em pensamento, dirige a palavra/resposta e, consequentemente, o pensamento, a um interlocutor presumido: “efetivamente, o enunciado se forma entre dois indivíduos socialmente organizados, e, na ausência de um interlocutor real, ele é ocupado, por assim dizer, pela imagem do representante médio daquele grupo social ao qual o falante pertence”. (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [1929].[1929], p. 204). Para Volóchinov, o sujeito presume um auditório social estável, com base no qual se formam seus argumentos, motivos e avaliações.

O dialogismo está presente na teorização do psiquismo segundo Volóchinov, que chama a atenção para a consciência como um fato sócio-ideológico: “na palavra, eu dou forma a mim mesmo do ponto de vista do outro e, por fim, da perspectiva da minha coletividade” (VOLÓCHINOV, 2017[1929], p. 205). Da mesma maneira, Bakhtin (2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. P. Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 33) implica o dialogismo na constituição da individualidade: “o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro (...) que é único capaz de criar, para ele, uma personalidade externamente acabada; tal personalidade nāo existe se o outro não a cria”. O autor vai além e afirma, inclusive, a relevância do dialogismo para o reconhecimento da vida biológica: a vida biológica de um organismo torna-se um valor “apenas na simpatia e compaixão que o outro sente por ele” (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. P. Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 31).

As relações dialógicas são, para Bakhtin (2003)BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. P. Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003., um tipo especial de relações axiológico-semânticas. Ele considera que a metalinguística (por vezes traduzida como translinguística) é o estudo das relações dialógicas que os enunciados apresentam na unidade de seu interior e entre si: “o texto só adquire vida em contato com outro texto/contexto (...) Por trás desse contato está aquele entre indivíduos e não entre coisas” (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. P. Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 401).

Por meio do dualismo, Humboldt faz formulações dialógicas, que estão pronunciadamente próximas às concepções dialógicas dos autores do Círculo – com a diferença de que, para estes, a consciência é formada com base em relações sociais externas, ou seja, é um fato sócio-ideológico. Humboldt, por outro lado, concebe a consciência a partir dos mecanismos de representação (as faculdades e categorias especuladas por Kant, como será detalhado a seguir). A língua e a constituição individual são teorizadas segundo um misto dialético de dialogismo e imanência do espírito: “a palavra equivale, no momento em que nasce na consciência individual, a um objeto em sua aparência. A língua não pode surgir do indivíduo – ela pode se efetivar na realidade apenas socialmente, que é o meio pelo qual se formam novas conexões” (HUMBOLDT, 1963[1827], p. 139)13 13 Original: (...) das Wort gleicht, allein im Einzelnen geboren, so sehr einem blossen Scheinobject, die Sprache kann auch nicht vom Einzelnen, sie kann nur gesellschaftlich, nur indem an einen gewagten Versuch ein neuer sich anknüpft zur Wirklichkeit gebracht werden. (HUMBOLDT, 1963[1827], p. 139). .

Para Humboldt, cada língua cria uma faceta simbólica da realidade. O desaparecimento dessa língua implica, necessariamente, na perda de um conhecimento constituído. Nas conversas sobre a preservação da diversidade linguística, veremos que os argumentos remetem à teoria linguística de Humboldt. Os excertos refletem as realidades brasileira e russa, mas o mesmo debate está proposto também na União Europeia e suas vinte e quatro línguas oficiais. A seguir, discutiremos o paralelo entre as visões de mundo humboldtianas e a ideologia do cotidiano de Volóchinov.

As visões de mundo em paralelo à ideologia do cotidiano: cultura encarnada em língua

Humboldt foi pioneiro em empregar a Revolução Copernicana de Kant na linguística (ANDRZEJEWSKI, 2015ANDRZEJEWSKI, B. Immanuíl Kant i voprósy kommunikatívnogo konstruktivízma (Immanuel Kant e as questões do construtivismo comunicativo). Tieorietítchieskaia filosófiia Kanta, Kaliningrado, p.17-25, 2015.; CASSIRER, 1954CASSIRER, E. Philsophie der Symbolischen Formen. Oxford: Oxford, 1954.). A Revolução Copernicana foi o movimento no qual Kant definiu a verdade como a conformação entre os objetos e suas respectivas representações, formuladas pela consciência: a verdade estaria na correspondência entre a representação (Vorstellung) e os objetos do mundo, cuja existência é independente e exterior à consciência. Kant admite que o paradigma mecânico (materialista) é, de fato, capaz de explicar todas as coisas da natureza; porém, afirma que nem tudo que existe está no mundo natural. O filósofo cria, então, uma distinção entre a substância estendida – aquela que de fato se encontra na natureza – e a substância mental ou do pensamento (BEISER, 2000BEISER, F. The Enlightenment and idealism. In: BEISER, F. German Idealism. New York: Cambridge University Press, 2000. p. 18-36.).

Conforme Andrzejewski (2015ANDRZEJEWSKI, B. Immanuíl Kant i voprósy kommunikatívnogo konstruktivízma (Immanuel Kant e as questões do construtivismo comunicativo). Tieorietítchieskaia filosófiia Kanta, Kaliningrado, p.17-25, 2015., p. 19), Humboldt registrou em correspondência pessoal seu engajamento na metafísica kantiana: “agora estou focado na metafísica. Decidi fazer uma revisão séria de minhas convicções e retomar o estudo do sistema de Kant desde o início”14 14 Original: “sieitchás mieniá zanimáiet prieimúschiestvienno mietafízika. Riechíl snóva proviestí sierióznuiui rievíziiu svoíkh sóbstviennykh ubiezhdiénii I zánovo chtudíruiu sistiému Kánta s sámogo natchála.” (ANDRZEJEWSKI, 2015, p. 19). . O filósofo idealista Ernst Cassirer15 15 Nascido na Breslávia (antigo território alemão – atual Polônia) em 28 de julho de 1874 e falecido em 13 de abril de 1945 em Nova Iorque, EUA. Pertenceu à escola neokantiana de Marburg e foi um dos principais impulsionadores do idealismo no século XX. (1954, p. 102) pontua que Humboldt trabalha com a noção de representação como a realidade intermediária entre o sujeito e o mundo: “como em Kant, o objeto empírico [para Humboldt], enquanto ‘objeto empírico em sua aparência’, não constitui nosso conhecimento na condição de dado externo, objetivo do mundo; ao contrário, o objeto precisamente se torna possível, pressuposto e é constituído por meio das categorias [de representação].”16 16 Original: “Wie bei Kant der Gegenstand, als “Gegenstand in der Erscheinung”, der Erkenntnis nicht als ein Äußeres und Jenseitiges gegenübersteht, sondern durch deren eigene Kategorien erst “ermöglicht”, erst bedingt und konstituiert wird.” (CASSIRER, 1954, p. 102).

Humboldt (1963HUMBOLDT, W. v. Schriften zur Sprachphilosophie: Werke in fünf Bänden III. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963. [1827].[1827]) teoriza a formação da palavra dentro dos limites do organismo biológico, por meio de mecanismos da consciência. Na forma interna da língua (Innere Sprachform), o autor cita duas faculdades (capacidades) mentais mencionadas por Kant: a intuição (Anschauung), ligada diretamente à percepção sensorial, e o conceito (Begriff), apriorístico à experiência (CRISTAUDO, 1990CRISTAUDO, W. Theorising Ideas: Idee and Vorstellung from Kant to Hegel to Marx. History of European Ideas, Abingdon, v. 12, n. 6, p. 813-825, 1990.; GUYER, 2000GUYER, P. Absolute idealism and the rejection of Kantian dualism. In: BEISER, F. German Idealism. New York: Cambridge University Press, 2000. p. 38-56.). A capacidade humana de produzir língua – o sentido articulatório (Articulationsinn) – liga as simbolizações geradas por essas faculdades e suas categorias de representação17 17 Segundo Stanford Encyclopedia of Philosophy (Enciclopédia Stanford de Filosofia), na Crítica da Razão Pura (A80/B106) Kant distingue doze categorias, divididas em quatro classes: (1) Quantidade: unidade, pluralidade, totalidade; (2) Qualidade: realidade, negação, limitação; (3) Relação: substância, causalidade, comunidade; (4) Modalidade: possibilidade, existência, necessidade. Endereço: https://plato.stanford.edu/entries/categories/#KanCon. Acesso em: 4 mar. 2020. a um som linguístico significante (Lautform). Esse processo interno e subjetivo resulta na palavra, que por sua vez é validada pelo entendimento e adesão do interlocutor, durante a interação discursiva.

A palavra, já ancorada no fluxo da língua, sistematiza e confere certa uniformidade às sensações individuais que foram processadas subjetivamente pela consciência: “a palavra não é nada mais que o complemento do ato de pensar; o esforço de elevar a conceitos claros as impressões externas e aquelas sensações ainda obscuras internas, e de ligar esses conceitos uns aos outros para a criação de novos”18 18 Original: Die Sprache ist nicht anders, als das Complement des Denkens, das Bestreben, die äusseren Eindrücke und die noch dunkeln innere Empfindungen zu deutlichen Begriffe zu erheben, und diese zu Erzeugung neuer Begriffe mit einander zu verbinden. (HUMBOLDT, 2006b, p. 10). (HUMBOLDT, 2006b, p. 10). Nesta passagem, há menção indireta à faculdade da intuição (ligada às impressões externas e sensações internas). A percepção intuitiva dos sentidos, por sua vez, é abstraída pelo intelecto em definições gerais que compõem o conceito. Por fim, os conceitos são ligados uns aos outros pela capacidade de síntese do intelecto, referida por Humboldt (2006b) como a porção puramente intelectual (reiner intellectueller Theil), para a formação de outros/novos19 19 Guyer (2000) esclarece a dicotomia entre conceito e intuição, que embasa a filosofia de Kant. ‘conceitos claros’. A porção puramente intelectual da capacidade linguística (que não está diretamente ligada à experiência sensorial, ou seja, é pertencente à faculdade dos conceitos) refere-se ao modo particular com que cada língua sintetiza a experiência sob um conceito, uma forma e uma fonética distintas.

Segundo Humboldt, a maneira como cada síntese se apresenta, quando já encarnada na língua e efetivada pela interação discursiva, revela um ponto de vista que se torna patrimônio cultural. O alemão traz como exemplo a palavra ‘elefante’, que em sânscrito é designada pela menção às partes do corpo do animal, enquanto no alemão o substantivo se refere ao animal como unidade. Estabelece-se, assim, uma riqueza de pontos de vista culturais sobre um mesmo objeto ou sobre experiências.

Não obstante Humboldt designar a própria representação kantiana como conceitos intrinsecamente linguísticos, Cassirer (1954CASSIRER, E. Philsophie der Symbolischen Formen. Oxford: Oxford, 1954., p. 105) ainda aponta outra camada de metafísica kantiana na teoria linguística do alemão – a síntese intelectual, para Humboldt, se expressa como um julgamento dado materialmente por meio da sentença linguística: “(...) é apenas na sentença que o poder original da síntese se manifesta, poder no qual todo falar, assim como todo ouvir, se baseia (…) A expressão mais justa e exata desse ponto de vista é dada na conhecida proposição humboldtiana: a língua não é um produto (ergon), mas sim uma atividade [de gerar sentidos] (energeia)”20 20 Original: (…) denn in ihm erst enthüllt sich die ursprüngliche Kraft der S y n t h e s i s, auf der alles Sprechen, wie alles Verstehen zuletzt beruht (…) Ihren knappsten und schärfsten Ausdruck erhält diese Gesamtansicht in der (…) denn in ihm erst enthüllt sich die ursprüngliche Kraft der S y n t h e s i s, auf der alles Sprechen, wie alles Verstehen zuletzt beruht (…) Ihren knappsten und schärfsten Ausdruck erhält diese Gesamtansicht in der bekannten Humboldtschen Formulierung, daß die Sprache kein Werk (Ergon), sondern eine Tätigkeit (Energeia) sei. (CASSIRER, 1954, p. 105). . De acordo com o ideário kantiano, a síntese opera a capacidade apriorística de fazer julgamentos e hipóteses anteriores à experiência (GUYER, 2000GUYER, P. Absolute idealism and the rejection of Kantian dualism. In: BEISER, F. German Idealism. New York: Cambridge University Press, 2000. p. 38-56.).

Humboldt (1963HUMBOLDT, W. v. Schriften zur Sprachphilosophie: Werke in fünf Bänden III. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963. [1827].[1827]) assume que a origem da palavra está no ato subjetivo criador descrito acima. Uma vez que o idealismo teoriza o processamento da experiência pela subjetividade, o linguista alemão ressalta que não existe uma equivalência exata entre conceitos encarnados sob uma mesma palavra: quem pronuncia “nuvem” não pensa necessariamente no mesmo tipo ou obrigatoriamente numa mesma forma; contudo, sob o som de “nuvem” mantém-se coesos alguns dos traços gerais do conceito representado, o que torna possível a unidade do objeto. Segundo Humboldt, é justamente a inexatidão da nuvem simbólica que abre margem para a criatividade e a pluralidade; portanto, mais riquezas intelectuais. As diferentes facetas que um conceito pode abranger sob uma mesma palavra, assim como o processo de busca de (alguma) equivalência entre palavras de línguas distintas, também revelam pontos de vista variados e ricos sobre a realidade. A unificação que a língua efetiva sobre a representação subjetiva permite a comunicação entre o indivíduo e sua comunidade e, uma vez que a língua é veículo coletivo, os conceitos relativamente estáveis e uniformes se tornam suficientemente abrangentes para virarem pontos de vista culturais: tornam-se visões de mundo (Weltansichten).

Além de discutir a formação da palavra segundo mecanismos de representação próprios de Kant, Humboldt (1963HUMBOLDT, W. v. Schriften zur Sprachphilosophie: Werke in fünf Bänden III. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963. [1827].[1827]) teoriza que a conexão entre o sujeito e o coletivo é “conduzida” pelas formas e estruturas particulares que cada língua constrói (gramática) para expressar a síntese intelectual (os juízos); como mencionado, para os idealistas o juízo se dá na estrutura sintática da sentença. Durante a tradução de Ésquilo, Humboldt observou que cada sintaxe implica uma semântica particular; concluiu que a forma linguística, que já seria resultado de processos de representação da experiência, ativamente produz mais conceituação e simbolização (THOUARD, 2016THOUARD, D. Et toute langue est étrangère: le projet de Humboldt. La Versanne: Encre Marine, 2016.; CASSIRER, 1954CASSIRER, E. Philsophie der Symbolischen Formen. Oxford: Oxford, 1954.).

Para Humboldt, a língua uniformiza a subjetividade da experiência e alinha o entendimento do indivíduo ao do coletivo. A identidade do indivíduo é, nesse sentido, dependente e determinada, em certo grau, pelas identidades familiar, comunitária e nacional. Humboldt (2006b, p. 2) se refere às identidades que transcendem o indivíduo e que, por meio do alinhamento cultural, também se manifestam nele, como o grande caráter:

[...] apenas na língua o ‘grande caráter’ se desenvolve e, juntamente a ela, enquanto veículo de comunicação de um povo, as individualidades isoladas submergem na manifestação do coletivo. Na prática, um caráter individual manifesta-se apenas por dois meios: pela descendência e pela língua, via caráter do povo em questão.21 21 Original: “(…) da nur in der Sprache sich der ganze Charakter ausprägt, und zugleich in ihr, als dem allgemeinen Verständigungsvehikel des Volks, die einzelnen Individualitäten zur Sichtbarwerdung des Allgemeinen untergehen, In der That geht ein individueller Charakter nur durch zwei Mittel, durch Abstammung und durch Sprache, in einen Volkscharakter über”. (HUMBOLDT, 2006b, p. 2).

As visões de mundo humboldtianas são simbolizações coletivas, que constituem uma identidade cultural essencialmente linguístico-conceitual (Bildung). Humboldt baseia essa identidade linguística coletiva em mecanismos da consciência idealizados pela teoria kantiana do conhecimento, as faculdades mentais e categorias de representação. Por isso, o linguista defende que a análise de uma língua é capaz de revelar a motivação criativa por trás de uma visão de mundo; diferenças de motivação justificariam particularidades linguísticas e nacionais: “(…) o estudo das línguas ensina, além do uso da língua em si, também a analogia [representação] – que se expressa na língua – entre os seres humanos e o mundo, em geral, e [entre eles e] cada nação, especificamente (...)” (HUMBOLDT, 2006b, p. 8).22 22 Original: “(…) das Sprachstudium lehrt daher, ausser dem Gebrauch der Sprache selbst, noch die Analogie zwischen dem Menschen und der Welt im Allgemeinen und jeder Nation insbesondre, die sich in der Sprache ausdrückt (...)”(HUMBOLDT, 2006b, p. 8).

Humboldt ocupou-se em estudar o papel da língua na formação do conceito (a palavra), na expressão do juízo (a sentença gramatical) e nas particularidades nacionais simbólicas (as visões de mundo), que orientam o indivíduo por meio da formação intelectual (Bildung). Na sociedade burguesa da época de Humboldt, a formação intelectual já incluía a educação institucionalizada; enquanto esteve a serviço do Estado, o linguista reformulou o sistema de ensino alemão. Da mesma maneira, a sociedade em que viveu já contava com as esferas culturais que conhecemos hoje: a arte, ciência, religião, filosofia, literatura etc. Sob o ponto de vista da tradição idealista, “cada área da atividade humana compõe-se de uma esfera simbólica como, por exemplo, a ciência, a religião, o mito, a arte, a história e a linguística.” (ANDRZEJEWSKI, 2015ANDRZEJEWSKI, B. Immanuíl Kant i voprósy kommunikatívnogo konstruktivízma (Immanuel Kant e as questões do construtivismo comunicativo). Tieorietítchieskaia filosófiia Kanta, Kaliningrado, p.17-25, 2015., p. 21, grifo nosso)23 23 Em russo:” kázhdaia óblast’ tchieloviétchieskoi diéiatielnosti obrazúiet sfiéru ‘simvolítchieskoi’ fórmy. Takím óbrazom, k simvolítchieskim fórmam prinadliezhát, naprimiér, naúka, rielígiia, mif, iskússtvo. Istóriia i iazy’k.” (ANDRZEJEWSKI, 2015, p. 21). . A simbolização linguístico-conceitual coletiva, ou seja, o Bildung materializado nas visões de mundo, é, dessa forma, o pilar da formação intelectual e cultural de um povo segundo Humboldt.

Em resumo, para os idealistas, o contato do sujeito com a experiência se dá por intermédio do fenômeno de simbolização, encarnado na língua. Para Humboldt, o indivíduo é entremeado pelo coletivo por meio do símbolo linguisticamente construído das visões de mundo, que constitui a formação intelectual do sujeito inclusive por meio das esferas institucionais (Bildung). Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [1929].[1929], p. 116), por outro lado, não fala em fenômeno de simbolização, mas em fenômeno ideológico. A ideologia, analogamente ao conceito (Begriff) dos idealistas, é encarnada no signo, sobretudo na palavra; o signo é definido pelo autor russo como o contato entre o organismo e o mundo: “o organismo e o mundo se encontram no signo. A vivência psíquica é uma expressão sígnica do contato do organismo com o meio exterior”. O caminho de Volóchinov difere diametralmente daquele de Humboldt: este especula como a palavra se forma na consciência e é validada pela interação discursiva; aquele, como a palavra se forma na fronteira entre consciências, precisamente durante a interação discursiva. Contudo, ambos sustentam que o contato entre indivíduo e experiência é mediado pela língua e, por isso, a própria organização social se baseia nela.

Segundo Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [1929].[1929], p. 93), o produto ideológico não é apenas uma parte da realidade material, mas reflete e refrata uma outra, que lhe é externa, ou seja, ele é um signo: “tudo o que é ideológico possui uma significação sígnica”. Dentro do universo dos signos, a língua se destaca por uma série de atributos: em primeiro lugar, o autor afirma que toda a realidade da palavra é integralmente absorvida por sua função sígnica de refletir e refratar uma realidade que lhe é externa; é um signo flexível, que pode ser interiorizado e produzido pelo organismo biológico (aparelho fonador e consciência) sem necessidade de ferramentas extracorpóreas; é, também, um signo neutro, pois serve a toda gama de manifestações ideológicas: artísticas, filosóficas, políticas, religiosas e etc. A palavra é onipresente no fenômeno ideológico:

qualquer refração ideológica da existência em formação, em qualquer material significante que seja, é acompanhada pela refração ideológica na palavra como um fenômeno obrigatoriamente concomitante. A palavra está presente em todo ato de compreensão e em todo ato de interpretação. (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [1929].[1929], p. 101).

Volóchinov afirma que a realidade dos fenômenos ideológicos coincide com a dos signos. As leis ideológicas são as leis da comunicação sígnica, grupo ao qual pertence a língua. A existência de um signo, assim como da língua em geral, é a materialização da comunicação social. As leis da comunicação social (portanto, sígnica), por sua vez, são determinadas diretamente por todo o conjunto de leis socioeconômicas: “a realidade ideológica é uma superestrutura colocada diretamente sobre a base econômica” (VOLÓCHINOV, 2017[1929], p. 98).

O teórico russo defende que o problema marxista da relação entre a base e a superestrutura está estreitamente ligado às questões da filosofia da linguagem, pois a palavra é o signo ideológico par excellence. Volóchinov argumenta que o estabelecimento de uma ligação entre a base econômica e um fenômeno isolado de seu contexto ideológico – em outras palavras, de sua refração no signo, especialmente na palavra – implica a perda do valor cognitivo do fenômeno. Por isso, para analisar como a existência real (a base econômica) determina o signo, e como o signo reflete e refrata a existência em formação, o autor explica que o caminho mais conveniente está na língua.

Na relação entre base e superestrutura, importa menos a natureza sígnica da palavra do que sua onipresença social: “na palavra se realizam os inúmeros fios ideológicos que penetram todas as áreas da comunicação social” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [1929].[1929], p. 106-107). A palavra é o grande indicador das mudanças sociais por ser o material sígnico preferido da consciência individual, assim como por ser o médium da ideologia intermediária entre a base econômica e a superestrutura – a psicologia social, materializada nas conversas de bastidores, na troca de opiniões em todo tipo de reuniões públicas, nas conversas informais e eventuais, no modo de reagir verbalmente e na maneira interna verbal de se estar consciente de si e de sua posição no mundo, etc. – ou seja, materializada na ideologia do cotidiano. O autor defende que as mudanças sociais transparecem na palavra, inclusive em esferas que ainda não se constituíram como sistemas ideológicos organizados:

[...] antes de mais nada, a psicologia social é justamente aquele universo de discursos verbais multiformes que abarca todas as formas e todos os tipos de criação ideológica estável (...). Na maioria das vezes, a psicologia social se realiza nas mais diversas formas de enunciados, sob o modo de pequenos gêneros discursivos, sejam eles internos ou externos, que até o momento não foram estudados em absoluto [ideologia do cotidiano]. (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [1929].[1929], p. 106-107).

O caráter dos enunciados e dos gêneros que compõem as diversas formas de interação verbal faz da ideologia do cotidiano a materialização do elo transitório entre o regime sociopolítico e a ideologia em sentido estrito (a religião, ciência, filosofia, literatura etc.), afirma Volóchinov. Essas esferas são definidas pelo linguista como as formas da comunicação ideológica que já foram submetidas à ênfase valorativa de um determinado grupo social e se institucionalizaram.

O paralelo entre a função da ideologia do cotidiano como materialização da psicologia social, ou seja, das ideologias intermediárias entre o cidadão e as instituições, e a das visões de mundo humboldtianas, se dá na forma de uma crítica de Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [1929].[1929], p. 107) ao idealismo:

[...] fora desse processo real da comunicação e interação verbal (sígnica em sentido amplo), a psicologia social se transformaria em um conceito metafísico ou mítico (‘alma coletiva’ ou ‘psiquismo coletivo interior’ [visões de mundo], ‘espírito do povo’ etc.). A psicologia social não existe em algum lugar interior (nas ‘almas’ dos indivíduos que se comunicam), mas inteiramente no exterior: na palavra, no gesto, no ato. Nela, não há nada que não seja expresso, que seja interior: tudo se encontra no exterior, na troca, no material e, acima de tudo, no material da palavra.

Volóchinov se apoia na discussão proposta por Humboldt para desenvolver o ponto de vista marxista na filosofia da linguagem. O russo apresenta o marxismo na condição de síntese dialética entre o que ele elegeu como a antítese – a Escola de Genebra – e a tese, o idealismo de Humboldt. A síntese volochinoviana não se afirma meramente como um compromisso entre tese e antítese, senão como a negação de ambas. A partir da negação, o intuito expresso do linguista era avançar na discussão para além dos limites teóricos estabelecidos até aquele momento da história da linguística. Considerando todo o contexto de influência de Humboldt sobre a Escola de São Petersburgo, é possível fazer o paralelo entre as visões de mundo e a ideologia do cotidiano: aquela, como um sistema coletivo de simbolização linguístico-conceitual, que se institucionaliza; esta, como o elo, materializado na interação verbal por meio de enunciados e gêneros cotidianos, entre a base econômica e a superestrutura ideológica institucionalizada.

Na discussão sobre diversidade linguística, a identidade constituída do falante como produto da cosmovisão de seu povo, ponto de vista humboldtiano, assim como uma arena de mudanças sociais ligada à disputa por ideologias (leis) institucionais (superestrutura política), ponto de vista de Volóchinov, aparecerá no material brasileiro. A seguir, exporemos os excertos de nosso corpora para ilustrar as ideias humboldtianas na sociedade contemporânea.

A questão da diversidade linguística na sociedade moderna como a ilustração das ideias humboldtianas24 24 O corpus deste artigo está disponível no site: compdis.fflch.usp.br, acesso em: 14 fev. 2022. O material russo foi traduzido para o português, porém sem as regras brasileiras de transcrição, pois não se aplicam ao idioma. Não foram estabelecidas ainda regras de transcrição específica para traduções, de modo que o corpus russo está apresentado como texto traduzido. Para mais informações, ver o site supracitado.

Ilustraremos, agora, como as teorias de Humboldt, Bakhtin e Volóchinov são atuais e relevantes para a discussão da diversidade e preservação linguísticas tanto no Brasil quanto na Rússia, e como as visões de mundo, em particular, estão presentes na contemporaneidade. O tema das conversas que transcrevemos é a preservação da variedade linguística nesses países, que possuem em comum o fato de seus territórios abrangerem muitos povos étnica e linguisticamente distintos e sobre os quais as línguas oficiais, português e russo, foram privilegiadas e, em alguns momentos históricos, impostas. Ambos os países são multilíngues (a Rússia tem 192 nacionalidades e 148 línguas; no Brasil há, ao menos, 240 línguas indígenas conhecidas, fora as línguas crioulas e de imigração25 25 Fontes: Serviço de Estatísticas do Estado Federal / Fiedieralnaia Sluzhba Gosudarstviennoi Statistiki, 2010. Endereço: www.gks.ru. Acesso em: 14 fev. 2022. IPOL – Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística. Endereço: http://ipol.org.br. Acesso em: 14 fev. 2022. ), com predominância de uma língua oficial: o russo e o português brasileiro, respectivamente. A política linguística desses países tem apresentado mudanças ao longo do tempo e chegou ao século XXI com maior interesse em resgatar e preservar seus quadros multilíngues.

É pertinente oferecermos ao público alguns esclarecimentos sobre a escolha do material. Em russo, escolhemos uma conversa promovida pelo programa “Manhã com a Província” (Útro s gubiérniei)26 26 Endereço: https://www.youtube.com/watch?v=W8dgyCRXmGs. Acesso em: 14 fev. 2022. , que aconteceu em 11 de dezembro de 2017 na Gubernia TV em Khabárovsk. Durante o programa, foi abordada a situação dos povos minoritários da Sibéria, Norte e Extremo Oriente da Rússia. Já em português brasileiro, o assunto abrangeu todo o território nacional: as línguas indígenas, língua brasileira dos sinais, línguas de imigraçāo, crioulas e afro-brasileiras. A mídia promotora da conversa foi o canal da TV UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), que entrevistou três membros do IPOL – Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística, fundado em 1999 e com sede em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil27 27 Endereço: https://www.youtube.com/watch?v=5_VrS0rf58g&t=56s; https://www.youtube.com/watch?v=lt72CsKvkmg; https://www.youtube.com/watch?v=Hy-ggZQYP7s&t=10s. Acesso em: 14 fev. 2022. . Instituição sem fins lucrativos e de caráter cultural e educacional, o IPOL representa os interesses da sociedade civil. Constitui-se por profissionais de diversas áreas do conhecimento como Antropologia, Sociologia, Linguística, Educação e Letras.

Participou do programa russo Victória Anchukóva28 28 Foi decidido manter os nomes dos participantes no texto do artigo uma vez que a análise não é sobre os pontos de vista ou competência destes, mas sim sobre aspectos de suas falas que se aproximam da filosofia humboldtiana da linguagem. , especialista-chefe do Ministério da Educação e Ciência do Estado de Khabarovsk. A participante representa o programa de desenvolvimento dos povos minoritários na região: Naródnaia programma Korienn’yie 2021 (O programa do povo: Indígenas 2021)29 29 Programa participante da Associação de Minorias Indígenas do Norte, Sibéria e Extremo Oriente da Federação Russa (Assotsiátsiia korienny’kh malotchísliennykh naródov siéviera, Sibíri i Dálniego Vostóka Rossíiskoi Fiedierátsii). Endereço: http://raipon.info/documents/Docs_RAIPON/НП%202021+.pdf. Acesso em: 14 fev. 2022. . A entrevista ao IPOL aconteceu em 22 setembro de 2015 e aborda praticamente o mesmo tema: a situação das línguas de povos minoritários no Brasil. Conta com três especialistas, todos doutores em Linguística. Escolhemos, como parâmetro de comparação (tertium comparationis30 30 Termo da língua latina que significa a terceira parte da comparação. É a qualidade comum entre dois objetos que estão sendo comparados. , segundo a terminologia de CLESTHIA31 31 Centro de Pesquisa sobre os discursos cotidianos e especializados. Endereço: https://cediscor.revues.org/65. Acesso em: 14 fev. 2022. ): 1) a proximidade temporal (2017 na Rússia e 2015 no Brasil); 2) a proximidade temática (preservação das línguas e culturas indígenas na Rússia e a diversidade linguística no Brasil, respectivamente); 3) a proximidade no status dos falantes: especialistas da linguística, educação e ciência no Brasil e na Rússia.

No material russo, os participantes não citam Humboldt diretamente, mas se referem às suas ideias como se estas fossem de conhecimento comum e não precisassem de introdução ou explicações minuciosas. Vemos trechos que se referem às visões de mundo, em russo: “A linguagem está intimamente relacionada à cultura. Essas são coisas inseparáveis. Nós vemos o mundo através da linguagem, através de palavras, expressões, metáforas (Apresentador, 00:00)”; “Mas toda língua é única. (pausa) E toda língua, ela, para o povo, é a base de sua cosmovisão, certo? Percepção de mundo (Participante, 01:27)”; “Como sabemos, a língua é o espírito do povo. (Participante, 01:46)”.

As visões de mundo de Humboldt se apresentam no material russo da seguinte forma: 1) introduzem o tema da conversa sobre a preservação da diversidade linguística: “Temos que falar sobre a perda da identidade nacional de nações inteiras”; “Em conexão com a globalização, as mais vulneráveis são as línguas das minorias étnicas” (Apresentador 1, 00:00); 2) descrevem a situação atual: “Todos pertencem à mesma família linguística, ao grupo Tungus-Manchu, à família das línguas altaicas. Mas toda língua é única. (pausa) E toda linguagem, ela, para o povo, é a base de sua cosmovisão, certo? Percepção de mundo (Participante 1, 01:27)”

No material brasileiro, observamos os mesmos princípios humboldtianos: “primeiramente, se nós pensarmos que reconhecer a pluralidade linguística ou a diversidade linguística permite que as pessoas se reconheçam também na suas línguas [e] percebam que ela nem sempre está falando a língua que o outro compreende (...)”; “a diversidade linguística como uma questão política, como uma questão importante para a identidade dos falantes”; “[para que] populações inteiras, [uma] parcela da população brasileira e de cidadãos brasileiros que não têm o português como primeira língua possam se reconhecer na sua língua, possam usufruir de políticas públicas nas suas línguas” (participante 1, 05’:30’’); ”é disso que trata o trabalho do IPOL: assessorar as comunidades linguísticas para que toda a cidadania possa se reconhecer no Brasil” (participante 2, 02’37’’); ”e de outros países que têm uma tradição muito mais longa, que quase desde a sua constituição entenderam como é positivo saber falar mais línguas e como isso é um tesouro para o país – que o país não deveria jamais perder” (participante 2, 05’53’’, enfatizando, inclusive, a ideia humboldtiana da variedade linguística como riqueza intelectual do mundo).

Depreendemos que, mesmo sem nenhuma menção direta a Humboldt, as ideias sobre preservação da diversidade linguística tanto no Brasil quanto na Rússia apresentam as mesmas justificativas e argumentos que aquelas teorizadas pelo alemão – inclusive, a nosso ver, as palavras utilizadas pelos entrevistados em suas falas são muito próximas às do próprio Humboldt. Além da ampla influência e diálogo entre o Círculo de Bakhtin e o filósofo da linguagem alemão, as entrevistas deixam patente a relevância deste último também para o cenário multilíngue contemporâneo dos dois países, em sua busca pela conquista de direitos das línguas minoritárias e por políticas linguísticas adequadas a esse propósito.

Considerações finais

A proposta desenvolvida ao longo deste artigo foi demonstrar a importância do linguista alemão Wilhelm von Humboldt para a Linguística ocidental em várias etapas: no desenvolvimento da linguística geral russa e europeia, sua influência na Escola de São Petersburgo, matriz dos trabalhos de Mikhail Bakhtin e Valentin Volóchinov e, consequentemente, a afinidade teórica que os conceitos humboldtianos visões de mundo e dualismo guardam com a ideologia do cotidiano e com o dialogismo desses autores. Ao demonstrarmos ao público brasileiro a relação entre Humboldt, Bakhtin e Volóchinov, nosso intuito foi o de facilitar a recepção do primeiro no Brasil, já familiarizado com as ideias do Círculo, por meio de um tema sensível à caracterização da identidade individual e social por meio da língua: o dialogismo e as ideologias ou visões de mundo coletivas, que entram em jogo na discussão da preservação da diversidade linguística.

A língua é o elemento constituinte da consciência tanto para Humboldt quanto para Bakhtin e Volóchinov. Humboldt afirma que a língua é o único meio entre consciências; Volóchinov, que a língua liga os indivíduos. Os autores convergem sobre o dialogismo da língua, especialmente sobre a constituição e efetivação do sentido linguístico por meio da interação discursiva. O ancoramento social da língua constitui o inventário linguístico-conceitual nacional para Humboldt (as visões de mundo), que fundamentam as instituições sociais; Volóchinov busca responder como a existência real (a base econômica) determina o signo ideológico (a palavra), e como o signo reflete e refrata a existência em formação, concluindo que, por meio dos enunciados e gêneros discursivos da ideologia do cotidiano, a ideologia intermediária entre a superestrutura e a base econômica (a psicologia social) se materializa, se reflete e se refrata na vida do indivíduo.

Humboldt concebe o dialogismo ao discutir o dualismo inerente à língua. Segundo o teórico, o dualismo se manifesta como a oposição entre Eu e Outro e a consequente responsividade do Outro a mim, que motiva toda interação discursiva. Bakhtin e Volóchinov avançam nas consequências dessa responsividade e teorizam que a própria constituição da individualidade e o valor do organismo biológico tem relação com a visão do Outro sobre mim – o outro é a faceta mais objetiva que um Eu pode conceber de si. A consciência individual, para o Círculo, é um fato sócio ideológico.

Conversas com especialistas em linguística, educação e ciência sobre a diversidade linguística no Brasil e Rússia atuais ilustram a relevância da contribuição humboldtiana à linguística. Os excertos apontam que as visões de mundo e outros conceitos de Humboldt estão contidos nas falas dos especialistas, mesmo sem menção direta ao teórico alemão. A Rússia já o incorporou como um teórico de fundamento; no Brasil, sua recepção representa uma contribuição importante na discussão da preservação linguística e do pluri e multilinguismo. Deixamos apontada a necessidade da linguística brasileira receber mais ampla e aprofundadamente as ideias de Humboldt.

Agradecimentos

As autoras agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo fomento das pesquisas que geraram este artigo, assim como ao GP Diálogo (USP/CNPq) pela interlocução.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Todas as traduções neste artigo são nossas.
  • 2
    Original: Humboldt war Linguist, im ganz modernen Sinne. Ja, er hat wesentlich beigetragen, die Linguistik im moderne Sinne zu konstituiren. (HURCH, 2004HURCH, B. Die Formierung der grammatischen Analyse: die Rolle des Baskischen auf dem Weg Humboldts als Grammatiker: Einige editorische Anmerkungen zu den frühen bascologischen Arbeiten. ASJU, XXXVIII-1, p. 333-351, 2004. Disponível em: https://ojs.ehu.eus/index.php/ASJU/article/view/8877/8189. Acesso em: 10 mar. 2022.
    https://ojs.ehu.eus/index.php/ASJU/artic...
    , p. 334).
  • 3
    Aleksandr Potebniá (1835-1891) foi um dos primeiros teóricos de linguística na Rússia (que, à época, incluía a Ucrânia). Filósofo, folclorista e literato, foi membro-correspondente da Academia Russa Imperial de Ciências de São Petersburgo e aplicou as ideias de Humboldt em corpora eslavo. Especializou-se em filosofia da linguagem, fonética histórica eslava e etimologia. Seu nome se tornou central no debate estético do século XX, em razão dos questionamentos que foram feitos às suas ideias pelos formalistas russos e pelo estruturalismo.
  • 4
    Gustav Chpiet (1879-1937) foi um filósofo ucraniano-russo, psicólogo, teórico da arte e intérprete (conhecia 17 idiomas). Foi seguidor de Edmund Husserl e introduziu na Rússia a fenomenologia husserliana.
  • 5
    Humboldt, como teórico de seu tempo, buscava construir uma “imagem” de cada povo (para ele, sinônimo de nação) por meio do reconhecimento de traços culturais específicos e correspondentes a cada nação – Völkerbeschreibung ou “descrição dos povos”, em tradução livre. Essa pesquisa foi concebida por Humboldt como um projeto antropológico, desenvolvido por meio de estudos linguísticos. Mais sobre o tema, ver Chabrolle-Cerretini (2014)CHABROLLE-CERRETINI, A. L’approche anthropologique du caractère national chez Wilhelm von Humboldt. The Tocqueville Review/La revue Tocqueville, Toronto, v. 35, n. 1, p. 55-71, 2014..
  • 6
    Polímata e filósofo alemão do século XVII/XVIII. Leibniz baseou-se na ideia de que a composição lexical de uma língua contém fatos que atestam a vida de um povo; a finalidade era esclarecer a história primitiva das nações por meio do estudo de seus respectivos idiomas. O projeto rendeu dois grandes resultados: a criação de uma nova disciplina científica, a etnografia, e o nascimento dos estudos comparativos e da lexicografia comparativa (LOBANOVA, 2018LOBÁNOVA L.P. Proiékt óbschiego iazykoznániia V. von Gúmboldta v kontiékstie stanovliéniia nóvoi naúki o iazykié v Giermánii XIX vieka. In: HUMBOLDT v. V. Kontsiéptsiia óbschiego iazykoznániia: tsiéli, sodierzhániie, struktúra. O projeto de linguística geral de Humboldt no conceito de formação de uma nova ciência da linguagem na Alemanha do século XIX. In: HUMBOLDT v. V. O conceito de linguística geral: objetivos, conteúdo, estrutura. Tradução, introdução e notas de L.P. Lobánova. Moscou: Lenand, 2018. p. 7-192.).
  • 7
    De acordo com Trabant, Leibniz apontou a Pedro Grande a necessidade de se estudar as línguas do Império Russo e assumiu que a antiga “proto-língua”, antes de mudar irreconhecivelmente como resultado de “mistura e deterioração”, se espalhou pelo continente eurasiano até a China (TRABANT, 1990). O Império Russo foi, portanto, um território propício aos estudos comparativos, à pesquisa e à tentativa de reconstrução da proto-língua.
  • 8
    Original: Sie selbst ist kein Werk (Ergon), sondern eine Thätigkeit (Energeia). (HUMBOLDT, 2006a, p. 98).
  • 9
    Original: In dem unsichtbaren Organismus des Geistes, den Gesetzen des Denkens, der Classification seiner Kategorien aber wurzelt der Begriff der Zweiheit noch auf eine viel tiefere und ursprünglichere Weise: in dem Satz und Gegensatz, dem Setzen und Aufheben, dem Sein und Nicht-Sein, dem Ich und der Welt. (HUMBOLDT, 1963HUMBOLDT, W. v. Schriften zur Sprachphilosophie: Werke in fünf Bänden III. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963. [1827].[1827], p. 137).
  • 10
    Original: Der Mensch spricht, sogar im Gedanken, nur mit einem Andren, oder mit sich, wie mit einem Andren (...). (HUMBOLDT, 1963HUMBOLDT, W. v. Schriften zur Sprachphilosophie: Werke in fünf Bänden III. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963. [1827].[1827], p. 138).
  • 11
    Original: Es liegt aber in dem ursprünglichen Wesen der Sprache ein unabänderlicher Dualismus, und die Möglichkeit des Sprechens selbst wird durch Anrede und Erwiederung bedingt. (HUMBOLDT, 1963HUMBOLDT, W. v. Schriften zur Sprachphilosophie: Werke in fünf Bänden III. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963. [1827].[1827], p. 138).
  • 12
    Original: Zwischen Denkkraft und Denkkraft aber giebt es keine andre Vermittlerin, als die Sprache. (HUMBOLDT, 1963HUMBOLDT, W. v. Schriften zur Sprachphilosophie: Werke in fünf Bänden III. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963. [1827].[1827], p. 139).
  • 13
    Original: (...) das Wort gleicht, allein im Einzelnen geboren, so sehr einem blossen Scheinobject, die Sprache kann auch nicht vom Einzelnen, sie kann nur gesellschaftlich, nur indem an einen gewagten Versuch ein neuer sich anknüpft zur Wirklichkeit gebracht werden. (HUMBOLDT, 1963HUMBOLDT, W. v. Schriften zur Sprachphilosophie: Werke in fünf Bänden III. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963. [1827].[1827], p. 139).
  • 14
    Original: “sieitchás mieniá zanimáiet prieimúschiestvienno mietafízika. Riechíl snóva proviestí sierióznuiui rievíziiu svoíkh sóbstviennykh ubiezhdiénii I zánovo chtudíruiu sistiému Kánta s sámogo natchála.” (ANDRZEJEWSKI, 2015ANDRZEJEWSKI, B. Immanuíl Kant i voprósy kommunikatívnogo konstruktivízma (Immanuel Kant e as questões do construtivismo comunicativo). Tieorietítchieskaia filosófiia Kanta, Kaliningrado, p.17-25, 2015., p. 19).
  • 15
    Nascido na Breslávia (antigo território alemão – atual Polônia) em 28 de julho de 1874 e falecido em 13 de abril de 1945 em Nova Iorque, EUA. Pertenceu à escola neokantiana de Marburg e foi um dos principais impulsionadores do idealismo no século XX.
  • 16
    Original: “Wie bei Kant der Gegenstand, als “Gegenstand in der Erscheinung”, der Erkenntnis nicht als ein Äußeres und Jenseitiges gegenübersteht, sondern durch deren eigene Kategorien erst “ermöglicht”, erst bedingt und konstituiert wird.” (CASSIRER, 1954CASSIRER, E. Philsophie der Symbolischen Formen. Oxford: Oxford, 1954., p. 102).
  • 17
    Segundo Stanford Encyclopedia of Philosophy (Enciclopédia Stanford de Filosofia), na Crítica da Razão Pura (A80/B106) Kant distingue doze categorias, divididas em quatro classes: (1) Quantidade: unidade, pluralidade, totalidade; (2) Qualidade: realidade, negação, limitação; (3) Relação: substância, causalidade, comunidade; (4) Modalidade: possibilidade, existência, necessidade. Endereço: https://plato.stanford.edu/entries/categories/#KanCon. Acesso em: 4 mar. 2020.
  • 18
    Original: Die Sprache ist nicht anders, als das Complement des Denkens, das Bestreben, die äusseren Eindrücke und die noch dunkeln innere Empfindungen zu deutlichen Begriffe zu erheben, und diese zu Erzeugung neuer Begriffe mit einander zu verbinden. (HUMBOLDT, 2006b, p. 10).
  • 19
    Guyer (2000)GUYER, P. Absolute idealism and the rejection of Kantian dualism. In: BEISER, F. German Idealism. New York: Cambridge University Press, 2000. p. 38-56. esclarece a dicotomia entre conceito e intuição, que embasa a filosofia de Kant.
  • 20
    Original: (…) denn in ihm erst enthüllt sich die ursprüngliche Kraft der S y n t h e s i s, auf der alles Sprechen, wie alles Verstehen zuletzt beruht (…) Ihren knappsten und schärfsten Ausdruck erhält diese Gesamtansicht in der (…) denn in ihm erst enthüllt sich die ursprüngliche Kraft der S y n t h e s i s, auf der alles Sprechen, wie alles Verstehen zuletzt beruht (…) Ihren knappsten und schärfsten Ausdruck erhält diese Gesamtansicht in der bekannten Humboldtschen Formulierung, daß die Sprache kein Werk (Ergon), sondern eine Tätigkeit (Energeia) sei. (CASSIRER, 1954CASSIRER, E. Philsophie der Symbolischen Formen. Oxford: Oxford, 1954., p. 105).
  • 21
    Original: “(…) da nur in der Sprache sich der ganze Charakter ausprägt, und zugleich in ihr, als dem allgemeinen Verständigungsvehikel des Volks, die einzelnen Individualitäten zur Sichtbarwerdung des Allgemeinen untergehen, In der That geht ein individueller Charakter nur durch zwei Mittel, durch Abstammung und durch Sprache, in einen Volkscharakter über”. (HUMBOLDT, 2006b, p. 2).
  • 22
    Original: “(…) das Sprachstudium lehrt daher, ausser dem Gebrauch der Sprache selbst, noch die Analogie zwischen dem Menschen und der Welt im Allgemeinen und jeder Nation insbesondre, die sich in der Sprache ausdrückt (...)”(HUMBOLDT, 2006b, p. 8).
  • 23
    Em russo:” kázhdaia óblast’ tchieloviétchieskoi diéiatielnosti obrazúiet sfiéru ‘simvolítchieskoi’ fórmy. Takím óbrazom, k simvolítchieskim fórmam prinadliezhát, naprimiér, naúka, rielígiia, mif, iskússtvo. Istóriia i iazy’k.” (ANDRZEJEWSKI, 2015ANDRZEJEWSKI, B. Immanuíl Kant i voprósy kommunikatívnogo konstruktivízma (Immanuel Kant e as questões do construtivismo comunicativo). Tieorietítchieskaia filosófiia Kanta, Kaliningrado, p.17-25, 2015., p. 21).
  • 24
    O corpus deste artigo está disponível no site: compdis.fflch.usp.br, acesso em: 14 fev. 2022. O material russo foi traduzido para o português, porém sem as regras brasileiras de transcrição, pois não se aplicam ao idioma. Não foram estabelecidas ainda regras de transcrição específica para traduções, de modo que o corpus russo está apresentado como texto traduzido. Para mais informações, ver o site supracitado.
  • 25
    Fontes: Serviço de Estatísticas do Estado Federal / Fiedieralnaia Sluzhba Gosudarstviennoi Statistiki, 2010. Endereço: www.gks.ru. Acesso em: 14 fev. 2022. IPOL – Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística. Endereço: http://ipol.org.br. Acesso em: 14 fev. 2022.
  • 26
    Endereço: https://www.youtube.com/watch?v=W8dgyCRXmGs. Acesso em: 14 fev. 2022.
  • 27
  • 28
    Foi decidido manter os nomes dos participantes no texto do artigo uma vez que a análise não é sobre os pontos de vista ou competência destes, mas sim sobre aspectos de suas falas que se aproximam da filosofia humboldtiana da linguagem.
  • 29
    Programa participante da Associação de Minorias Indígenas do Norte, Sibéria e Extremo Oriente da Federação Russa (Assotsiátsiia korienny’kh malotchísliennykh naródov siéviera, Sibíri i Dálniego Vostóka Rossíiskoi Fiedierátsii). Endereço: http://raipon.info/documents/Docs_RAIPON/НП%202021+.pdf. Acesso em: 14 fev. 2022.
  • 30
    Termo da língua latina que significa a terceira parte da comparação. É a qualidade comum entre dois objetos que estão sendo comparados.
  • 31
    Centro de Pesquisa sobre os discursos cotidianos e especializados. Endereço: https://cediscor.revues.org/65. Acesso em: 14 fev. 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2021
  • Aceito
    23 Abr 2021
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